LUZ ESPÍRITA
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:39

- Rejubilo-me com as tuas louváveis resoluções, Paulo, e espero sejam inabaláveis.
Previno-te de que, decorridos alguns meses, estarás aliado àquele que execraste e àquela que adoraste mais do que ao próprio Criador.
Não te apavora a ideia de ligares à de Carlos a tua existência?

- Não; sinto-me quase venturoso, pois no meu íntimo não há mais vestígio de ódio, e ardo no desejo de pôr em prática os vossos sábios ensinamentos.
Foi esse o formal compromisso que contraiu o mísero Paulo Devarnier quando, após aquela estupenda digressão pelo Infinito, onde gravitam arquipélagos de nebulosas, pôde exprimir seus pensamentos à excelsa entidade que o acompanhava paternalmente.

Esse o almejado e indissolúvel pacto que, naqueles magnos instantes, fizemos eu e o meu Guia.

* * *
Caro amigo, ao proferir o último vocábulo do nosso Orivênio espiritual, firmado em nome do Altíssimo, senti que começara a descer.
A força centrípeta, que havia muito deixara de existir para mim, entrou novamente a impelir-me vertiginosamente para o planeta da dor e do pranto, com rapidez indescritível.
Uma energia incontrastável me atraía para a Terra, como se fosse arrebatado por um ciclone irresistível, por um torvelinho estonteante, para um abismo tétrico, insondável, infinito...

22 Designa um tipo de fraseio ou de articulação no qual as notas e os motivos das frases musicais devem ser executados com suspensão entre eles.
Sentido figurado: pausa; expectativa.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:39

LIVRO III - O inspirado

CAPÍTULO I


Quando recobrei as faculdades intelectuais, que uma recente encarnação obscurecera - eclipse da alma, que a matéria obumbra - status morbidus23 em que se dá a paralisia temporária de quase todas elas, noite cujo lento alvorecer só é completo quando o Espírito se liberta novamente do ceno carnal; quando recobrei as minhas faculdades, algum tempo depois daquela romaria maravilhosa, instrutiva e moral, através do Espaço insondável, depois de me ter inebriado com as refulgências multicores de miríades de astros deslumbrantes e com os acordes melodiosos que se evolavam de uma das mais esplêndidas estrelas engastadas na amplidão celeste - achava-me na Terra, o mísero planeta da expiação, onde eu tanto sofrera e para onde voltara a cumprir um aresto divino!

Sabia que pertencia de novo à Humanidade, mas não me era possível divisar os seres nem os objectos que me circundavam, como se o deslumbramento que experimentara no empíreo fora tão intenso que me houvesse absorvido a faculdade visual.
Talvez para que, depois de ter me deliciado com o belo incomparável, com a arte superlativa, com a estética sideral enfim, não o profanasse na contemplação de espectáculos de ordem inferior, ou para que me não sentisse nostálgico do Infinito, saudoso do que, embevecido, vira e, assim, não tentasse voltar aos paramos celestes, na ansiedade de revê-los.

Encontrava-me na conjuntura de alguém que houvesse encerrado em urna de bronze, como relíquia sagrada, um punhado de pétalas de rosas, ofertadas por idolatrado ente na sua hora extrema, e que, transcorridos anos, temesse descerrá-las para não ver as pétalas reduzidas a pó, que a aragem mais branda poderia levar para sempre.

As rosas sempre foram o símbolo da quimera, do ilusório: têm duração efémera.
As flores ideais colhi-as eu no próprio azul onde cintilam as esferas multicores e era mister que as conservasse intactas no sacrário da alma, a fim de que, na Terra, não as visse pulverizadas pelas decepções da vida, arremessadas longe pelos turbilhões da adversidade.
Quem está com os pés atolados num pântano deletério, mais sofre se tem o pensamento preso às estrelas.

Bem faz, pois, o Soberano do Universo, em cativar as recordações de todas as suas obras portentosas nos mais escuros escaninhos do Espírito, para que este se conforme com o seu destino - que é o de viver aprisionado nas sombras, não se lembrando dos jorros de luz das constelações!

Que mais poderia contemplar que me maravilhasse, depois da excursão prodigiosa de que me ficara vaga reminiscência nos escrínios da alma, que também guardava pálida lembrança de ter ouvido alhures uma sonoridade dulcíssima, impressão que nela se incrustara, como da fragrância dos lilases se impregna um pedaço de alvo linho da Irlanda?

Que mais me poderia atrair no orbe terráqueo?
Nada, por certo. Era um degredado nostálgico, desejoso apenas de cumprir rigorosamente uma sentença íntegra, a fim de poder regressar à pátria querida.
Jazia no fundo do meu "eu" um misto de dor e de ânimo varonil que de mim fazia uma criança incompreendida, insatisfeita, de emotividade apurada, cismadora e desventurada.

Ai, caro amigo, nascera cego!
Compreendeis toda a extensão da minha desdita?
Uma flor a que se roube o perfume e o colorido;
um astro que, extinta de súbito a sua luminosidade, arraste pela amplidão, eternamente, seu cadáver carbonizado - são coisas menos pungentes do que nascer sem vista um ente humano!

De que lhe vale a existência, se não pode orientar-se, saber onde se acha - se é sombrio ou radioso o país em que lhe deram o ser, se não pode ver as criaturas que o rodeiam, se tem que ficar sempre na ignorância do que seja uma ave, uma camélia, um céu azul; se não lhe é dado conhecer um irmãozinho adorado, um pai laborioso, uma extremosa mãe, que o aconchegou ao seio, cobrindo-lhe as róseas faces de lágrimas e beijos?

Viver encarcerado em soturna caverna, sem um archote para espantar a escuridão em torno;
ter no cérebro o negror de uma noite perpétua, sem o menor vislumbre de duuculo;
descerrar as pálpebras e só deparar com o luto da cegueira, que parece provir da profundeza de um sepulcro e penetrar, pelas pupilas fendidas, até a alma, entenebrecendo-a permanentemente:
eis o que é ser cego, eis o que comigo se passava, bom amigo!

Quando começou a se me desnudar o senso, soube que renascera na França;
que minha mãe morrera ao dar-me a vida;
que meu progenitor me olhava com infinita mágoa, talvez desejando que a minha existência, a seu ver, inútil, se extinguisse como o lume dos meus olhos; que ele muitas vezes se referia à minha desventura, revelando, na dolorosa inflexão da voz, prantos mal contidos.

Minha impressão constante era de estar com a alma amortalhada nas sombras da geena, ou de ser mirrada planta que germinara sob uma cripta umbrosa, onde nunca a mais pequenina seta de estrela penetrara.

Desde tenra idade compreendi o infortúnio de meu pai - probo mecânico, algum tanto ríspido - que não deplorava só a minha imperfeição física, mas a perda da esposa idolatrada, que já lhe dera uma encantadora filhinha, uma dessas graciosas e louras bonecas vivas, que parecem a toda gente importadas directamente do paraíso.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:40

Não me quis oscular a fronte quando nasci, entregou-me aos cuidados de uma dedicada e antiga criada, que já o tinha sido também de meus avós paternos.
Afagos só os recebia de minha irmãzinha Jeanne -mais velha do que eu um lustro.

Dizia ela sempre que eu fora a sua primeira e única marionete e que, por isso, se afeiçoara imenso ao formoso ceguinho, como as crianças, que amam as nacaradas efígies de biscoito representativas de belos bambinos, concentrando nelas todos os seus pensamentos e sonhos, sem o saberem, para a sementeira dos mais puros afectos que futuramente consagrarão aos entes que o Altíssimo lhes confiar.

Sabia que minha irmã era débil, de cabelos áureos como os meus, merencória e gentil.
Tão perfeitamente a conhecia, como se a contemplara alguma vez com olhar de lince. Ideava-a com feições de querubim;
sentia-lhe o contacto das cetinosas mãozinhas que me cariciavam e que, de tanto segurarem as minhas para me guiar em nossa casa e nas ruas, já supunha inseparáveis destas, algemadas por grilhões de luz tépida e suave, que irradiasse de alma para alma.

Inebriava-me o timbre melífluo da sua voz, que me ia até ao mais profundo recesso do espírito, lá onde dormitavam as reminiscências do sublime e da harmonia suprema.

Distinguiria até os seus beijos dos de outrem, se alguém por piedade mos desse.
Só ela sabia tornar floridos alguns instantes da minha infância.
Fazia-lhe interrogações curiosas sobre tudo que nos cercava e ela jamais se recusou a dar-me qualquer informe, com uma solicitude maternal e angélica ao mesmo tempo, porque entre mãe e anjo há um traço de união: a nobilíssima tarefa de ambos, que se resume nestes vocábulos - velar, proteger, amar!

Jeanne, para mim, realizava aqueles dois ideais e muito mais ainda:
era a mãe que a morte me roubara, o anjo tutelar a quem estava confiado, o mundo que me não era dado ver!

Despertava-me com meiguice;
tirava-me do pequenino leito, mal podendo suster-me ao colo, alimentava-me, custodiava-me o dia todo; passeava comigo pelos arredores da nossa humilde habitação, esclarecia-me a respeito de tudo que nos rodeava e, ao crepúsculo, antes de me aninhar, ensinava-me a escalar com o pensamento o Céu, onde dizia estar a nossa desventurada mãe, de quem não me podia lembrar sem intensa amargura, porque meu pai repetia sempre que fora eu o causador da sua morte.

Nosso progenitor - muito jovem ainda, robusto, talentoso e culto, pois iniciara o curso de Engenharia Civil, que não pudera concluir devido a uma brusca mudança da fortuna e à morte de meus avós - passava os dias ausente do lar, só estando a nosso lado à noite.

Deslizava assim a nossa existência de proletários, num casebre dos arredores de Paris, onde não faltava a côdea de pão, mas não existia a ternura materna - o alimento de luz da alma das criancinhas.

Já me havia habituado a estar perto de Jeanne, a acompanhá-la como satélite ao astro.
Ela não se impacientava nunca e me prodigalizava lições profícuas sobre as coisas imprescindíveis à vida, regozijando--se por me ver aprendê-las com avidez e perspicácia pouco comuns.

Desde os primeiros albores da minha puerícia eu lhe manifestara desejo de saber música e fazia projectos tão maravilhosos sobre a arrebatadora arte do célebre Paganini,24 que causava pasmo à querida professorinha e à nossa fiel servidora.

Esta, na qualidade de pessoa mais judiciosa da casa, me aparteava como a experiência lhe sugerisse.
Com o correr do tempo, meu pai se foi acostumando à minha desventura e tornando-se menos áspero para comigo.
Já me ameigava, apertando-me nos braços vigorosos, e, muitas vezes, senti umedecida de pranto a minha fronte aureolada de caracóis dourados.

- Tão belo, tão inteligente - murmurava ele, deixando transparecer na voz soluços insofridos - e, no entanto, perdido para mim, para a família e para a pátria!

Assim transcorreu minha infância, entre os afagos de Jeannette e as apreensões de nosso pai, supliciado por dupla infelicidade, que o levava a falar-me, repetidas vezes, nestes termos:
- Que és afinal, meu filho?
Uma treva que causou a extinção da luz mais preciosa do nosso lar!
Pobre filho! Que será de ti, quando eu deixar de existir?

Deus que vele por ti, meu François, que não tens mais do que um futuro sombrio, que não poderás amparar tua irmã, nem defender a nossa terra!
Escutava-o em silêncio, cabisbaixo, consternado, mal sofreando as lágrimas e desejoso intimamente (não ignorais que as crianças sabem devanear e conceber planos) de poder, algum dia, desvanecer-lhe os temores, fazê-lo pensar de modo diverso a meu respeito.

Para realizar esse intento, arquitectava obter, por meio de uma arte qualquer, uma posição de destaque, que me garantisse a manutenção e a dos que me eram caros.
Ao completar oito anos de idade comecei a frequentar as aulas de um Instituto de Cegos e era minha compassiva e formosa irmã quem, como eu outrora, exultante, acompanhava a gentil Elisabet a um dos colégios de Berlim - me levava aos estudos, diariamente, cheia de inexcedível solicitude.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:40

Muitas vezes parávamos em caminho para que ela me orientasse sobre o local onde nos achávamos, apanhava do chão alguma flor arremessada pela viração e me fazia aspirar-lhe o perfume, dedilhar as pétalas cetinosas, dizendo-me a cor que possuíam.

