LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:06 am

Do Calvário ao Infinito
Zilda Gama

pelo Espírito Victor Hugo

Índice
Livro I - Uma ovelha transviada
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X

Livro II - Entre o céu e o mar
I
II
IV
V
VI
VII

Livro III - No Rochedo das Lágrimas
I
II
III
IV
V
VI
VIII
IX

Livro IV - Procela e bonança
I
II
III
IV
V
VI

Livro V - “Ressurrecto!”
I
II
III
IV
V
VI


Última edição por Ave sem Ninho em Ter Jan 10, 2023 10:07 am, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:06 am

Livro VI - No Castelo d´Aprémont
I
II
III
IV
V
VI
VII

Livro VII - Eterna aliança
I
II
III
IV
V
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:08 am

Livro I - Uma ovelha transviada

I

Achava-me, no percurso do século XIX, em uma das ilhas que formam o arquipélago anglo-normando, no Canal da Mancha, instalado por alguns dias na confortável vivenda de um ilustre compatrício — o qual, nesta narrativa, será designado pelo nome de Mr. Duplat — quando fiquei a par de um drama passional que, certo, não será indiferente aos que vão ler estas páginas que o reconstituem.
Mr. Duplat residia em sólida morada, de estilo medieval, edificada em uma das extremidades da Ilha de..., isolada e à beira-mar, não distante de moles rochosas, que se viam na direcção do Ocidente.
Sabeis, por certo, leitor amigo, que fui um proscrito francês, impossibilitado de por quase quatro lustros rever as plagas natais, e, por isso, em horas de acerbas cogitações ou de roaz saudade, aprazia-me evocá-las — pois os déspotas não podem ergastular nem banir a luz do pensamento — e enviar-lhe as minhas odes e as minhas imprecações, plenas de revolta e mágoas incontidas...
Certa feita, em hora vesperal, depois de longamente haver contemplado o crepúsculo de ouro e rubis, eterizados, retirei-me de um alpendre, quase suspenso sobre o pego, e saí em companhia do meu anfitrião. Pusemo-nos a caminhar silenciosamente ao longo da praia argenteada. Já os sendais nocturnos pairavam lugubremente nas alturas, começando a amortalhar a Terra num sudário de crepe, e eu não cessava de fitar o Oceano, como se tentasse — em momento de inaudita nostalgia — devassar o horizonte com os olhos da alma (porque os do organismo combalido já se iam enevoando com as brumas das lágrimas e da decrepitude...), buscando vislumbrar além dele o solo da pátria querida, qual encantadora miragem que fascina e consola, no Saara, os exaustos beduínos.. . Detinha-me, porém, às vezes a fitar o Oceano rumorejante, como se quisesse medir-lhe a extensão incomensurável para transpô-lo de um só adejo, parecendo-me que ele me levava aos ouvidos de desterrado os gemidos do coração da França apunhalada pela tirania. E eu desejava ungir-lhe, piedosamente, as doridas chagas, com o bálsamo do meu pranto saudoso...
Meu companheiro interrompeu bruscamente o mutismo em que jazíamos imersos, para me observar o seguinte:
—Acho prudente voltarmos, pois a noite se avizinha e promete ser tenebrosa, sem um astro sequer para iluminar nosso roteiro... Vede como a cerração sobe do mar, qual incenso de turíbulo, ameaçando de completa invasão toda a amplitude sideral, o Atlântico e os cimos das serranias!
Estamos próximos do Rochedo das Lágrimas — que é como designo aquela alcantilada rocha à esquerda — a qual me sugere a lembrança de um marujo que, há alguns anos, aqui surgiu misteriosamente, e cuja existência é das mais comovedoras odisseias que conheço... Quereis vo-la conte? Não achais merecedoras de nossa atenção as lutas travadas nas almas dos obscuros, tangidas por ignotos pesares?
— Sim, caro amigo. Anseio por ficar inteirado do drama sensacional de que tivestes conhecimento neste cenário agreste e magnífico, que a Natureza parece ter preparado para nele se desenrolar um entrecho shakespeareano, estupendo, inesquecível!
—Tendes razão e justificareis a vossa esclarecida suposição quando souberdes o que me foi revelado por um inditoso em instantes de sofrimento superlativo.
Como eu, haveis de compreender que na vida do mais humilde ser há sempre algo de proveitoso para os que perscrutam os seus sentimentos e os seus embates com as paixões incoercíveis, há exemplos frutíferos, que só a dor pode dar... Gravai bem no fundo, na vossa mente de artista sensibilíssimo, aquela mole de granito enegrecida pelo tempo e pela noite, e, de retorno a penates, eu vos relatarei uma verdadeira epopeia, singularmente emocionante, merecedora de vossa pena... Contemplai-a, caro amigo!
Mr. Duplat — um ideólogo sexagenário, em extremo insinuante e de nobre aspecto — tinha, assim falando, um dos braços alongados na direcção de Oeste, e eu, atentando a vista na rocha indicada — que se salientava, pela altura e conformação entre as outras que a circundavam, como sucederia a um titã rodeado de esquimós, sendo algumas delas cónicas e escarpadas, semelhantes a araucárias de pedras — pude, apesar da penumbra em que estávamos mergulhados, verificar que era a mais elevada, repleta de anfractuosidades, e tinha depressões e protuberâncias consideráveis, parecendo haver sido recortada à tesoura por um alvenel que, depois de repicá-la em diversos pontos, houvesse arrojado sobre ela os blocos decepados, num ímpeto de demência...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:08 am

— Deve ter cavernas aquele rochedo — disse a Duplat.
— Sim, e numa delas é que houve o epílogo da pungentíssima odisseia de que vos falei...
Regressámos à morada do amigo que, a meu lado, no mesmo alpendre em que já estivéramos à tarde — um ninho pétreo de procelárias humanas, suspenso sobre as vagas que o borrifavam de espumas — começou a tocante narrativa:
—Um dia, excursionando a sós pelos caminhos onde passámos há pouco, afastei-me bastante de casa e detive-me ao sopé da serrania que vos mostrei.
Sentado em uma laje, pus-me a meditar longamente, ora fitando o mar, ora o céu, com o pensamento absorto em enigmas transcendentes... Sempre me aprouve insular-me em plena Natureza, para poder pensar livremente no Sempiterno, perquirir os problemas relativos ao nosso destino post mortem, fazendo mudas interrogações ao Infinito azul ou constelado...
Embevecido pela própria imaginação em altos surtos, não atentava no que me circulava, imerso no silêncio majestoso e empolgante da Criação, apenas quebrado pelos queixumes das vagas que, por fim, deixei de ouvir...
Inesperadamente, fui chamado à realidade por insólito rumor; observei de onde provinha e deparou-se-me um vulto indefinível, talvez de desconhecido iguanodonte, um fóssil ressuscitado, sombrio, negro, rastejando pelas pedras...
Ao vê-lo, estremeci quase convulsivamente, advertido por secreto pavor, como o têm sido todas as criaturas quando ameaçadas de iminente perigo... Estava pouco distante do Rochedo das Lágrimas e percebi que de seu âmago foi que saiu aquele ser surpreendente, que o crepúsculo não deixava bem distinguir se era humano ou algum monstro do período terciário, emergido das ondas quérulas, e que lá se houvesse ocultado durante séculos...
Estaria eu na presença de um sáurio primitivo ? Quem seria aquele ente exótico? Um celerado?
Seria uma foca fantástica ou larva gigantesca ? Quando de mim se aproximou, pude verificar que era um ser humano, semelhante a um exumado, a um ente que, depois de inanimado pela morte, em começo de decomposição, depois de já ter permanecido no túmulo, houvesse uma alma errante se apegado a seus despojos putrescentes, arrastando-os para fora da tumba, parecendo que todos os vibriões que lhe corroíam os tecidos se tivessem transformado em um só, de proporções enormes... Fitei-o espavorido, e, de relance, sua figura horripilante se me esculpiu para todo o sempre na retina, qual pirogravura focalizada no próprio cérebro, celeremente, ao fulgor de um corisco; vestia-se de andrajos infectos, enegrecidos de limo e sordidez; seus olhos eram de ónix, mas possuíam um brilho que me pareceu sinistro; o rosto excessivamente macilento estava quase invisível por causa da barba hirsuta e dos cabelos intonsos que se uniam àquela, passando pelos rasgões de um barrete negro, à moda de fez; era, enfim, um indivíduo com aparência de selvagem ou do monstro mitológico. Na mão esquelética, trazia uma haste de planta ressequida à guisa de cajado, que lhe mantinha o busto um pouco erecte, quando, certamente, ele se fatigava de rojar-se pelas pedras, como ofídio...
— Que queres? — interroguei-o em inglês, com a voz alterada pelo pavor, vendo-o quase a tocar-me os pés.
—Alimento para o corpo e para a alma: estou a morrer de duas fomes! — respondeu-me em francês.
— Como dar-te neste momento, ausente de casa?
— Como? Podeis dar-me, agora, um deles, que não tendes em vossos celeiros — o pão espiritual: apiedando-vos de mim, não me repelindo, não escarnecendo dos meus infortúnios... Não o trazeis convosco? Acaso tendes a alma tão árida e estéril que o não possuais? Logo me enviareis o outro por um de vossos fâmulos, para nutrir-me o organismo quase exânime.... Não me temais, senhor, pois não sou nenhum bandido, como vos faz supor o meu aspecto, mas um desditoso... Ah! que desgraçado sou eu, senhor!
— Como vieste ter a esta ilha? — redargui, ainda desconfiado de alguma cilada.
— Caindo ao mar, da amurada de um navio francês...
— Porque não bradaste por socorro?
Ele emudeceu, deixando a cabeça pender para o solo, e seus cabelos quase roçaram as pedras que deles estavam perto... Após instantes de reflexão, disse com humildade:
— Senhor, não devo faltar com a verdade: tinha de tornar-me homicida ou evadir-me... Não achais que obrei prudentemente seguindo o segundo alvitre?
— Sim, se é que não estás querendo burlar...
Seus olhos cintilaram, como se súbito incêndio lhe houvesse irrompido no imo... Hoje, sei, eram prantos que nele fulguravam; mas, naquela hora, supus fuzilassem de ódio...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:08 am

