LUZ ESPÍRITA
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:46 pm

CAPÍTULO VII

Nunca mais obtive novas de Elisabet e, pouco a pouco, a tragédia, em que ela e Paulo figuraram como protagonistas e que me mortificara vivamente por alguns meses, se foi diluindo em meu cérebro, como no ocaso, prestes a ser invadido pelas trevas, se esvai o derradeiro e fugitivo lampejo crepuscular.

Quando dela me recordava, sentia uma efémera mágoa, que me dava tons de violeta ao coração:
era apenas a saudade, que sentia, do amigo desaparecido tragicamente.

Assim que pude, finalmente, regressar à pátria, uma das minhas primeiras ideias foi visitar o túmulo de Paulo e fazer investigações a seu respeito, por intermédio do tio, de quem possuía o endereço, idêntico ao do sobrinho, que mo deixara ao retirar-se da Bélgica.

Escrevi-lhe solicitando alguns momentos de atenção e manifestando o desejo de ir ao Père-Lachaise, onde sabia jazerem os despojos do meu amigo.

Respondeu-me solicitamente que aguardava minha visita em sua residência.
O coronel Félix Devarnier era insinuante e, embora um pouco idoso, apresentava notável semelhança com o falecido sobrinho.

Concedeu-me carinhoso acolhimento e longamente me falou do querido extinto, com os olhos húmidos de pranto, mostrando-se-me muito grato pela lembrança que tivera, de procurá-lo:
- Obrigado - disse-me, extremamente comovido - pelo amistoso interesse que vos inspira o infortunado Paulo, filho dilecto para mim, que tenho vivido isolado, sem qualquer outra amizade sincera, senão a que ele me consagrava, desde que perdi meu único irmão, seu progenitor, que mo confiara antes de exalar o último alento, razão por que só com muita relutância consenti que minha cunhada o levasse para a Alemanha, o que deu origem ao drama pungente que hoje lamentamos.

"Dediquei-me ao Paulo desde que voltou da Prússia, reconhecendo nele, sempre, uma rara nobreza de carácter e sentimentos elevadíssimos.
Podeis, pois, avaliar quanto me consternou a sua bárbara morte!
Se vísseis como se lhe extinguiu a vida, senhor, teríeis ficado compadecido: morreu delirando, num desespero de fazer chorar um coração de pedra, porque, antes de ser ferido, soube que a desditosa noiva, enferma, compelida pelos irmãos a consorciar-se com um velho militar austríaco, se suicidara na noite nupcial, a fim de guardar fidelidade àquele que ela tanto adorava e digno era do seu amor!

"Um dos irmãos de Elisabet - o de nome Carlos - sabendo que a irmã sacrificara a própria existência para permanecer fiel ao primo e noivo querido, considerou-o responsável exclusivo por essa desdita, que açulou nele, ainda mais, o ódio a meu sobrinho.
Veio, então, especialmente à França, a fim de o afrontar e desafiar para um duelo - que ignorei- o completo, até o momento em que para aqui trouxeram irremediavelmente ferido, o meu pobre Paulo.

O que sei dizer-vos, senhor, é que o remorso obrigou o assassino de meu sobrinho a medir toda a extensão da iniquidade que praticara.
Saciado o ódio que votava ao primo, não resistiu aos acicates flamejantes de secreta exprobração, os quais, certamente, lhe pungiram a consciência.
Reflectiu nas injustiças infligidas às suas vítimas e fez como o próprio Iscariotes - suicidou-se, talvez supondo que, assim, se libertasse da evocação dos delitos que cometera por muitos anos, desumanamente.

"Achava-me ausente de Paris, no cumprimento de um dever militar, no dia em que meu saudoso sobrinho foi provocado por Carlos Kceler e por isso não pude impedir a realização daquele maldito duelo.

Só ao regressar é que dele tive conhecimento, vendo o meu pobre Paulo conduzido por suas testemunhas, com o peito varado por um profundo golpe de florete.
"Calculai a minha surpresa e a minha dor! Ele, sempre obediente aos meus conselhos, praticou um ato gravíssimo sem o meu consentimento, porque, certamente, o dissabor que sofria dominava-o de todo, conturbando-lhe a razão, enlouquecendo-o quase.

Ao certo, meu amigo, não sei o que se passou com meu sobrinho. Sei, apenas, que findou um drama doloroso de rancores injustificáveis, ignorados de todas as pessoas de nossas relações.

A família da mãe de Paulo não perdoara nunca o crime que um patrício nosso cometera, desposando por amor um de seus membros, não se lembrando - os satânicos cérberos de Elisabet - de quanto fora venturosa minha cunhada enquanto teve a seu lado o extremoso consorte, que a adorava, e que o mesmo teria sucedido à sua sobrinha, se houvesse conseguido realizar suas aspirações louváveis e dignas, casando-se com o primo, que lhe tributava inigualável afeição".

- Lastimo tudo quanto aconteceu ao prezado Paulo e compartilho da vossa grande e justa dor!
- Obrigado! É sempre consolador encontrarmos um coração amigo que nos compreenda e participe dos nossos mais acerbos pesares.
Obrigado! Estou ao vosso dispor a fim de vos mostrar onde repousa para sempre o meu Paulo.

- Uma carruagem nos espera.
Podemos partir agora mesmo, se vos apraz.
- Sim, o vosso desejo é, para mim, uma ordem sagrada, que cumpro com o máximo reconhecimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:46 pm

- Antes de partirmos, caro senhor, quero fazer-vos mais uma pergunta:
Não recebeu o inditoso Paulo uma longa carta que lhe dirigi, enviando uma outra de Elisabet?
- Não, senhor; fui eu que as recebi, precisamente no dia em que meu sobrinho expirou:
e, como eram tardias todas as revelações que continham, coloquei-as no caixão mortuário, quase persuadido de que ele, assim, poderia inteirar-se do conteúdo delas.

Eram também flores, enviadas pelas longínquas mãos piedosas da noiva e de um amigo, a se confundirem com as que transbordavam de seu ataúde.
Sofro, lembrando-me da triste sorte de Paulo, mas quem é, neste mundo, capaz de quebrar os grilhões do destino ou da fatalidade, que nos prendem à desventura?

Depois silenciosos, eu e o grave coronel Devarnier fomos, em rápido veículo, à grande necrópole parisiense, onde estava inumado o corpo de Paulo e, dentro de poucos instantes, abeiramos do seu jazigo, recentemente construído de Ivo carrara, num formoso estilo renascença, encimado por um arcanjo súplice, lacrimoso, que poderia simbolizar a nossa pátria pranteando o prematuro passamento de um dos seus mais dignos filhos, como a visão que o torturara em vida - a da noiva dilecta, soluçante, genuflexa aos pés da sua progenitora em delíquio, qual a contemplara pela última vez.

"Sim", pensei "este arcanjo é também Elisabet marmorizada, pranteando a sua malograda ventura!"
"O coração é profeta, pois que prenuncia o futuro."

Assim se expressam os supersticiosos; mas hoje, com o intelecto desofuscado pelos conhecimentos transcendentais que tenho adquirido, sei que não é o decantado órgão - considerado o escrínio de todos os sentimentos - e sim o nosso próprio espírito que, em cada uma de suas etapas planetárias, e de pleno acordo com as obras altruísticas ou nocivas, efectuadas na anterior encarnação, aloja, indelevelmente, nos seus refolhos, as sentenças divinas, concernentes ao seu destino.

Às vezes, em rápidos vislumbres, ele faz uma autoleitura e, assim, muitos segredos do porvir lhe são patenteados nitidamente, tal como um aroma suave denuncia a existência de uma flor, oculta à nossa vista, mas pouco distante do nosso olfacto.

Eis por que muitos presságios de Devarnier se realizaram, é que as páginas do seu futuro foram lidas por sua própria alma, antes que as virassem os dedos do tempo implacável, que as foi destruindo, lacerando uma a uma, cada dia, até chegar à última, realizando-se tudo quanto nelas estava escrito, todo o in- fólio do destino de Paulo.

* * *
Poucas emoções, na minha última romaria por esse planeta, me agitaram tão vivamente o coração, como quando descobri a fronte encanecida à beira daquele impassível mausoléu...

Uma indefinível mágoa me estuou no peito ao ver prosternar-se, de cabeça baixa, um lenço velando os olhos enevoados de lágrimas, o tio do meu inditoso amigo.
Não pude, igualmente, conter o pranto que, em ondas, me afluíra à face, como se estivesse junto ao túmulo de um filho amado, o que de fato me sucedeu no decurso da minha finda existência.

Quanto lastimo não ter então, como agora, a inabalável certeza de que a vida humana é uma intérmina cadeia, uma corrente que se compõe de muitos elos, cada qual terminando no sepulcro, para de novo se soldar em ulterior encarnação até que o espírito adquira elevadas faculdades, ou atinja a perfeição.

Se, naquele dia, já me achasse esclarecido pelas verdades siderais, sentir-me-ia venturoso, não combalido, e teria dito ao consternado coronel Devarnier:
- Nós ainda o veremos, meu amigo!

"Aqui está apenas a crisálida perecível, uma das vestes de Paulo, uma das que os vermes têm corroído, ao passo que sua alma, a falena de luz, já está cindindo a amplidão cerúlea, onde nos encontraremos ainda, onde solidificaremos os liames de recíproca e fraternal afeição que nos vinculam os espíritos e se tornarão eternos e indestrutíveis!
Não devemos pois prantear a sua liberdade, pois que estamos ansiosos pelo momento de nos emanciparmos das dores e das decepções terrenas...".

Naquele dia, porém, estavam ainda insolúveis, para mim, muitos problemas relativos à sobrevivência da Inteligência imperecível - a alma - e, por isso, chorei na campa de Devarnier como se jamais houvesse de vê-lo e ela representasse a sua derradeira morada.

Curvei-me sensibilizado à borda de um sepulcro, quando devera ter erguido a fronte para o Infinito.
Abismei-me, por alguns instantes, num mutismo e desalento profundos, quando devera ter desprendido o Espírito, por meio de uma prece veemente dirigida ao Eterno.
Assim, naqueles magnos segundos, sentir-me-ia fortalecido e talvez lograsse alçar uma ponta do véu que me encobria os chamados mistérios de além-túmulo, inspirado por Osíris.11

Mas, nessa época, ainda sob o domínio das paixões humanas, soube apenas deplorar a morte de um dedicado mancebo.
Depois, entristecido, separei-me do coronel Devarnier, continuando, por algum tempo, a cobrir de flores o mausoléu de Paulo.

Hoje, porém, posso afirmar aos que à beira de uma campa ficam perplexos, anelando desvendar os arcanos que ela oculta no seu âmago:
Investigadores das verdades transcendentes: nada se aniquila com a morte, nem mesmo a matéria, que se transmuda em miríades de seres rudimentares, dando origem aos vibriões e à seiva dos vegetais, que se engrinaldam de flores!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:46 pm

A morte não é, como dizem geralmente, o sono eterno é, antes, o despertar da alma - que se acha em letargia enquanto constrangida no estojo carnal -, despertar que à vezes, dura tempo bem limitado, porque lhe cumpre retornar à Terra, a desempenhar nova missão;
não é o esvaimento de nenhum dos atributos anímicos;
é o revigoramento e o ressurgimento de todos eles, pois é quando a inteligência se torna iluminada como por uma projecção eléctrica, para se lhe desvendarem todas as heroicidades e todos os delitos perpetrados no decorrer de uma existência.

Não é o repouso senão para o espírito impoluto, isento de crimes e cuja vida planetária foi fecunda em lágrimas e actos de abnegação.

A vida material é a asfixia da alma num túmulo putrescível, feito de músculos e ossos.
A morte é a dilatação de potências indestrutíveis, anestesiadas por alguns anos, mas que se intensificam de chofre e constituem as asas que impulsionam a cintila deifica ao Espaço, todas elas imprescindíveis à conquista da perfeição suprema!".

* * *
Escoaram-se mais alguns lustros após minha ida, peia primeira vez, à tumba de Paulo Devarnier, e também eu deixei de habitar esse orbe:
concluíra uma das minhas mais árduas provações terrenas, pois, se algumas vezes a glória me roçagou a fronte com suas fúlgidas e níveas plumas, amarguras indescritíveis, decepções acerbas, reveses ignorados, me maceraram amiúde o coração.

Calo-me, porém - quanto à adversidade com que lutei frequentemente, que me pungiu a alma, ferindo-a eficazmente na liça da dor, acerando-a como ao aço, dando-lhe mais rija têmpera, tornando- a apta para os prélios do dever, invulnerável ao mal – a fim de poder reatar a urdidura de Paulo Devarnier.

Nos últimos anos da minha trajectória por este planeta, o drama familiar que conheceis me pareceu extinto, in totum.12
Entretanto, liberto da matéria, ele teve para mim um prosseguimento, e o epílogo só poderá ser traçado com o perpassar do tempo, que tudo consuma e esclarece.

A vida humana - da criatura que nos pareça mais humilde, destituída de interesse, boçal - é um romance perene, tem lances sensibilizadores, heroísmos e degradações em séries incessantes, e, se há para ele um - fim - somente o Sempiterno saberá marcá-lo, com caracteres rútilos.

Deixo, porém, de divagações filosóficas e finalizo a primeira estância desta narrativa para vos dar a conhecer o regozijo que experimentei ao deparar com o nobre Devarnier em pleno Espaço.
Como era natural, encontrando-o, fiz-lhe carinhosas arguições e as respostas que me deu constituem as páginas complementares da sua confidência, enfeixadas sob a epígrafe de Na sombra e na luz.

Vereis que nelas fulgura a sua linguagem vigorosa e enternecedora, emanada de um espírito lúcido e acrisolado nos ásperos combates morais.
Lendo-as, provavelmente haveis de meditar, leitores, nas consequências nefastas dessas desarmonias de família tão comuns, entretanto, na história dos povos - e evitareis, quanto puderdes, enjaular no vosso coração sentimentos condenáveis de ódio, vingança, traição, homicídio.

Sondar, aprender, evolver, atingir a meta espiritual - É o destino humano.
Quem delinquir, entrava a marcha da alma, tornando-a galé do sofrimento.
O que julgamos obscuro e ininteligível, durante a nossa vida corporal, afigura-se-nos de fácil compreensão, quando nos podemos librar no firmamento.

Assim, os enigmas insolúveis para a ninfa humana são singelas equações para borboleta espiritual.
Não vos admireis, pois, de que, outrora, eu tenha chorado a perda de um amigo, com a alma ansiosa por perquirir os arcanos tumulares, e de que, decorridos mais de quatro decénios, depois de haver reproduzido a fiel exposição de uma de suas existências mais prolíferas em lances patéticos, lhe possa acrescentar inúmeros episódios, pormenores ignorados de todos neste orbe.

Como em Bruxelas, deixei que ele expressasse, sem interrupção, seus pensamentos.

Cedo à sua segunda confissão as páginas desta novela, fazendo-me apenas o transmissor do que me referiu, como ocorrido desde o instante em que se consumou aquele nefando duelo, até a sua entrada num dos mundos que são paragens de paz e ventura para os heróis espirituais, depois de lutas que deixam a alma contundida, como que chagada, mas tendo em cada gilvaz produzido pelo gládio da dor um foco brilhante, de fulgor igual ao da estrelas mais rutilantes.