Deste modo, consegui distinguir diversas flores, pelo aroma ou pelo simples contacto, pela conformação ou dimensão das pétalas, dando a cada uma o respectivo nome.
Não me eram estranhas também as ruas de Paris, por uma sensação que experimentava quando as percorria, sensação que não podia definir.
Hoje, sei que se originava das recordações latentes no meu íntimo, acumuladas desde o tempo em que por elas transitara noutras existências.

Que vinha a ser, porém, a cor, para mim?
Não saberia exprimir os meus pensamentos, se alguém me interrogasse sobre esse tema.
Entretanto, a experiência própria me demonstrou que os desprovidos da faculdade visual sabem fantasiar inúmeros matizes, possuem noções incalculáveis sobre tudo que os circunda, faltando-lhes somente os vocábulos precisos com que traduzam suas ideias.

A mim me sucedia ver em sonho o que minha irmã me ensinava durante o dia.
Divulgava tudo, imerso num clarão intenso.
Armazenava provisões de conhecimentos sobre pessoas e coisas, que se me tornavam familiares, e, ao despertar, descrevia a natureza com admirável exactidão.

Como menino, era dócil, tímido, estudioso, perspicaz e belo - ao que todos me afirmavam.
Tinha, por isso, o dom de me insinuar agradavelmente no ânimo dos que comigo privavam.

No Instituto, cujas aulas frequentava, tornei-me o alvo da simpatia de todos os docentes, com especialidade do professor de música, porque revelara, desde os primeiros rudimentos que aprendera da sublime arte de Mozart, uma percepção fácil, uma vocação digna de apreço.

23 Estado de morte
24 Violinista italiano (1782-1840), célebre por sua virtuosidade prodigiosa.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:40

CAPÍTULO I I

E chegada a ocasião de confirmar, distinto amigo, o que, certamente, já descobristes:
que Jeanne, a irmã modelar, era a mesma criatura de Berlim, a noiva infortunada;
que, de facto, as nossas existências se fundiram de novo como as águas de dois regatos que, nascidos em fontes longínquas, vão sulcando as terras até fazerem junção, tornando-se um só riacho, sereno e cristalino;
que ambas se entrelaçaram como se entrelaçam os pâmpanos de duas videiras sobre o mesmo gradil que as sustém, formando um só estendal de vicejantes folhas.

Eu, porém, naquela época - com as ideias enubladas pelo esquecimento, que narcotiza as potências espirituais, a cada existência - ignorava que Jeanne fosse a noiva de outrora.
Só sabia que era a mais extremosa das irmãs; que o Criador piedosamente ma concedera para meu lenitivo constante;
que não lamentava nunca a minha imperfeição física, concorrendo em tudo que estivesse a seu alcance para minorar minha desdita.

Transmitia-me quanto ia aprendendo;
punha-me a par das notícias cotidianas, lendo, para que eu ouvisse, jornais e revistas que nosso pai nos ofertava.
Ao anoitecer, passávamos as horas em efusivos colóquios e ela aproveitava o ensejo para me leccionar.

Certa vez estava a ler, num compêndio de História Natural, o capítulo referente aos batráquios.

Comoveu-me a notícia de que nos lagos subterrâneos da Dalmácia e da Carníola se encontravam (como ainda hoje) misérrimos seres, os proteus, desprovidos de visão. Interrompi-lhe a leitura, para exclamar:
- Quanto lastimo o destino desses desgraçados animalejos, filhos das trevas, Jeanne!
Que vida de suplício a deles, encerrados em dupla escuridão - a da cegueira e a subterrânea!
Compreendo bem quanto são infelizes, minha irmã, porque sou um proteu humano.

Jeanne sensibilizou-se, beijou-me a face e disse:
- Não quero mais que te expresses assim, François!
Eles são incomparavelmente mais desditosos do que tu, porque não têm uma Jeanne para adorá-los.

Senti-me vexado e arrependido de haver pronunciado aquelas irreflectidas palavras.
Éramos inseparáveis: vivíamos unidos um ao outro, como dois afamados siameses, porque Deus nos criara, não com os corpos, mas como espíritos gémeos, ligados pelas fúlgidas e eternas algemas do amor fraterno.

Meu pai nos contemplava embevecido, mas, ao notar a debilidade dos nossos organismos, se entristecia e, algumas vezes, à hora da nossa ceia frugal - Jeanne é quem mo dizia em segredo - se punha a fitar-nos, com os olhos nevoados de pranto, e, debruçando-se sobre a borda da mesa, soluçava.

O conhecimento dessas cenas tocantes me comovia, e, tentando dissipar-lhe os desgostos, narrava-lhe, com entusiasmo infantil, os meus triunfos escolares.
Ele, porém, me ouvia sempre taciturno, dando ensejo a que, comparado o seu retraimento com as demonstrações de carinho e incitamento de Jeanne, me visse forçado a confessar a mim mesmo que, incomparavelmente mais do que àquele que me dera o ser, adorava eu a minha irmã, pois que só ela me tratava sempre com desvelos inexcedíveis.

Sua inigualável dedicação chegava ao ponto de vendar os límpidos e magníficos olhos azuis - para identificar as nossas condições orgânicas - e se punha a tactear os caracteres em relevo nos quais estudam os que carecem de lume nas pupilas, os desventurados que, vivos, têm, incrustados nas órbitas, órgãos visuais de cadáveres, inanimados e inúteis.

Não se descuidava também do meu preparo espiritual, pois era fervorosa cristã.
Aos domingos, enquanto o pai se deixava ficar em casa, repousando das fadigas de uma semana de labor, ela me guiava a um templo católico, proporcionando-me ensejo de ouvir, com enternecimento e enlevo, músicas sacras que me acordavam no íntimo recordações inexprimíveis.

Fazia-me ajoelhar e erguer o pensamento ao Céu, sentindo eu, naqueles magnos instantes, que as minhas preces eram sinceras e vibrantes, que meus lábios se moviam por uma força alheia à minha vontade.
Depois, no caminho de volta ao nosso modesto domicílio, me descrevia tudo quanto estava a ver, tentando, abnegada criatura, substituir o precioso dom físico que a natureza sabiamente me negara.

Aos poucos, ia eu adquirindo conhecimentos não comuns na minha idade - doze anos - porque minha inteligência facilmente apreendia as prelecções dos professores e os ensinamentos de Jeanne, como os vegetais sedentos sugam avidamente as gotas de orvalho, aljofradas do Alto.

Mesmo depois que se fez moça, que se tornou uma graciosa jovem, continuou minha irmã a me conduzir às aulas e exultava ao saber que eu progredia nos estudos, que me distinguia nos cursos de violino e de piano.
Um dia obtive permissão do director do Instituto para que ela me acompanhasse até um dos seus salões, a fim de me ouvir executar uma formosa rêverie que, por mim elogiada, lhe despertara interesse e desejo de apreciá-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:40

Jeanne sentou-se, timidamente, a pouca distância de um Pleyel,25 dirigindo-me algumas palavras de animação.
Venturoso por tê-la a meu lado, comecei a preludiar uma sonora cromática, quando, repentinamente, sem que soubesse definir o que então se passou comigo, perdi a noção da realidade, esqueci-me por completo da música estudada, caí em êxtase e entrei a dedilhar um desconhecido nocturno harpeado, de beleza, melancolia e maviosidade surpreendentes, com uma agilidade e técnica irrepreensíveis.

Acercaram-se de mim algumas pessoas, julgando, talvez, que um estranho houvesse penetrado no Instituto, sem prévia autorização.
Deparando com o ceguinho que, naqueles instantes, tinha a alma em apoteose, ou aclarada por singular crepúsculo, ao lado de uma airosa donzela de olhos azuis, marejados de lágrimas de felicidade, ficaram surpresas.

Terminada a execução da minha primeira produção musical, considerada primorosa para a minha idade infantil - fui despertado do meu sonho por muitos aplausos, estreitado em muitos braços amigos, mas eu, submerso de novo em atro nevoeiro - só procurava a mão gélida e fremente da dilecta Jeanne.

Compreendi que aquele nocturno me fora inspirado por um influxo extraterreno e pela gratidão que de minh'alma transbordava.
Assim como outrora o óbolo da piedosa Isabel, a rainha santa, se metamorfoseara em odorantes rosas - também minh'alma, a fim de poder exprimir seu profundo reconhecimento para com a generosa e angélica criatura que me dispensava extremos maternais, se transformara momentaneamente em centro de vibrações harmoniosas.

O Céu me concedera a faculdade de transfundir o meu agradecimento em ondas melodiosas - o mais belo idioma do coração enternecido, aquele em que, certamente, as entidades luminosas manifestam seus pensamentos ao Criador do Universo.

25 Marca famosa de piano.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:41

CAPÍTULO III

A partir desse inesquecível dia em que minh'alma teve a inflamá-la a primeira centelha da Inspiração - momentos de sonho em que dedilhei um instrumento sentindo que minhas pequeninas mãos se tornaram quase imateriais, leves como delicadas plumas, ora suspensas do teclado, ora por ele correndo quais asas de passarinhos em revoada - conquistei uma situação de destaque no Instituto.

Meu estro musical deu tema a vivos comentários, e um dos professores sentenciou com entusiasmo:
François Delavigne é um artista em perspectiva!
Meu pai, ao ter conhecimento dos meus triunfos escolares, exultou; mas logo a habitual tristeza o empolgou de novo.

Deplorou mais do que nunca o meu infortúnio:
- Que vale ser um artista o meu François?
Jamais poderá desfrutar a vida;
há de sempre precisar de mãos alheias para guiá-lo.

É quase um ramo que só poderá vicejar preso ao caule em que desabrochou.
Que é que sucederá se lhe faltar o caule protector - o meu amparo, a minha dedicação paternal?
Eu o ouvia sem pesar, tanto já me afizera às suas amargas reflexões.

Um dia, porém, não pude deixar de dizer-lhe:
- Não deploreis mais a minha sina, meu pai, pois que, apesar de cego, não me julgo desgraçado!
Há momentos em que me considero tão ditoso que sinto minh'alma entoar hinos de reconhecimento ao Eterno.

Não me consolam, acaso, a vossa afeição inexcedível, o amor incomparável de Jeanne e a minha arte excelsa?
Bem vedes: sou um sentenciado que vai cumprindo serenamente a pena que lhe impôs o destino.

Que importa me haja o Omnipotente negado lume aos olhos, se me iluminou o espírito com estelíferos clarões, radiosas carícias, melodias inefáveis - mais valiosas, para mim, do que a própria vista?

Deslumbra-me, às vezes, um como luar interior.
Parece-me estar exilado em região luminosa, a que faltam, para ser real, mobilidade, criaturas e plantas.

"Tenho a iniludível certeza de que minh'alma é fúlgida ninfa encerrada em espesso casulo, que lhe veda o esplendor solar e lhe tolhe as asas.
Sei também que, quando dele se desligar, quando o casulo de carne for atirado ao fundo de um sepulcro, ela, liberta, cindirá o Espaço constelado, transformada em falena de luz.

Lastimais a minha sorte, como se eu assim houvera de ficar eternamente.
Entretanto, talvez o Criador me tenha degredado, para aqui, por tempo bem limitado.
Não mais lamenteis, pois, meu pai, a condição em que me vejo neste planeta, ao vosso lado, no curso de uma vida que não passa de um átomo, comparada à existência eterna".

Ele, estupefacto, absorto ante a linguagem incisiva com que lhe falara e a certeza inabalável que manifestara numa vida porvindoura, repleta de ventura, após as provas terrenas, deixou por algum tempo de aludir à minha imperfeição física, evitando que de seus lábios escapasse um só queixume contra a Providência, por me ter feito nascer cego.

Vivemos alguns anos uma existência plácida, despida de incidentes dignos de menção - qual um mar em calmaria, antes que o convulsionem as rugidoras procelas, que já estão iminentes sobre as nossas frontes.

Jeanne, segundo ma descreviam, era formosa como um arcanjo de Rafael.

Disseram-me certa vez ter um rosto que parecia esculturado em nácar ou em neve rósea;
olhos de diamantes azuis, luminosos, melancólicos, ressumbrando inteligência e candidez;
cabelos fulvos, com reflexos de ouro liquefeito; corpo esguio e esbelto, de contornos suaves;
porte donairoso que, sem arrogância, revelava distinção, ou antes, a superioridade dos seres divinizados pela nobreza dos sentimentos, que lhes transparecem nos semblantes de entes imaculados, como a luz de uma lâmpada através do cristal fosco.