Tirei da algibeira a minha bolsa e depositei ao alcance de suas mãos, nas quais me repugnava locar:
—Aí tens o dinheiro que trouxe comigo — disse-lhe. — Pertence-te. Que mais queres de mim?
Seu rosto teve uma expressão inesquecível de tortura, de mágoa indefinível, e, não sei por que estranha mutação desapareceu, para mim, o aspecto hediondo que lhe notara, ao ouvi-lo exclamar:
— Peço um pão, senhor, e não moedas, que aqui, nestes penhascos, valem tanto para mim como estes calhaus que nos cercam — não saciam a fome que me devora as vísceras!
Depois, com indizível amargura, fitou o Além, como que falando a uma entidade invisível:
— Porque me iludistes, amado Protector? Os venturosos têm coração de gelo, não se apiadam dos que sofrem, como ninguém se compadece dos cães esfaimados! Que lhes importa a desdita alheia, se estão nutridos e têm lar confortável onde não falta lume e onde sobejam manjares?
O tom em que pronunciara estes vocábulos sensibilizara-me profundamente. Falei-lhe, então, quase carinhoso:
— Compadeço-me, sim, dos que são desventurados, pois eu mesmo o tenho sido; mas temo os perversos... e não conheço ainda as tuas intenções!
Satisfaze primeiro a minha curiosidade e proteger-te-ei como se foras um irmão desditoso, que me estendesse a mão súplice... Moras aqui nesta ilha?
— Não resido mais em parte alguma do mundo, senhor; hoje não tenho mais pátria nem família; às vezes, tenho a impressão de haver nascido destas rochas, de ser uma laje animada para padecer; outras, julgo que descendo de Samuel Belli-Beth, o condenado por Deus a não poder repousar em parte alguma...
— Como podes padecer tanto assim, se és um justo? Só o que tem remorso a latejar-lhe na consciência não desfruta repouso sobre pedras ou sobre arminho! Não cometeste falta alguma?
— Estava cumprindo austeramente os meus deveres...
— Não te compreendo: ou tentas embair-me ou estás alucinado! Tens, por certo, um mistério na vida, que me queres ocultar...
Olhei-o fixamente: seu rosto já não denotava nenhuma expressão de revolta ou fereza, mas comovedora expressão de intensa melancolia. Minha situação era penosa. Desejava libertar-me dela, retirando-me do local em que me achava, mas ele, percebendo imediatamente a minha intenção, aproximou-se mais de mim...
— Não estás satisfeito com o que já dei? — interroguei-o novamente, receoso de que aquele repulsivo indivíduo quisesse atacar-me traiçoeiramente.
Apanhou a bolsa que lhe havia ofertado, entregou-me polidamente e disse-me com inolvidável tristeza:
— Acabou-se, senhor, a minha derradeira ilusão; tudo quanto se passou comigo deve ter sido o efeito do delírio; a Terra não tem outro ser mais malfadado do que eu!... O coração humano é de granito e nada mais devo esperar do mundo, do qual fui expulso pela fatalidade, ou pela desventura...
Não vos odeio, porém, nem a pessoa alguma... Compreendo, entretanto, que sou inútil à sociedade, e, por isso, acabo de reflectir que não mereço mais a esmola e a comiseração dos homens, mormente dos que são felizes e desconhecem o sofrimento alheio...
Que valem moedas que não posso triturar, quando tenho, há muito, as vísceras devoradas pela fome? E é só isso o que destes, senhor, quando vos implorei um óbolo para a alma alanceada!
Repeli, muitas vezes, a ideia do suicídio, mas, agora, tenho-a firme, inabalável na mente; não devo mais procurar a Humanidade que sempre tem sido hostil para comigo. Adeus, senhor, não me vereis mais! Eis aí o meu grande túmulo, onde ocultarei os meus míseros despojos — o mar — para não dar aos felizes o trabalho de abrir uma cova para este corpo, quase putrefacto em vida...
Fitei-o detidamente: tinha os olhos lacrimosos. Emocionado, falei-lhe com energia:
—Estranho ser, porque projectas um dos mais hediondos crimes — o
suicídio — e repeles o meu auxílio?
Será um delito libertar o mundo de um fardo como eu, coberto de chagas e de farrapos infectos? Deus não deve ser como a sociedade, que somente sabe punir e fazer desditosos!
Era uma alma ulcerada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:09 am

Compreendi-o lucidamente naqueles instantes, em que julguei ouvir alguém murmurar no meu íntimo ou sobre minha cabeça:
“— Seja quem for, acolhe-o como se fora um irmão desolado! Se ele se suicidar por falta de caridade, tu serás responsável por esse ato de desespero, perante o Omnipotente!”
Estremeci involuntariamente. Que necessitava aquele réptil humano ?
Carinho e consolação. Não era ele um Barrabás nem um louco e sim um vencido da sorte, exausto de pelejar com a adversidade, ávido de encontrar lenitivo. Nada há comparável à piedade para reanimar os que padecem.
Disse-lhe, então, visivelmente enternecido:
—Acompanha-me, homem, meu irmão. Quem quer que sejas — uma vítima, um celerado, um justo! Não resido muito distante destes sítios. Vês, 9além, uma casa iluminada? É lá que habito e lá terás um tecto amigo para acolher-te fraternalmente, para sempre, se o quiseres... Vamos! Segue-me!
A fronte lhe pendeu para o solo e lágrimas deslizaram ininterruptas, ao longo do semblante esquálido.
— Deus meu! — disse, decorridos alguns segundos de viva inquietação — há quanto tempo não ouço palavras de conforto e compaixão!... Obrigado, senhor, pelas que me dissestes. Agradeço a generosidade que acabastes de ter para comigo, um ente tão desprezível, para o qual não há no mundo nenhuma consideração social...
—Bem vedes, porém, que mal me posso arrastar, tal o meu estado de debilidade, e, além disso, com esta roupa que parece a de um desenterrado, como posso aparecer aos viventes, mesmo que a vossa habitação distasse deste local apenas alguns metros?
Que queres, então, que te faça ?
—Vedes esse lajedo, pouco distante de nós, semelhante a degrau partido?
— Sim, à nossa esquerda.
— Não será possível enviardes algum alimento por um de vossos servos, que ali o deponha?
— Sim, mandar-te-ei, assim regresse ao lar, onde minha ausência deve estar causando cuidados... Recebe, porém, as moedas que te ofertei. . .
—Amanhã as aceitarei. Hoje são inúteis para mim.
—É só o que desejas de mim?
— Não, senhor. Quero fazer-vos um pedido e, se tiverdes o coração magnânimo, quanto as vossas palavras de há pouco me fazem supor, espero me atendereis...
— Podes formulá-lo com a máxima franqueza.
— Penso, senhor, que limitados dias de existência me restam e almejo dar-vos a conhecer quem sou, porque aqui estou clandestinamente, para depois receber um conselho amigo...
Desejo vos convençais de que não sou um malfeitor e antes me deixaria matar do que vos ofender, sequer, com um doesto...
Se, porém duvidais ainda de mim, podeis vir armado... mas — por Deus vos suplico! — não deixeis de atender ao meu apelo.
—Não, pobre homem, virei sem receio, ouvir-te amanhã, logo ao alvorecer, e prestar-te-ei os socorros que estiverem ao meu alcance.
Espera-me neste mesmo local. Promete-me, porém, não atentares mais contra a existência?
— Sim, juro, senhor, fazer todos os esforços para não deixar que se me extinga a vida voluntariamente!
— Acreditas na justiça de um Juiz Supremo, que pune todas as más acções?
— Quereis saber se creio na existência de um incorrupto Juiz, que me julgou austeramente, mas que eu abençoo e venero, porque exerce sempre a mais imparcial justiça? Sim, meu senhor!
— Então, não transgridas as suas divinas leis! Até amanhã.
Estendi-lhe a destra, mas ele não a quis tocar, compreendendo o meu asco.
— Não, o meu contacto vos faria mal! — falou o desventurado com inexprimível melancolia.
Regressei a casa penosamente, devido às trevas cerradas que me cercavam, apreensivo e penalizado por causa do desconhecido com quem conversara.
Ordenei a dois fâmulos lhe levassem pão, leite, carne e Moscatel.
Foram eles ao lugar indicado, empunhando uma lanterna e um cabaz, e, uma hora depois, voltaram apavorados.
— Senhor! — exclamou um deles, arquejante e lívido, assim que me viu — o monstro estava à nossa espera, mas nós, mal o vimos, atirámos a cesta ao chão e pusemo-nos a correr! Aquilo não é mais um homem vivo, juro-vos, senhor, é um fantasma!
Admoestei-os e, aquela noite, adormeci tardiamente, em sobressalto, anelante, entretanto, pelo despontar do dia, para atender ao rogo do infortunado do grande rochedo, ao qual depois dei o nome de Rochedo das Lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:09 am