A existência orgânica de Paulo Devarnier, extinta e plena juventude, foi, pois, substituída pela psíquica - na qual se integram todos os atributos do Espírito - e, por isso, posso asseverar-vos que ele continuou a padecer, a instruir-se nas coisas imprevistas e referentes ao seu aprimoramento moral, para de novo regressar ao planeta a que se achava sirgado ainda pelo sofrimento, pelo ódio e por um sentimento imarcescível, sem lograr por muito tempo ver realizado o sonho dilecto, que nutriu debalde numa curta mas tumultuosa vida:
a sua aliança com Elisabet.

11 Um dos deuses do Antigo Egipto, protector dos mortos.
12 Inteiramente
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:47 pm

LIVRO II - Na escola do Infinito

CAPÍTULO I


Se ainda pertencesse ao planeta em que vivi no século pretérito - fértil em prodigiosos imprevistos e inolvidáveis acontecimentos -, esta sucinta mas comovedora novela estaria, leitores, de todo terminada, com o ponto final que, para muitos de vós, a morte coloca na derradeira página de uma existência, esculpindo-o na alvura imaculada dos sepulcros, que participam da gelidez e do indiferentismo que votais ao grande mistério do desaparecimento de uma criatura do proscénio da vida, para se ocultar na penumbra de um bastidor que, por parecer tenebroso, imperscrutável, quase nenhum de vós tenta desvendar.

Entretanto, eu vos afirmo que a vida espiritual é um suplemento muito ampliado da outra susceptível de se extinguir - a orgânica.
Os sentimentos, às vezes anónimos, se abalroam e conflagram na alma sofredora e indestrutível - sede e arena de todos eles -, e se mostram, não raro, mais ardorosos e violentos do que antes;
as faculdades intelectuais adquirem maior lucidez.

Os seres recém-ligados da clâmide carnal compreendem a causa de infortúnios terrestres;
lamentam não haver cumprido rigorosa e heroicamente as suas missões e os seus deveres sociais e divinos;
vagueiam no Espaço e na floresta humana, disseminada pelos continentes, no seio da qual deixaram afeições estrénuas e indissolúveis, outras vezes paixões impuras, acorrentados, espíritos e homens, reciprocamente, pelo amor e pelo ódio.

O amor e o ódio são grilhões que os sentimentos forjam, um fundido de estilhas de astros, outro de bronze caliginoso, ambos algemando as almas através do galopar vertiginoso dos séculos, até que a luz triunfe da treva, como Hércules da Hidra de Lerna.³

Mudam-se os cenários, mas os artistas continuam a ser os mesmos, até que lhes penetre a aspiração de aprimorar suas potências psíquicas, o anelo de progredir e ascender aos orbes rútilos.
Volvem, então, ao palco da vida planetária, onde vêm desempenhar encargos penosos, suportar dores incompreendidas ou praticar dedicações sublimes, sem que, por serem outras suas vestes corpóreas, os possais reconhecer, vós que desconheceis as vossas e o que fostes outrora.

Este magno problema, até bem pouco tempo insolúvel - do destino da humanidade post mortem - tem hoje solução evidente e incontestável, embora haja ainda uma falange de cépticos e obstinados que se desiludirão fatalmente ao transporem os umbrais que dão acesso à feral morada de Átropos¹4, onde apenas se guardam os despojos inanimados das criaturas.

Os que esperavam ansiosos o nada, ou o repouso ficam apavorados e perplexos, reconhecendo que há continuidade entre a vida orgânica e a psíquica.
Então, como relâmpagos ininterruptos, no recôndito céu que todos trazem em si mesmos - a mente - flamejam as arguições que, à medida da evolução do espírito, vão sendo esclarecidas.

stabelece-se um confronto entre a vida planetária e a vida ultra-tumular, e as duas surgem a princípio, nos refolhos d'alma, como a primeira e a extrema guaridas da Humanidade, simbolizadas pelo berço e pelo sepulcro, parecendo este ser a antítese daquele.

Volvidos, porém, os anos, ambos se confundem: são os pródromos de uma vida, o início de uma nova existência! Que é, de fato, o berço?
Primeiro asilo que protege um minúsculo invólucro tangível da alma, vinda das paragens siderais, qual andorinha emigrada de longínqua região e que, depois de exaustiva jornada, pousa, cheia de fadiga, no primeiro ninho que se lhe depare.

A vida corporal não passa, pois, de um breve parêntesis aberto na Eternidade, da qual a campa é o preâmbulo, o começo de uma outra existência, a do Além, mais prolongada e integral que a interrompida pela morte.
É o regresso à pátria eterna, depois do inverno da dor e das provações, de que o Espírito se poderá eximir se sua missão terrena, curta ou dilatada, for um exemplo incessante de virtude, de abnegação, de deveres austeramente cumpridos.

O berço, portanto, simboliza o retorno de uma alma a Terra, onde, obumbradas as suas potências mais fúlgidas por um eclipse que às vezes dura decénios, fica entorpecida, como a crisálida aprisionada em espesso casulo.

O outro, o túmulo, que parece o término de todas as coisas perecíveis, é onde ela desperta do letargo que a conservava agrilhoada ao limo infecto - o corpo - que se metamorfoseia, no laboratório incomparável da Natureza, em vorazes e repulsivas larvas e em flores olorosas:
é o regresso à verdadeira pátria, de onde se achava exilada, depois de um momento de dor infinita, que se afigura durar milénios - a vida material.

E assim, após muitas considerações, ora no Espaço, ora na Terra, chega à conclusão de que o que parecia um antagonismo no espírito neófito não o é na realidade;
há, apenas diversidade de nomes ou de locais.

Destarte, berço e sepulcro se confundem, porque um é o corolário do outro, sendo ambos emblemas do início de duas existências - a planetária e a espiritual.
Um é o volver da alma a um palco restrito, onde desempenha uma farsa, ou um drama, em que há lances burlescos, trágicos ou heróicos, de acordo com as potências psíquicas já desabrochadas e com o anelo que possua de evolver, de cumprir uma sentença divina, sem transgressão.

Pode, então, tornar-se obscura, tenebrosa, se praticar o que não é lícito;
fúlgida e alvinitente, se executar o bem, exclusivamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:47 pm

O túmulo é a volta do Espírito à amplidão celeste, a libertação de um condor acorrentado num charco, sua entrada num proscénio, que tem o éter por ambiente e onde as estrelas perpetuamente cintilam.

Sombra e luz, berço e túmulo, ergástulo e liberdade eterna - eis definido o destino de cada alma, com períodos de lutas e intervalos de repouso, até que possa, um dia, desferir voo definitivo para o firmamento constelado, de onde não regressará jamais a este orbe, senão em cumprimento de missões excelsas.

* * *
Reato, agora, a trama da novela que me propus explanar nestas páginas.

Passara o tempo - analgésico para quase todos os sofrimentos, narcótico que anestesia todas as recordações, por mais empolgantes ou absorventes que tenham sido os sucessos que as gravaram na memória, por mais vibrantes que tenham sido os sentimentos que fulgiram na alma, deixando nela sulcos de fogo que pareciam inextinguíveis, como as irradiações dos astros, nos instantes em que a iluminaram e crestaram.

Transcorridos cerca de dez lustros, eu olvidara quase o drama familiar que teve por protagonista Paulo Devarnier, cuja vida procelosa permanecia na minha retentiva qual sonho fugaz, mas doloroso, quando, finda a existência em que fomos compatriotas e amigos, o reconheci num desses benévolos e desvelados protectores que aguardam a desmaterialização dos seres amados, para os iniciar nos austeros arcanos do Além, fazendo-os rememorar que já estiveram, por vezes, nas Paragens siderais.

Revendo o prezado amigo, cuja desencarnação se deu em Fáris, intensa foi a minha emoção e, mais do que nunca, me convenci de que a amizade, quando digna deste nome, cordial e lídima, não se esfacela nem pulveriza com o coração que a continha e que se desfaz na campa: prolonga-se extratúmulo, como as raízes de um cedro se internam pelo solo do Líbano, solidificando a árvore, tornando-a inabalável, secular, potente!

Reconhecemo-nos prontamente, graças à célebre transmissão de pensamentos que, nos desmaterializados, é admirável e indescritível.
Fizemo-nos mútuas e amistosas confidências;
interroguei-o sobre o passado, desde que nos separamos em Bruxelas, e, então, com a sinceridade que é o apanágio dos entes nobres, ele me fez circunstanciada confissão, a qual cedo, em absoluto, às páginas desta sugestiva história, de que já conheceis o início, cônscio de que todos os leitores me aplaudirão a ideia, porque a linguagem de Paulo tem um encanto indizível, faz vibrar, enternece, sensibiliza os corações, é expressiva e convincente.

Ei-la:
- Meu caro e inolvidável amigo - disse-me ele, enquanto nossos Espíritos cindiam o Espaço, como se fôramos pássaros a fugir de uma região polar, perpetuamente vergastada pelas ásperas hivernias - a Terra - no encalço de uma eterna primavera de luz - o firmamento -, vou descrever-vos, serenamente, o que se tem passado comigo, desde o instante em que nos apartamos na Bélgica.

Usarei da mesma lealdade com que vos fiz, outrora, o relato de todos os episódios de uma existência sinistramente interrompida em Paris.
Bem sabeis que fui chamado inesperadamente à França, aonde regressei como grilheta que vai cumprir, em presídio insular, as exigências inexoráveis da pena a que o condenaram, levando o coração equimosado por inexprimível sofrimento.

Passados alguns dias, não tendo recebido as almejadas informações que mandara colher em Berlim, achava-me, uma tarde desalentado e apreensivo no meu gabinete de trabalho tentando desanuviar o cérebro - obscurecido por atrozes pensamentos - com alguma leitura proveitosa, sem conseguir, no entanto, compreender ou assimilar sequer uma só das ideias explanadas no livro, que mal sustinha nas mãos, apresentando-se-me todas quais indecifráveis enigmas egípcios, quando um fâmulo me anunciou a presença de um de meus primos, o de nome Carlos, na minha casa!

Fiz, em poucos segundos, inúmeras suposições, aflitivas arguições a mim mesmo, enquanto reparava a toalete para lhe ir ao encontro.

Procurar-me-ia como adversário, ou como amigo?
Dar-me-ia notícias de Elisabet?
Consentiria, afinal, na realização do nosso consórcio?
Saberia que eu enviara um intermediário a Berlim?
Teria a minha adorada noiva morrido?

Estremeço ainda, caro amigo, e padeço, ao lembrar-me daqueles instantes de inquietações e amarguras em que um sofrimento superlativo, como látego de chamas, me vergastou a alma até aos derradeiros instantes da acidentada existência em que nos conhecemos.

Cheguei à sala de visitas sem saber se deveria estender-lhe a mão.
Ao vê-lo, porém, compreendi, pelo olhar a dardejar sobre mim fagulhas de ódio, que me execrava mais do que nunca.
Suas primeiras exclamações confirmaram minhas dolorosas suspeitas:
- Venho, miserável, cobrar-te uma dívida de honra!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:17 pm

Quero arrancar a vida àquele que infelicitou e desgraçou minha família, da qual hoje poucos membros restam!
- Estás louco, certamente, Carlos! Que fiz para assim me acusares injustamente?
- Fascinaste aquela desventurada Bet!
- Amar não é crime punível pelas leis sociais!
Por que te opões à realização da nossa ventura?

- Desgraçado! Ela já era a esposa de outrem e, por tua causa, pôs termo à existência!
Ai! meu amigo!
Já se foram tantos anos - quisesse meio século - depois que ouvi essas palavras que me penetraram o coração como punhais envenenados;
já volvo outra vez à Terra, a esse planeta de árduas expiações, onde a dor está semeada com a mesma profusão que as estrelas pelo Infinito, e, contudo, não posso ainda recordar sem um frémito de viva emoção tão atrozes vocábulos, que me puseram em delírio, que me açoitaram a alma sensível, afectuosa, ávida de notícias da minha adorada noiva.

Pareceu-me que um súbito terremoto, um cataclismo se produziu no meu espírito, ou que me sugavam vampiros de fogo!
De que modo fora informado da morte daquele ser idolatrado, de Elisabet, do seu suicídio para me ser fiel!

Brutalmente, sicariamente!

Sei que, cego de ódio e de desespero, no apogeu do sofrimento, exclamei:
- Infame! Se me vens arrancar a vida, que é o que esperas, pois que já me assassinaste com as tuas cruéis revelações?
"Por que retardas o momento de cevar no meu sangue o teu rancor?
Faz-me ao menos esse bem depois de teres destruído barbaramente, para sempre, a minha felicidade e a de tua pobre irmã, de quem nunca te compadeceste, pantera!".

Não quero tirar-te a vida como um carrasco ou um bandido.
Emprazo, porém, para amanhã, o nosso encontro, no local que escolheres, pois não conheço Paris.
Assim, nossas armas decidirão qual de nós dois tem a Justiça Divina a seu lado.

Aproxima-se a hora, ansiosamente esperada, de avaliarmos a têmpera das nossas espadas, como o disseste naquela noite fatal, quando foste ao meu lar, que já enlutaras uma vez, para ocasionar outra desgraça - a morte de minha mãe!

Pronunciadas estas palavras, atirou-me um cartão com o endereço do hotel onde se hospedara, voltou-me as costas e desapareceu.
Embora sob o domínio de um pesadelo asfixiante, satânico, dei todas as providências para que o duelo se realizasse ao alvorecer.

Meu tio Félix se achava ausente, no desempenho de um encargo militar.
Tão conturbado estava o meu espírito que tomei uma resolução gravíssima, qual a de expor a própria vida, sem o consultar, sem lhe ouvir os conselhos amigos, sem lhe dirigir, sequer, uma palavra de despedida ou de gratidão infinita por tudo quanto me fizera.

Encontrava-me, pois, inteiramente só, naquela noite intérmina de dor suprema!
Às vezes, como se houvesse perdido a noção da realidade, supunha ver o meu caro protector ao pé de mim e expunha-lhe então, com a voz alterada, toda a minha desdita;
suplicava-lhe perdão pelos desgostos que lhe ia causar e os nomes de Elisabet e de sua mãe eram constantemente proferidos por meus lábios febris.

Não consegui repousar um só instante:
ora percorria os aposentos da nossa residência, sem consciência quase do que fazia, ora estacionava, com as ideias como que absorvidas por uma voragem íntima, sentindo o cérebro escaldante;
às vezes me debruçava sobre os móveis, soluçando qual criança abandonada pelos pais e injustamente punida por bárbaros estranhos.

E, para minha maior tortura, a todos os segundos me surgia na mente alucinada a visão desoladora do meu pobre avô, como no último momento em que o vi, com a fronte veneranda premida sobre o tampo de um consolo, confundindo as suas cãs com a neve do mármore...

Houve uma hora em que o criado se ergueu do leito, espreitou-me apavorado, e, aflito, se ofereceu para chamar um médico, o que recusei, solicitando-lhe apenas água com um sedativo qualquer, que não actuou no meu organismo.