Apesar, porém, da sua formosura, de seduzir a quem a visse, pela graça e pureza, pelo conjunto harmonioso de predicados físicos e intelectuais com que a dotara a Natureza, que a fariam destacar-se entre todas as donzelas nos dias festivos, mesmo se se cobrisse de andrajos - qual princesa disfarçada em campónia, Jeanne não era feliz, por ter ideais irrealizáveis na Terra.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:41

Nem vaidosa, nem desejosa de conquistar corações, sofria por não poder cultivar o espírito quanto almejava.
Por uma intuição que nunca ilude a alma em que desabrocha, pressentia que a vida terrena lhe seria um meteoro fugaz em firmamento borrascoso.
Ainda na flor da juventude, já se sentia definhar lentamente e, para não inquietar os que a amavam, ocultava de todos o seu estado mórbido.

Muitas vezes eu a ouvia tossir, tapando a boca com as mãozinhas mimosas.
Impelido pela afeição e pelo interesse que me inspirava a querida Jeannette, fui levado a manifestar meus receios a meu pai, que se alarmou ainda mais do que eu.

Levou-a imediatamente a um excelente médico, que lhe aconselhou cuidados extremos para com a filha adorada, declarando que o tratamento e incessantes desvelos poderiam estacionar a moléstia que começara a invadir aquele organismo juvenil, mas sem robustez.

Proibiu terminantemente à enferma fatigar-se com qualquer labor manual, porém nenhuma esperança deu de lhe restabelecer a saúde alterada, leanne, entretanto, sorria da nossa aflição, tentando dissipá-la com meiguices e uma resignação celeste.
Apesar de secretamente torturado, por motivo da sua insidiosa enfermidade, não interrompi meus estudos, revelando cada vez mais decidida vocação para a música - a mais sublime de todas as artes terrenas porque arroja a alma ao Infinito, mergulhando-a em delicioso transporte, fazendo-a olvidar suas penas ou as dulcificando, aproximando-a, enfim, do próprio Omnipotente, o Inspirador fecundo e inesgotável!

Minha existência apresentava então duas faces distintas: na escola, onde entesourava todos os conhecimentos artísticos e literários que me prodigalizavam os professores, era ditoso; no obscuro lar, as vicissitudes e mágoas me faziam desventurado aos dezasseis anos de idade.

Tinha o pensamento sempre fixo em Jeanne, chorando às ocultas, inquieto, apenas dela me separava por algumas horas, temeroso sempre de ficar, talvez dentro de pouco tempo mais, sem as suas blandícias fraternais.

Apavorava-me o pensar na falta impreenchível que ela me faria, se deixasse de existir.
Certamente minh'alma se cobriria de crepe e conheceria o anoitecer dentro de si mesma.
Seria, para mim, cegueira do próprio coração alanceado de dor imensurável.

Ela, no entanto, a irmã querida, se esforçava de todos os modos por me tornar venturoso.
Entristecia-se ao notar que me achava taciturno e bem assim o nosso genitor.
Tentando dissipar lúgubres apreensões, entregava-me com frenesi aos estudos no Instituto, mas, de regresso ao lar, passava horas a meditar, desalentado, só despertando, às vezes, com os gracejos de Jeanne.

Não esmiuçarei, porém, meu amigo, todas as tribulações por que passei nessa existência em que me não conhecestes e na qual meu espírito se despojou de muitas máculas, ressarciu faltas graves cometidas em prístinas eras, em vidas de prazeres, de ignávia ou de crimes.

Uma tarde que, para mim, jamais se apagará na caligem do esquecimento, eu e Jeanne aguardávamos a chegada de nosso pai para fazermos a nossa frugal refeição.
Eram momentos esses ansiosamente esperados, pois que, reunidos em torno de uma mesa circular, se estabelecia entre nós uma verdadeira troca de ideias.

Relatávamos aí os episódios do dia, nossas lutas, alegrias e esperanças.
Naquela noite, porém, notamos que ele tardava muito em regressar dos seus labores, o que não lhe era habitual.
As horas se escoaram em letal inquietação, parecendo-nos intérminas e ninguém mais se lembrava de que a ceia não fora servida.

Depois de muitas suposições, emudecemos, transidos de mortificantes receios.
Quedo, meditativo, assaltou-me doloroso presságio, que é a antevisão das coisas do futuro: começara para nós uma via crucis pungentíssima!

Permaneci, porém, silencioso à espera do ausente, implorando ao Altíssimo fossem infundados meus temores.
Quando já tocava ao auge a nossa inquietação, percebemos distintamente que uma carruagem parava à porta de casa e, logo após, ouvimos rumor de passos desconhecidos na escada que dava acesso à sala de visitas, como se diversas pessoas andassem dificultosamente, conduzindo alguém inanimado.

Julgamo-nos, por momentos, sob o domínio de um pesadelo opressor, mas o ruído do bater enérgico de mão à porta da entrada - onde, como atalaia muda, se postara a nossa bondosa serva Margot - nos chamou à realidade.

Aberta a porta bruscamente, alanceou-me o coração um grito agoniado de Jeanne:
- Nosso pai vem ferido mortalmente, François!
Senti no peito, ao ouvir aquele brado de aflição e desespero, o despertar de emoções nunca experimentadas.

Naquele momento de dor inexprimível me pareceu que devera ter amado mais e com maior ardor a meu pai.
Uma ternura e uma compaixão indizíveis transbordaram do meu coração tremente, brotando dos mais profundos refolhos do meu espírito, como vagas arrojadas, em horas de praia-mar, sobre longínqua e ignorada praia.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:41

Afigurava-se-me ter a alma revolta, enriçada, como desgrenhada fronde de uma árvore nascida na solidão de escalvada savana, exposta constantemente aos azorragues inclementes dos furacões do norte ou dos sirocos violentos.

Desde então um sentimento forte e sincero despontou no meu coração e se foi avigorando com o fluir do tempo, rivalizando com uma outra afeição que supusera única e inigualável - a que consagrava a Jeanne!

Tive a impressão de que súbita e radical transformação se operara na minha existência, até então serena e ditosa.
Foi como se de uma gôndola veneziana, embalado pelos acordes de suave barcarola, houvesse caído repentinamente ao mar, tornado tempestuoso.
Julguei, por instantes, estar a debater-me como náufrago, nas ondas encolerizadas e bramidoras de um pélago revolto.

Aturdia-me o troar dos vagalhões quebrando-se de encontro a ciclópicos penhascos.
Imaginei que, além de cego, estivesse com os olhos vendados por fitas de ferro ou pelo crepe do horror.

Senti-me desfalecer: quis gritar como Jeanne, mas perdera a voz.
Tudo isso, porém, que vos descrevo imperfeitamente, teve, em meu cérebro, a duração de um corisco, quando traça a fogo sinuosa linha, na ardósia plúmbea das nuvens.

Novamente fui chamado à realidade pela fala de um companheiro de meu pai, que nos dava informações precisas a respeito do acidente ocorrido durante o dia nas oficinas em que trabalhavam:
- O Sr. Delavigne se achava calmamente entregue aos seus afazeres, quando notou que um maquinismo, de que se aproximara, funcionava desordenadamente, estando prestes a se inutilizar e a vitimar diversos operários.

Procurou detê-lo e o conseguiu.
Mas, a emoção que experimentou foi tão violenta, que lhe causou súbita vertigem, sendo então apanhado por uma engrenagem na fronte e num dos braços.
Para evitar grande catástrofe, expusera a vida heroicamente.

"Um médico o socorreu sem demora, porém as contusões que recebeu foram consideradas gravíssimas.
Todavia, confiamos na bondade divina;
temos esperanças de que se salvará, a fim de ser recompensado do acto de coragem e abnegação que praticou!

Esteve desmaiado até há pouco tempo e só quando recobrou os sentidos foi que, a conselho do doutor que lhe fez os curativos, resolvemos trazê-lo para aqui, até que a família delibere sobre a conveniência de interná-lo num hospital".

Jeanne, a soluçar, agradeceu aos bondosos operários o serviço relevante que nos acabavam de prestar, e um deles - certamente um coração leal e compassivo - se ofereceu para passar a noite connosco, o que não aceitamos.
Ficamos sós, Jeanne e eu, com o nosso pobre pai, no qual já se manifestavam os primeiros sintomas do traumatismo.

Minha irmã me descreveu o seu desolador aspecto:
tinha um dos braços quase esmagado, a cabeça contundida, envolta em compressas de linho que já não eram brancas de tão ensanguentadas que estavam, o rosto lívido e transfigurado, como se lho houvessem substituído por outro, exumado de algum túmulo.

Passamos uma noite de indizíveis sobressaltos, dispensando ao ferido todos os cuidados prescritos pelo médico e os que a nossa dedicação filial sugeria, de momento a momento.
Mudo, absorto, naquelas infindas horas de tormenta percebi que nasciam do meu íntimo sentimentos de altruísmo, energias benéficas e, sobrelevando a tudo, um afeição imensa pelo infeliz que, a delirar, pronunciava de contínuo palavras incoerentes, que lugubremente ressoavam na calada da noite.

Senti que, aos primeiros embate do sofrimento, meu ser despertara para outro amor.
Imagine-se um bloco de pedra que, depois de permanecer inerte por muitos séculos no alto de abrupto penedo, um dia de lá resvalasse, batido pelo tufão e se tornasse, na queda luminoso, tépido, foco de brilhantes fagulhas.

Assim sucede ao coração que se conserva indiferente às lágrimas alheias;
que sempre resistiu aos impulsos dados pela mão potente do destino;
que estaciona em repouso, sem que os reveses da vida o atinjam senão superficialmente;
que se queda indiferente aos sentimentos mais elevados.

Lá vem dia em que, subitamente sacudido pelo tufão das desventuras, batido na bigorna da dor, ferido pelo atrito das decepções terrenas, impelido do cimo alcantilado das desilusões ao vórtice insondável das amarguras da existência, começa pouco a pouco a desprender chispas inextinguíveis, que vão atear, noutras almas, imperecíveis afeições, fundir os elos dos amores quintessenciados que encadeiam os corações, pondo-os, como Saturno - o mais maravilhoso planeta do sistema solar - engrinaldados por fulgentes anéis.

* * *
Quando Jeanne me comunicou que a manhã já havia despontado - percebendo eu que entravam, pelas janelas descerradas, haustos de frescura matinal - e me levou o primeiro alimento, tive a impressão de me haver tornado um ente diverso do que fora até a véspera.
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Mensagem  Ave sem Ninho 9/3/2013, 01:42

Alguma coisa em mim se profundara ou volatilizara;
os pensamentos sombrios ou pouco elevados foram soterrados nos subsolos da alma;
desabrochou nesta e floriu de repente toda uma seara de nobilíssimos sentimentos, capazes de me levarem a dedicações extremas, não só para com aqueles que comigo viviam debaixo do mesmo tecto, como também para com todos os que passassem privações ou me implorassem amparo.

A eclosão de um desejo ardente de ser útil aos que me eram caros pôs remate à luta que se travara no meu íntimo, durante uma noite de angústias, que julguei durasse uma eternidade.

* * *
Passaram-se dias intermináveis para os nossos corações aflitos e um pesar indizível nos assaltou:
o adorado enfermo não podia ficar em domicílio, porque seu melindroso estado requeria despesas que excederiam nossos parcos recursos.

Assim, a conselho do médico assistente - enviado cotidianamente pelo proprietário das oficinas de fundição onde meu pai trabalhava - foi este removido para um hospital, onde íamos vê-lo frequentemente.
O traumatismo resultante do choque no frontal lhe perturbara as faculdades mentais, fazendo-o proferir frases desconexas, revelar episódios de uma existência que seus filhos desconheciam; mostrar-se, algumas vezes, atormentado por lancinantes remorsos; outras, sofrendo acerbamente por causa de adversários inexoráveis, cujas vidas desejaria tirar, se pudesse.

Atribuímos à febre o delírio que o enlouquecia.
Entretanto, o estado anormal do enfermo querido, em certos momentos, nos atemorizava.
Teve, afinal, que amputar o braço direito que fracturara quando travou repentinamente a máquina em grande velocidade, para evitar a morte a muitos obreiros.
Visitávamo-lo sempre e grande tortura experimentávamos ao ouvi-lo pronunciar palavras que nos apavoravam, por não percebermos a quem se referiam.

Durante todo o delírio, não só não nos reconhecia, a mim e a Jeanne, como até parecia odiar-nos.
Enquanto ele sofria num hospital, em nosso casebre a penúria se instalou soberanamente.
O que mais me amargurava era a supressão completa do tratamento de que necessitava Jeanne, cuja saúde delicada muito se ressentiu dos nossos desgostos.