II
"Cedo, pretextando longa excursão, saí a sós, depois de haver prevenido, aos que comigo privavam, pretender demorar-me algumas horas.
Alvorecia. Estávamos num início de primavera insular. O ambiente era frio, mas ameno. A concha celeste, cor de pérolas pulverizadas, deixava transparecer do lado do Levante pinceladas de rouge luminoso. Uma frescura deliciosa, diluída na gaze da neblina, parecia pôr em contacto, não a epiderme mas a própria alma com a Natureza, embuçada levemente em bruma prateada, que lhe dava inexprimível encanto, ténue melancolia — encanto e melancolia que se observam através do véu nupcial, no rosto pulcro de uma noiva que se vai apartar dos que lhe embalaram o berço, e que exprime antecipada saudade do lar paterno, antes que seus olhos lacrimosos deixem de vê-lo...
No local convencionado encontrei arrimado a tosco bastão, sobre uma pedra rectangular — qual se fora a estátua da Dor, da Miséria ou da Desolação — o indivíduo com quem conversara na véspera.
Só então pude reparar-lhe as vestes sórdidas e rasgadas, o rosto macilento, a barba inculta, os cabelos hirtos; era de estatura mediana, bem proporcionado mas excessivamente emagrecido, certamente devido a privações ou a alguma enfermidade grave que tivera e lhe deixara os ossos à flor da pele, dando-lhe um aspecto desagradável, não porém de celerado e sim de ser vencido pelos padecimentos físicos e morais, em grau superlativo. De onde teria vindo o singular indivíduo, que parecia ter surgido das vagas ou ser um náufrago em putrefacção, que houvesse ressuscitado?
Saudei-o, logo que dele me aproximei.
Não respondeu. Tinha os olhos velados.
Sondava a própria alma, por certo, antes de patentear-me os seus arcanos.
Orava, talvez, tendo o Espírito alhures, errante, longe do local em que mal firmava os pés disformes.
Estávamos em frente um do outro, em penoso silêncio para mim. Fui eu quem o quebrou, ávido por escutar a voz daquela estranha criatura, a fim de convencer-me de que me não achava na presença de um redivivo ou do espectro da Desventura, dizendo-lhe lentamente:
— Amigo, estou ao teu inteiro dispor, ansioso por saber o drama da tua existência... Poderás formular, após, o pedido a que te referiste ontem.
Ele sacudiu o rocio da roupa andrajosa — o que prova ter dormido ao relento —, talvez tentando reparar o desalinho das vestes, por um requinte de homem civilizado quando vai receber uma personagem de elevada categoria social — fitou-me com curiosidade e reconhecimento e, então, pude notar que seus olhos eram castanhos e belos, lúcidos e expressivos, revelando temperamento lhano{1} e terno, contrastando com todo o organismo envelhecido, que causava a quem o visse a impressão de que um escultor original, por fantasia inexplicável, cravara dois radiosos diamantes de Golconda{2} em estátua plasmada em limo impuro.. .
Depois de haver-me fixado docemente, falou com extrema polidez:
— Agradeço, senhor, os alimentos que me enviastes ontem e que me reergueram as forças orgânicas, já quase exauridas. Foi verdadeiro banquete para quem não ingeria, há quase dois meses, iguaria alguma preparada pelos homens...
— Como pudeste viver durante esse tempo?
— Ides sabê-lo dentro de poucas horas...
— Trouxe-te, agora, dois frascos com água e leite. Deves ter o estômago muito debilitado. . .
— Debilitado só, senhor? Podeis dizer — corroído... Tive de banquetear-me, ontem, parcimoniosamente, com o que me ofertastes, e assim mesmo causou-me espasmos de dor um trago de Moscatel; crede; senti o suor gélido da Morte gotejar-me da fronte e julguei ter chegado o derradeiro instante de vida, sem poder mais ver-vos... O leite, porém, sorvido posteriormente ao vinho, mitigou meus padecimentos.
— E hoje como te sentes? — indaguei com real interesse.
—Melhor. Obrigado, senhor! Pude adormecer profundamente neste local, pois me faltava ânimo para acolher-me à caverna que vos hei-de mostrar, meu último abrigo terrestre... Deus vos pague tantas generosidades e por terdes vindo escutar-me. Seria preferível me deixásseis sucumbir de fome a recusardes ouvir-me... Previno-vos, porém, longo é o que vos tenho a narrar.
Não vos conserveis de pé, para não vos fatigar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:09 am

Aceitai o único assento de que disponho nestas paragens — esta laje em que me vedes. É um divã feito por Deus... O homem primitivo dele se utilizou outrora, como eu nestes dias de tribulações que aqui tenho passado...
Desceu do paralelepípedo em que se achava, passou-lhe em cima o barrete para retirar o orvalho e o saibro nele depositados, aparecendo, então, sem pressão, os seus cabelos revoltos, quase de todo encanecidos. Dobrei um espesso manto, com o qual me agasalhava contra a aragem matinal, e, depondo-o na pedra indicada, ali me sentei, como se o fizesse em móvel afeiçoado pela Natureza.
Perto, o Atlântico rumorejava brandamente, como se estivesse prestes a adormecer para sempre, exausto de soluçar...
O náufrago — julgava que o fosse — conservou-se em posição respeitosa, firmando-se a improvisado báculo, de haste nodosa e curva numa das extremidades. Estava visivelmente emocionado e triste. A sua palidez era profunda. Animei-o com palavras afectuosas para que encetasse a confidência.
Sensibilizado, reiterou os agradecimentos:
— Obrigado, senhor! Não sei como expressar-vos o meu agradecimento, atendendo à súplica que vos fez um miserável do meu porte.
— O homem é meu irmão. Seus lamentos e seus rogos não me podem deixar insensível.
—É porque tendes um coração magnânimo. Há homens irmãos das feras — não têm comiseração dos que se sentem fulminados pela brutalidade dos padecimentos e comprazem-se até com os gemidos de suas vítimas...
— Quando se deixam empolgar pelo egoísmo e pelas paixões degradantes...
— Sim, tendes razão, senhor, mas... e quando possuindo louváveis intenções, sob o domínio de ódio indómito, ou nos paroxismos de dor incoercível, não podemos açaimá-las e somos por elas ofuscados? O ódio é capaz de sugerir-nos todas as vilanias. A dor, quando infrene, acossa o homem qual leopardo faminto a presa cobiçada: se ele sai vencido, pode tornar-se mais cruel que o mencionado carniceiro; se triunfa, iguala-se ao próprio Jesus, invulnerável ao Mal, propenso ao Bem, e sua alma toma-se o sacrário de todos os sentimentos dignificadores... No entanto, às vezes, senhor, anos de virtude, de sacrifício, de labor, de abnegação, anulam-se num segundo, unicamente, num relâmpago de rebeldia satânica! Nunca vos encontrastes num desses momentos alucinantes, em que um desditoso se julga arrastado pelos cabelos, por um Aquilão{3} infernal ? Conheceis, acaso, as decepções tremendas que dele se derivam? Ah! senhor, se nunca fostes por elas experimentado, não me compreendereis...
— Falais a um expatriado francês, que, inúmeras vezes, tem tido o lar enlutado e tem padecido acerbos reveses...
— Ah! sois um proscrito francês? — exclamou, com alegria quase infantil, e, depois, a uma afirmativa minha, interpelou:
— Não vos desagrada saber quem sou?
— Não. Desejo-o sinceramente.
Conservou-se meditativo, sem ânimo de encetar a confissão, que, certamente, seria penosíssima.
Pude então apreciar-lhe os traços fisionómicos e ler-lhe os sentimentos que, às vezes, pareciam flutuar, transparecer a flux, no rosto empalidecido...
Não era um mau, aquele indivíduo que me causara pavor ao vê-lo pela vez primeira, mas um desventurado para o qual as colectividades humanas sempre se mostraram inexoráveis.
Teria trinta e cinco ou quarenta anos; de constituição robusta, mas estava extremamente descarnado, indicando a sua lividez uma lesão cardíaca, grandes privações, ou amarguras inauditas; tinha a tez clara, quase ebúrnea, os cabelos castanhos, que seriam belos se bem cuidados, mas, estavam hirsutos, ásperos, parecendo apegadas, umas às outras, diversas mechas encanecidas, talvez subitamente... As roupas de espessa lã, como as usadas nas zonas frígidas, não tinham mais cor definida, deviam ter sido azul ultramar; mas estavam enxovalhadas de limo, com diversas rupturas, que revelavam haver ele lutado com um ser enfurecido ou com o Oceano, de encontro às arestas aguçadas dos rochedos que nos muravam ...
Interroguei-o, ansioso por ouvir a exposição de suas aventuras...
— É então, muito longo o que me tens a narrar?
Ele fez um gesto afirmativo com a fronte e também inquiriu:
Não dispondes de tempo suficiente para ouvir-me?
— Ouvir-te-ei todas as manhãs, até que termines a tua confidência; depois, convenientemente alimentado, já estarás em estado de acompanhar-me, pois pretendo acolher-te em meu lar.. .
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:09 am