Julguei, amiúde, que enlouquecesse.
Abria a secretária, retirava dela um revólver para pôr termo ao meu martírio, mas, ao empunhá-lo, minhas mãos ficavam inertes, frígidas como se o gelo da morte começasse a invadi-las ou se algo de insuportável me forçasse a retroceder ante a perspectiva deste crime - o suicídio - que eu supunha, no entanto, o único meio de me libertar de um inquisitorial suplício, para cuja descrição não encontro vocábulos na linguagem humana!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:17 pm

A destruição voluntária da própria vida era o único desenlace racional que, então, se me antolhava para o drama angustioso da minha existência.
Estava, porém, resolvido: se não fosse ferido mortalmente, suicidar-me-ia depois do duelo.
Não tentarei descrever o sofrimento que me azorragava a alma naqueles momentos tormentosos de uma infinda noite de amarguras, no meu horto de dores inconsoláveis e ignoradas.

O que vos posso dizer é que me sentia com as faculdades mentais anarquizadas, desnorteadas - qual bergantim desarvorado e sem roteiro à falta de bússola -, mas sempre concitado a realizar o combinado encontro bélico, pelo desejo de uma vingança, que nos atraía um para o outro fortemente.

Almejava, também, mostrar-lhe o valor das armas que eu manejava com perícia, além de não querer que me supusesse covarde.
Depois de ficar patenteado que não o temia, deixaria que ele decepasse o fio de minha vida, que se me apresentava árida, escura, sem um objectivo ao qual me pudesse ilaquear, após a derrocada de todos os meus sonhos, a hecatombe de todas as minhas ilusões, o fracasso de todas as minhas aspirações mais caras.

Aquelas horas, porém, de febre, de delírio, de desespero, me quebrantaram as forças orgânicas e psíquicas.
Ao amanhecer, aos primeiros fulgores da aurora - que julgava jantais seriam por mim contemplados - a insensibilidade, a inércia substituíram a exaltação em que estivera até então.
Deu -se, em todo o meu ser, a invasão da indiferença a tudo na Terra, um esvaimento nervoso, um brusco arrefecimento do ódio que me incendia o cérebro, uma cabal metamorfose de todos os sentimentos.

Achei-me outro indivíduo, diverso do que sempre fora, esmorecido, esmagado, indiferente a tudo - até mesmo a qualquer noção de dignidade, pois me faltava o único incentivo que tinha para viver: Bet.
Para mim, tudo que não fosse Bet, na Terra ou no Infinito, não passava de coisa nula, imprestável, sem atractivo, desde o momento em que soube que ela jazia num sepulcro.

Pareceu-me ter envelhecido anos em pouco mais de doze horas;
o recesso do meu eu sofrera perturbador abalo e, após os sentimentos ultores e vorazes que nele efervesceram, experimentei uma sensação de aniquilamento, de completa inanição, supus que ia me tornar um nada, para sempre.

Passara-se, no meu íntimo, algo de grave, fulminante ou transformador, um fenómeno inextricável.
Tive a impressão de haver encerrado no crânio um impetuoso Aconcágua, que, por espaço de algumas horas, experimentara violentas convulsões subterrâneas, arrojara longe chamas e lavas candentes, que, bruscamente, se aquietara, extinguindo-se toda a matéria ígnea que arremessava aos ares e que, sobre as bordas da cratera, até então escaldantes, começara a cair neve, formando avalanchas titânicas.

E foi assim - tomado de desalento, de prostração, de esgotamento nervoso - que vi aproximar-se o momento do duelo e que me deixei ferir mortalmente pelo meu adversário, sem absolutamente me defender.
Levaram-me ainda com vida para a casa de meu tio e protector Félix Devarnier - que já havia regressado a Paris, mas ignorava o epílogo do drama sangrento em que fui imolado e do qual só se inteirou no momento em que me viu exânime, golpeado a florete.

Durei, porém, poucas horas.
O delírio me endoideceu constantemente, até quase ao extremo alento, parecendo-me, a todos os instantes, ver a minha infeliz e idolatrada Bet perpassar perto de mim, envolta em alva roupagem - qual a vira pela última vez em Berlim - de uma palidez alabastrina, tentando falar-me sem o conseguir, e retirando-se depois, soluçante, quando comecei a sentir que me invadia a algidez cadavérica.

E o que se me afigurara ter sido apenas desvario febril, sei hoje que foi pungente realidade.
Quando, enfim, caro amigo, se romperam os últimos liames que prendiam minh'alma à matéria;
quando findou a absorvente perturbação em que me encontrei por algum tempo - como que sob a acção de um narcótico poderoso, de que jamais pudesse despertar, compreendi que a outra vida estava terminada e a minha carreira militar, tão bem iniciada, interrompida para sempre.

Ao principiarem minhas ideias a desanuviar-se, só me recordava de alguns factos mais recentes, esquecido inteiramente dos mais remotos, como se a memória estivesse fragmentada, qual livro de que restassem apenas algumas folhas, tendo sido as outras incineradas numa pira.

Comecei a atentar no que me circundava: achava-me numa planície intérmina, num Saara por graça divina alfombrado de relva orvalhada.
Ao longe, à direita do lugar em que me encontrava, perfilavam-se serras embuçadas de névoas de alvura imácula, semelhando véus nupciais.

Não divisava nenhuma povoação.
Era como se me visse desterrado num planeta desconhecido e fosse o seu único habitante.
Após o estuar das paixões violentas, das labaredas da dor, do desvairamento, do desespero, uma calma absoluta me envolvera o espírito.

Empolgava-o, suavemente, o insulamento. Inebriava-me a paz inefável da Natureza que me cercava, causando-me invencível inércia.
Compreendi que não continuava mais no domínio de um sonho, mas que a morte me libertara dos últimos vínculos que me ligavam à vida corporal, e uma reparadora serenidade me invadiu toda a alma que, no entanto, não se sentia venturosa, antes imersa num pélago insondável de mágoas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:18 pm

Estava na conjuntura de um menino, em extremo susceptível, que, depois de muito haver soluçado, adormece bruscamente, vencido pela fadiga, sentindo invencível entorpecimento, profunda anestesia de todas as suas faculdades intelectuais, mas cujo sono, devido às penosas impressões recebidas, se povoa de visões sinistras que o atemorizam.

Ao despertar, o que primeiro lhe acode ao cérebro torturado é a recordação do dissabor que o flagelava antes de buscar o leito.
Já sabeis, meu amigo, como se dá o despertar da alma quando, por uma recente desencarnação, imposta pelos desígnios divinos, se rompem os laços fluídicos que a prendiam à matéria.
Outra, porém, era a minha situação, que talvez desconheçais, por isso que, no meu caso, a existência fora, em plena pujança da juventude, interrompida violentamente.

Afigurava-se-me que teria de permanecer, por toda a eternidade, acorrentado àquela extensa e árida savana, desolado, entristecido, condenado perpetuamente a não ouvir jamais voz humana, nenhum som, privado de contemplar qualquer ser humano, sentenciado, enfim, à inércia, ao silêncio por todo o sempre!

Pouco a pouco, porém, fui recobrando a vontade de agir, apossando-me das minhas faculdades sensoriais e do meu livre-arbítrio.
Foram-se-me patenteando ao entendimento os últimos dias da minha vida planetária, como se em meu espírito começasse um alvorecer, iluminando-o um revérbero íntimo.

Pude, assim, com acuidade e lucidez, inteirar-me dos fatos mais remotos ocorridos durante a minha estada na França, na Alemanha e na Bélgica, pensar detidamente em Elisabet, e, então, as reminiscências das últimas e acerbas dores adquiriram, na minha mente, a impetuosidade das lavas de um vulcão, que todos supusessem esgotadas e que, abruptamente, irrompessem de novo e jorrassem de ampla cratera ignívoma.

Todas as recordações da passada existência, que apenas se achavam em catalepsia, concentradas no mais profundo recesso do meu senso - onde jaziam soterradas todas as lembranças do passado e nenhuma intuição havia do futuro, os dois hiantes sorvedouros ligados por frágil ponte, o presente, que então parecia dominar-me exclusivamente - fluíram do meu íntimo com violência, produzindo-me agitação indizível, dando-me novas energias.

Ao cabo de alguns momentos, minha situação se apresentou na sua completa realidade.
É o que sucede, provavelmente, a um mísero galé que, ao ser precipitado em calabouço infecto, esquece a princípio o delito que serviu de base à sentença que o condenou por toda a vida, só lhe ficando a ideia do presente mortificante.

Olhando as paredes sólidas, húmidas, lúgubres, da prisão, parece-lhe não só que lhe vedam a liberdade, mas que também lhe muram até os pensamentos.
De súbito, porem, lhe afluem ao cérebro, em torrentes de fogo, as evocações de toda a sua acidentada existência, de todas as suas acções criminosas, e a seus olhos se desnuda o presente que o aterra, fazendo-lhe rilhar os dentes de pavor, porque lhe deixa entrever, soturnamente, o porvir, qual se fora ilimitado oceano de sombras.

Sente-se eriçarem-se-lhe no crânio incendiado os cabelos que eram da cor das trevas e que encanecem repentinamente, como que tornados em cinza.

* * *
Apesar de já se haver operado o despertar do meu entendimento, achava-me ainda na desoladora situação do aludido galé, sofrendo insanamente com as recordações do meu passado, sem coisa alguma vislumbrar do tempo porvindouro.

Mas inopinadamente - como se penetrassem venábulos de sol no calabouço, através de uma brecha produzida, à noite, pela metralha de um trovão - em minh'alma se focalizou um raio de esperança, balsâmica e animadora:
ter a eternidade por futuro, estar desvencilhado dos implacáveis adversários (ignorava ainda que o meu contendor Carlos estivesse também encerrado num sepulcro e, por certo, na mesma inquietadora emergência em que me encontrava), poder unir-me àquela que continuava a ser, para mim, a noiva dilecta, um ídolo sagrado!

Senti-me, subitamente, quase venturoso.
A minha Bet se suicidara na noite nupcial, para não me ser perjura!
Pobre e adorada Bet!
A sua heroicidade era um novo elo que nos prenderia por todo o sempre as almas.

Não nos separaríamos jamais, jamais!
Voaríamos enlaçados pelo espaço em fora!
Mas onde poderia encontrar a minha idolatrada noiva7.

E quem me levara àquela intérmina charneca?
Estaria ainda no mesmo planeta onde vivêramos e fôramos tão bloqueados pelo infortúnio que, não podendo resistir aos seus derradeiros assaltos, dele fomos rechaçados pelo cruel sátrapa?
Ou estaria numa região de torturas mefistofélicas, das quais fazem descrições apavorantes Alighieri e os sacerdotes católicos?

Não cessava de pensar em Elisabet.
Como, porém, a encontraria, achando-me só num mundo extensíssimo, desconhecido, desabitado?
E se já estivesse irremediável e eternamente condenado àquele martírio inédito - ignorado pelo próprio Dante - de ficar desterrado em vastíssimo orbe, sem poder, nunca mais, ver alguém, tendo de permanecer naquela solidão, banido da sociedade, até a consumação dos séculos?!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:18 pm

E se estivesse privado para sempre de encontrar Elisabet?
Ai tremia de inaudito pavor, julguei-me às bordas da loucura e comecei a bradar, com voz que acreditava atroadora, estentórica:
- Bet! Minha querida Bet!
Onde estás? Vem! Diz-me: onde estás?

Desejava correr celeremente em demanda de algum ente humano ao qual pudesse transmitir, súplice, meus pensamentos, implorar informações preciosas a respeito da minha situação, do local em que me achava.
Estava ansioso, sôfrego por saber onde encontraria a fiel prometida, mas me sentia tolhido da cabeça aos pés, como por um arnês blindado, chumbado ao solo por um poder incontrastável, soldado ao planeta de que fazia parte integrante, ignorando se era o mesmo onde vivera e onde tantas amarguras tinha padecido.

Já não pertencia mais à Humanidade - era um mineral que sofria.
Apenas pude aprumar-me no local em que me conservava estirado, na posição de um adormecido ou de um sepulto, pus-me a meditar como deveria fazer para sair daquele suplício.
Quando mais intensa era a angústia, caro amigo, dulcíssima voz de timbre celestial se fez ouvir, como que respondendo às palavras que eu bradara no ermo da minha prisão.

Exultei, supondo fosse a de Elisabet, que atendia, enfim, à súplica que eu lhe dirigira, indo ao meu encontro.
Ergui o olhar, delirante de júbilo, na direcção da voz maviosa.
Mas, cheio de assombro, deparei com uma entidade de formosura incomparável.

Tanta nobreza, melancolia e austeridade lhe ressumbravam do semblante fúlgido, de traços esculturais, primorosos, que me senti dominado, fascinado e, ao mesmo tempo, ínfimo, humilhado, reconhecendo nela uma superioridade que me esmagava, como se eu fora naquele momento uma lagarta rasteira, um repulsivo réptil, pulverizado por um bloco de estrela.

Um frémito percorreu todo o meu ser e, como réprobo, baixei a fronte.

Então a entidade lúcida, aproximando-se, pousou a destra diáfana sobre o meu ombro direito e me disse, com energia e amarga censura:
- Já te lembraste de Deus, desventurado?
Já alçaste o olhar ao Céu, de onde, somente, poderá fluir o bálsamo para as tuas dores e decepções tremendas?
Sabes por que tanto sofreste na existência que te foi tirada há pouco, criminosamente?

A essas palavras imperiosas estremeci novamente, fitei a amplidão, que era toda luz e suavidade, e, em seguida, subjugado por uma vontade potente, caí genuflexo, soluçando.

14 Aquela das três Parcas – deusas gregas – que cortava o fio da vida, que as outras teciam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:18 pm

CAPÍTULO II

Infeliz! - tornou a mesma voz, que me parecia já ter ouvido algures, com uma lenidade inefável - acabas de transpor os umbrais da morte, deixando que te arrancassem barbaramente a vida, quando te achavas em plena juventude, com todos os elementos de resistência, quando devias ser forte para a luta, para combater contra o próprio coração, até o momento em que o eterno te chamasse ao Além, abençoado por Ele, triunfante dos próprios sentimentos.

É assim que, se possuísse verdadeira coragem moral, terias saído vitorioso da campanha.
E, terminada que fosse esta, teu peito não verias recoberto de insígnias gloriosas, mas em ti fulgiriam focos radiosos, semelhantes aos núcleos estelares.

Tua alma se tornaria, ao mesmo tempo, alva e fulgurante, porque a luz nela desabrocharia - como sucederá a todo espírito que saiba vencer os óbices de suas provas terrenas, abençoar as suas lágrimas de dor, pois que estas, e não os deleites mundanos, é que o purificarão de todas as máculas, de todos os delitos do passado, sulcando-o de fecundos arroios cristalinos, facetando-o como faz o ano que afeiçoa um bloco de diamante para transformo em jóia de brilho incomparável.

"És, afinal, como toda a Humanidade - egoísta, aspirando a satisfazer a todos os anelos do coração exigente e insaciável, cuidando muito do fugitivo presente e olvidando sempre o infinito futuro da própria alma.
Nos momentos mais penosos da tua vida, não te lembraste nunca do Omnipotente, não lhe imploraste jamais um termo aos teus pesares, não lhe suplicaste resignação nos dias de maiores amarguras.