Pungia-me o coração ver que ela não podia gozar do menor conforto e fora forçada a trabalhar de novo na confecção de flores e bordados, para dar a Margot o necessário aos modestos dispêndios domésticos.

Foi nessa situação que, após algumas horas de dolorosas cogitações, deliberei pôr em prática o que imaginara naquela noite de martírio moral em que se produziu no hostiário de minh'alma o despertar de novas faculdades psíquicas; em que, por celestial influência, nela começaram a desabrochar pensamentos generosos que me impeliam a agir de um modo que nada tinha de infantil; em que me enchi de uma energia nova que não suspeitava, então, provir de amigos invisíveis, por ignorar que eles baixam do Além, para sustentar as criaturas nas suas provas árduas, a fim de que não desanimem.

Soara para mim o momento do combate espiritual decisivo.
Cheguei até a entrever, na imaginação, um cronómetro fantástico, em cujo colossal mostrador um índex gigantesco indicava determinada hora, que ouvi soar vibrantemente num tímpano argentino.

Compreendi nitidamente o que significava o estranho símbolo.
Aprestei-me para a pugna, lealmente, desejando sair dela vitorioso e não vencido.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:02

CAPÍTULO IV

Efectivamente, na noite em que meu pai entrou carregado em nossa humilde vivenda, começou a nossa angústia doméstica:
ele internado num hospital, sem poder ganhar o necessário para a manutenção da família;
eu e Jeanne, abatidos pelos desgostos, a fazermos prodígios de economia, para não nos faltar o pão.

Já chegávamos a privar-nos de artigos que supúnhamos imprescindíveis.
Corriam-nos assim, penosamente, os dias.

A moléstia de nosso pai continuava a retê-lo indefinidamente no leito.
Ficara sem o braço direito, amputado a fim de se lhe evitar a morte pela gangrena, e as faculdades mentais continuavam desequilibradas.

De uma feita, indo visitá-lo, aproximamo-nos do pobre enfermo e ele não nos conheceu.
Mostrou-se indiferente ao ósculo que lhe depusemos na mão afogueada pela febre.

Subitamente com os olhos a fuzilar - ao que me disse Jeanne, completando o que senti com tanta verdade que julguei estar a vê-lo - soergueu-se no leito, deixando descoberto o lado direito, com o braço decepado, e, agitando o esquerdo convulsivamente, exclamou com voz alterada pela demência:
- Sois os causadores de todo o sofrimento que me enlouquece, miseráveis!
Eu vos detesto ainda e sempre! E sabeis por quê?

Sois os meus adversários malditos;
já me causastes muitas dores e não vo-las perdoarei jamais!
Ide-vos da minha presença;
não mais vos quero ver! Odeio-vos! Odeio-vos!

Recuamos soluçantes, aterrorizados ante tão cruéis exclamações, considerando irremediavelmente louco o nosso querido pai.
Um dos médicos do hospital, porém, nos tranquilizou, dizendo que a febre, causadora do delírio, já principiara a declinar;
que, assim que cedesse, os sintomas alarmantes parariam; que estava submetendo o doente a um tratamento rigoroso, findo o qual esperava confiante que ele ficaria sem nenhuma alienação mental.

Retiramo-nos, todavia, cabisbaixos, desagradavelmente impressionados, rememorando as sinistras palavras proferidas pelo nosso progenitor, que parecia execrar-nos desde que enfermara.

Por quê?
Não fora razoável que, mesmo nos momentos de alucinação, se mostrasse apreensivo ante o nosso destino e manifestasse a ternura de um pai que sempre mostrara idolatrar os filhos?
Por que nos considerava, havia muitos dias, seus adversários irreconciliáveis?
Essas interrogações, eu, triste, atormentado por dolorosos pensamentos, as fazia a mim mesmo.

Elas, porém, mergulhando no mar misterioso que cada alma contém dentro de si, ficaram sem resposta - até que, novamente desencarnado, me recordei do que meu pai e eu fôramos, em anteriores existências criminosas.

Todos os arcanos da vida se desvendam ao Espírito, quando ele se liberta da condição de galé, de expatriado do Espaço, a cumprir na Terra uma sentença divina.
Reabilitado por esta forma, adquire faculdades admiráveis, conquista a ventura a que sempre aspirara e que só se torna realidade nas estâncias siderais.

* * *
Naqueles dias de suplício, de desolação e de angústias, motivados pela moléstia do meu pobre pai, comecei a perceber claramente que tinha uma missão a desempenhar no mundo;
a compreender que a dor física ou moral é tão necessária à alma delinquente como as pelejas o são a um militar para poder a sua bravura ser aquilatada e galardoada.

Finda a nossa campanha espiritual, o general supremo - Deus - não nos coloca ao peito insígnias coruscantes, mas nos engrinalda de luminosos lauréis a fronte, se vencemos!
Entrevi, pois, o objectivo dignificador que me cumpria atingir durante a minha estada no planeta terrestre e não me revoltei um só instante contra os desígnios do Alto.

Mantive-me calmo, resignado a tudo suportar corajosamente e tratei de resolver o problema que, então, mais me preocupava:
o da falta de meios de subsistência para minha irmã e para a bondosa Margot.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:02

Ainda cursava, com sacrifício extremo, as aulas do Instituto de cegos.
Estava prestes a concluir meus estudos, mas tive que os interromper, para poder trabalhar.
Pedi a um dos professores - o de música, que sempre mostrou mais interesse por mim - que me protegesse e obtivesse algum trabalho concernente à arte a que me dedicara, a fim de me ser possível sustentar a família.

Compadecido de meus infortúnios, dos quais o inteirei, atendeu à minha súplica, e me apresentou a diversas pessoas de suas relações, que me contrataram para executar, ao piano ou ao violino, músicas clássicas e músicas apropriadas à dança.

Não podendo, devido à minha imperfeição orgânica, apresentar-me sozinho nos salões engalanados, minha irmã me conduzia, afectuosamente, às residências festivas.

Começamos assim a frequentar os palacetes de alguns abastados burgueses.
Mas, desde a primeira vez que assistimos a uma dessas festas mundanas, onde imperavam o júbilo, o conforto e o apuro dos toaletes, compreendi que Jeanne se estava sujeitando a martírio superior à sua coragem moral!

Ela, tão formosa que parecia, pela distinção, pelos predicados físicos, uma princesa encantada, possuidora de lúcida e surpreendente inteligência, não lograva, por se apresentar com singelos e desbotados vestuários, a honra de ser introduzida nas salas faustosas.

Aguardava, num vestíbulo, que a festa acabasse para me conduzir ao nosso tugúrio, humilhada e retraída, assistindo ao perpassar constante dos pares venturosos, trajados com requinte, sorridentes, a olharem--na com indiferença ou desdém ao lado de fâmulos, transida de vexame.

Sua amargura não tinha limites ao confessar-me o que naquelas horas em que eu, ao piano ou fazendo parte de uma orquestra, trabalhava pela nossa subsistência - se passava consigo, o suplício que lhe atormentava a alma impressionável, ao contemplar a mocidade feliz, garrida, rutilante de atavios, de pedras preciosas, a desfilar por diante dela, insensível à sua dor.

Não podia sofrear as lágrimas, lembrando-se de que era a mísera filha de proletário enfermo e que aguardava a saída de um irmão cego.
Quando voltávamos para casa, a pé ou em modesto veículo, eu a sentia álgida, trémula e chorosa.

Dentro de pouco tempo, convenci-me de que não devia mais mortificá-la assim, pois que a tortura que experimentava, quase todos os dias, começou a influir maleficamente no seu frágil organismo - presídio de uma alma de névoas, de carinhos e de sensibilidade apurada, que se contraía, qual "mimosa pudica", ao contacto da crueldade humana.

Deliberei não mais consentir que me acompanhasse às festas sumptuosas, em que fosse tocar.
Jeanne protestou energicamente, dizendo que jamais deixaria de me guiar como fazia desde o meu nascimento, e que, se se apartasse de mim por algumas horas, não ficaria tranquila em nosso lar deserto.

Felizmente, não foi mister que o sacrifício se consumasse.
Nosso pai, já em vias de restabelecimento completo, recuperara integralmente as faculdades mentais.
Enquanto não lhe foi possível me acompanhar aos concertos e aos bailes para que me contratavam, recorri aos préstimos de um bom amigo, Duchemont, companheiro de orquestra, admirador do meu estro musical e, ao que parecia, sinceramente enamorado de minha graciosa irmã.

Contava ela a esse tempo pouco mais de quatro lustros, tendo eu dezassete anos.
Entretanto, parecíamos gémeos.
Duchemont a viu, formosa e humilhada, nos vestíbulos dos palacetes, à minha espera, e compreendeu a sublimidade do seu sacrifício.

Depois, indo buscar-me fraternalmente ao nosso triste domicílio, teve ensejo de com ela conversar, de lhe apreciar os predicados intelectuais e desejou desposá-la.
Jeanne, porém, relutou por alguns meses em lhe dar uma resposta positiva, porque ainda não o amava.

Sentia-se apenas reconhecida ao meu generoso amigo que, naquelas noites de regozijo para os abastados e de tormento para o seu coração, foi a única pessoa que lhe notou a presença, que lhe dirigiu palavras compassivas e afectuosas, que se me ofereceu para substituí-la, ponderando que o seu melindroso organismo de flor humana se ressentiria, que sua saúde provavelmente se alteraria com a fadiga, a vigília ou o relento.

Também para mim eram penosas as horas daqueles saraus magnificentes, em que a chamada alta classe social alardeava arrogantemente a sua felicidade, calcando os corações dos que não possuíam fortuna, sedas, diamantes.

Para a minha acrisolada emotividade de idealista, eram horas de inenarrável amargura, porém, quanto mais a dor me ciliciava o espírito, mais o sentia eu inspirado, exteriorizado do seu invólucro material, como que eterizado.

Assim, num quase êxtase é que compunha melodias arrebatadoras e tinha surtos de elevada inspiração artística que, muitas vezes, não sabia interpretar, por isso que, para o conseguir, precisaria de instrumentos mais perfeitos do que o piano e o violino.

O sofrimento, pois, era fecundo para minh'alma de artista porque, quando me feriam os seus acicates, eu improvisava sonatas dolorosas, reverles dulcíssimas, nas quais a era noção em mim dominante se manifestava vivaz, nunca traduzindo revolta, mas ternura e submissão.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:02

A mágoa se metamorfoseava em catadupas de harmonias, em arpejos maviosos que provavelmente me faziam passar, aos olhos da turba que me cercava, por um ser privilegiado.
Escutava--lhe os aplausos que troavam aos ares e, temendo-os como se fossem vagalhões prestes a atingir-me, desejava fugir--lhes, mas, ao mesmo tempo, me sentia magnetizado, incitado para a luta.

Nessas ocasiões, os pesares me desertavam o peito, como procelarias que abandonassem precipitadamente os cálidos ninhos para roçar com as asas sedosas as espumas dos escarcéus, num oceano em borrasca.
Quem era eu, porém, para aqueles afortunados do mundo, absorvidos por estonteantes prazeres, inebriados com as seduções e as delícias que o ouro, a vaidade, o amor, as vestes principescas soem proporcionar?

Não era, para quase todos, mais do que um aparelho que se movia por si mesmo, que não podia participar dos gozos que os encantavam, tendo por única utilidade deleitá-los com a execução de melodias que nenhum dentre eles suspeitava fossem insufladas por entidades siderais, numa alma torturada, mas submissa aos desígnios providenciais.

Era, enfim, para muitos, um instrumento humano, que sabia arrancar rítmicas vibrações a um outro, construído de madeira e de fibras sonoras.
Não me era dado observar o que ocorria ao meu derredor, porque trazia a fronte cingida sempre por um elmo de negro bronze.
Mas as minhas lágrimas ignoradas se transmudavam em brandos arpejos e uma claridade fosforescente de santelmo me iluminava o cérebro.

Produzia-se então na minha mente um fenómeno extraordinário:
estendia-se diante de mim uma região infinita, como que aclarada pelas projecções do poderoso farol matutino, a devassar um nevoeiro prateado, que se transformava em pulverização de luz.
Algumas vezes, a multidão que me cercava surgia bruscamente dentro daquela bruma luminosa.

Não a compunham, porém, criaturas cultas, magnificamente trajadas.
Era antes uma hoste de duendes, em hórrido Sabbat,26 vestindo flutuantes túnicas, todas a rodopiarem vertiginosamente, numa valsa macabra e apavorante, que me congelava o sangue nas artérias - transformando-as em tubos de gelo através dos músculos - e me inteiriçava as mãos sobre o teclado, arrancando-lhe brados de loucura ou de horror.