Agradeceu com o olhar, em que havia prantos ou luz de gratidão...
Subitamente, tornou-se mais risonho e falou em solilóquio, fitando o zimbório celeste e juntando as mãos esqueléticas:
— Não me iludistes, Santo Mestre, e eu rendo graças ao Eterno por se haver apiedado de mim...
Depois, mudando de tom, murmurou:
—Para me atenderdes, senhor, talvez percais horas inestimáveis de labor...
Que vos importa a vida de um desventurado ?
—Estás enganado. Posso dispor do tempo que me aprouver e anseio por saber a tua odisseia, até que a findes. Todo sofrimento humano encontra percussão em meu Espírito. Começa, pois, o que me tens a transmitir, que te ouvirei com sumo interesse.
Ele baixou as pálpebras violáceas, por momentos, numa verdadeira absorção de ideias, ou como se estivesse percebendo uma voz recôndita, misteriosa e decisiva... Depois, passando a destra pelos cabelos argenteados, fitando-me com doçura, começou a sua revelação:
“— Conheceis a Rússia, senhor ? Não. Pois bem, não vos considereis desditoso por isso. Eu a conheço porque nasci em uma das mais miseráveis aldeias do grande Império moscovita{4}, num desses núcleos de desgraçados mujiques{5}, cuja vida consiste em mourejar sem tréguas, em lutar constantemente contra a neve, a terra estéril, o tifo, a falta de pão, da infância à decrepitude, até expirar...
Sou o quinto e último filho de um casal paupérrimo, arrebatado ao mundo na mesma hora, por febre violenta. Extintos meus infortunados genitores, romperam-se os vínculos que lhes reuniam os filhos sob o mesmo colmo{6}... Os órfãos foram dispersados para jamais se encontrarem. Tornaram-se, desde então, estranhos uns aos outros, entregues a diversas pessoas que, tomando o encargo de acolher crianças sem parentes próximos, não visavam a praticar um ato de altruísmo, mas adquirir, por tempo ilimitado, escravos aos quais pudessem tiranizar impunemente, usurpando-lhes o trabalho não remunerado.
Eu só encontrei, no decorrer da existência, um de meus irmãos, em circunstâncias trágicas para mim... Porque duvidar de uma vida superior à terrena para os oprimidos, os espezinhados, os que ficam sem tecto, à mercê do destino e da crueldade humana, como nos sucedeu a mim e a meus desventurados companheiros de infância? Credes? Também eu! Deve haver uma causa poderosa e soberana, defluída do Alto, para que assim seja destruído um lar — qual o nosso o foi — para que criancinhas sejam apartadas das asas paternas, como avezinhas implumes arrojadas do tépido ninho a um solo glacial em noite de borrasca... Quem sabe, porém, não será reconstituído, futuramente, esse lar em condições favoráveis a todos nós? Há-de existir além, acima de nossas frontes, mundos mais perfeitos do que este que palmilhamos, onde impere a justiça, onde haja a ventura idealizada em vão pelos burlados da sorte adversa, pungidos pelos autocratas deste globo.. .
Órfão aos dez anos, fui albergado em lar alheio, sempre hostil, educado na escola da adversidade. Nunca fruí conforto na puerícia nem na juventude, nos seus mais áureos períodos. Vivi sem folguedos e sem sorrisos, como os não têm os filhos dos párias e dos mujiques. Um virtuoso abade — que assistiu aos derradeiros momentos de meus pobres pais — entregou-me aos cuidados de uma família abastada, que me acolheu com rispidez, sem uma palavra sequer de comiseração por minha desdita... Constava essa família de poucos membros:
o casal Peterhoff, depois reduzido ao consorte, que enviuvara; um rapazinho pouco mais velho do que eu, chamado André, e uma formosa menina, Sónia, contando oito anos de existência quando a conheci.
Eram todos bárbaros para mim, excepto a menina, cujo proceder estava de acordo com a sua aparência de arcanjo degredado na Terra vil... Depois que se desvaneceu o travor de minha dupla desdita, vivia obcecado por um anelo indomável — aprender a ler — e, se conseguisse realizá-lo, supunha seriam amenizadas todas as penas porvindouras...
Invejava a ida dos petizes de minha idade para o colégio, o único existente na misérrima aldeia em que morávamos, e, muitas vezes, em rápidos momentos de lazer, dele me aproximava, magnetizado por força incrível, e quase caía em êxtase ouvindo as criancinhas modularem algum hino, sacro ou cívico, que eu imaginava evolado das estreias que, para mim, eram orifícios luminosos feitos pelo Criador, na abóbada celeste, com um trado de ouro...
Inúmeras vezes, rojando-me aos pés do Sr. Peterhoff, com os olhos turvos de pranto, supliquei me deixasse frequentar as aulas do abade Francisco — um venerando Pope{7}, assim chamado porque saíra de importante abadia, preferindo viver quase ignorado em pequena e rústica povoação, para velar pelos infelizes que a constituíam — o qual atraía, todas as tardes, ao presbitério, a infância desvalida dos arredores, para lhe difundir n´alma o lume inextinguível da instrução e da moral cristã, mas — ai de mim! — só conseguia repelões e gravames...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:10 am

Havia aulas em dois turnos: um, matinal, para crianças de ambos os sexos, até dez anos; outro, vesperal, para os meninos de mais de dois lustros, que laborassem durante o dia. Eu aspirava a frequentá-las, sem saber como conseguiria realizar o meu intento.
Tomei, então, uma deliberação peremptória.
Iludindo a vigilância de meus algozes, fui ter com o Pope no único santuário da localidade, sob o patrocínio da Mater{8} Dolorosa.
Quando penetrei na sacristia, estava ele em preces, aguardando a chegada dos campónios para, em conjunto, elevarem os pensamentos ao Omnipotente e a seus radiosos servos, à hora do Ângelus. Era alto, magro, muito pálido, parecendo uma escultura em marfim, que os anos levemente alterara, com a fronte ampla, cingida por níveas madeixas, pois era já sexagenário.
Orava, quando dele me abeirei, sentado em velha poltrona, com os dedos marmóreos enlaçados e as pálpebras — em que havia tons de ametistas — completamente cerradas, os lábios imóveis.
Absorto em profunda concentração, pareceu-me um ente já desligado da vida material, que a sua alma de justo se alçara ao Empíreo, mas seu corpo fenecido ficara ladeado por uma falange de sentinelas luminosas; julguei, até, divisar um nimbo resplandecente, de suavidade estelar, sobre sua fronte jaspeada... Não ousei tocar-lhe com a mão crispada a negra túnica que lhe realçava mais a alvura de alabastro, e apenas pude murmurar com ansiedade e respeito, temeroso de despertá-lo e ao mesmo tempo desejoso de o fazer, para convencer-me se ainda existia ou não:
— Sr. Abade... Sr. Abade...
Ele descerrou as pálpebras, e vendo-me a seu lado, submisso e maltrapilho, enlaçou-me o busto carinhosamente e interrogou-me, fitando-me com o seu olhar arguto, mas revelador de bondade infinita:
— Que desejas, Pedro?
Todos me tratavam com rigor. Aquela amistosa recepção enterneceu-me até às lágrimas... Quase soluçante dei a conhecer as minhas aspirações. Afagou-me a cabeça, parecendo-me que, enquanto o fazia, eflúvios de consolação infiltravam-se-me n´alma sempre aflita.
Ouviu-me com benevolência e falou brandamente:
—Eu já me devia ter lembrado de ti há mais tempo, pobre Pedro — desvalido, órfão, analfabeto... Como foi possível esquecer-me de cumprir um dever tão sagrado — ó Deus meu! — qual o de iluminar o cérebro e o coração de um pequenino malfadado quanto este, cuja fronte acaricio neste instante?
Tuas palavras, filho, chamaram-me ao cumprimento desse dever, que — com pesar te digo! — jamais um sacerdote pode olvidar impunemente... Ai! todos erram, Pai celestial!
E é uma criança que me vem chamar à rebate a consciência... Tudo farei, agora, para sanar minha desídia para contigo.
Pedro... Vai tranquilo, confiante em Deus que acaba de me esclarecer o Espírito e há-de me auxiliar a obter o que almejas com tanto fervor... Hoje intercederei por ti, junto ao compadre Peterhoff.
O campanário vibrou o Ângelus... Ajoelhei-me e osculei a fímbria das negras vestes do ancião, que impôs a destra em minha fronte cálida, numa paternal e dulcíssima bênção.
Retirei-me da modesta capela tendo n´alma, pela vez primeira a rouxinolar{9}, uma álacre esperança...
À noite dessa tarde a que, me refiro, o Sr. Peterhoff foi procurado pelo abade e, depois de prolongada conferência, fui chamado à presença de ambos.
Um estava radiante, com a fisionomia ressumbrando regozijo e triunfo — era o Pope; outro, de cenho contraído, visivelmente colérico — era o meu senhor. Eu o temia sempre e o seu aspecto iracundo infundiu-me instintivo terror.
Teria o barine{10}, na época a que me reporto, meio século de existência: era rubro, de barbas e cabelos fulvos como os da pantera; tinha os olhos cor de aço, frios e implacáveis; de estatura elevada, robusta, um pouco arqueado, parecendo que o próprio peso do corpo ou de remorso latente vergava-o para o solo, como me curvavam de dor seus injustos castigos e infindas atrocidades...
Sentia-me trôpego, atemorizado, gélido...
Em sua presença, julgava-me ameaçado de alguma catástrofe... Ouvi-o dizer com arrogância e cólera mal dissimulada:
— De amanhã em diante irás às aulas do Sr. Abade, a quem muito prezo, e, por isso, atendi à solicitação que me fez a teu respeito; mas, à menor falta que cometeres, serás expulso de lá como um cão hidrófobo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:10 am