Só pensavas em obedecer ao impulso das tuas paixões, em abandonar covardemente a vida por meio de um crime abominável que é sempre punido severamente segundo as Leis Divinas, porque constitui afronta e revolta contra elas - o suicídio!
Compreendes, agora, que a existência humana tem um objectivo mais elevado e mais nobre a preencher que não a saciedade dos desejos, dos anelos mundanos, dos gozos que só interessam à criatura material e não à personalidade espiritual?

Compreendes agora que esta se acolhe e restringe nas vestes carnais, para poder laborar pelo progresso e desenvolvimento psíquicos, para sofrer, resgatar faltas remotas e sinistras, aprimorar as faculdades anímicas, apenas esboçadas no início das encarnações, para evolver e conquistar a perfeição, alvo a ser atingido por todos os seres que o Omnisciente criou, porque só ela nos aproxima do Criador?

"Ignoras que todos os que sofrem têm faltas a resgatar, são delinquentes que o Sumo Árbitro condenou com a mais irrepreensível justiça e absoluta equidade?
"Não sabes que do modo por que cumprem a sentença depende ou o galardão - se desempenharem escrupulosamente seus deveres sociais e divinos - ou a agravação de seus padecimentos - se prevaricarem, se reincidirem nas culpas de que já foram julgados, se não progredirem moral e intelectualmente, se empregarem nocivamente o tempo precioso que lhes concedeu o Altíssimo para a remissão dos seus passados crimes, continuando a perpetuar o mal, a serem soberbos, egoístas, recalcitrantes ou obstinados no erro, iníquos, ateus, libertinos, hipócritas, perjuros, traidores?..."

Houve uma pausa, que não ousei profanar com palavra alguma e que me pareceu longuíssima.

Depois, estendendo o braço na direcção de uma região desconhecida, a fúlgida entidade prosseguiu:
- Quando te dedicaste, em Berlim, cheio de amor, à tua noiva, nunca te lembraste de que, mais do que a ela, devias cultuar o Criador do Universo, porque vós ambos vos originastes dele, e assim, vossos espíritos, por entre árduas mas merecidas provas, deviam elevar-se, constantemente, até ao Pai Celestial, pela escada de luz da prece;
deviam ser pacientes, resignados, corajosos nos momentos em que as dores, como setas ervadas, vos ferissem acerbamente...

A mão invisível, adestrada e justiceira, que expedia essas setas, as apanhara uma a uma, ao longo da estrada das vossas transcorridas existências, trágicas e tenebrosas.

Eram as mesmas que arremessastes impiedosamente, para farpear corações sensíveis.
Devíeis, por isso, suportá-las com a mesma impavidez dos primitivos mártires do Cristianismo, que sucumbiam, flagelados por inauditos padecimentos, fitando o firmamento azul, onde sabiam que seus espíritos radiosos iriam aninhar-se gloriosamente.

"Ignoráveis, porém, que os sofrimentos humanos se derivam das próprias faltas cometidas e as acompanham como a sombra ao corpo, quer este se detenha, quer corra velozmente.
Fostes vós, portanto, os causadores dos vossos dolorosos padecimentos, e quem assim não pensar, pratica outro delito, porque atribui ao Legislador Supremo uma sentença iníqua, o ter condenado alguém a sofrer injustamente o que não fez a outrem, como se Ele fora um magistrado sem probidade, que não fizesse de Têmis15 o símbolo da rectidão e do direito imparcial.

"Bem sei que tendes ambos, tu e Elisabet, atenuantes para os vossos desvios nesta última encarnação, porque fostes imolados ao orgulho e ao ódio dos parentes, que ainda diferençam a humanidade pelo país do nascimento, emprestando supremacia àquele que lhes parece ser a sua pátria definitiva.

Mas - desditosos que sois! - também fostes culpados para com esses que se tornaram vossos algozes.
Se já houvésseis percebido a origem dos vossos dissabores, o motivo por que tanto padecestes - o que tanto ignoráveis por efeito do esquecimento que ofusca as potências da alma em cada encarnação, ocultando todos um passado remoto e sombrio - não teríeis um átomo de revolta contra o destino.

Ao contrário, vossos corações se teriam submetido aos admiráveis e imparciais desígnios da Providência, a quem imploraríeis que vos tornasse invulneráveis às investidas da descrença e do desalento, fortes para a luta que se vos antolhava superior às vossas forças!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:18 pm

"Vou, sucintamente, explicar-te - pois que, enquanto se não romperem os cendais que te obscurecem as faculdades, consequência da perturbação causada por brusca e recente desmaterialização, não te lembrarás de todas as tuas peregrinações terrenas - a génese do rancor que inspiravas principalmente a um dos irmãos daquela a quem amas ainda mais do que ao próprio incognoscível - afronta que sempre fizeste ao afectuoso, magnânimo e incomparável fautor de todos os seres e de todos os prodígios profusamente disseminados pelo cosmos, olvidando que a nossa existência, dele emanada, deve ser-lhe um lausperene de gratidão e de amor quintessenciado.

"Escuta-me, pois, infortunado Paulo Devarnier, com o máximo interesse, e, quando concluir minha lição - que auxiliará a desanuviar-te a consciência momentaneamente eclipsada pelas sombras que ainda provêm da matéria - tu me dirás se não foram merecidas as provas aspérrimas por que passaste.

"Numa das tuas anteriores encarnações, Paulo, já amaras a mesma criatura a quem te consagraste na Prússia com todas as fibras de tua alma, porém não lhe dedicavas afeição elevada como agora a sentes, capaz de todos os mais nobres impulsos, de todos os mais dignificadores devotamentos e sacrifícios.

Amaste criminosamente, impuramente, a mulher de alguém que acaba de te tirar a vida!
Estremeces? Começa a recordar-te do teu lúgubre passado?
Lembras-te desse Período tenebroso de uma das tuas existências, origem das tuas mais tormentosas expiações?
"Eras, então, Paulo, um jovem frívolo e conquistador de corações femininos, um desses destruidores da felicidade dos lares honestos, como ainda os há infestando o globo terráqueo.

Um dia, seduziste a formosa consorte de um teu companheiro de infância, de quem te dizias amigo.
Ele, o marido ultrajado, inteirando-se da extensão da tua infâmia e perfídia, exigiu reparasses a falta e tratou de reabilitar a honra por meio das armas, num duelo de morte - o que era comum e explicável nas eras cavaleirescas da Idade Média.

Aceite o desafio, foi ele a tua vítima, como foste agora a de Carlos Kceler.
Eis a origem da repulsa que causavas àquele que, na tua última encarnação, era teu primo, e que, na anterior, fora o esposo atraiçoado por Elisabet, que ele adorava e a quem não amaste com o afecto ilibado que devias votar à consorte de um condiscípulo e camarada de infância, de um quase irmão, ao qual roubaste a vida cruelmente, depois de lhe haveres rapinado a honra e a ventura.

"Cometido esse duplo e hediondo crime - traição e homicídio - nem sequer te apiedaste da outra vítima: a adúltera.

Abandonaste-a, depois de a teres impelido à prática de uma aleivosia contra o esposo que a idolatrava;
deixaste-a em extrema penúria, que a arrastaria aos lupanares, se não a houvesse tirado do paul, em que começara a imergir, um ilustre e virtuoso cavalheiro que, vendo-a em tão desoladora situação, antes que a desditosa mercadejasse a beleza peregrina, soube consagrar-lhe um afecto puro e fraternal, esqueceu-lhe o passado poluto e a desposou, tornando-se ela, desde então, esposa modelar.

"Estremeces, novamente?
Horrorizam-te as indignidades de tuas passadas existências, Paulo?
E queres saber quem é esse varão magnânimo com o qual Elisabet tem ainda de saldar uma dívida sagrada de gratidão?

É aquele com quem tua noiva casou há poucos dias, suicidando-se em seguida, na própria noite nupcial.
Não devia tê-lo feito, pois o holocausto doloroso do seu amor profundo, que lhe fora imposto como expiação da insídia que praticara noutra vida, ficou anulado, ao passo que, se houvesse se conformado com o destino, de pouca duração seriam seu sacrifício e martírio, visto que sua existência estava prestes a extinguir-se.

"Agora - desgraçados que sois! - cavastes, novamente, um abismo que, por muito tempo ainda, vos separará um do outro, fizestes jus a outras punições.
A Providência Divina -sempre justa, imparcial, infalível, integérrima - visava aplacar o ódio a que se votavam os dois antigos rivais, fazendo-os nascer ligados, noutra encarnação, por um próximo parentesco, membros de uma mesma família, a fim de poderem olvidar o passado tenebroso e metamorfosear a recíproca aversão em laços indissolúveis de uma afeição fraternal, sentimento que alia, umas às outras, todas as almas já limpas das imperfeições que as denegriam enquanto praticavam o mal.

"Sofreste, pois, na última romaria à Terra, as consequências funestas de uma outra em que levaste a desonra e o opróbrio a um lar feliz e casto;
padeceste atrozmente por causa daquela que seduziste e não devera ter esquecido a sua condição de esposa de outrem, que lhe dedicava afecto ardente e leal; que não devera, sobretudo, esquecer de que já era mãe e que, entretanto, não se compadeceu do pequenino ser que concebera e que, abandonado, sem os seus desvelos, entregue a fâmulos, veio a perecer, proferindo o seu nome enodoado.

Eis explicada a instintiva repulsão que teu primo Carlos sentia por ti, infortunado Paulo:
era ainda a presença do antigo émulo, do adversário odiado, daquele que, acintosamente, depois de lhe haver marcado a dignidade de esposo, lhe trespassou o coração magoado com um sabre, quando ele procurava vingar a sua honra ultrajada, facto que ainda mais lhe exacerbava o rancor.

"É verdade que o Direito divino reprova o duelo, que não passa de um assassínio com testemunhas impassíveis, de um homicídio premeditado, como o que comete o sicário que arranca de emboscada a vida do forasteiro, e que, para o conseguir, planeja todos os meios de executar o seu sinistro intento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:19 pm

É um delito abominável, pois é praticado com reflexão, com calma, escolhendo-se de antemão as armas.
Dentro de alguns anos, os códigos penais, alguns dos quais já o condenam, não permitirão mais, sob punições severas aos infractores, que se efectue qualquer encontro bélico, auxiliando assim as Leis Divinas que o consideram prejudicialíssimo à sociedade.

Mas, em tempos idos, mormente na Idade Média, era o meio mais pronto de que dispunha quem, ferido na sua dignidade, procurava zelar por direitos sagrados e desafrontar a honra, que ficaria desdourada se não o aceitasse ou não provocasse o ofensor.

Foste, pois, um dos que hão cometido esse delito, assassinando uma vítima da tua doblez e libertinagem.
Porque ficaste impune ante a justiça humana, os papéis se inverteram e, há pouco, em Paris, foste sacrificado por aquele que exerceu contra o antigo contendor uma vindicta feroz.

"Ele, agora, é mais desditoso do que tu, porque na via crucis, que vens de percorrer, não praticaste nenhuma transgressão às leis sociais, foste probo, justiceiro, de sentimentos nobres, ao passo que ele, rancoroso e vingativo, desconheceu todos esses valiosos predicados morais que possuis.

Cegavam-no o orgulho e a inclemência.
Se não os alimentasse n'alma, se os soubesse repelir com energia, vós ambos teríeis, de modo mais humanitário e de conformidade com o Direito divino, terminado as vossas existências, porque, pobre Paulo, ignoras ainda que teu primo Carlos também jaz num sepulcro recentemente aberto ao lado do teu - por uma ironia do acaso, como dirão muitos - mas que afirmo ter sido por desígnio do Céu, que uniu assim, no seio da terra, onde se nivelam todos os seres, aqueles que, animados pelo mesmo princípio vital, se odiavam como tigres famulentos, sanguinários.

"Os mesmos vermes que corroem o teu envoltório carnal hão-de devorar o dele.
Eis como terminam o orgulho e a vaidade humanos!
Protestas pela primeira vez?

"Sim, tens razão.
Não execravas a Carlos tanto quanto ele a ti, porque vieste do Espaço com intenções inabaláveis de ser humilde e só praticar o bem.
Tinhas o coração propenso ao perdão e ao que é generoso e elevado, enquanto que ele não cumpriu o que promete todo o Espírito quando reencarna, a saber:
não se vingar, esquecer o que sofreu noutra digressão planetária, perdoar aos adversários, votar à justiça e à virtude.

"Carlos era inexorável: tua presença lhe evocava as dores do passado, nutria por ti uma aversão indomável; considerava-te a estrige nefasta de sua família, atribuindo-te toda a responsabilidade do passamento do avô paterno, da sua progenitora, do suicídio da irmã - olvidando, obcecado pelos sentimentos vingativos que alimentava contra ti, ser ele mais delinquente do que foste.

Na sua mente desatinada, imbuída do desejo de represália, um só pensamento germinou contumaz:
saciar o seu ódio, destruindo-te a vida numa peleja encarniçada, em que ambos combatessem como leões enlouquecidos e sedentos de sangue.

Quando, porém, te viu - na manhã do dia em que te feriu mortalmente -, tão evidente era o teu sofrimento moral, tão nua a tua dor infinita, tão lívido o teu semblante, onde a angústia mais profunda afivelara sua máscara de gesso, ele - mísero Carlos - se compadeceu de ti, do teu padecimento inaudito.

"Vi-o então enristar a arma contra ti e recuar, uma vez, quase tão pálido como tu mesmo, todo o organismo abalado por um tremor nervoso.
Compreendi, claramente, que não queria mais se bater.
Não o consentiu, porém, o orgulho que o dominava ainda, o orgulho do prussiano desejoso de humilhar um francês.

Pela vez primeira, desde que te conheceu, quando te expuseste ao certeiro golpe do seu florete, quando te viu golfando sangue, com o peito varado, levou ele as mãos aos olhos turvos, cambaleando como se estivesse ébrio.
Teve horror de si mesmo e, recuando sempre, sem poder desviar a vista do teu corpo inerte e ensanguentado, partiu em busca de uma carruagem que o arrebatasse daquele local sinistro.

Mas, antes de partir, ouviu alguém bradar com indignação:
- Cometeu um homicídio!
"Desde aquele momento lhe flagelou a consciência um remorso terrível e, ao saber que não existias mais, pôs termo à vida, perfurando o crânio com uma bala, num quarto do hotel.

"Foram indescritíveis seus derradeiros instantes de amargura ilimitada, de inenarrável compunção, de incomensurável arrependimento e - como é perfeita a Justiça Divina! - morreu apiedado de ti.
Se não houvesses sucumbido, a partir daqueles instantes de sofrimento e remorso, se teria tornado teu amigo, teu irmão pelo infortúnio, esfacelada para sempre a aversão que te votava.

"Não suponhas, pois, ter sido a Providência Divina quem o impeliu a assassinar-te, Paulo.
Não; o livre-arbítrio é predicado de toda alma humana.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:19 pm

Todas têm a liberdade de praticar qualquer ato, bom ou cruel, devendo, entretanto, seguir, sem tergiversação, a senda do amor ao próximo, do altruísmo, do dever, da virtude, de tudo quanto é digno e meritório, para que, ao abandonarem as vestes sepulcrais, a Justiça Celeste não lhes tenha de punir faltas e, sim, amercear pelo bem praticado.