Dessa espécie de delírio me vinha despertar quase sempre alguma voz feminina, instigando-me a prosseguir meus estudos e a publicar as minhas originais produções.
Verificava, então, que sabia sensibilizar fortemente os corações, ora lhes cravando dardos dolorosos, ora lhes levando haustos de gozo, frémitos de arte, jactos de alegria de que eu não partilhava.

Minha situação podia comparar-se à de um homem que, cultivando rara e preciosa árvore produtora de frutos deliciosos, se visse privado de colher um único que fosse para si, só lhe sendo permitido fazê-lo para quem os quisesse adquirir.

Desvaneciam-me as apreciações que a meu respeito faziam pessoas ilustres, desejosas de possuir composições minhas;
a todas, porém, confessava lealmente serem improvisadas e, de pronto, esquecidas para sempre.

26 Celebração da Natureza em que os bruxos dançam, cantam, deleitam-se com alimentos e honram deidades da religião antiga.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:02

CAPÍTULO V

Durante alguns meses Jeanne e eu fizemos rigorosas economias para que não faltasse o indispensável à nossa manutenção.
Províamos a todas as necessidades, exclusivamente com o que eu auferia do meu trabalho, que constituía, para mim, motivo de prazer e ufania.

Nosso genitor obteve, enfim, alta do hospital.
Fomos buscá-lo para o lar, onde a sua falta era impreenchível.

Imaginai, bom amigo, o quadro patético que então apresentava a nossa família: ele com o braço direito decepado, ainda trôpego, devido à longa enfermidade que o debilitara em extremo;
Jeanne enfraquecida, pálida, descorada, com a aparência de um arcanjo diáfano ao qual só faltassem as asas para desferir o voo supremo; eu, cego, guiado por suas mãos frágeis, que temia não me amparassem por muito tempo, sempre grave e melancólico.

Não era a minha desventura o que me entenebrecia a alma cismadora, mas os sofrimentos daqueles a quem adorava, e aos quais não podia prestar senão insignificante auxílio.
Afligia-me, sobretudo, saber que minha querida irmã, às primeiras rajadas impetuosas da dor, perdera parte da sua beleza helénica e que o seu estado se agravara.

Estava como se fora uma neblina prestes a esvair-se no cimo da serrania, ao surgir o primeiro fio de luz, tecido pelo Sol.
Meu pai, depois que saíra do hospital, taciturno e alquebrado, sem poder labutar como outrora, deplorava a todo o instante a desventura que lhe sucedera.
Não cessava também de me agradecer o socorro pecuniário que dispensara aos entes que nos eram caros, durante o tempo em que esteve enfermo.

Falava-me carinhosamente e, relembrando o passado, a época da minha meninice, dizia:
- Que cautela devemos ter com as nossas palavras, meu François!
Eu, que vivia sempre a dizer que eras inútil à pátria e à família, sou forçado a reconhecer que já prestaste inestimável assistência àqueles a quem amamos e prevejo que poderás tornar ainda mais gloriosa a nossa França, enriquecendo-a com as tuas formosas produções, que, infelizmente, ainda não tive ocasião de aplaudir.

Aproveitava, então, o ensejo para lhe lenir as mágoas dizendo-lhe que sofresse resignado as suas provas terrenas, afirmando, por intuição celeste que o Omnipotente não nos feria injustamente e que, por maiores que fossem as nossas dores, não seriam eternas, teriam limite e uma recompensa equivalente à nossa coragem moral.

A Providência Divina, dizia-lhe ainda sinceramente convencido das minhas ideias, vindas do Alto - é qual magnânimo Creso:27 para aquilatar da perspicácia e da intrepidez de um emissário seu, incumbe-o da execução de arriscada empresa.
Se o desempenho for satisfatório, dar-lhe-á valor real ao mérito, aos esforços e, premiando-o regiamente, lhe outorgará a posse de tesouros, como não os há no mundo, porque os deste são todos perecíveis, ao passo que são perpétuos os que o Céu concede.

Que custa passar este momento, que o é a vida humana, em lágrimas, quando há a esperança de uma outra existência livre de cuidados, calma, ditosa, acenando-nos com um lenço alvíssimo à alma flagelada, incitando-a a caminhar por sobre espinhos na Terra, a fim de colher no empíreo as flores imorredouras da ventura?

Surpreendia-o ouvir-me falar assim, ouvir tais coisas de mim que não conhecia nenhuma alegria mundana.
Ele não concebia que alguém desfrutasse um instante de prazer, vivendo condenado à geena da cegueira.
Reputava este infortúnio pior do que aquele que constantemente o afligia, o de ter sido mutilado.

Replicava-me, às vezes, exprimindo o afecto paternal que me votava, com veemência igual à de que usara quando, no seu leito hospitalar, declarava odiar-me.

- Admiro-te a coragem e a resignação, meu François!
Continuas a considerar magnânima a Providência Divina que tão mal te aquinhoou, que negou uma gota de luz aos teus olhos imprestáveis, uma migalha de lume às tuas pupilas que parecem vazadas por agudo punhal, ao passo que disseminou prodigamente pelo Universo milhões de sóis inúteis!

- É que mereci, meu pai, esta sentença que se vos afigura iníqua e a que me submeto sem revolta, osculando a mão que a lavrou imparcialmente, mão de juiz austero, íntegro, incorrupto!

O Altíssimo não é déspota inclemente e não me condenou certamente sem provas e sem causas.
"Pois bem! Sofrerei todas as tribulações e asperezas da existência, todas as mágoas que me ensombrarem a alma, bendizendo sempre aquele que negou uma centelha de luz aos meus olhos e os inundou de lágrimas, que são o orvalho da desventura, porque nutro a convicção inabalável de que a vida humana equivale em duração às rosas de Malherbe28 e porque sei que há um galardão para os heróis, para os que sabem triunfar das suas imperfeições de carácter e do próprio coração.

"Esses os únicos adversários que precisamos combater a todos os instantes, com denodo e tenacidade de estóicos, a fim de alcançarmos a vitória definitiva e com ela a felicidade, vãmente sonhada neste orbe: a nossa reabilitação espiritual, que traz como corolário o desaparecimento de todas as dores!"
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:03

Meu pai - inteligente e sagaz - percebeu que minhas ideias estavam de acordo com as dos psiquistas, cujos preceitos filosóficos vinham sendo, na época a que me refiro, propagados na França e em quase todos os países cultos, coordenados pelo preclaro e inesquecível mestre - Allan Kardec.

Eu tivera a ventura de conhecer, lidos por Jeanne, os livros do eminente Codificador do Espiritismo,29 e não relutei um momento sequer, em aceitar a Doutrina, plena de moral e de verdades inconcussas, neles explanada.
O Espiritismo, pois, aliado às instruções salutares do meu protector sideral - que ficaram insculpidas no meu Espírito, como estrias feitas a escopro no mármore - foi o bálsamo que me refrigerou o coração nos angustiosos instantes das provas acerbas, porque me deu a solução exacta do grande enigma do destino humano.

Graças a ele se me aclarou a génese do sofrimento dos seres que, sem praticarem o mal, lutam com a adversidade até ao extremo alento, numa existência de abnegados e justos.
Já florescera no Espaço a seara da luz e as suas sementes, rutilantes quais o cristalino orvalho que aljofra as corolas das flores e reflecte o fulgor dos astros, caíram sobre as almas sofredoras como uma tempestade de estrelas.

Foi como se a Terra toda ficasse coberta de chamas ateadas em arminho.
E nada mais poderá deter essas labaredas, que não são vorazes, que não incineram, mas purificam acendrando os Espíritos flagiciosos ou desventurados, dealbando-os, por entre as sombras da vida planetária, para que trilhem unicamente o caminho alcantilado do bem e da virtude, que termina nos mundos perfeitos, isentos da lágrima.

Jamais se extinguirão no orbe terráqueo, porque foram ateadas pelos emissários do Criador do Universo, e porque é preciso que lavre nas almas conturbadas um incêndio bendito e redentor!

Meu querido progenitor se quedava silencioso, padecendo sem mais queixume, para me não causar desgosto.
Nas oficinas em que mourejava antes do acidente que lhe ocasionara a perda de um dos braços, cruel decepção o aguardava.

Apresentando-se novamente ao proprietário da fundição, este o recebeu com demonstrações de carinho, mas não o reintegrou no cargo que anteriormente ocupava.
Encarregou-o de outro mister, insignificante em resultados pecuniários, mais por piedade do que por gratidão.

Entretanto, infinito devera ser o seu reconhecimento para com o bravo artífice, que lhe evitara consideráveis prejuízos materiais, bem como a morte a dezenas de operários.

Sabendo eu que isso o abatera e contristara, envidei esforços por lhe mitigar os dissabores, dizendo com jovialidade:
- Esqueceis, prezado pai, que, antes de vossa enfermidade, dois apenas eram os braços que trabalhavam para a nossa manutenção e que agora são três: dois meus e um vosso!
Não houve, pois, diminuição, mas acréscimo de um que, até então, não sabia o que fosse o trabalho suave para o sustento de uma preciosa flor humana, qual é a nossa adorada Jeannette.
Assim, não vos mortifiqueis, não nos encontramos numa situação desesperadora.

"Trabalhemos, cheios de íntimo contentamento com os nossos três braços.
Peço unicamente que me empresteis à noite a vista, para que eu possa ir ao trabalho, uma vez que o meu amigo Duchemont se ausentou de Paris por alguns dias.
Havemos de viver menos mal e me sinto feliz por vos ser útil e a Jeanne!".

Essa minha alacridade lhe derrocava as apreensões e, como outrora, durante alguns meses a ventura adejou uma última vez sobre o nosso tranquilo domicílio.

Trouxera-a nas asas um arcanjo que, cerrando-as por momentos, pousou meditativo no cimo de um penedo, donde, recordando as delícias desfrutadas nos páramos etéreos, partiu para sempre, num voo vertiginoso, em demanda do Além!

* * *
Apresentou-se afinal a ocasião de meu pai me levar a uma das confortáveis vivendas, cujos donos costumavam contratar-me para tocar, como sinfonista.
Ele, que só me ouvira ao piano em criança, quando ainda hesitante e sem estudo, ansiava pela hora de me acompanhar a um sarau musical.

Fomos. No limiar do salão um amigo aguardava minha chegada para me conduzir ao Pleyel.
Antes, em segredo, preveni meu pai de que abriria a festa com a execução de uma sonata, que compusera naquele dia e que certamente... atribuiriam a Beethoven!

Preludiei um allegro30 vivíssimo, expressivo, demonstrando uma técnica que causou admiração aos assistentes e, com um scherzo,31 gracioso, bem modulado, finalizei a inspirada partitura em que a harmonia mais dulcíflua e perfeita se enquadrava numa cadência surpreendente.

Tornava-se às vezes de um vigor entusiástico, expresso em rápidos fortíssimos.32
Sentia-me como que em sonho, com a alma vibrando de emoção, enquanto minhas mãos, que se fizeram subtis, voejavam sobre o teclado ebúrneo, abalando os corações numa rajada de arte e de encantamento.
Ao vibrar dos últimos acordes, meu pai, com a singela vestimenta do operário, meio delirante, abrindo caminho com o seu único braço, atravessou celeremente o salão iluminado e florido, roçando nas caudas farfalhantes de seda e gaze das ricas toaletes femininas, e me foi estreitar num amplexo carinhoso, apoiando num de meus ombros a fronte que percebi húmida de lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:03

O imprevisto da cena encheu de enorme pasmo os assistentes.
Fez-se profundo silêncio, que ninguém ousou romper durante alguns momentos.

Amigos me disseram, depois, que notável contraste oferecíamos no aspecto:
eu, jovem, louro, delicado, com uma aparência de menestrel medieval; ele, robusto, tez amorenada pelo calor das forjas, a cabeça precocemente encanecida em consequência dos recentes sofrimentos, ambos, porém, identificados pelo destino.

Éramos dois seres incompletos, mutilados, que, naqueles instantes, se uniram, como que para sempre, num abraço de afeição eterna e imperecível.

- Quem é? - perguntaram os espectadores, curiosos.
Que ousado será este que se atreveu a transpor os umbrais de um salão festivo, com a blusa de operário?
- Um homem que acompanhou hoje a Delavigne, subsumindo seu amigo Duchemont - informou alguém.
Parece-me que enlouqueceu...