Lembra-te de que vais estudar ao lado de rapazinhos melhores do que tu e que não quererão ser pervertidos pelos exemplos nocivos do mais desprezível filho de mujiques...
Deus, porque há-de sempre a alegria estar mesclada ao sofrimento? No instante em que conseguira realizar veemente anelo, tive apenas um lampejo de ventura, logo ofuscado por uma nuvem de trevas — a humilhação... Porque, naqueles momentos — que seriam de paradisíaco júbilo — tive a pungir-me o coração a víbora do ódio? Não sabia se deveria ou não prosternar-me aos pés do piedoso clérigo, que, compreendendo minha tortura, para a atenuar, disse com meiguice:
— Anda cá, Pedro Ivanovitch: prometes ser um bom menino, estudioso e bem comportado?
Impelido ternamente pelo velho abade, reclinei a cabeça em seu ombro direito e só ele ouviu o que balbuciei em surdina!
— Sim, não vos arrependereis de ter-me por discípulo ...
Eu tinha, ao mesmo tempo, acúleo ferino trespassando-me o coração e um resplendor de felicidade a aureolar-me a fronte ardente...
O abade retirou-se contentíssimo e eu me fui ocultar nas palhas em que dormia, temendo a vingança do Sr. Peterhoff, que estava exasperado por haver feito uma concessão contrária à sua vontade potente...
Não pude conciliar sono tranquilo naquela noite. Levantei-me ao alvorecer e fui conduzir ao campo o numeroso rebanho do meu amo.
Quase não me alimentei, dominado por invencível nevrose. Ansiava pelo entardecer. Quando, depois de ligeiro repasto, obtive ordem da Sra. Peterhoff para ir à escola, quase fui presa de uma vertigem, tal a emoção que me assaltou ao chegar ao pardieiro em que dormia: não possuía nenhum fato, por mais modesto que fosse, com o qual pudesse apresentar-me ao abade Francisco e nunca possuíra um kopeck {11} para adquiri-lo...
Só me vestia com andrajos sórdidos... Pus-me a soluçar, no umbral de uma porta que dava acesso a grande pátio rectangular, com um dos braços curvo sobre os olhos, de onde jorrava pranto incessante, transido de vexame e de agonia moral...
Viu-me a graciosa Sónia, que me tocou os farrapos dos ombros com a rósea e delicada mãozinha e interpelou-me:
— Porque choras tanto, Pedro?
Dei-lhe a conhecer a origem do meu pranto. Ouviu com interesse, pensativa, depois falou subitamente, juntando à palavra um gesto encantador:
— Espera! — e desapareceu no dédalo da vasta habitação.
Percebi o rumor de vozes exaltadas e, passados momentos — que me pareceram séculos — surgiu a alentada genitora de Sónia, sobraçando uma roupa infantil, de sarja azul safira — que fora do filho — já bastante usada, mas sem estar rota, escrupulosamente limpa, e deu-me, dizendo com dureza:
— É só para frequentares o colégio e não para folguedos... Agradece ao pedido de Sónia e do padrinho de André, pois de outra forma não consentiríamos aprendesses a ler — luxo desnecessário a um filho imundo de mandriões que morreram à fome...
Há pessoas, senhor, que concedem uma esmola valiosa com as falanges contraídas, como as garras de rapina; custam a desprender a dádiva, querem retê-la depois que cai noutra mão, embora esteja esta mirrada de penúria ou de frio... Há criaturas que não sabem exercer a caridade, mesmo quando de seus dedos caíssem fúlgidas gemas de subido valor: tripudiam sobre o mendicante antes de o favorecer... Congelam as lágrimas de reconhecimento dentro do relicário do coração; elas aí ficam enclausuradas como pérolas que nunca chegam à flor das vagas, ou lírios crestados antes de desabrocharem, mortos pelas rajadas de brusca invernia... Transformam, em suas unhas de milhafre, as rosas de um óbolo em calhaus áridos, onde não germina a gratidão...
Se a Sra. Peterhoff apenas proferisse este rude vocábulo — toma! — eu lhe teria beijado a barra do vestido, ter-me-ia rojado às suas plantas; mas, como me espezinhou antes de me atirar aos braços aquela inestimável esmola, recebi-a silencioso, cabisbaixo, desejando apenas divisar a silhueta airosa de Sónia para lhe agradar com o olhar o que por mim fizera; não o conseguindo, retirei-me ao lôbrego aposento onde passava as noites muitas vezes aterrorizado pela escuridão que o invadia transformando-o em túmulo glacial, onde eu rangia os dentes de pavor e de frio, nas lutuosas estações hibernais. Substituí meus farrapos pelas bem talhadas vestes recebidas, lavei o rosto, alisei os cabelos com um fragmento de pente que, há muito, apanhara numa alfurja{12}, e, mirando-me nas águas de um tanque, aos últimos clarões do Ocaso, achei tão agradável o meu aspecto que me senti quase vaidoso; sorri como Narciso à minha própria imagem e, estugando o passo, quase alígero, dirigi-me ao presbitério já iluminado, que me pareceu um Éden cintilante...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:10 am

Minha presença causou sensação. Não era o maltrapilho dos outros dias, que todos viam levar o rebanho a pascer, e sim um outro petiz de rosto radiante, melenas penteadas, fato elegante. O Pope sorriu ao ver-me e disse, voltando-se para todos os seus discípulos já congregados:
— É mais um coleguinha que tendes convosco de hoje em diante, e espero haveis de estimá-lo muito, qual se fora um irmão...
Depois, olhando-me fixamente:
— Pedro Ivanovitch, desejo que te esforces muito para recobrar o tempo perdido; que sejas um aluno modelar, compenetrado de todos os teus deveres escolares e cristãos, aplicado ao estudo, afável para com todos os teus condiscípulos...
Eu perdera a voz. A comoção do primeiro momento magno da vida embargou-me, estrangulou-me na garganta ressequida...
Sentia-me ofegante, esquecido de minhas desditas, quando meu olhar cruzou com o de André, fuzilando de despeito, pois era destituído de beleza física, beleza essa que, compreendi, notara no seu pobre servo... Ele era rubro, sardo, de olhos garços quase inclassificáveis pelo colorido, de cabelos ásperos, cor de labaredas. Quem o avistasse a alguns metros de distância, teria a desagradável impressão de estar vendo um excêntrico frasco em forma humana, repleto de líquido escarlate, já mofento, sugado por uma tarântula de fogo, como o do Avemo{13} — incombustível e inextinguível.. . Sua aparência inspirava temor, repulsa, aversão instintiva.. . Eu, ao contrário de André — hoje parece uma irrisão o que vos digo! — durante a infância e a juventude era insinuante, esbelto, de rosto oval um tanto pálido, cabelos castanhos encaracolados, olhos cor de topázio, cismadores, expressivos, formosos...
Achavam-me belo, mesmo vestido de farrapos, e, certamente, foi esse o pensamento concebido por todos os que me viram, inclusive André, que, reconhecendo-se horripilante, para turvar o meu regozijo falou a um companheiro de bancada, de modo que eu ouvisse:
—Aposto em como não agradeceu à minha santa mãe a roupa que traz no corpo e que foi minha... É um soberbo, este Pedro! Ainda o ficarás conhecendo.
Meu padrinho já está avisado — à menor falta que cometer, será expulso daqui como um leproso!
Senti-me deprimido, com os olhos nublados... O abade, adivinhando minha penosa situação — ficou erecto, fez sinal às crianças para que o imitassem e, fitando o alto, disse com brandura e solenidade:
—Vamos encetar os nossos labores escolares com um hino sacro, aquele consagrado ao Criador do Universo, pois hoje obtive incalculável triunfo: — foi-me por Ele concedida a graça de poder arrancar mais uma alma à caligem da ignorância para encaminhá-la ao arrebol dos mais úteis conhecimentos morais e intelectuais!
Perfilaram-se todos e, com a voz trémula de emoção, o preclaro sacerdote entoou um hino melodioso, de melancolia indizível, de suavidade veludosa, de harmonia sideral, acompanhado por dezenas de puros gorjeios infantis, que pareciam descer das Selvas celestiais ou ascender a elas...
Comecei a chorar, dolorosamente, após tantas e vivas comoções recebidas naquele dia, que me agitaram a alma, atormentando-a e ao mesmo tempo arrebatando-a ao Firmamento que, àquela hora, já devia estar florido de estrelas, como o Espírito luminoso de Jesus ou do abade Francisco — um dos mais esclarecidos apóstolos da caridade cristã, dos que têm baixado à Terra em missões santificadoras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:10 am