Não deve nunca a alma incrementar suas tendências violentas e nocivas às colectividades, e sim repelir o mal com todas as veras do coração, porque o Eterno jamais permite que o pratiquem impunemente as criaturas atentando contra suas Leis imutáveis e perfeitas.

Se assim procedera o desventurado Carlos, se soubera perdoar e amar ao próximo, esquecer o passado latente na sua alma, a tragédia que teve tão doloroso epílogo, em Paris, pudera ter tido um desfecho venturoso e todos vós seríeis abençoados pelo Criador.

Para a consecução desse desiderato, tu e ele, na noite amargurada que passaste em vigília, depois de combinado o duelo, estivestes sempre cercados por vossos Protectores que, sofrendo convosco por motivo dos vossos tétricos pensamentos, não cessaram de vos inspirar sentimentos humanitários, para que não cometêsseis um crime, para que vos perdoásseis mutuamente.

Tu, Paulo, atendeste, em parte, às minhas exortações, mas ele ainda se deixou dominar pelo desejo de uma vingança que, levada a efeito, perpetrada desumanamente, não o saciou, antes lhe fez sofrer satânico martírio moral.

Tentando fugir-lhe, como o Iscariotes, pôs termo à própria vida - outro crime abominável!
"Se nos tivésseis atendido, escutando as paternas advertências, em vez da vindicta - o amor teria triunfado de todos os óbices que impediram a vossa reconciliação e, em vez da desgraça que uma arma homicida consumou, os corações enlaçados indissoluvelmente, pelos liames de uma afeição bendita, teriam forjado o eterno grilhão de luz que prende, umas às outras, todas as almas evolvidas - o da fraternidade ou das dedicações sublimes!"

* * *
"Ergue-te, meu irmão, e ouve-me ainda.
Antes, porém, de prosseguir, quero rogar a Deus por ti, numa férvida prece, pois que ainda não sabes fazer a tua alma voejar para o Eterno Consolador!"

15 Deusa que representa a justiça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:19 pm

CAPÍTULO III

Não julgues, portanto, Paulo - continuou o meu austero Protector - que terias de ser morto, fatalmente, por um de teus primos, não.
Tudo quanto estava ao alcance dos mensageiros celestiais foi feito para demovê-lo do plano funesto, mormente por tua causa, porque já não eras mais um ser frívolo ou rancoroso, antes um Espírito que trilhava o carreiro conducente à perfeição.

Tinhas louváveis resoluções de cumprir espartanamente todos os teus deveres sociais e o houveras conseguido, se não fosses arrastado pelo vórtice dos sentimentos impetuosos, que concorreram para a realização dos intuitos ilícitos do teu antagonista, que só aspirava a cevar em ti a sua cólera, extinguindo-te barbaramente a existência numa idade primaveril e anulando, assim, todas as nobres aspirações que desejavas realizar.

Foi ele quem, com extremado orgulho, supondo-se de uma raça superior à tua, tendo-te insopitável aversão, cujo fundamento já conheces, dominado por excessivo amor pátrio, te prejudicou e à própria irmã.

Pode dizer-se que foi o causador das vossas desventuras, embora possuísse também qualidades morais apreciáveis.
Dependia também de vós, de ti, e de Elisabet, o vencerdes no prélio, tal qual se vos apresentava, como verdadeiros heróis.

Se tivésseis mais resignação -a coragem moral superlativa - ou se houvésseis erguido o pensamento ao Céu, em busca de auxílio e protecção do Omnipotente, talvez todo esse drama sangrento - em que foste uma das vítimas sacrificadas à vingança cruel e premeditada - não se desenrolasse e as vossas existências planetárias tivessem um epílogo de suaves alegrias, de concórdia e perdão.

"Bem vês, Paulo, que todos vós fostes culpados!
Às vezes depende de uma súplica fervorosa, profunda, humilde, sincera, emanada de um coração que se transporta ao Infinito, conseguir a criatura colher as flores da ventura a que aspira e espargi-las no áspero caminho cheio de urzes que até então trilhava.

E, dado que o combate perdure, por indiscutível desígnio supremo, ela sairá triunfante um dia, porque seus adversários deixarão pender das mãos as armas ou estas não poderão atingi-la, por isso que as hostes de invisíveis siderais não consentem que os golpes injustos penetrem o coração daquele que possui o escudo áureo e refulgente da fé inabalável no Criador do Universo!

"Esse broquel mágico, invulnerável e maravilhoso, Paulo, é que nunca empunhaste, terçando armas sozinho, quase abandonado, com os teus inimigos, por teres o teu ideal acorrentado à Terra.
Agora bem sabes que o verdadeiro ideal da alma só o encontramos no Além, onde fulgem os arquipélagos de estrelas!

"Parece que formulo um paradoxo quando digo que, na existência que se te extinguiu há pouco, bruscamente, não foi o ódio, mas o amor, sim, o amor às pátrias diversas em que nascestes, tu e teus primos, o pomo de discórdia, a origem dos vossos pesares.

Infelizes! Em que erro estáveis todos vós!
Mais tarde a Humanidade compreenderá que a pátria a que um Espírito se acolhe para encarnar, animando uma estátua humana é, apenas, um novo cenário em que figurará como actor, em que representará um drama, uma ópera, uma farsa, conforme o seu desenvolvimento psíquico, conforme o anelo que aninhe no coração por cumprir os deveres sagrados.

Na campanha da vida, muitas vezes é mais glorioso um mísero operário que desde o alvorecer começa o insano labor, trémulo de frio e quase exânime por falta de agasalho ou de pão, do que um marechal cujo peito áureas insígnias constelem.

"O Omnipotente, quando houve por bem elaborar o cosmos, criando miríades de sóis e de planetas, fez as diversas mansões dos Espíritos e nenhum tem pátria fixa.
Não lhes pertence nem um pugilo de pó, nem um fragmento de pedra, nem mesmo a que lhes cobre os despojos funéreos, que se transformam em larvas asquerosas e em vegetais que florescem e aromatizam o ambiente.

O Universo, o Infinito, eis a pátria de todos nós!
"Só pelo pouco preparo e desenvolvimento espiritual, pela rudeza e selvajaria da Humanidade, ainda há, nos países que se intitulam civilizados, exércitos formidáveis e poderosas esquadras - instrumentos de morte e destruição, adversários seculares da confraternização mundial!

Mais tarde, quando ela se aprimorar moralmente, se enobrecer de sentimentos humanitários, dispensará as legiões e as esquadras.
Todos os povos então se congraçarão fraternalmente, se irmanarão pelo amor que aliará todas as almas, fazendo de todos eles membros de uma única família, numerosa bastante para povoar todo o orbe, aspirando uns à ventura e à prosperidade dos outros, reciprocamente, sem invejas, sem rivalidades, sem dissensões de raças nem de crenças religiosas.

Essa transformação social não se operará, infelizmente, nos primeiros séculos vindouros, Paulo, mas se realizará antes de transcorrido um milénio.
Há de, enfim, chegar a era abençoada em que será realidade o que agora parece utopia, pois já começou para a Humanidade terrestre a grande evolução, o progresso espiritual que porá termo à crueldade dos habitantes planetários, os quais, nas guerras fratricidas, se transformam em lobos sanguinários, destruindo as obras do Criador - os nossos semelhantes -, orfanando lares, desvirtuando donzelas...

"Se teu espírito voltar a peregrinar novamente nas regiões terrenas, verá - daqui talvez a quinhentos anos - que os povos não mais precisam de esquadras nem de hostes aguerridas para lutas fratricidas; que um único exército, mais poderoso que todas as legiões contemporâneas coligadas, as substituirá com inconcussa supremacia:
o do operariado culto, constituído por artistas egrégios, profissionais em todos os ramos científicos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2013 10:19 pm

Esse exército e todas as classes sociais só cuidarão da prosperidade intelectual e moral dos seus habitantes, considerando a Humanidade uma só família e a Terra uma só pátria, limítrofe apenas do Espaço!

"Por enquanto, o amor cívico é um elevado sentimento, mas daqui a alguns anos não o será mais, porque, no futuro Império da Confraternização Universal, todos o considerarão reprovável egoísmo.
É actualmente um sentimento nobre, porém, o amor pátrio dos indivíduos não deve consistir em odiar as plagas estrangeiras - porque as separam, daquelas em que nasceram, um lago, uma cordilheira, um rio, simples acidentes geográficos - e sim no trabalho em conjunto, para que se torne realidade o aformoseamento das urbes, o adiantamento das Ciências e das Artes, destacando-se das outras algumas nações unicamente pela culminância de melhoramentos realizados.

"Em futuro remoto todas rivalizarão, se confundirão, como pétalas de uma flor!
Que importa, pois, ao Espírito, a quem Deus consentiu se corporalizasse, pousar aqui ou além, vindo do Espaço qual pássaro nómade que paira de súbito por sobre alta serrania, escolhe uma árvore para se acolher, nela constrói o tépido ninho, sem indagar se aquele doce asilo pertence a país africano, europeu, australiano, asiático ou americano?

Que importa à ave errante, que cinde os ares, esteja o ninho que construiu na fronde verdejante de uma árvore, em território bárbaro ou civilizado, se em nenhum fica ela isenta de trabalhar para manter o seu pequenino lar, de sustentar a prole adorada, de temer o caçador, de se amedrontar com as borrascas, de fugir às invernias ou se livrar dos rigores da canícula?

Que lhe importa, pois, que o galho penda para o norte ou para o sul, para o ocidente ou para o levante, se sabe que tem um destino a preencher utilmente: - mourejar, amar, sofrer - e que, um dia, quando menos o esperar, a caçadora eterna - a morte - a virá tirar do ninho e restituir o sudário da alma à Natureza, túmulo comum que alberga no seio, com a impassibilidade de quem cumpre um dever austero e imprescindível às criaturas, os cadáveres das águias, dos rouxinóis, dos proletários, dos monarcas, das flores, dos chacais, das borboletas?

"E o que acontece à ave erradia não sucede à criatura humana?
Em que país estará preservada da dor, dos tributos devidos à Natureza, do labor, da lágrima, quando, vinda do Espaço, a alma se aninha num escrínio carnal?

"O patriotismo, portanto, o civismo ideal do homem vindouro consistirá em trabalhar e esforçar-se por tornar invencível, grande, formidável, a nação em que nasceu, pelo cultivo moral e intelectual dos seus patrícios, pelo florescimento de todas as artes e ciência, pelo conforto, prosperidade e paz de que desfrute a colectividade e não pelos exércitos, que terão desaparecido de todos os países.

Ser generoso, hospitaleiro para com os que nasceram além da linha divisória de sua pátria, é acolher irmãos, tão irmãos como os que descendem do mesmo país;
venerar as nações estrangeiras não é ser mau cidadão - é ampliar o sentimento cívico, é amar suas passadas ou futuras terras natais.
O Espírito não tem uma pátria, tem centenas de pátrias, e, em cada uma, lhe cumpre laborar um pouco, alijar de si uma imperfeição de carácter, ascendendo, assim, um grau na escala infinita da perfeição.

Só desse modo poderá elevar-se às mansões primorosas, às paragens de luz!
Alguns Espíritos há, contumazes no erro, que se encarnam em todas as tribos humanas deste globo, desde as dos bárbaros até as dos povos mais cultos, fazendo um longo e lento tirocínio psíquico.

"Ao despertarem no Além, momento em que a alma devassa o passado, banhada de imensa luz, como se nela despontasse um plenilúnio interior, até então velado pelas sombras da matéria, triste e dolorosa se patenteia a realidade para os que colocaram o seu torrão natal acima do trono do Altíssimo e morreram defendendo-o, cheios de ódio à pátria de outros irmãos.

Baixando à Terra numa nova encarnação, vêm nascer no país que tiveram por inimigo e chegam a amá-lo às vezes mais do que ao outro em cuja defesa sacrificaram anteriormente a vida, e do qual só voltam a recordar-se quando se libertam novamente da prisão carnal.

"É por essa forma que o Omnipotente coliga as nações e extingue ódios injustificáveis.
Fazendo que os Espíritos ocupem todas as classes sociais, nasçam nas diversas regiões do globo, percorram assim a cromática das encarnações.

Ele os força à compreensão de que a Humanidade constitui uma só família esparsa por toda a Terra e pelo Infinito e de que, portanto, os povos se devem amar mutuamente e confederar com um único objectivo:
o de se instruírem e progredirem moral, intelectual e materialmente, cultivando a religião, as artes e as ciências.
"Em todas as pátrias o Espírito deixa afeições sacrossantas, que perpetuamente ligarão as almas entre si.

Cada um, ao recordar-se, quando liberto da vida material, das suas existências anteriores, se sentirá suavemente algemado a outros Espíritos espalhados por todo o planeta:
aqui a pais carinhosos, ali a irmãos dilectos, além a esposos adorados, mais longe a filhos idolatrados.

A todos se reconhecerá preso pelos grilhões luminosos do amor fraterno.
"Cada um verá que em todas as terras gozou, sofreu, trabalhou, e a reminiscência dos afectos e lutas do passado fará nascer-lhe no íntimo o sentimento da compaixão para todas as criaturas, sejam quais forem as raças a que pertençam no mundo.

Desde então, o cardo das tribulações terrenas, que, macerado no cristalino cadinho da alma, chagou os corações sensíveis, começa a desprender um aroma inconfundível, uma fragrância deliciosa que se evola para o céu, só comparável à das flores ali cultivadas.

É a fragrância do Amor-essência, que, consagrado ao Criador do Universo e aos irmãos que sofrem, se difunde por toda a Humanidade, sempre e sempre intensificado pela crença inabalável na infinita bondade de Deus, sob os nomes de piedade, abnegação, caridade, altruísmo supremo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:22 pm

"Esse o processo pelo qual, na sucessão dos séculos, se formam os abençoados apóstolos do bem, os missionários da mais sublime caridade, cujo protótipo encontramos em Vicente de Paulo, que tanto se ajoelharia para pensar as úlceras de um prussiano como a de um cossaco, as de um africano como as de um francês patrício;
que estendia a mão luminosa e diáfana aos transeuntes implorando o óbolo com que fosse mitigar a fome ou substituir por tépidas roupas os farrapos de um orfãozinho, de um desvalido, de um enfermo, sem indagar se o mísero nascera na Inglaterra, na Suíça, na Núbia, na Arábia ou em Jerusalém!

"Semelhante proceder significará, porventura, ausência de amor cívico?
Não! Quem assim procede amplia esse sentimento a todo o género humano; dilata-o indefinidamente para muito além das raias de um império ou de uma república;
abrange nele todos os povos, considerando-os membros de uma só família, parte de uma colectividade indivisível.

"A alma acrisolada pela dor, virtuosa, purificada, vitoriosa nos prélios do sofrimento através dos séculos, ora no orbe terráqueo, ora no Além, cria asas de luz que a fazem voar para o Infinito, não lhe permitindo acorrentar-se pelo afecto a um pedaço de terra qualquer.

À medida que galga os cumes da espiritualidade, seus sentimentos nobres se expandem, não se restringem.
Compreendendo, cada vez melhor, que todos os seres humanos são irmãos, ela a todos dispensa auxílio e patrocínio, pois que do mesmo passo reconhece que nem o amor aos nossos semelhantes, nem a dor, nem o pranto têm pátria determinada, ou seleccionam, aquém ou além-fronteiras marcadas por mares, serranias, cursos d'água.