- É seu pai! - disse outro, percebendo o enternecimento do mísero mas ditoso mecânico.
Está comovido e entusiasmado por ouvir o filho executar essa formosíssima composição que tanto apreciamos.

E todos, sensibilizados, formando uma coroa humana ao redor de nós ambos - testemunhas daquele amplexo de um só braço enlaçando o corpo débil e gracioso de um artista cego - prorromperam em aplausos, que duraram segundos.

* * *
O resto da noite meu pai, com os olhos ainda nublados de pranto, o coração pulsando aceleradamente, fatigado dos labores diurnos, passou-o no saguão, à minha espera.

Diversas pessoas generosas sutilmente lhe deitaram no bolso moedas que, por ele encontradas quando regressamos a casa, o puseram perplexo, pois não havia levado sequer um cêntimo.

27 Ultimo rei da Lídia (Anatólia), actual Turquia.
Famoso pela sua riqueza, atribuída a exploração das areias auríferas do Pactolo, rio onde, segundo a lenda, se banhara o rei Midas
(que transformava em ouro tudo que tocava).
28 Poeta lírico francês (1555 -1628).
29 Essas oras podem, actualmente, ser lidas pelos cegos, na biblioteca pública da Federação Espírita Brasileira.

30 Peça musical de andamento rápido.
31 Trecho musical de estilo ligeiro e gracioso, e andamento vivo.
32 Nota, passagem ou trecho executado com intensidade sonora além do forte, ou máxima.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:03

CAPITULO VI

Esses triunfos musicais foram os últimos revérberos de alegria que me iluminaram a alma e que penetraram em nosso lar, onde, contudo, nunca faltou o clarão perene de uma felicidade incomparável no planeta terrestre:
a da união de três entes desditosos, mas que se amavam carinhosamente, que compreendiam estarem as suas existências ligadas para o resgate de culpas remotas e talvez hediondas;
que se resignavam com o destino que lhes outorgara a Providência, que desprezavam os gozos sociais e aguardavam, confiantes em Deus, uma vida plácida e ditosa, nalgum orbe venturoso, onde não há mais a separação dos seres que se idolatram, nem dores cruciantes a flagelarem os corações sensíveis.

Vai começar agora, meu amigo, a nénia final da minha última encarnação, que, se transcorreu isenta do tumultuar das paixões que agitaram a precedente, teve, contudo, lances pungentes, os quais, rememorados neste momento, como que me fazem vir as lágrimas aos olhos, que se fatigaram de vertê-las.

Entretanto, hoje as abençoo, pois foram a caudal que me saneou a alma de suas faltas passadas, que a purificou, por um baptismo redentor, num Jordão cristalino onde mergulhara para, tornando-a alva e luminosa, conseguir ingresso em qualquer das cintilantes mansões dos redimidos.

Certa noite em que nevava extraordinariamente, fui convidado a tomar parte num concerto a realizar-se no palacete de um burguês, que festejava o seu natalício...

Acompanhou-me meu pai, que, lá chegando, se sentou, fatigado e sonolento, perto de um bom fogo.
Pela madrugada, terminado o sarau, teve de sair, repentinamente, pouco resguardado contra o frio.
Sentiu convulsivo calafrio;
sobreveio-lhe, em casa, febre violenta e dor lancinante por todo o corpo.

Ao cabo de alguns dias, estava paralítico.
Novamente a penúria nos bateu à porta com a violência de um déspota e se alojou em nosso tugúrio para jamais dele sair.

Abreviarei, meu amigo, o rosário dos tormentos que então me supliciaram.
Ainda hoje, ao recordá-los, me sinto reconhecido aos dedicados Protectores, que me dulcificaram todos os pesares, envolvendo-me em eflúvios balsâmicos, animando-me a suportar as refregas da adversidade, auxiliando-me a sair vitorioso de todas as provas.

Sofria, mas lutava com denodo, porque minh'alma sonhava, a todos os instantes, com a sua emancipação eterna, qual rouxinol engaiolado que, lembrando-se constantemente do tépido ninho muito longe deixado na haste de uma macieira em flor, tenta heroicamente quebrar as grades do pequenino ergástulo, aspirando a libertar-se dele para sempre, a rufiar as asas pelo infinito em fora.

Ao fim de pouco tempo, sem o auxílio pecuniário que provinha do labor paterno, nosso lar se tornou o esconderijo do sofrimento e da pobreza.
Das sessões musicais em que tomava parte, eu percebia apenas o suficiente para não passarmos sem pão e para o aluguel da nossa choupana.

A querida Jeanne, porém, sem conforto algum, enfraquecida pelas privações que nos atormentavam, embora ocultasse o seu estado mórbido, não resistiu à tuberculose que, até então latente, minou seu frágil organismo.

Sem a ver, eu não julgava fosse tão assustadora a enfermidade;
mas um dia, com dolorosa surpresa, verifiquei que seus pulmões já se achavam devastados.

Após uma semana de chuva incessante, saíramos a passeio matinal e, dando-me ela o braço, senti-o abrasado por alta febre;
percebi que andava a passos lentos, parando de instante a instante para tossir convulsivamente.

Quase não conversava comigo, talvez para que não lhe notasse a alteração da voz, que já perdera o argentino.
Fiquei aflito. Tratei de regressar a casa e transmiti meus receios ao nosso genitor, que, entrevado no leito de dor, vendo a filha amada apenas na penumbra da alcova em que jazia, não notara ainda a mudança que se operara nela.

Ouvindo, porém, o que lhe relatei, pediu-me, tomado de aflição, que, ajudado por Margot - a nossa modelar servidora - o transportasse numa velha espreguiçadeira para a saleta das refeições, mais bem iluminada, embora o fosse tenuemente por uma janela, através da qual a luz solar, em pleno inverno, custosamente se filtrava.

Chamou Jeanne e, ao vê-la, se pôs a clamar, meio alucinado:
- Como está a nossa pobre Jeanne transformada, meu François!
Que é que sentes, minha filha?
Já não és a mesma que meus olhos viam antes de adoecer, formosa como um querubim.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:04

E eu sem poder trabalhar para te dar o conforto de que precisas!
"Puni-me severamente, ó Deus meu, mas poupai do sofrimento a minha querida Jeannette, que é um anjo de bondade, como os que vos rodeiam".

Minha irmã, sem se amedrontar, sorrindo e gracejando, lhe disse:
- Fiquei assustada, papai!
Então julgáveis que a Jeannette nunca adoeceria?

"Isto nada vale:
inquietei-me com a vossa moléstia, passei algumas noites em claro, mas, ao ver-vos um pouco melhor, a tranquilidade volve ao meu coração.
Recobrarei a saúde em poucos dias, certamente, meu pai!
Não vos sentis melhor hoje?
"Pois bem! vereis como dentro de uma semana a vossa Jeannette estará robusta e rosada qual camponesa!".

Meu pai fez um sacrifício supremo:
dispôs da última jóia que lhe restava - inestimável relíquia para o seu coração de viúvo saudoso - a sua aliança nupcial, a fim de comprar um reconstituinte para Jeanne, que, apesar do seu inalterável bom humor, continuava a emagrecer assustadoramente.

Suas mãozinhas, que sempre me acariciavam, constantemente febris, se tornaram tão pequenas como as minúsculas asas de um beija-flor.
Afigurava-se-me poder escondê-las sem esforço dentro de uma das minhas, que, no entanto, nada tinham de rudes nem de grandes: eram mãos de artista, de dedos delgados, que somente se exercitavam no marfim dos teclados ou nas cordas dos violinos.

Ferido no imo d'alma pela enfermidade de Jeanne, nosso pai entrou novamente a imprecar contra o destino, dizendo-me, com indescritível mágoa:
- Tudo suportaria com serenidade heróica, menos presenciar o sofrimento da minha adorada filha - meu consolo, toda a minha esperança, o génio protector de nossa família - impossibilitado de mourejar, a fim de lhe dar o conforto de que precisa para recuperar a preciosíssima saúde!
Não me fale mais em resignação, François!

* * *
Para podermos fazer face às despesas domésticas e ao tratamento de Jeanne, era-me preciso trabalhar sem repouso.

Em breve, porém, a fadiga - resultante dos esforços que fazia, estudando violino ou piano durante o dia, horas seguidas, e me expondo à noite ao relento e à chuva, só regressando a casa pela madrugada - começou a manifestar-se no meu débil organismo.

Mas, imitando a querida irmã, ocultei a todos o meu abatimento, almejando ardentemente que a minha partida do orbe terráqueo coincidisse com a de Jeanne.

Não é que aspirasse à morte para fugir à luta, para deixar de padecer, ou que a buscasse.
Acreditava estar nos desígnios da Providência a nossa união em paragens mais ditosas, libertos ambos das cadeias do sofrimento, ao mesmo tempo que da vida planetária.

Não haveria nisso egoísmo?
Como poderíamos ser venturosos em qualquer estância sideral, deixando na Terra, corpo petrificado e espírito enlutado, o mísero paralítico?

Que lhe sucederia, sem os filhos idolatrados?
Em que desespero ou desalento não imergiria sua alma, tão propensa a revoltar-se contra a dor, se um duplo golpe a atingisse?

Estas e outras interrogações fazia eu a mim mesmo.
Não podendo responder a elas, quedava-me silencioso e apreensivo.

Certa vez, absorvido pelos próprios pensamentos, senti na fronte o contacto suave da mão delicada de Jeanne, que murmurou com a voz já velada pela afecção que a minava:
- Como andas cismático, François!
Dar-se-á o caso que estejas enamorado de alguma deidade, cuja voz te seduziu, ou que andes a compor mais uma bela fantasia musical?

"Ai! há tanto tempo já que não ouço as tuas expressivas sonatas!
Chego a ter saudades daquelas noites de suplício, em que te acompanhava aos bailes, porque pressinto que te não poderei mais guiar como outrora, o que, portanto, me privará de apreciar as tuas famosas produções, meu François!
"Se tivesses um violino, estudarias a meu lado, a felicidade volveria ao nosso lar, o prazer espantaria daqui a tristeza e até o nosso pobre pai se sentiria mais calmo e paciente.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:04

Sempre, porém, te utilizas de instrumentos alheios, o que te força a passar longe de mim muitas horas.
Se pudesses trazê-los para a nossa mansarda...
Possuis um tesouro inestimável, François, que somente aos estranhos é dado apreciar".

- Ainda não me foi possível adquirir o meu instrumento predilecto, Jeanne;
mas prometo-te que, logo à noite, trarei o violino de Duchemont e nele hei-de tocar as minhas mais recentes composições, ou antes, as que executo ouvindo outras ao longe, em surdina, tocadas talvez no Céu.

Antes, porém, que cumprisse o que prometera, tivemos de nos mudar para outra casa mais humilde do que a em que residíramos por alguns anos.
Tão contristado se mostrou com isso o nosso genitor, que resolvi adiar por alguns dias a realização do meu projecto.
Duchemont, vendo-nos em tão penosa situação, falou em efectuar sem mais demora o seu casamento com Jeanne.

Era um modo generoso de ampará-la e beneficiar-nos sem nos vexar.
Não pôde, porém, realizar o seu intento, porque ela se opôs, declarando-lhe que se achava gravemente enferma.
Ele insistiu ainda para lhe obter o assentimento, não aceitando a escusa que ela apresentara e prometendo que, logo depois de casados, a levaria para o sul do continente, a fim de, com a mudança de clima, lhe revigorar o organismo debilitado.

Jeanne, sensibilizada, declarou que não era indiferente a tantas demonstrações de magnânimo afecto, mas que a sua consciência lhe impunha não pensar mais num sonho que, realizado, o faria desditoso.

E, tentando sorrir, mas tendo os olhos banhados de lágrimas, concluiu com estas palavras:
- Não me é permitido desposar alguém neste mundo, senhor Duchemont, pois que o meu noivado seria fúnebre.
Já se aproxima o instante em que transporei as fronteiras da Eternidade!
Aceitai a minha afeição fraternal e continuai a dar-me, como até hoje, as provas de vossa dedicação sublime.
Assim, atenuareis minhas mágoas e me fareis venturosa até ao extremo alento.

Duchemont, emocionado, lhe tomou as mãos e as beijou castamente, orvalhando-as de pranto.
Tornaram-se, assim, noivos, sem que pudessem aspirar à realização de seus esponsais.

Jeanne começou desde então a produzir comovedoras poesias, que me confrangiam o coração, quando mas declamava, entrecortadas pela tosse, comprimindo, às vezes, os meus dedos com os seus, escaldantes ou álgidos - como os dos que já se abeiram do túmulo.