III
“Ia diariamente às aulas vesperais do piedoso eclesiástico, que, para confraternizar as crianças da obscura aldeia em que vivíamos, não admitia selecções entre as paupérrimas e as poucas abastadas que lá existiam, sem preconceitos de casta ou de fortuna, proporcionando a todas, indistintamente, instrução e preceitos morais. Não solicitava indenização alguma, de nenhum progenitor, mas, quando qualquer deles lhe enviava algum donativo, exultava, adquiria livros e materiais didácticos e seu rosto resplandecia de alegria ao distribuí-los igualmente por todos os discípulos, que o adoravam...
Aprendi em poucos meses o que outros meninos não assimilavam em um ano — assim proclamava o meu ilustre professor, que me tratava com extremos de pai. André, que era bronco, observou, entretanto, o meu talento e o progresso que eu fazia cotidianamente, e, por isso, cioso do dom excelso com que Deus me favoreceu, tornou-se mais hostil para comigo. Em casa, vingava-se da minha primazia na escola — um jorro de sol em meio às trevas em que tinham vivido os filhos dos opressos mujiques daquela miserável aldeola —- e, recebendo eu o fúlgido alimento intelectual, fiquei, inúmeras vezes, privado de uma côdea de pão ao erguer-me do palheiro em que dormia, sem um agasalho para afrontar as tempestades, sem um tamanco para não magoar os pés nas arestas de gelo das estradas desertas... Emudecia, porém, para que ninguém suspeitasse meus tormentos, aguardando dias mais benignos. Após dois anos de frequência na escola paroquial, por uma tarde nebulosa, no início do Inverno, ao regressar do campo dei por falta de uma ovelha. Fiquei alarmado.
Fui comunicar o ocorrido ao Sr. Peterhoff, que se encolerizou contra mim, vociferou impropérios, agrediu-me cruelmente e disse:
— Anda com as ideias à matroca{14} este larápio, na persuasão de ser um doutor e poder deprimir o meu André! O compadre, com sua bondade excessiva, põe a perder este farroupilha...
Se me não deres conta da ovelha, que certamente mataste para me dar prejuízo, verás o que sucederá; nem o abade, nem Deus te livrará do merecido castigo!
Retirei-me atemorizado daquela fera humana e fui deitar-me, soluçante, Retirei-me atemorizado daquela fera humana e fui deitar-me, soluçante, sem me alimentar, pois me foi negada a ceia e eu não teria ânimo de ingeri-la, mesmo que me houvessem dado... Por ter sido santificado o dia a que me refiro, não houve aula à tarde; o Pope celebrou uma cerimónia religiosa prolongada e, por isso, não pude falar-lhe como era meu desejo. Dormi pouco, em sobressalto, quase ao alvorecer. Despertou-me, brutalmente, André, antes da hora habitual, aos safanões, arrastando-me para fora da miserável enxerga a que me recolhera para repousar, após tantas dolorosas emoções da véspera.
Ordenou-me com violência fosse à procura do lanígero{15} desaparecido, pois o queria morto ou vivo, a fim de verificar se eu não o vendera ou atirara a um fosso... Expliquei-lhe que a neve começou a cair mais cedo do que eu calculara e que, desorientado, envolto por súbito nevoeiro, só pude atinar com a falta da ovelha quando contei todo o rebanho no redil. Tentei erguer-me rapidamente das palhas que me serviam de leito, os membros estavam enregelados, invadidos por torpor quase invencível, devido ao frio e à falta de alimentação.
Com esforço supremo levantei-me, empunhei um bordão e pus-me a caminhar, sem ter sorvido sequer um trago de vinho...
Não avistava o horizonte, por mais que perscrutasse; o céu e a terra estavam confundidos, porque as serras longínquas tinham os píncaros nimbados pelo nevoeiro compacto, do qual parecia descer a neve, incessantemente, formando um oceano invertido, que se desfazia em cristais movediços, ligando o solo ao Espaço...
Atravessei a povoação penosamente, trôpego e, pouco distante da última choupana, caí de bruços sobre uma camada de flocos alvinitentes...
Viu-me tombar um condiscípulo e bradou por socorro aos avós, com os quais convivia. Não sei dizer quanto tempo fiquei desmaiado, sem dar acordo de mim. Quando recobrei os sentidos, achava-me num recinto paupérrimo, mas tépido, em frente de um casal de velhinhos que me fitavam com paternal compaixão.
Oh! meu senhor, podem todos negar que o beneficiado é sempre sem reconhecimento, olvidando o benfeitor; em vão asseguro, entretanto, que há seres que conservam, intacto, indelével, por toda uma existência, o sentimento da gratidão, que adquire a pureza e a candidez dos lírios, a rutilância dos astros e a durabilidade dos diamantes!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:11 am

Foi um desses sentimentos que, naquele instante, medrou em meu coração e até hoje o bendigo, pois, em horas de secretas borrascas, é qual dourada seta de sol que desce à umbrosa masmorra de minh´alma.
Sou um malsinado, mas conservo também, no âmago do peito, qual santuário, uma lâmpada inextinguível, aquele olhar de piedade dos dois bondosos anciães que me albergaram no seu casebre e tiveram palavras de lenitivo para o débil pegureiro que lhes caíra próximo à porta, reanimando-lhe o organismo com um cálido alimento.
Comunicaram ao barine o sucedido.
Levaram-me, quase a braços, para a habitação dos meus algozes, onde fui recebido com rispidez, com ameaças de castigos físicos, e o que mais me mortificou foi o que dissera André:
— Sabem o que aconteceu? Foi, certamente, vinho demasiado que ele bebeu às ocultas, na adega; e caiu, ébrio, em plena estrada!
Essa insinuação caluniosa teve rápida repercussão na mente tigrina dos pais, que exultaram ao ouvi-la... Tive um momento de cólera fremente, desejei esbofeteá-lo, mas a minha situação não admitia esse desforço...
Contive-me a um olhar de Sónia, que estava presente e parecia dizer com infinita doçura:
“Contém-te que eles podem matar-te! São três contra um!... ” Sufoquei no íntimo uma explosão de ódio, mas pela primeira vez não pude deixar de exclamar com desassombro:
—Não foi a embriaguez mas a fraqueza que me prostrou no caminho, pois desde ontem não me alimentava; caí inanimado de fome e frio!...
—Mentes descaradamente, bandido! — rugiu o Sr. Peterhoff. Ainda que fosse verdade o que dizes, tu te esqueces de que não somos, felizmente, teus parentes; acolhemos-te por caridade, e, se não trabalhares para fazer jus aos dispêndios com a tua manutenção, pôr-te-emos na rua como fizeram a teus irmãos, que morreram, certamente, mendigando pelas estradas... Deves considerar-te venturoso por te não espancarmos todas as vezes que o mereces!
Redargui-lhe, com voz tremente:
—Porque me não deixais, agora, desaparecer para sempre, como meus pobres irmãos?
—É o que faltava! Criaste penas em minha casa — que todos invejam — para poderes voar para longe, biltre? Então nada valem o teu vestuário e a tua alimentação durante cinco anos? Resgata o que me deves, a ovelha que mataste e deixar-te-ei partir até para as Geenas, se o quiseres!
—Mas nunca recebi sequer um kopeck{16} e durante esse tempo tenho trabalhado mais do que me permite a idade, senhor!
— Belo trabalho o teu, digno de recompensa, ocasionando-me, constantemente, irreparáveis prejuízos, pois devido à tua inépcia a minha ovelha apareceu morta num valo...
— Não foi por descuido meu, senhor, pois ontem escureceu mais rapidamente do que eu supunha, e antes de contar todos os carneiros — que são muitos, precipitei a marcha para chegar mais depressa ao redil, mas a neve e a cerração desorientaram-me por completo... Só dei pelo tresmalho da ovelha quando regressei; logo, aflito, comuniquei o ocorrido ao senhor...
— São lérias forjadas para engazopar a nossa boa fé, seu mandrião! Eu te conheço perfeitamente: és capaz de praticar todas as perversidades, todas as vilezas, à sorrelfa, mas, desta vez, caro pagarás teu desmazelo ou crime!
André, ferozmente, insinuou ao pai:
— Quereis que, neste momento, ele indemnize todos os danos incalculáveis que nos tem causado? Vou buscar o knout17}...
Seu genitor riu satisfeito, mefistofelicamente, aprovando a sinistra sugestão do filho...
Foi, então, que ocorreu uma cena absolutamente inesperada: aproximou-se de nós a encantadora Sónia, que, até aquele instante, esteve à mesa da sala de refeições — o tribunal doméstico onde eu estava sendo julgado desumanamente por três cruéis verdugos — tecendo a filigrana de uma renda caprichosa, em profundo mutismo, disse ao irmão com as faces jaspeadas de pavor e indignação, talvez inspirada por um mensageiro divino:
—És muito inclemente, André, e Deus há-de punir-te por tua falta de compaixão para com os desgraçados! Três pessoas contra um rapazinho indefeso, órfão, infortunado e enfermo, é uma indignidade que clama justiça aos céus!...
É bem verdade o que Pedro acaba de falar — sou testemunha de que, desde ontem, lhe foi negado o menor repasto, e queres afirmar que ele se embriagou, André? De que modo conseguiria penetrar na adega, se as chaves estão sempre em poder de nossa mãe?
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 10:11 am