"O planeta onde há pouco acabaste de viver é apenas um dos muitos degraus de que se compõe a escada que vai dos mundos de treva aos orbes radiosos, que iremos escalando aos poucos, gradativamente, à proporção que evoluirmos sob os pontos de vista moral e intelectual.

"Assim, o espírito que se libertou do materialismo, das convenções rotineiras e das imperfeições humanas, em vez de fazer de uma fracção do globo terreno o objecto do seu amor, votá-lo-á indistintamente a todas as outras fracções que completam essa unidade que se chama Terra.

Em vez de restringir sua afeição a um só país, amará igualmente todas as nações, certo de que mais tarde todas formarão uma só pátria, regida por um monarca supremo, o Omnipotente, síntese de todas as perfeições, com um só pavilhão, onde se lerá, escrita em caracteres luminosos, a legenda:
'Deus e amor ao próximo'.

Em torno desse pavilhão virão agrupar-se as diversas raças que ainda hoje se odeiam, e fundir-se todas as nações formando uma só, grande e poderosa, pelo fulgor de suas virtudes.
Os elevados sentimentos que, até aqui, os Espíritos que na Terra encarnam têm consagrado, nas suas múltiplas encarnações, de cada vez a um dos países que cobrem a superfície desse planeta, acabarão por constituir um foco único do qual irradiará o amor puro, feito de altruísmo, de compaixão, de humildade.

"Exemplos de um tal amor já os homens têm diante dos olhos nessas criaturas que sacrificam a beleza e a juventude, que abandonam os deleites mundanos, para se dedicarem à caridade ilimitada, passando a existência nas enfermarias dos hospitais - onde se nivelam todas as castas, onde terminam os mais pungentes dramas de ódio, onde se pulverizam o orgulho e a soberba ao sopro da adversidade - ajoelhadas à cabeceira dos agonizantes, curando pútridas chagas, espalhando consolações, tendo sempre estampadas na retina as imagens da morte, da miséria, da impotência humana, vendo na dor a grande niveladora da Humanidade.

"No futuro, este papel caberá ao amor.
Então, desde que a sua centelha divina se produza num coração, abrasará todos os outros, sem que nenhum indague a que nação pertence o primeiro, se é de fidalgo ou de plebeu, de nababo ou de pobre calceteiro.

É o amor, eis tudo!
"Assim será quando houver passado o turbilhão dos séculos que hão-de vir, quando, tendo por lema - Deus e amor ao próximo -, o lábaro da fraternidade for arvorado por todas as nações, o que significará que elas se tornaram verdadeiramente irmãs, que se ligaram indissoluvelmente, que as suas fronteiras se dilataram indefinidamente até aos oceanos, que estes são os seus únicos exércitos.

"Chegará, enfim, a era bendita, em que as hostes aguerridas abandonarão as espadas e as carabinas; em que todos, tornados paladinos da paz, empunharão o alvião, o buril, o pincel, a pena, os instrumentos agrícolas, os de cirurgia, os da arte dos sons; em que as somas fantásticas, até então despendidas com armamentos e munições, reverterão para a obra do conforto social, do embelezamento artístico das cidades.

Fundido, o bronze de todas as metralhadoras, de todos os fuzis, de todas as baionetas, de todos os canhões, de todos os obuses servirá para perpetuar a mais bela vitória do mundo numa outra coluna Vendôme,16 num outro Arco de Triunfo.

Servirá, em suma, para com ele se erigir, neste planeta, o mais glorioso dos monumentos, cujo ápice tocará quase as nuvens, consagrado à divina Paxl17
"A sociedade desse porvir bonançoso não mais consentirá que dois jovens esperançosos cevem ódios abomináveis, destruindo um, cruelmente, a vida do outro, como jaguares ávidos de carniça, sedentos de sangue.

"A Humanidade futura não se verá mais enlutada por uma tragédia como a que se consumou em Paris, a cidade da luz, e cujo prólogo se desenrolou em Berlim.
"Agora, Paulo, os três entes, um dos quais és tu, que já atravessaram muitas existências jungidos pelo ódio e pelo amor, vão encontrar-se de novo, em ulteriores encarnações ainda mais dolorosas, agrilhoados exclusivamente pelos vínculos de sacrossantas afeições.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:22 pm

"Tremes?
Não te julgas bastante forte para encetar esse temeroso prélio, em que terás de afrontar com denodo as armas constantemente enristadas para o teu coração sensível - as dores lancinantes das provas redentoras - empunhando apenas o lábaro da fé, da resignação e da coragem moral?
Amas ainda a Elisabet?

Queres que a sua existência se una a tua por laços ainda mais estreitos do que já o foram em tempos idos?
Sentes-te com o ânimo espartano e a intrepidez suprema de perdoar e amar teu inimigo Carlos Kceler - aquele que te trespassou o coração com o florete, depois de o ter golpeado mais dolorosamente quando, qual impiedoso verdugo, te fez conhecer do suicídio da tua prima, impelida à prática desse crime por ele próprio, que nunca se compadeceu do sofrimento de suas vítimas senão ao vê-las exânimes?

"Se te sentes com essa energia heróica, tua nova existência, daqui a alguns lustros, será algemada à daquela por quem chamaste ainda há poucas horas - esquecido, como sempre sucedeu em todos os teus transes mais dolorosos, do Criador das almas e das constelações, de tudo quanto ignoras.

"Mas é mister que o seja também à de Carlos, porque os vossos espíritos estão indissoluvelmente ligados um ao outro pelo rancor e por delitos praticados em comum.

Depois sê-lo-ão, unicamente, pelos sentimentos mais nobres e sublimes.
Se, porém, não perdoares ao desditoso delinquente, por milénios te verás separado daquela a quem amas e por quem ainda sofres loucamente.

Reflecte, Paulo, e acabarás aquiescendo aos meus rogos.
"Tens diante de ti uma frágil ponte levadiça, que, lançada sobre o imensurável abismo com que defrontas, te dará acesso à terra firme.

Preferirás desprezá-la e precipitares-te na voragem?
És nobre, possuis uma alma arroteada para a semeadura de excelsas virtudes.
Conto, pois, que firmes comigo um pacto.

Eu, teu protector de muitos séculos, que te tenho inspirado aversão ao mal e culto ao que é meritório;
eu, que te hei insuflado ideias elevadas, muitas das quais puseste em prática;
eu, que só almejo repares tuas transgressões às Leis Divinas, a fim de que, no futuro, fiques isento da dor;
eu, que tenho sofrido com os teus desvios e lenido, inúmeras vezes, as tuas amarguras, apelo para a nobreza do teu carácter e quero que firmes comigo este pacto sagrado: doravante só praticarás actos dignos e louváveis;
adorarás, muito mais do que à tua noiva, ao Eterno.

Colimando esse ideal, que acaricio há longo tempo, vou mostrar-te seus domínios siderais, seus Impérios de Luz, para que assim germine no teu íntimo a admiração pela sapiência, pela perfeição, pela glória e bondade de quem os espargiu no Universo!"

16 Praça monumental de Paris no meio da qual se localiza uma coluna célebre, feita com 1.200 canhões tomados ao inimigo por Napoleão I, em 1805.
17 Paz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:22 pm

CAPÍTULO IV

Começamos, então, impelidos pela vontade potente daquela luminosa entidade, a cortar celeremente os ares.
Eu que, pouco antes, me sentia chumbado ao solo, tive a sensação de me haver libertado da gravitação terrestre e de estar sob o império exclusivo da força centrífuga, a qual me arrojaria por certo ao firmamento, que me atraía, encantava, alucinava.

Escoados alguns momentos, contemplei o espectáculo mais maravilhoso de quantos pudera ter fantasiado em horas de sonho ou de êxtase:
o desfile, por assim dizer, dos astros de que nos aproximávamos, em nosso voo cada vez mais veloz, mais vertiginoso.
Passamos além da atmosfera do globo terráqueo, deixamos de lhe sentir a atracção, penetramos no éter e experimentei uma sensação que me pareceu inédita, delicada, subtil, incomparável: a de que ele se me impregnava no perispírito, se identificava com a minha natureza fluídica.

Tive, enfim, uma impressão de calma, de serenidade, de entorpecimento, como igual jamais desfrutara na Terra.
A meu lado o Guia, fulgente e silencioso, parecia não atentar no que nos circundava, habituado, certo, à esplêndida apoteose divina das constelações cambiantes.
De súbito, porém, me chamou a atenção, apontando as estrelas de que nos avizinhávamos e que se apresentavam como que ampliadas por mágico telescópio.

- Hoje, caro amigo, após a vossa última desmaterialização, já sabeis, pelo deslumbramento que sentistes, quais a estupefacção, o pasmo, o quase delírio que se apodera de um Espírito neófito, quando - depois de uma esfera radiosa, em pleno Infinito; quando, ao sair das trevas planetárias - mergulha neste oceano de éter pontilhado de pérolas, onde gravitam as nebulosas.

"Sensação idêntica experimentaria talvez um tímido campónio gaulês, criado em mísera choupana, que penetrasse de improviso na Ópera de Paris, no momento de uma apoteose fantástica, maravilhosamente iluminada, tocando em surdina uma orquestra encantada."

Foi assombroso o que experimentei bruscamente, ao atingir o decantado céu.
Aqueles sóis que, até então, só me fora dado contemplar como pomos de luz pendentes de gigantesca fronde azul, mas limitada pela vista, tomaram para mim, abruptamente, outro aspecto.
Aumentaram de volume e de irradiação, tornaram-se ciclópicos, mostraram-se-me em posições graciosas, desmembrados uns dos outros.

Pude considerar quanto é falha a percepção humana, pois, a visão de quem ainda se acha na geena terrestre, as estrelas se auguram engastadas na concavidade de um único zimbório turquesino, como que pregadas a camartelo sem distinção apreciável, constituindo as constelações apenas núcleos fosforescentes.

Vi-as então desligadas, colossais, resplandecentes, ígneas, de matizes diversos, inigualáveis, indescritíveis no idioma dos seres terrenos.
Lembrei-me, naqueles momentos de inenarrável enlevo, de que a Terra - por uma liberalidade do nababo celeste -encerra em seu seio pequeninas constelações - com certeza fragmentos de estrelas, que com ela se amalgamaram, quando o Arquitecto Divino, elaborando o Universo, lhe manipulava os elementos componentes ainda em difusão, em caos.

Daí vem talvez que, ao formar-se-lhe a crosta, nela se incrustaram cintilas de sóis, moléculas de esferas luminosas, de diferentes colorações, indo alojar-se nas suas entranhas, onde formaram as mais esplêndidas jazidas de diamantes, esmeraldas, rubis, topázios, turmalinas.

Assim, esses primores da natureza terrestre nada mais são que aparas de astros rolados do Além, quando o excelso artista cinzelava os corpos siderais.
Eis por que o orbe terráqueo se tornou o escrínio de jóias policrómicas, de fagulhas irisadas caídas do firmamento nos instantes em que o cinzel do Lapidário eterno trabalhava as fúlgidas gemas, que depois constituiriam as constelações.

Passamos, a surtos velozes, pelas mais deslumbrantes, portentosas e titânicas gotas de luz, de uma suavidade crepuscular, de todas as gradações, na infinita cromática das cores.
E não saberia dizer, se alguém mo perguntasse, qual a mais admirável das camândulas lúcidas que o Criador espalhou pela amplidão, pois que eram todas incomparavelmente belas.

Havia-as de todos os matizes:
lilás, violeta, amaranto, roxo, ametista, róseo, nacarado, carmesim, ocre, cerúleo, turquesa, cobalto, ultramar, verde-claro, esmeralda.
Não me deterei, porém, na descrição minuciosa desses lavores do cosmos, pois que já os conheceis cabalmente.

Se às vezes pormenorizo a narrativa, é porque desejo, caro amigo, transmitir-vos com fidelidade os meus secretos pensamentos.
Assim, não poderia omitir a emoção que experimentei ao contemplá-los de perto pela vez primeira, ao entrar na erraticidade onde passei mais de vinte anos em aprendizagens imprescindíveis à evolução de minh'alma, instruindo-me na incomparável Escola do Infinito, apreciando, de vez,18 as estâncias dos Espíritos de luz, já lapidados como diamantes raros.

Ainda não me era permitido ficar em comunhão com eles, a cujas mansões ascendia apenas para colher um exemplo que me servisse de norma de proceder em nova encarnação;
que servisse ao cumprimento dos meus deveres para com o próximo e para com o Incriado, único meio de conseguir a perfeição psíquica.
Lá ia, sobretudo, para aprender a venerar o Criador de todos esses ninhos luminosos - paragens onde laboram os libertos dos erros -, mundos que outrora me fascinavam e hoje me assombram.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:23 pm

Eu e o meu preclaro Guia nos assemelhávamos a dois peixes alvinitentes - ele, porém, revestido de um fulgor permanente, que o fazia translúcido.

Bem diverso do meu era o seu corpo astral.
Nadávamos ascensionalmente num oceano de irradiações, nunca por mim entrevisto em sonhos.
Às vezes, a formosura do meu fulgurante companheiro me deslumbrava.

Era quando passávamos pelas fotosferas coloridas que afluem do âmago das estrelas, verdadeiros nimbos de luz suave e veludosa.
Ele se metamorfoseava, se transfigurava e, absorvendo-lhes as cores mais belas, os matizes mais delicados, tornava-se de uma beleza ideal, surpreendente.

Seu mediador plástico, de essência mais pura que o meu, saturava-se, impregnava-se mais facilmente daquelas projecções luminosas.
Súbito, despertando-me do enlevo em que me achava mergulhado, retomou a palavra, ou antes, começou de novo a falar-me na linguagem do pensamento, a mais perfeita e rápida que há no Universo, dizendo:
- Eis, Paulo, alguns astros que te desvairam, algumas pérolas de luz do colar divino, esparsas pelo Infinito, constituindo as diversas mansões dos Espíritos adiantados.

Podes, agora, fazer ideia aproximada do poder e da omnisciência daquele a quem na tua última encarnação não soubeste amar nem prezar como devias.
Foi mister penetrasses na Escola sublime da amplidão para que aprendesses a venerá-lo!

- Será crível - observei-lhe, com o senso ainda um pouco obliterado pelo assombro - que aqui possam vir domiciliar-se as criaturas que, na Terra, sofreram e delinquiram?
Posso nutrir a esperança de vir a ser um de seus habitantes, futuramente?
Não são estes de uma contextura mais quintessência, como a do nosso perispírito, de uma perfeição inatingível para os seres terrestres?

- Hoje a têm, mas já foram impuros, caliginosos e hediondos.
Que somos, eu e eles, senão almas redimidas no Jordão da dor, remotos delinquentes planetários, que nos despojamos das fraquezas e dos erros humanos, para que a luz - a essência que nos identifica com o Criador - fluísse do nosso eu?
Que surpresa seria a tua se soubesses a que longitude já estamos do minúsculo planeta onde sofreste árduas provas, sem que deixasses ainda de lhe pertencer, e para o qual terás de voltar a tempo breve!

Sabes, porventura, que distância nos separa de Paris, onde se acha o teu invólucro mortuário, devorado pelos vibriões enquanto o teu Espírito voeja pela amplidão celeste?