Mais do que nunca, sentia eu, nos últimos dias que passamos juntos, estarem nossas almas presas pelos vínculos imateriais e perenes de um afecto imorredouro.
Tinha a certeza, que me vinha de iniludível presságio, de que Jeanne não tardaria a baixar ao túmulo e que eu não lhe sobreviveria à libertação.
Na Terra, nossos corpos repousariam em duas campas, ao lado uma da outra;
no Espaço, nossos Espíritos se uniriam para sempre.

Animado por essa convicção, reagia contra o desalento que tentava empolgar-me.
Afligia-me a ideia de estar iminente a nossa separação momentânea.

Ao pensar, porém, que ela teria efémera duração, minha dor abrandava, novo alento ganhava a minha coragem moral, mais submisso me tornava à vontade divina.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2013, 01:04

CAPÍTULO VII

Grande era a impetuosidade da tormenta que me convulsionava a alma, à espera de que lhe fosse arremessado o dardo agudo que a trespassaria, dilacerando-a.

Que benefício me fez o bálsamo refrigerante que o meu desvelado Guia espiritual espargiu em cada uma das doridas chagas do meu coração!
Às vezes, receava não suportar, como devia, a mais rude prova daquela minha existência planetária e implorava com fervor o conforto e a resignação, que o Céu não nega jamais a quem o suplica.

Meus rogos foram atendidos.
O sentimento nobilíssimo que se alojara no meu íntimo - qual centelha de sol em urna de diamante -, o da fé naquele que nos cria, julga, pune e perdoa;
que preside aos nossos destinos, certamente me daria ânimo para não desfalecer no instante decisivo em que me visse privado dos afagos daquela que sintetizava todos os amores terrenos, sendo para mim, ao mesmo tempo, mãe extremosa, irmã incomparável, noiva ideal;

daquela cuja voz era a única que descia ao santuário do meu coração, afogando-o em meiguices, iluminando-o de um luar opalino.

Meu pai, que quase já não externava seus pensamentos, tão amargurado vivia, aproveitando, em dada ocasião, a momentânea ausência de Jeanne, falou-me do seu leito de angústias:
- És bem venturoso, François!
Já não lamento, invejo-te a cegueira.
Que felicidade, meu filho, não poderes presenciar o que meus olhos contemplam:
a nossa miséria e Jeannette quase a nos deixar para sempre!

"Aqui, morto para o trabalho, com um dos braços já sepultado, com o corpo imóvel como o de um cadáver, petrificado qual bloco de mármore, tenho, a aumentar-me a desdita, o espectáculo da derrocada do nosso lar, sem poder detê-la.
"Muito mais do que antes de adoecer, se acha intensificada a minha sensibilidade: meu coração palpita e sofre com mais veemência.

"Afigura-se-me que nele se centralizou toda a minha visão orgânica;
meus olhos adquiriram mais lume, parecendo-me que minha vista poderá mesmo atravessar uma muralha;
em meu cérebro germinam percepções mágicas, fazendo-me cogitar, perquirir, imaginar numa hora o que não poderia registrar em um ano, se tentasse reproduzir turbilhões de ideias que por ele passam, deixando-me às vezes quase louco!

"Não podes ver, meu François, dentro da treva em que vives imerso, que os nossos poucos móveis já desapareceram e, sobretudo, o esmaecimento, a transformação operada em Jeanne.
“ Só eu, para maior suplício, observo a sua consumação.
Vai-se-lhe extinguindo e fanando dia a dia a beleza angélica, que era o meu encanto e me fazia recordar tua mãe.

É evidente que pouco falta para nos deixar.
Tua irmã está a despedir-se de mim e de ti: em breve irá reunir-se à morta querida, e que será de nós, François, com a nossa penúria e a nossa dor inconsolável, sem o nosso anjo tutelar?".

Tentei lenir a dor do pobre pai, sentindo, embora, os olhos trevosos túmidos de pranto:
- Não, meu pai, a nossa Jeanne ficará connosco, enquanto vivermos.

A morte, que apenas aniquila a matéria, não nos separará jamais: ao contrário, dar-lhe-á repouso, fará cessar seus padecimentos físicos e lhe outorgará a felicidade de que é digna uma alma pura de querubim, que, liberta da prisão terrena, velará melhor por nós.

"Que faremos, depois que ela não estiver mais incorporada em nosso lar?
Submeter-nos-emos à vontade divina.
Deveremos ser impávidos e valorosos nas horas da peleja e esperar serenamente que também chegue a hora da nossa felicidade.

Deus não há-de tardar em no-la conceder!".
- Ah! meu filho, quisera ter a sua resignação sublime.
Se não fora o miserando estado de minha saúde, a minha invalidez para tudo, poria termo à vida antes de receber o golpe tremendo que nos aguarda.

- Não vedes, meu pobre pai, que, sem uma causa justa e forte, sem havermos praticado um delito horrendo, nossos destinos não se teriam entrelaçado para passarmos em comum pelos tormentos que nos excruciam os peitos, como se, juntos, estivéssemos cumprindo uma sentença lavrada pelo mesmo recto juiz?

- Assim pensas porque acreditas que todos os seres humanos contam várias existências, interrompidas pela morte e logo após recomeçadas;
porque acreditas na pluralidade das vidas, como dizem os espiritualistas, explicando a génese dos nossos sofrimentos, cujas causas situam em anteriores vidas criminosas.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2013, 00:39

Eu, porém, não compartilho dessa crença, meu filho;
e, além disso, confesso-te que, após as decepções formidáveis por que temos passado, considero o nada, o aniquilamento absoluto do nosso eu no seio do sepulcro, uma ventura ideal.

Para que continuar, depois da batalha dolorosa da vida, a lutar e a sofrer?
- Não vos sentireis jubiloso, meu pai, se pudermos reunir-nos para sempre - eu, o senhor e Jeanne - em um mundo mais perfeito do que este, numa verdadeira mansão de repouso de gozos imateriais, depois de todas as nossas dores nobremente suportadas?

- Belo sonho irrealizável é o teu, François, no qual não posso crer.
Influenciado, então, pelos Instrutores celestiais, exaltei-me e com tanta eloquência e entusiasmo discorri sobre o mérito que conquistamos, submetendo-nos cristãmente às provas ásperas que nos manda o Omnipotente para resgatarmos faltas praticadas em caliginosas existências anteriores;
com tanta convicção explanei minhas ideias, concitando-o a sofrer com humildade, que ele, por algum tempo, não se referiu mais à nossa desdita, quedando-se num mutismo profundo.

* * *
Um dia, a pretexto de comprar um objecto de que necessitava, Jeanne se ausentou da nossa residência que, sem ela, ficava escura de tristeza, qual caverna sem um raio de sol.

Muitas horas estivemos à sua espera.
Que fora feito da adorada Jeannette?
Por que não nos avisara de que pretendia demorar-se?

Teria piorado a ponto de não poder mais regressar a casa?
Teria sido recolhida a algum estabelecimento pio, encontrada exânime em qualquer logradouro público?
Céus! Quanto padecíamos, eu e o desditoso paralítico por não podermos ir-lhe no encalço, descobrir-lhe o paradeiro!

Por fim, ao cair da tarde, ouvimos-lhe a tosse, o rumor dos alígeros passos, percebemos que empurrava brandamente a porta e entrava.
Ao chegar perto de mim, notei que depositara alguma coisa pesada sobre a mesa onde tomávamos as nossas parcas refeições.

A tosse constante a impediu por muito tempo de nos esclarecer a respeito da sua prolongada ausência de mais de quatro horas.
Certamente, naqueles instantes, seu rosto escultural apresentava a lividez de jaspe e a beleza imácula dos seres santificados pelo martírio.

Afinal, aproximando-se, indagou dos meus estudos e de como passara o dia o nosso progenitor.
Vendo meus olhos inundados de pranto, osculou-me a fronte e pediu perdão de me haver afligido e ao caro enfermo, dizendo-me por fim:
- Não tarda muito, François, que me veja forçada a abandonar o nosso tugúrio, não por algumas horas, mas por tempo ilimitado... até que nos possamos congregar em outras paragens, mais ditosas do que estas.

Quando eu partir, meu irmão, todos os teus esforços devem tender para confortar nosso pobre pai.
Esquece a tua dor, para te lembrares da dele, que não tem a alma lapidada como a tua!
"Agora vou explicar-te a causa da minha ausência, que te causou estranheza e pesar.

Não ignoro que estudas em instrumentos que não te pertencem;
sei que desejas possuir um violino e, anelando ouvir ainda as tuas belas produções, uma vez que já te não posso acompanhar aos concertos e festins, como outrora, quis fazer-te uma surpresa e deixar--te uma suprema lembrança, que será lenitivo para a tua alma e para a de nosso querido pai, nestes próximos dias... quando minhas pálpebras se cerrarem para sempre!

"Desde criança possuía um pendentif33 cordiforme, incrustado de diamantes, que pertencera à nossa querida mãe, presente de núpcias que o nosso genitor lhe fizera.

Guardei-o zelosamente, como se fora uma relíquia sacrossanta, um fragmento da minha própria alma.
Dele não me podia separar, porque me parecia fazer parte do meu próprio ser.

Há dias, porém, compreendi que não o conservaria mais por muito tempo e, assim, o vendi para adquirir outra preciosidade, este instrumento que canta com as vozes dos sentimentos, que sofre ou exulta connosco, que será o meu consolo nos derradeiros instantes de vida e dos que aqui ficarem depois da minha partida em demanda do Além.

'Troquei um silencioso coração de ouro e brilhantes por um de madeira, mas tem fibras sensíveis das quais se desprendem divinas sonoridades, interpretando as procelas e as bonanças do nosso espírito.

Enfim, meu François, trouxe um magnífico violino, quase um estradivarios, que te ofereço!
"Não suponhas que fiz desmedido sacrifício, dispondo de uma inutilidade preciosa, que, para mim, filha saudosa, só tinha o valor inestimável de haver pertencido àquela que ma legou.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 3 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2013, 00:39

Não é certo que em breve estarei ao lado da nossa idolatrada mãe?
"Que vale uma migalha de ouro encerrada num escrínio de pelúcia, que o tempo destrói e que se esquece na Terra -onde fica o estojo da alma, que os vermes corroem - em comparação com o infindo regozijo que me aguarda no Céu, quando me encontrar com a jóia de maior preço da Humanidade - uma extremosa mãe?

Sim, ela me perdoará o me haver desfeito da sua prenda de noivado que, certamente, muito amava, a fim de adquirir outra, mais valiosa ainda, para o filho em cuja face nunca pôde depor um beijo e que, talvez por isso, tenha ficado cego!
"Custei muito a tomar essa deliberação, mas agora me felicito pelo que fiz, necessariamente inspirada pela morta querida!

Ainda me restam alguns francos, com os quais compraremos qualquer coisa para a nossa ceia, e poderás descansar por alguns dias!
Trago, pois, a alegria hoje comigo!
Por que choras assim, meu François?".

Falava sem cessar, com brandura e carícia, colocando--me nos braços o ataúde esguio de um violino, enquanto eu, silencioso, enternecido, não sabia o que lhe dissesse, diante daquela prova comovedora da sua dedicação fraternal.

Ela, porém, me compreendia, pois que lhe expressava todo o meu reconhecimento na linguagem muda das lágrimas, gotas que se desprendem, uma a uma, de nossa alma nas horas de amargura ou de enternecimento, orvalho que nos humedece as pupilas na noite do sofrimento e nos redime os passados delitos pavorosos, bálsamo que, pelos vasos lacrimais, vem do seio que padece - sua fonte perene - e forma caudal, como os minúsculos veios hialinos que fluem do coração das serras, para fertilizar e refrigerar as regiões por onde serpeiam, quais artérias de líquido cristal.

Quando pude falar, repreendi-a, brandamente, por se haver fatigado.

Ao que a bondosa Jeanne, rindo, me retrucou:
- Quero me faças ouvir, neste instante, uma das tuas rêveries!
Antes música... do que censuras!
Quero me agradeças por intermédio deste instrumento, que sem dúvida maneja, muito melhor que os lábios, o idioma dos sentimentos.

Esqueçamos nossos dissabores, nossas moléstias, nossas lutas;
abafemo-la em onda de harmonia, fazendo como os cépticos das coisas transcendentais que procuram afogá-los em champanhe ou absinto.
Transformemos em zéfiros as tempestades que nos agitam os cérebros torturados!