Quando cometer um delito, castiguem-no severamente; mas, hoje, imploro ao Criador me fulmine para não presenciar seja morto um inocente!
Não és discípulo de um santo sacerdote, André? Que te valem os seus benéficos conselhos? Vai chamá-lo aqui, neste instante, para que ele, como juiz austero, julgue o teu e o procedimento de Pedro, e verás quem será acusado...
Serás repreendido duramente, como desalmado! Tu, que aprendes todos os dias a ser cristão, não temes a Justiça Divina, meu irmão?
Era a primeira vez que a filha de meus senhores ousava manifestar claramente os seus pensamentos em desacordo com os de sua despótica família, intervindo numa questão doméstica, com energia até então desconhecida, porque certamente naqueles momentos — em que defendia heroicamente um oprimido — tinha a seu lado um fúlgido querubim, de flamejante gládio alçado para protegê-la, insuflando-lhe ânimo para patentear suas generosas ideias, diante de temíveis tiranos...
A surpresa foi geral: André quedou-se por alguns segundos, como que manietado por uma força mágica; depois, repentinamente, volvendo à realidade, encaminhou-se para a irmã, dizendo-lhe com escárnio, sem refutar-lhe as incriminações:
—Defendes um mujique, um rafeiro, sem dono, Sónia?
—Como poderás sê-lo ainda, André!
Era a culminante audácia de Sónia a meu favor. O nome do abade Francisco havia serenado os ânimos; a apóstrofe final, porém, exasperou novamente o feroz André, que avançou para a irmã, rubro de furor, como que chamejante:
— Se disseres mais uma palavra em defesa deste infame, retalho-o com o knout, até deixá-lo sem vida, na tua presença!
Sónia fitou os pais, desvairada de dor e de revolta, e, vendo-os insensíveis, pactuando com André, ajoelhou-se em frente à Sra. Peterhoff, que ela, sabia ser menos bárbara que o genitor, com as mãos súplices, e implorou:
— Piedade, minha mãe, para este infeliz! Vede que ele está enfermo, quase desfalecido e não cometeu nenhum delito para ser ameaçado de tão crudelíssimo suplício!
Em nome do Altíssimo, mandai que ele se vá deitar, minha mãe!
Como era formosa, naqueles momentos, Sónia Peter-hoff, senhor! Esqueci-me dos agravos recebidos, dos meus sofrimentos, de minha penosa situação, para contemplá-la: trajava um vestido carmezim que mais lhe realçava o rosto de açucena, levemente róseo; a fronte imácula era engrinaldada de cabelos castanhos, com revérberos de ouro, penteados com a singeleza das madonas de Sanzio; seus olhos de turmalina azul, inundados de luz e pranto, tinham cintilações de estrelas e poder fascinante!
Além de bela, era para mim o arcanjo tutelar da Misericórdia, e, por isso, não vos admireis se vos disser que, mais do que todos, eu estava perplexo, extasiado, deslumbrado...
—Afasta-te, Sónia — disse-lhe o carrasco do pai, com rudeza — o teu lugar não é aqui! Vai-te para a sala!
—Prometeis não espancá-lo hoje?
Foi sua mãe quem lhe respondeu afirmativamente, com um movimento de cabeça.
Ela obedeceu caminhando lentamente, até desaparecer no extremo de um longo corredor...
Assim que, compassiva, Sónia se retirou, o arrogante André injuriou-me brutalmente.
Baixei a fronte e conservei-me quedo.
O Sr. Peterhoff ordenou-me fugisse de sua presença para não ser tentado a estrangular-me. Tudo suportei cristãmente, silenciosamente...
Sentia-me petrificado, inerte, naqueles momentos em que julguei haver perdido a noção do tempo e até da dignidade: sujeitar-me-ia aos mais dilacerantes martírios sem proferir um lamento, um gemido, como vítima de um Nero, tal a perturbação mental em que me achava...
— Porquê ? — haveis de imaginar...
Ai! perquirir — naqueles segundos memoráveis para os fastos da minha atribulada existência — o porquê da minha emoção, era o que eu não tentaria fazer... Mas, é mister desnude a vossos olhos todos os arcanos do meu coração, pois sei que faço a minha confissão in extremis... Ninguém mais, na Terra, ouvirá estes queixumes que são, talvez, os do mais malfadado ente humano...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:46 pm

Lembro-me nitidamente de tudo, senhor: quando fui recebido pelo barine, com a alma arpoada de dissabores, faminto e ulcerado; apartado de irmãos queridos, arrancados, soluçantes, de nossa palhoça por estranhos que sorriam de nossos lamentos; sofri, infinitamente, ao ser tratado com aspereza por ele, André e sua progenitora, que me afrontavam injustamente com vitupérios e aleives; no entanto, senhor, assevero-vos lealmente que, desde que me surgiu aquela ideal criatura — Sónia — senti-me inebriado, enternecido, como se fora ela uma entidade exilada do Paraíso por tempo ilimitado... Quanta bondade e meiguice revelava sua cândida fisionomia! Que olhar tranquilo e merencório, o seu — desses que baixam à alma, qual unção de bálsamo subtil!
Vê-la, era para mim o sentir no peito, amainadas, secretas tormentas; extinguiam-se-me subitamente inquietações e inomináveis desgostos...
No entanto, quanto padecia ao comparar os nossos destinos, tão diversos, reconhecendo a sua supremacia social, e, entristecido, contentava-me em contemplá-la de longe, e, se me permitiam as circunstâncias, fazia uma genuflexão à sua passagem, como quando nos aproximamos de um tabernáculo sacrossanto...
Poucas palavras havíamos trocado desde que me achava em sua habitação: ela apenas me transmitia ordens que eu executava prestemente, como vassalo submisso, pulsando acelerado o coração, de onde se irradiavam róseas alvoradas... Houve um período caliginoso para mim — quando Sónia, para aprimorar estudos encetados com o padre Francisco, foi internada num dos mais afastados colégios de Nijni-Novgorod{18}. Estive, enquanto durou sua ausência, taciturno e acabrunhado, até que, escoados quatro longuíssimos anos, eu a vi retornar para sempre, ao lar paterno.
Era ela, então, uma adorável adolescente de treze primaveras; pareceu-me muito crescida e mais bela que antes, com requintes de dama fidalga, sabendo desenhar com perícia, tocar piano como artista, cantar com uma voz tão melíflua{19}, que, se a ouvissem, enlouqueceriam de despeito as sereias sedutoras...
Não sabia definir, até àquela hora, o sentimento que lhe inspirava: se indiferença ou desdém.
A inesperada revelação da sua piedade por mim, protestando contra a acrimônia dos seus para comigo, em antagonismo a todos os membros de sua família, abalou-me o espírito até os mais profundos áditos{20}, tornou-me alheio à dor, quase inconsciente ao que se passava em torno de mim, embrenhando-se-me, até aos mais escusos meandros do coração, um jorro prateado de luar..
Poderiam, então, crucificar-me, ciliciar-me atrozmente que eu não soltaria um só ai: as lágrimas fúlgidas de Sónia dulcificaram-me todas as amarguras, inebriaram-me qual filtro divino, alhearam-me do mundo soez, transportaram-me às amplidões cerúleas...
Ai de mim! hoje posso afirmar, o que supusera ser o clarão de astro fagueiro, era a lufada de chamas de intérmino sofrer, a qual, mais tarde, havia de crestar-me todas as esperanças e ilusões da juventude... É que, naqueles instantes inolvidáveis, penetrara-me, para se tornar perene, um sentimento infrene que, para mim, tem sido um martírio inominável: aos quinze anos — idade flórea, fértil em sonhos e quimeras — eu, o ultrajado, o cativo de tiranos, comecei a amar insanamente a Sónia Peterhoff, a filha de um dos mais cruéis senhores que têm vindo a este planeta! Podeis avaliar toda a extensão do meu infortúnio, senhor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:46 pm