- Estou sob o domínio de um sonho fascinador.
Como posso comparar os meus conhecimentos, mesquinhos e finitos, com os vossos, ilimitados, quais soem ser os das entidades siderais?

Que sei, senão alguns rudimentos científicos, adquiridos nas Academias do sombrio globo terrestre;
senão que ignorava justamente o que me poderia conduzir à felicidade, se o tivesse aprendido!
Haverá, na matemática humana, algum cálculo com que se possa avaliar, precisamente, a distância que separa os corpos celestes uns dos outros, logaritmos que estimem a grandeza incomensurável da Criação?

- Pois bem, reflecte, Paulo, como é falha a Ciência que exclui o factor primordial de todas as coisas portentosas - Deus, o matemático incomparável, que dá solução aos problemas mextricáveis para os homens mais eruditos.

Nota o vácuo tremendo que havia em tua alma e que só poderia ser preenchido pelo pensamento sublime que, hoje, começou nela a desabrochar - o do amor divino - que todos os entes lhe devem tributar.
Avalia quanto é poderoso, omnisciente, misericordioso aquele que nos pune, pelas expiações aflitivas, dos delitos cometidos; que, depois da reparação de todos os crimes, nos estende por sobre a fronte a destra protectora, e nos dá sua bênção de luz, recompensando-nos a coragem moral com uma indescritível e perpétua ventura.

É o Pai extremoso que corrige, compassivo, os desvios dos filhos dilectos, mas não os abandona, facultando-lhes sempre todos os meios de se tornarem ditosos no futuro.
Compreendes agora que, desse instante, desse átomo do tempo - que se chama a vida material - depende, todavia, a nossa felicidade perene!

Sofrer é, pois, burilar a alma, é, como faz o escultor com um bloco informe de Paros,19 que se transforma em obra-prima de irrepreensível estética, modelá-la para que, despojada dos erros e das imperfeições, facetada como o diamante sem jaça, fulgurante qual fragmento de Vésper,20 depois de ter sido sombra, fuligem, treva, ascenda na escala espiritual e venha habitar uma destas moradas resplandecentes, que te causam delírio.

"Se houveras sabido desempenhar a tua última missão, suportando cristãmente as dolorosas provas, cultivando os sentimentos generosos que já possuis, abominando o mal, que não praticaste nessa extinta existência;
se tivesses venerado o Omnipotente mais do que veneraste uma criatura humana a quem te dedicaste sem restrições e que não era mais do que uma das inúmeras chispas que se desprendem continuamente daquele foco inextinguível - tu e ela, unidos pela afeição que mutuamente vos consagrais, poderíeis viver ditosos, depois de desmaterializados, num destes orbes que parecem desfilar diante de nós, como cortejo de vassalos radiosos, em direcção ao Monarca Absoluto.

"Delinquistes, porém, e, agora, ides ambos cumprir novas sentenças, mais pungentes ainda do que as que merecestes nas vossas anteriores existências.
Tens, Paulo, que recomeçar outra missão e do seu desempenho depende o granjeares nova pena ou a absolvição.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:23 pm

Refaz, pois, as potências da tua alma;
haure no éter as forças novas que te hão-de faltar muitas vezes na Terra, para onde regressarás;
recobra a energia combalida pelas adversidades de tuas encarnações acidentadas;
contempla e admira o Império da Luz por que tua alma suspira;
reflecte na sabedoria, no poder, na longanimidade daquele de quem sempre te esqueceste nos momentos de angústia.

"Não te lembraste nunca de lhe suplicar auxílio para a realização de teus anelos;
só aspiravas a ser venturoso no instante, no relâmpago fugitivo de uma vida planetária, em que o homem, quando atinge meio século, começa a declinar visivelmente, cobrindo-lhe a fronte de neve e pendendo para o túmulo, ao passo que, no firmamento, transcorrem os milénios;
e os Espíritos, invulneráveis à acção do tempo, se tornam mais belos, perspicazes, fulgurantes, na posse plena de todos os seus atributos anímicos.

A Humanidade insana, porém, só dá valor ao instante em que pisa o solo terreno, ao momento que, no infinito do tempo, exprime a duração de uma existência, e despreza o porvir que se desdobra sem limites em miríades de séculos!
"Compreendes agora que há um Ser Soberano presidindo aos nossos destinos e a quem devemos amar acima de tudo, superlativamente, porque a sua perfeição é inconcebível, a sua bondade ilimitada, o seu poder imensurável.

Eu, que aqui estou a teu lado, que te instruo nas verdades celestiais, não sou uma prova da generosidade divina?
Poderias ter permanecido acorrentado, durante séculos, àquela planície árida onde te achavas, supliciado pelo silêncio e pela inércia eternos, escravo de ti mesmo, devorado pelos teus próprios pensamentos - como Prometeu21 pelo corvo cruel e voraz - abandonado de toda a Humanidade, flagelado pelas saudades de tua noiva e pelo ódio do teu adversário, sem divisar um ente amigo.

"Entretanto, todo esse martírio inquisitorial te foi poupado!
Deus não quer nem permite que nenhum dos seres por ele criado deixe de progredir.
Eis por que te inicio no noviciado sublime em que aprenderás o que é o Infinito, o que é o Eterno, quais as suas Leis irrevogáveis.

É para que em tua alma penetre o desejo de o amar e servir lealmente, por gratidão, submissão, veneração sincera e não por covardia, pelo receio de uma punição despótica!
Seu poder infinito não esmaga; ao contrário, ergue - do abismo dos delitos abomináveis aos paramos etéreos onde gravitam os sóis - as almas dos réprobos já redimidos, dando-lhes a desfrutar os esplêndidos tesouros que a sua munificência disseminou pelo Universo - o sumo prodígio!

"Agora que já viste tantos portentos siderais, que tens a alma em bonança, após dias de verdadeira procela íntima, é preciso tomes uma grave e magna deliberação: abroqueles-te na resistência aos sentimentos que se nutrem no mal.
"Queres, Paulo, desempenhar um proveitoso, mas arriscado encargo, que dará incomparável mérito ao teu espírito, proporcionando-te ensejo de expurgá-lo das suas últimas imperfeições, de escoimá-lo dos erros em que laboravas não há muito, fazendo-te galgar um degrau da escada da evolução psíquica?

Tens ânimo de enfrentar a tua vítima de outrora, teu assassino de há pouco, sem repulsa e sem lhe desejares nenhum mal?
Queres viver ao lado de Carlos e de Elisabet sem poder vê-los, sacrificar-lhes tua saúde e mocidade, heroicamente, esquecido das faltas de um e amando o outro com um sentimento menos sensual, mais fraternal e mais puro?

"Escolhe: ou os séculos a te separarem daquela a quem adoras, se persistires no erro, ou a recompensa, após o desempenho de uma árdua missão de sacrifício e de devotamente.
Para conseguires levá-lo a cabo, farás na erraticidade um tirocínio de mais de quatro lustros, a fim de que tuas faculdades morais se avigorem com os salutares ensinos que vais colher nas etéreas regiões e não te consintam fraquejar nos prélios da dor, na batalha espiritual que terás de travar, nas provas por que passará teu coração extremoso.

Bem sabes que mais sofre quem mais apurados sentimentos possui."

* * *
Encontrava-me, assim, num momento decisivo:
sentia o veemente desejo de progredir espiritualmente, a fim de poder desfrutar as maravilhas celestiais que já conhecia, a insopitável ânsia de aliar minha existência à da idolatrada Elisabet, mas ainda não me era possível pensar sem constrangimento ou rancor em seu irmão;
perdoar-lhe sem que em minh'alma restasse vestígio dos pesares com que me supliciara.

Essa luta secreta, porém, não se prolongou muito, pois que nos báratros do meu espírito se elaboravam pensamentos de paz e concórdia, operava-se uma completa revolução.

Pus-me a analisar o próprio eu e verifiquei que até no sentimento que sempre consagrara a Elisabet se produzira sensível mutação.
Principiara a dedicar-lhe afecto bem diverso do que lhe consagrava na Terra - menos humano e mais célico, amálgama de sofrimento, de sacrifício, de saudade, de ternura, capaz de me alentar a suportar todas as adversidades martirizantes.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:23 pm

Num como horizonte íntimo se debuxava o alvorecer de outro amor supremo.
Algo de imáculo, de redentor, de deífico, penetrara em mim pela fenda que na alma abrira a linguagem nobre e convincente do meu preclaro Instrutor.
Volatizara-se o cepticismo que a ensombrara por muito tempo; esvaíra-se como floco de neve diluído pelo sol dos trópicos;
invadira o santuário do meu ser a luz suavíssima, cálida, acariciadora, inextinguível do amor ao Sumo Árbitro de todas as criaturas!

Ansiava por manifestar submissão e reconhecimento ao meu generoso Protector.
De repente, cercado de constelações, admirando a magia divina, a magnificência das esferas coruscantes, firmei com ele o pacto de honra de só praticar o bem;
de suportar cristãmente todos os reveses da vida terrena que o Criador me concedesse;
de perdoar a Carlos todas as amarguras que me infligira, em represália às que lhe fiz sofrer outrora.

Ao formular este último item, um tremor me abalou profundamente:
alguma coisa de nebuloso, de éreo se rompeu e se fez em estilhas dentro em mim.

Perdoar! Teria enlouquecido em pleno Espaço?
Talvez. Perdoara, de facto, a Carlos?

Ser-me-ia possível esquecer as lágrimas que me jorravam dos olhos até magoá-los;
olvidar as dores infernais com que me flagelara o coração, fazendo-me ranger os dentes de desespero, de demência, de cólera, de furor;
comprometer-me a amar aquele que nunca se compadecera de mim?

Perdoar é, sem dúvida, estar inspirado pelo próprio Deus, é passar de humano e imperfeito a semidivino!
Seria crível que eu deixasse de execrar o meu cruel antagonista?
Que é que de estupendo se passara no meu íntimo?
Deixei de ser sombra, noite, caligem, para me tornar luminoso como as estrelas!

De que modo?
E que o amor consagrado ao Omnipotente dissolve, até ao derradeiro átomo, o ódio que se aloje no mais oculto subterrâneo da alma, como febo espanca as trevas nocturnas, como as invernias afugentam as andorinhas, como a espada do arcanjo põe em fuga o dragão simbólico.

Só então compreendi que o ódio entenebrece o espírito, ao mesmo tempo que o faz de chumbo e desventurado, pois que - desde que pronunciara o sublime vocábulo perdão me senti diáfano, subtil, de uma serenidade indizível, como jamais gozara.
Pela primeira vez, pude extasiar-me com as vibrações harmoniosas da Criação, como se todas aquelas cintilantes esferas fossem harpas esparsas pelo empíreo, que, juntas, tocassem uma sinfonia maravilhosa, tangidas pelo próprio Artista Supremo!

Julgava sonhar... delirar!
Subitamente, tudo cessou.
Envolveu-me de novo o mesmo silêncio de antes.
Mas em minh'alma se cristalizara uma estria de luz, que só se extinguiu quando encetei a nova existência planetária.

Durante esta, porém, aquela luz muitas vezes brilhou como fugaz crepúsculo dentro de mim, nos momentos em que mais viva era a minha tortura moral.

18 Por tê-lo visto
19 Ilha grega no Egeu. Famosa na Antiguidade clássica por seu mármore branco.
20 O planeta Vénus.
21 Titã grego que roubou o fogo divino de Zeus para dá-lo aos homens, que assim puderam evoluir e distinguir-se dos outros animais.
Em castigo, foi acorrentado no cume do Cáucaso, onde um corvo lhe devorava o fígado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:24 pm

CAPÍTULO V

Por algum tempo ainda, ao lado do meu insigne Protector, vagueei pelo Universo, cada vez mais deslumbrado ante espectáculos inéditos, que, continuamente, me era dado contemplar no mesmo cenário magnífico que nos circunda agora.

Uma vez - sem saber ao certo desde quantos anos estava desmaterializado, pois perdera a noção do tempo, conforme o apreciam os habitantes do globo terrestre - ao passarmos pelas fotosferas de orbes fulgurantes que, contemplados de dentro das vestes carnais, nos aparecem quais gemas rutilantes, avizinhamo-nos de um dos de mais prodigiosa contextura, semelhante a uma turquesa fosforescente.

Dele fluía, ininterruptamente, uma luminosidade, um luar azul, suavíssimo, veludoso.
Era, qual o sonham os crentes, verdadeiro céu em que desejáramos penetrar para dulcificar a alma ansiosa, amainar os sentimentos impetuosos, banhando-a nas ondas opalinas de uma paz e serenidade incomparáveis.
Surpreendeu-me, então, pela segunda vez, mas com maior precisão, a harmonia inenarrável dos acordes de uma orquestra sideral invisível.

Imaginai o meu encantamento ao ouvir em concerto vozes de timbre celeste combinadas com os sons de flautas, cítaras, estradivarios tocados por seres etéreos e cujas notas se evolavam da corola daquela estrela maravilhosa, como da pulcra açucena se exala deliciosa fragrância nas noites de plenilúnio.

Verifiquei que também os sóis possuem inebriantes aromas, que se desprendem, constantemente, dos seus núcleos radiosos.
São as vibrações canoras que deles se alam em direcção ao Eterno!
Nunca me permitira o meu formoso Guia abeirar-me assim de um dos mais portentosos mundos da Criação.

Sentia-me, por isso, extasiado, ouvindo os acordes daquela música inefável.
Uma sinfonia em pleno Infinito!
Eram cânticos dulcíssimos e instrumentos maviosos dedilhados no éter por entidades certamente diáfanas, de primorosos contornos!

Um coral de arcanjos ouvido por um Espírito bisonho que se iniciava nos segredos da divindade.
Podeis imaginar qual o meu enlevo, o meu arrebatamento!
Deploro não haver expressões na linguagem humana com que possa dar a conhecer o que se passou no recôndito de minh'alma.

Não há vocábulo que exprima o impossível, nem que traduza os nossos mais secretos sentimentos.
Desejaria - se me fora permitido por Deus - permanecer assim fascinado, extático, paralisado na amplidão, equilibrado no éter - qual colibri embriagado de mel e perfume, imóvel sobre uma rosa sedutora - ouvindo perpetuamente os arpejos desferidos pelos silfos siderais, que não tive permissão de contemplar, mas que forçosamente são ideais, sublimes, de beleza indescritível!

Expressei meu desejo ao querido Instrutor, que o não desconhecia.
Repentinamente, tendo com ele aprendido a admirar o cosmos em nossa trajectória através das constelações com as ideias iluminadas por um relâmpago interior, alcei o pensamento ao Altíssimo, dirigindo-lhe vibrante súplica, um hino que a alma, reconhecida e deslumbrada, improvisou.

Pela segunda vez senti que, para todo o sempre, se esfacelara no meu íntimo o que quer que fosse, sombrio ou pesado, ficando-lhe no lugar uma réstia de luz, que incendeu todo o meu corpo fluídico.
Deu-se o que sucede às vezes aos nimbos que, esfarrapados pelo vendaval, deixam a descoberto, no fundo da abóbada celeste, ligeira fímbria azul, onde lampeja uma estrela, de diamantino fulgor.