Chorar por quê?
Trazendo para aqui uma estilha do paraíso, quis que esta desguarnecida mansarda se transformasse em mágico solar de fadas!
"Empunha o violino, François, porquanto desejo ouvi-lo agora e morrer embalada nas suas vibrações maviosas, que mitigarão a dor que me causa o ter que te deixar, assim como ao nosso infeliz pai... e ao noivo dilecto!

Creio bem que, depois que meu corpo estiver encerrado no sepulcro, meu Espírito volverá frequentemente à Terra, para ouvir as tuas sublimes sonatas, que tanto aprecio, e das quais não poderei me esquecer, mesmo no empíreo".

Com o peito oprimido, pois as palavras de Jeanne me demonstravam claramente que ela não ignorava o seu próximo fim, que sabia já estar a caminho para o Céu - única pátria de que era digna - ao tomar-lhe das mãozinhas quase intangíveis a dádiva que me fizera, estreitei-as fortemente e osculei-as reiteradas vezes, afirmando-lhe, ao mesmo tempo, que a morte não interromperia a nossa afeição, que, ao contrário, soldaria os nossos destinos até a consumação dos séculos!

Em seguida, abri o estojo, retirei o mimo e logo, por entre exclamações de surpresa e de agridoce júbilo do entrevado, nossa mesquinha e lôbrega habitação, abrigo da penúria e do sofrimento de três desventurados entes em ríspidas provações, se encheu de ondas sonoras, que a tornaram como que ampla e luminosa.

E os sons do dulçoroso instrumento, anestesiando, como o Lete34 mitológico, não a nossa nostalgia, mas os nossos pesares, amorteceram e mitigaram os padecimentos físicos e morais.

A música é o mais belo idioma do Universo.
Falam-no na Terra e no firmamento, tanto traduz a lágrima como o sorriso!
Tal é o poder feiticeiro da arte sublimada de Rossini e Wagner35 que, naquele dia, ninguém se lembrou de suas tribulações.

Mais do que das outras vezes me senti influenciado por entidades etéreas a me banharem a fronte de eflúvios radiosos, que me penetravam o cérebro, accionavam os dedos, transmitiam ao arco uma agilidade de asas cindindo os ares, e arrancavam às fêveras do violino torrentes de modulações suavíssimas.

Dedilhei, assim, por algumas horas, sinfonias originais e arrebatadoras, como se as estivesse lendo gravadas no Infinito, em pautas, notas e claves fulgurantes, feitas de faíscas estelares e que, terminada a execução, desapareceram de súbito, sumindo-se no Espaço, de onde tinham vindo.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2013, 00:39

Não seria capaz de reproduzi-las se o quisesse, e poderia dar-lhe por título Soluços de um coração enternecido.
Tinha, às vezes, a impressão de estar passando o arco nas fibras de um coração humano, que se tornassem sonoras e deixassem escapar gritos rápidos, preces em surdina, monólogos quérulos, flébeis gemidos, que voavam para a amplidão celeste.

Quando cessaram as vibrações do último acorde e a nossa mansarda imergiu de novo em funéreo silêncio, Jeanne sussurrou, como num íntimo solilóquio:
- Fui portadora da ventura para o nosso triste lar.
A música é um bálsamo divino que ameniza todas as dores da alma, tornando-a ditosa, deslembrada da Terra e nostálgica do Céu.

"Hás de, agora, François, tocar tudo quanto lês nas páginas do Infinito, para que me possa esquecer do que me magoa e de que tenho de me separar, embora por tempo limitado, de alguns seres extremosamente queridos.

Desejo exalar o derradeiro alento ouvindo o que executas nesses instantes de sonho ou encantamento.
Exulto por haver concorrido para a felicidade dos que amo.
Posso agora Partir para sempre".

33 Pingente
34 Rio do inferno.
35 Rossini - célebre compositor italiano (1792-1868);
Wagner - célebre compositor alemão (1813-1883).
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2013, 00:41

LIVRO IV - A aliança

CAPÍTULO I


O desejo de Jeanne, expresso no momento em que me ofereceu o magnífico violino, foi prontamente satisfeito.
Nos últimos tempos que viveu connosco, para minorar--lhe a dispneia e as dores que a supliciavam, fiz-lhe ouvir alguns nocturnos e romances de uma plangência comovedora.

Ela, porém, premindo-me levemente um dos braços com os dedos subtis - a cujo contacto mais sensível era minh’alma, que um íntimo tremor abalava, do que o meu sistema nervoso - murmurava palavras como estas, reveladoras de uma nobreza celestial que, por certo, lhe transfigurava o pulcro semblante, de mim apenas entrevisto em sonhos ou no sacrário do espírito:
- São muito melancólicas as tuas músicas, François!

Executa outras que exprimam contentamento ou ventura.
Acaso te entristeces por estar eu para deixar de padecer em breve?
Não mais crês que nos encontraremos em regiões incomparavelmente melhores do que estas em que vivemos, onde o pranto e a dor se acham disseminados com a mesma profusão que as nebulosas no espaço?

"Não acreditas que nos reuniremos novamente, quando não mais estivermos acorrentados ao mundo onde delinquimos e onde nos reabilitamos, cumprindo severa mas remissora pena?
Acaso o afecto puro que nos votamos um ao outro poderá extinguir-se com a matéria perecível que vai ficar encerrada na campa?
"Não, François, um dia irás no meu encalço, como eu partirei em busca da nossa inolvidável mãe, que anseia por nos ver libertos.

"Aguardemos, pois, com o sorriso nos lábios, com a alma florida de esperanças, que o Eterno nos livre das teias do sofrimento e nos reúna em estância onde imperem a paz, as artes, o amor, enfim, as felicidades irrealizáveis aqui.

Não, a afeição que consagro a ti, a nosso pai e a Duchemont, jamais perecerá. Uma só coisa me aflige:
o saber que andas enfermo.
Dada a invalidez do nosso velho, temo vos venha a faltar o pão de cada dia.i
"Sei, porém, que isso não deve me inquietar, porque a magnanimidade de Deus é inexcedível e Ele vela por todos os seres da Criação.
Em breve, meu irmão, serás célebre em toda a França, como extraordinário compositor e, em futuro não remoto, terás a fronte engrinaldada pelos louros da glória.

Então, sê carinhoso, ainda mais que até hoje, com aquele que nos deu o ser e procura mitigar-lhe todas as amarguras.
"Quero vivas mais alguns anos - embora isso retarde a realização daquilo a que aspiramos, a nossa união em paragens ditosas - para que possas consolar o infeliz paralítico!".

- Ai! Jeanne! a tua bondade angélica e a tua fantasia de verdadeira ideóloga fazem que tudo entrevejas por um prispia radioso, quando na Terra se me antolha um porvir nebuloso, obscurecido o horizonte da minha existência por nimbos lutuosos.
"Creio, sim, na mansão etérea onde se congregam os que se amam, como nós, com um afecto imáculo, mas, no planeta em que peregrinamos, cerrar-se-á para mim a porta da felicidade, quando se cavar no solo para o teu corpo um túmulo, porque nele serão também sepultados o meu coração, os meus desvelos de artista, os meus anelos de glória, os sonhos em que me embalava desde a infância!

Aí penso que até o meu estro musical morrerá, pois me parece que, além dos Invisíveis, tu me tens inspirado as mais belas produções.
"É que, Jeanne, és uma exilada do empíreo, porquanto só um arcanjo poderia ter substituído a mãe que não conheci, a noiva que jamais conhecerei, sendo a irmã modelar que velou por mim desde a puerícia até a mocidade.

Foste única, porque és perfeita.
"Assim, concretizo em ti todos os meus mais elevados sentimentos.
Como queres, então, que o meu violino cante jubiloso, quando minh’alma pranteia, temendo o nosso apartamento, mesmo temporário?

Não é mais natural que as cordas deste instrumento solucem, exprimindo a dor inaudita que me avassala, vendo-te padecer?
Posso dizer que passei pelo mundo sem o conhecer, tendo apenas para me guiar, através do nevoeiro em que vivo, o teu amor, e, quando vou ficar privado dele, me queres ver a sofrer, Jeanne?"

- Mas não te abandonarei, François!
Não sabes que existo' sem nunca teus olhos terem me contemplado?
Quando eu morrer, deixarás de me ouvir, do mesmo modo que agora não me enxergas, mas estarei a teu lado, como neste instante!
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2013, 00:41

- Obrigado!
Eram estas as palavras que eu almejava ouvir dos teus lábios, Jeanne!
Quem me dera, como tu, minha irmã, já vislumbrar o mesmo resplandecente fanal, posto nas raias da Terra com o Infinito, cujas estâncias começas a divisar, desejosa de aportar a elas com a ansiedade do marujo nostálgico que, ausente da pátria alguns anos, avista perto as plagas natais e se impacienta por pisar o solo amado e nele adormecer o sono eterno!

- Afugenta esses pensamentos do teu cérebro, François!
É mister que vivas para lenitivo de nosso pobre pai!
- Sim, tudo farei por satisfazer aos teus desejos.
A vida não nos pertence, bem o sei:
é-nos concedida ou extinta quando apraz à Providência;
corre-nos, porém, o dever de conservá-la, enquanto jungidos à matéria, como preciosidade confiada à nossa guarda, submissos a todos os desígnios divinos.

Conformo-me, pois, com os reveses que...

- Deixemo-nos de assuntos tristes!
Vamos fazer um pacto.
Não quero que deixes de ser artista e, como disseste que possuo o dom de Euterpe - a mais apreciável das musas - virei do Além inspirar-te, mas com a condição de que nunca abandonarás teus estudos!

Queres comigo formar esse pacto?
Não me respondes?
O silêncio é igualmente afirmativo. Está feito!
Agora, prefiro confabular com o teu violino, que, no entanto, às vezes também chora.

Não o faças, porém, chorar hoje por minha causa, pois me apraz ouvi-lo de harmonia com o meu coração:
contrito e esperançoso!
Amainado o temporal que rugia no meu íntimo, tomei do mágico instrumento e me pus a executar árias graciosas, nocturnos e romanzas36 que nada tinham de melancólicas.

Eram como que o diálogo misterioso de duas almas de noivos que se adorassem, e que, após anos de doloroso apartamento, degredadas em longínquas e inóspitas regiões, conseguissem unir-se no Espaço, e, delirantes de contentamento, se fizessem mútuas confidências, referindo uma à outra, dadas as mãos, todos os tormentos por que passaram, todas as saudades e recordações, os inauditos sofrimentos que curtiram ou as ridentes esperanças que alimentaram.

Ouvindo-os, Jeanne se considerava ditosa e o meu contínuo pesar quase de todo cessava, só me ficando, naquele momento, o de não lhe poder contemplar o semblante, que imaginava feito de jaspe e luz, como o de uma entidade paradisíaca.

Ah! que acerba foi a minha provação nessa última existência - a da cegueira!
Quantas vezes me turvou os raros instantes de alegria que me foram concedidos!

Nunca pude ter um gozo sem jaça.
Na ocasião dos meus triunfos artísticos, quando, ouvindo o reboar dos aplausos ao finalizar a execução de uma página musical ou recebendo as demonstrações de carinho da irmã idolatrada, parecia que um clarão de aurora boreal me iluminava a mente, logo sentia que, de novo, em minha fronte passavam uma venda negra.

A claridade que me banhara se esvaía, como se eu penetrara de repente em extrema e lôbrega furna ou atravessasse o globo terrestre de pólo a pólo, apagando-se-me o facho que empunhava para me guiar na longa travessia.

De onde vinha essa claridade efémera, que, às vezes, relampeava em meu íntimo?
Vinha da inspiração, que do Infinito jorrava; em minh'alma, qual cascata de sons e de luar;
vinha da afeição pura de Jeanne - lâmpada de minha vida - parecendo -me ser uma a sequência da outra.

Afigurava-se-me que, se uma se apagasse, também a outra se apagaria.
E essa ideia me garroteava o cérebro, na horas de profunda meditação, fazendo-me rilhar os dentes de pavor.
Imagine-se que um mineiro, atravessando infinda galeria subterrânea, se transviasse em inextrincável labirinto, quando já bruxuleava a chama da lanterna que lhe bailava na mão enregelada e convulsivamente agitada pelo terror de ficar sepultado em vida.

Imagine-se ainda que, quando mais intensa era a sua tortura, sentia o mísero premir-lhe o braço uma diáfana mão amiga, que depois de guiá-lo até a borda de um vórtice cujo estrepitoso rumorejo lhe chegava aos ouvidos, de chofre o desamparava e desaparecia na amplidão celeste, deixando luminoso sulco nas sombras que o envolviam e que se tornavam trevas asfixiantes.
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