Terminada a prece, murmurei, como se me estivesse ouvindo o próprio Omnipotente:
- Senhor, por que não nos concedeis a graça de aqui permanecermos até a consumação dos evos?
Por que não me permitis penetrar nesse orbe cujos habitantes, certo, desfrutam ideais felicidades?

Meu Instrutor se conservou silencioso, entristecido.
Naqueles momentos de ventura, caro amigo, esquecera-me um pouco de Elisabet.
Dava-se comigo o que nos acontece quando, mergulhados em sono letárgico, sonhos encantadores nos povoam a mente, fazendo-nos olvidar as pungentes mágoas, os mais intensos pesares, os mais vivos sofrimentos.

Achava-me num estado normal, em que se esmaeciam as recordações que levara da Terra, ao mesmo tempo que se produzia em minh'alma a eclosão de um outro sentimento incoercível, inexplicável - misto de gratidão, de suavidade, de admiração, síntese de todos os afectos nobres e acendrados, objectivados em ondas de luz e de harmonias:
o amor excelso ao Criador!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:24 pm

Amesquinhara-se porventura a afeição que me prendia a Elisabet?
Dar-se-ia que o me lembrar dela no céu toldava a minha ventura, fazia-me entristecer?
Não. Apenas no meu espírito se verificou uma transposição:
o amor humano descera alguns graus abaixo do outro, que ascendera ao Infinito.

Ambos, porém, já haviam transposto as raias da Terra e atingido a culminância do firmamento estrelado.
Seguiam-me como as espumas acompanham a gôndola que sulca um lago azul, faziam parte integrante do meu ser, estavam-me vinculados n'alma por elos que jamais se dessoldarão.

Operara-se em mim grande metamorfose, a mesma por que passa o sirgo, a lagarta, ao tornar-se borboleta:
deixa de se rojar pelo caule dos vegetais e pelas relvas e se libra nos ares, a sugar o néctar das flores, rufiando asa irisadas e brilhantes, invejadas pelas próprias rosas que dela se enamoram.

O amor à criatura, se bem que profundo e eterno, baixara a segundo plano, feito que era de sofrimentos, de esperanças fenecidas, de anos de angústia, de dores inauditas, de recordações sagradas;
o outro, o amor ao Incognoscível, se compunha de luminosidades, de melodias, de fragrâncias, de pureza, de suavidade, tinha a alvura e a leveza do arminho.

Um ao outro, todavia, desde então se vincularam de tal forma, que impossível se tornara, para sempre, desligá-los.
Parecia-me que, se um deles se extinguisse, deixaria em mim tão profundo e insondável vácuo que nem as águas de todos os oceanos bastariam para enchê-lo.

* * *
Minha admiração pela magnificência do Universo ia em progressão crescente.
Interroguei meu generoso Guia sobre quanto tempo decorrera desde que vagueávamos pelo Espaço, com raros intervalos de repouso.

Ao que, respondeu-me:
- Há quatro lustros - como os contam no mundo donde viemos - deixamos a Terra e, no entanto, com esta digressão que temos feito pelo firmamento imensurável, não ficaste conhecendo sequer uma parte mínima dos seus portentos.
Muitos mais te serão patenteados quando teu Espírito se houver despojado da última partícula de imperfeição.

Cheio de surpresa, exclamei:
- Ó Deus, sois bem a síntese incomparável do poder, da sapiência, da bondade, da magnanimidade superlativos!
Como pude eu, mísero precito, que na Terra nunca elevei o pensamento ao Ilimitado que criastes pelo poder da vossa vontade;
que jamais pronunciei o vosso nome com veneração;
que nunca estudei as vossas Leis imutáveis, plenas de sabedoria e justiça;

que me enchi tantas vezes, nos momentos de tortura moral, de revolta contra os vossos desígnios e contra o destino;
que sempre fui um desventurado ateu, merecedor de severa punição pelas ideias sinistras que amiúde deixei explodissem no meu cérebro alucinado;
como pude merecer a vossa misericórdia, a vossa generosidade?

"Como pude merecer que um dos vossos mais esclarecidos emissários me instruísse nas grandes e eternas verdades divinas, me iniciasse nos arcanos siderais, me elucidasse sobre os deveres que nos impusestes, visando ao aperfeiçoamento das vossas criaturas, para que desfrutem, depois de redimidas pela dor, as maravilhas que me têm assombrado o espírito inexperiente?!

"Sois infinitamente bom, pois com paternal desvelo consentistes que este egrégio mensageiro me ensinasse a adorar-vos, mostrando-me os vossos domínios cintilantes, que atestam a vossa longanimidade, por isso que os reservais em galardão dos que se esforçam, dos que desempenham valorosamente suas missões e cumprem religiosamente suas obrigações para convosco e para com os seus semelhantes"

Continuei, com intensa vibração de todo o meu ser, a externar pensamentos que, repassados de gratidão ao Criador, agradaram ao meu augusto companheiro, que murmurou:
- Ainda não há muito, Paulo, exprimiste um pensamento que ressumbrava egoísmo.
Agora, tua prece foi mais humilde e mais veemente. Isso me faz jubiloso, porquanto demonstra o grande triunfo que já alcançaste.

Libertaste a alma do ateísmo sombrio que a ofuscava, que a imergia em trevas espessas.
Conseguiste fazê-la alar-se ao Altíssimo, que há-de cobri-la de bênçãos e de luz.
"Devo agora dizer-te que o anelo há pouco por ti formulado - o de ficarmos perenemente fruindo os encantos deste mundo maravilhoso - nunca se realizará, porque, do contrário, te condenarias à inércia, que constitui a negação do progresso anímico.

O trabalho é o ascensor que nos leva o Espírito aos páramos luminosos.
Só poderemos alcançar a felicidade suprema - isentar-nos das dores, realizar a evolução espiritual, atingir a perfeição, enfim - trabalhando e sofrendo séculos a fio.
Só lograrás, pois, ingressar nesta esfera azul, da qual se evola tão surpreendente sinfonia, após as novas e escabrosas provações, que vais suportar na Terra, para onde é mister voltes em breve".
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 2 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:24 pm

Experimentei, às últimas palavras do meu Protector, um pavor inexprimível.
Depois de contemplar tão deslumbrantes espectáculos, depois de me haver deliciado com aquela incomparável música sideral, a ideia de regressar ao mísero planeta onde padecera me era extremamente penosa.

Todavia, não me revoltei contra o destino, não senti o menor movimento de insubmissão agitar-me o espírito, que se manteve sereno, resignado a tudo suportar por gratidão ao Omnipotente e, ainda e sempre, por amor a Elisabet, a cujo lado desejava rever-me, a fim de lhe provar e ao meu digno Mentor a grandeza da minha dedicação.

Perguntei:
- Tenho então de voltar à Terra?
- Não foi lá que delinquiste, infringindo as Leis Divinas e sociais?
Amortizaste apenas, com um proceder digno e com os teus últimos sofrimentos, as dívidas que contraíras no passado.
Tens agora que as resgatar até ao derradeiro ceitil.

O passado! como esquecê-lo, um momento sequer?
Ele se nos apresenta, a todos os instantes, enquanto nos achamos na erraticidade, como numa série ininterrupta de fotografias, ora iluminadas intensamente, ora obscuras e caliginosas como os pensamentos dos celerados.
Faz-nos algumas vezes ter horror de nós mesmos, pelo que já praticamos;
e, outras, soluçar, sofrer, revendo amarguras transcorridas.

É desse modo que aquilatamos a perfeição da Justiça Divina.
De quando em quando há um interregno, em que o espírito como que vai adormecer.
Ele, então, possuído de intrepidez moral, protesta só praticar acções meritórias, roga ao Omnipotente a concessão de provas dolorosas, para que menos durem seus padecimentos e mais depressa possa encontrar guarida nos mundos dos redimidos e ditosos.

Pude esquecê-lo, por algum tempo, devido àquela música indizível que fizera um súbito staccato22 em meus pensamentos, paralisando-os, tornando apáticos todos os meus sentimentos, dando-me a sensação de uma anestesia invencível, ou a impressão de só existir, na minha memória, o presente.

Bruscamente, porém, as palavras do austero Guia me chamaram à realidade;
houve, de novo, em minh'alma, o recrudescer do afecto que consagrava à adorada criatura, que tanto padecera por mim, e isso me incutiu novo alento, gerando em meu ser uma heroicidade desconhecida para suportar as mais penosas provações morais.

Dispus-me, assim, resolutamente, a satisfazer à deliberação do Protector, que me dominava brandamente.
Achava-me, então, caro amigo, prisioneiro feliz de uma entidade superior, que dispunha de poder ilimitado sobre mim e a quem eu dedicava infinita e imorredoura gratidão.

Sentia-lhe o cativante e benfazejo influxo e, com veemência, aspirava a mostrar-me digno da sua protecção e desvelo, fazendo-lhe conhecer que lhe compreendera as magistrais lições, que uma só coisa me poderia amedrontar: a nossa separação, o seu desamparo.

Expus-lhe, lealmente, meus receios e ele me orientou, com bondade extrema:
- Eu te sigo e velo por ti há séculos, Paulo.
Sofri atrozmente todas as vezes que transgrediste alguma das leis sacras da Providência, quando eras réprobo.
Exulto agora, porque te vejo submisso e dócil aos meus ensinamentos.
Não temas, pois, te abandone no momento da vitória definitiva.

Em todas as tuas desencarnações - deves ainda estar lembrado do que te afirmo - te norteei para o bem, como agora o faço.
Mas teu Espírito, muito mais imperfeito do que actualmente, não me compreendia como hoje.
Jamais te deixarei entregue a ti mesmo, enquanto necessitares dos meus conselhos e do meu patrocínio.

"Há pouco, quando pela primeira vez fizeste voejar o teu pensamento para o Eterno, lamentei não houvesses traduzido somente um transporte de reconhecimento sincero, deplorei que expressasses um anseio de ventura perpétua.
Ainda revelaste egoísmo.
Deves apenas desejar a tua evolução psíquica que é o que libera a alma das dores quase sempre imprescindíveis ao seu acrisolamento.

Vais regressar à Terra - onde o teu último invólucro material já se desfez em pó - e comigo verás os túmulos dos que sofreram por tua causa;
conhecerás, também, um lar tranquilo que, em breve, será o teu.
Prepara-te, pois, Paulo, mais do que nunca, para saldar as tuas culpas do passado, cumprindo impavidamente uma lacerante missão".

Ao saber que, não por alguns instantes somente, como supunha, estava afastado do globo terrestre, porém que os anos já tinham galopado velozmente, que mais de um quinto de século havia desaparecido do sorvedouro infinito do tempo;
indaguei do destino daquela que continuava a ser a minha preocupação incessante - Elisabet - e daquele que fora meu algoz, mas sem cólera, porquanto já lhe perdoara todos os suplícios que me infligira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2013 9:25 pm

Meu Protector, entretanto, se conservou silencioso.
Compreendi, pela serenidade reinante em minh'alma, que nenhum sentimento humano, cruel ou malfazejo, restava no meu íntimo.
O ódio, que me flagelara longamente, já se havia desfeito qual iceberg atirado a uma cratera chamejante.

Poderes desconhecidos em mim desabrocharam.
Minh'alma se assemelhava a um arbusto de hastes espinhosas, que, nascido numa escarpa, se conservara por muitos anos estéril e vergara açoitado pelos vendavais que lhe arrancaram os acúleos e as raras folhas vírides;
mas que, aos primeiros sorrisos da primavera, com a fronde já esmeraldina, se cobriu de flores róseas, de pétalas odoríferas e velutíneas, de contacto delicioso para a própria planta em que se abriram.

Essas flores ideais eram os sentimentos generosos que nela despontaram, substituindo os abrolhos - os preconceitos nocivos ao meu aperfeiçoamento moral - que caíram por ilapso dos conselhos salutares do meu ínclito Mentor e da radiante primavera que reina nos paramos estelíferos.

* * *
Vou abreviar a narrativa que vos tenho feito, da minha trajectória pela amplidão sideral.

Dir-vos-ei apenas, prezado amigo, que por momentos inesquecíveis penetramos no aludido orbe de luminosidade azul, ameníssima;
presenciamos, por instantes, a ventura dos seres gráceis e airosos que o povoam, sentindo-me vexado de mim mesmo, ante o contraste que notava entre o meu corpo astral e a correcção escultural, a candidez e a radiosidade dos que, extático, eu contemplava, passando aos pares, enlaçados castamente.

Eram almas gémeas pelos sentimentos de uma afinidade perene, libertas das imperfeições do carácter, da hipocrisia, só cogitando de cometimentos grandiosos, tendo por escopo unicamente o Bem, as Artes e as Ciências, compondo hinos ou salmos consagrados ao Omnipotente e aos sentimentos mais puros e dignificadores.

Pairamos a pouca distância de um solar (ou antes, de uma catedral primorosa), que parece cinzelado numa só mole de topázio com incrustações luminosas, ostentando esguios e rendilhados minaretes, coruscantes à luz que incessantemente lhe jorra do interior, e que julgo fazer parte integrante da sua contextura.

Adejavam-lhe em torno as sonoridades maviosas de uma orquestra admirável, a vibrar os últimos acordes de uma música celestial.
Quisera Permanecer assim, por milénios, estacionado no Espaço, ouvindo-a com transporte, esquecido de todos os tormentos que me haviam farpeado a alma.

Subitamente, porém, sou arrancado ao êxtase pelo preclaro Instrutor:
- Eis um dos templos onde verdadeiramente se adora o Soberano do Universo!
Contempla, mais uma vez, Paulo, a colossal urbe onde a escultura impera em toda a plenitude e a arte dos sons é cultivada por artistas realmente geniais.

Observa a felicidade que te aguarda se cumprires a tua próxima e pungentíssima missão terrena.
- Sim, confesso-vos que anseio pelas mais rigorosas provas, para que possa merecer a Misericórdia Divina, o resgate dos delitos cometidos outrora, a fim de conquistar com Elisabet o galardão que ambiciono: vivermos em região como esta, que me fascina, eternamente unidos!

- Confio nas tuas nobres aspirações e folgo de que assim exprimas os teus pensamentos.
"Refaz mais uma vez, antes que tua alma retome o casulo da carne perecível, as potências anímicas de que necessitas para o cumprimento de uma proveitosa missão.
"Breve estaremos de regresso ao planeta da lágrima e do sofrimento."

Imenso terror se me apoderou da alma, que eu temia viesse a desfalecer nos momentos das grandes amarguras.
Tornei a elevar o pensamento ao Altíssimo e repentina tranquilidade me invadiu todo o ser, despertando-me novas energias espirituais.

Tive a impressão de que fragmentos daquela fotosfera azul, daquele ambiente seráfico se me impregnaram no espírito e, assim, foi com verdadeira convicção que disse a meu Mentor:
- Estou preparado para os prélios do infortúnio:
o Omnipotente me inundou o ser com um oceano de luz e de melodias avigorou-me os sentimentos, dando-me a contemplar as sublimidades da Criação.

"Acho-me instruído por vós nas verdades celestiais e só o que vos imploro é que me não abandoneis nos momentos das provas supremas!
Tendo a vossa assistência, conseguirei triunfar de todos os reveses!
Já sei onde buscar conforto moral nos instantes de tortura e expiação:
farei que meu Espírito se eleve ao sólio do Eterno, por meio de preces fervorosas."
Ave sem Ninho
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