IV
“Mandaram-me às estepes mal dealbava o horizonte, e, ao deparar com os últimos despojos da trânsfuga, já quase de todo descarnada, invejei-lhe a sorte, senhor, e tinha razão para o fazer... Há, às vezes, incidentes que, ao princípio, se nos afiguram de nenhuma importância e, no entanto, depois, tomam as proporções ilimitadas, dão origem aos mais graves sucessos em nossa existência... Aquela ovelha desgarrada — tantas vezes olhada com indiferença! — foi a génese de muitos pesares, a fagulha que ateou a labareda de dor em meu ser, por algum tempo latente, sob cinzas... Aquela desertora, caída num abismo, dilacerada por corvos, simboliza, perfeitamente, o que me aconteceu: também eu, num dia borrascoso, cego pelo nevoeiro das paixões empolgantes, desviei-me do rebanho dos impolutos, rolei ao báratro do crime, fui esfacelado pelos abutres do remorso e dos sobressaltos infindos, e — o que é mais horrível ainda — arrastei na queda um ser fadado a todas as felicidades terrenas...
Não vos impacienteis, porém, por esta pequena digressão... Retomo o fio da trama urdida por minha própria sina:
Durante o dia estive apreensivo. Pungia-me aflitivo augúrio que, debalde, tentei desvanecer. À tarde, mal alimentado, pálido, com o coração confrangido por penoso pressentimento, dirigi-me ao presbitério. Ao aproximar-me dele, onde pontificava o bondoso sacerdote, que vivia para Deus e para as criancinhas, diversos garotos estavam aglomerados a alguns metros de distância da porta, aguardando o que quer que fosse com impaciência, discutindo à meia voz, acaloradamente...
André, ao ver-me, fez significativo gesto com a cabeça aos companheiros, que fugiram à minha passagem, prorrompendo em exclamações injuriosas:
— Olhem o bêbedo! Assassino de cordeiros! Fora!
O mestre assomou à porta com o rosto lívido e, impondo silêncio a todos, com energia, fê-los entrar para a sala onde leccionava e, deixando-os de pé até que lhes ordenasse o contrário, foi buscar-me à porta, quase desfalecido — pois a afronta recebida injustamente paralisara-me o sangue nas artérias...
Acompanhei-o automaticamente. Ele me levou ao seu desguarnecido dormitório, onde havia apenas um duro leito, um cabide, um crucifixo de marfim, pregado à parede nua, e tosca mesinha onde se achavam empilhados livros sacros e científicos. Só mais tarde fiz esses reparos: então eu estava ofegante, abalado por indómita nevrose, sem uma lágrima, tomado de indizível agonia, com um dos braços arqueados sobre a fronte — como se a temesse desarticulada em diversos pedaços candentes...
Achava-me ao lado do amado benfeitor sem fitá-lo, sem ousar externar sequer um pensamento, ansioso que me interrogasse...
Com indizível surpresa e dor, ouvi-o falar-me com uma entoação ríspida, que eu desconhecia em criatura sempre carinhosa e serena:
—Pedro Ivanovitch — começou ele que, até àquele dia só me chamara filho, sentando-se à beira do seu pobre leito, esforçando-se por me descobrir o rosto — fiquei extremamente penalizado e desgostoso com a acção ignóbil de que há pouco foste vítima, e também pela que praticaste, tu, o meu discípulo dilecto, o mais adiantado de todas as classes; tu que, tendo recebido diariamente os meus conselhos, os esqueceste num momento satânico para te desviares do caminho recto do dever!... Sempre te considerei merecedor de minha afeição e de meus esforços, e — se o Omnipotente me permitisse — iria fazer-te feliz, libertar-te do...
Deixei os braços penderem ao longo do corpo, bruscamente, e fixei-o com os olhos abrasados, ao escutar aquelas palavras pronunciadas em tom magoado e repreensivo, que me varavam o coração como farpas intoxicadas... Pareceu-me que ele tinha os cabelos mais nevados, as pálpebras mais roxeadas e o seu olhar austero e puro, como o de um redimido, devassava-me o Espirito até os mais secretos refolhos... Compreendi que me haviam difamado para me desprestigiar no bom conceito que ele me dispensava. A indignação e o rancor punham-me fogo nas pupilas.
Argui-o, então, com firmeza, para que não duvidasse da minha lealdade:
— Que hedionda intriga tramaram contra mim, mestre?
Sua resposta não tardou e a voz lhe tremia ao dizer-me:
—Afirmaram-me que te embriagaste antes de ir apascentar o rebanho do Sr. Peterhoff... que caíste ébrio na estrada... que, por perversidade, atiraste a um precipício uma pobre ovelhinha...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:47 pm

Ouvindo, reproduzida pelo mestre querido, a aleivosia engendrada por André, meu rosto descorado purpureou-se e, de tanta angústia, depois de violento impulso, o coração começou a imobilizar-se...
Meus olhos turvaram-se e meu desejo, naquela hora, era o de me encaminhar para o lugar onde estivesse o ignominioso André e cravar-lhe um punhal no peito; mas, estava eu quase encarcerado nos braços daquele venerável ancião, adorado infinitamente, e, se o tentasse fazer, cairia desmaiado ao primeiro movimento...
—Deus meu! — pude, após alguns segundos de infernal tormento, exclamar, a custo. Que outro infame, a não ser esse maldito André — que inveja o meu talento, tem ciúmes da amizade que me consagrais — forjou semelhante calúnia contra mim? Quer que me desprezeis e execreis quanto ele me escarnece e detesta, mestre!
Pope, dá-me aquela imagem: quero jurar, tendo a Jesus por testemunha, que vos não disseram a verdade, que me imputam uma abjecção para que eu decaia da vossa graça...
Chegou o momento de vos revelar todos os agravos, todos os vilipêndios de que tenho sido alvo em casa dos Peterhoff, o que sempre vos ocultei quando me interrogáveis...
Lentamente, ele retirou da parede alva o Celeste Imolado e o colocou em minha mão direita; fiquei genuflexo; depois de ter osculado o símbolo da redenção humana, e disse emocionado:
—Jesus bem-amado, sabeis que não adultero a verdade e tomo-vos por testemunha do que vou confessar ao meu querido mestre e vosso mais nobre servo; se eu mentir, fulminai-me, e que a maldição de Deus pese eternamente sobre a minh’alma, transformando-me no mais desgraçado ser do Universo, por toda a consumação dos séculos!
Depois, voltando-me para o abade, fitando-o sem temer o seu olhar perscrutador, afirmei:
—Juro-vos, em nome do Mártir do Calvário e pela memória dos meus obres pais, que nenhuma culpa me cabe pelo desgarre e morte da ovelha, acossada a um despenhadeiro, cega, como eu, pelos rigores da invernia inesperada...
Juro-vos que me privaram de alimentos por mais de um dia, e, por isso, caí no caminho, exausto de forças, exânime de frio e fome...
— Céus! — interrompeu o sacerdote alçando unidas as níveas e descarnadas mãos, que, depois, se desligaram, como asas brancas, cindindo os ares em demanda dos paramos divinos...
Pedro, meu filho, juras outra vez não estares faltando à verdade? É tão horrível o que me relatas, que me custa crer na sua realidade!
Ele me trespassava a alma com o seu luminoso olhar e fez-me beijar novamente a efígie do Cristo, representando-lhe os derradeiros instantes de suplício, como, agora, acabo de chegar aos que me foram infligidos na Terra...
Obedeci-lhe e, cingindo o Redentor, estando ainda prosternado, narrei-lhe tudo quanto padecia na habitação dos meus verdugos, desde que lá residia, e tudo quanto se relacionava com os últimos acontecimentos, a intervenção providencial de Sónia em meu socorro, terminando a minha confidência nestes termos:
—Jesus, tomo-vos por Juiz na questão que expus fielmente ao Sr. Abade, na qual fui torpemente infamado, como outrora vos fizeram vossos desumanos perseguidores; Senhor, desmascarai os que me assacaram tão tremenda calúnia; fazei-me justiça e puni os verdadeiros culpados!
O sacerdote levantou-se, abraçou-me, afagou-me paternalmente a fronte escaldante e disse então, sumamente comovido:
—Basta, meu filho! Não brades nunca vingança aos céus! Tens sofrido muito, como não podia avaliar, embora o suspeitasse há muito; mas o Pai celestial sabe porque assim deves ser torturado: tens carência de duras penas para tua salvação! A dor é o crisol no qual, como as pepitas, as almas se acendram e se purificam metamorfoseando-se em ouro radioso...
Na decantada Hélade, nos misteriosos templos de Delfos e de Elêusis — que avassalavam inúmeros adeptos da imortalidade da alma — proclamavam que o Espírito tem diversos avatares, nos quais, aos poucos, vai sendo escoimado de impurezas, remindo crimes, alijando imperfeições, até se tornar quintessenciado, lúcido, preparado para existências venturosas em mansões etéreas... Assim também pensavam os geniais Platão e Sócrates... Não será essa belíssima e consoladora crença uma verdade inconcussa e não uma utopia, Pedro?
Muitas vezes tenho meditado sobre ela, e, embora a religião que professo a condene como maléfica, julgo estar de acordo com o direito divino, e nunca a repeli como insensata... Porque há tanta dissemelhança no destino de cada ser humano? Porque nasceste em uma palhoça e outros têm o berço em palácios?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:47 pm

Porque és belo e inteligente e André rude e hediondo? Deus é a superlativa justiça e não votaria ao gozo ou à desventura seus filhos — gotas da mesma fonte radiosa — senão baseado num Código que é a síntese de todas as equidades... Mereceste severa sentença, Pedro — a qual te parece agora injusta — porém, mais tarde, ao te lembrares dela, dirás: “— Obrigado, Pai, por só me haveres concedido a Dor por companheira, para que minh´alma pudesse ficar redimida e luminosa! Benditos os que me flagelaram! Abençoados os que me feriram!” Esquece, pois, os teus padecimentos, imita Àquele cuja efigie apertaste ao peito palpitante; perdoa aos teus ofensores, isto é, aos teus benfeitores!
—É impossível, mestre, perdoar hoje aos meus algozes... Tenho a alma chagada, revoltada, azorragada, clamando vindicta!
—Prometes, contudo, fazer esforços para perdoá-los ?
Custou-me pronunciar um sim, pois o coração transbordava fel e desejos de desforra.
Ele, então, me fez sentar ao seu pé, no rijo catre, depôs na mesa o crucifixo e, enlaçando-me o busto amistosamente, falou:
—Pedro, eu me compadeço de ti inexprimivelmente; compreendo, agora, com clareza, a tua situação — que eu adivinhava ser intolerável em casa dos Peterhoff, uns desalmados — mas, para se evitar mais afrontas, mais acerbos pesares — e quiçá desgraça irreparável! — não quero que frequentes as mesmas aulas em que se acha André teu rival, por causa do progresso que tens feito; com André que te abomina mais, desde que reconheceu em ti capacidades intelectuais que lhe faltam, quase em absoluto... Lembras-te ainda de quando fui implorar-lhe ao pai permissão para te ensinar, quanto lhe repugnou consentir que o filho adorado estudasse ao lado do seu servo, como ele te julga...
Foi mister lhe asseverasse que a sua escusa magoar-me-ia sumamente, e se fosse estabelecida selecção entre os meus discípulos — quebrando-se o elo da fraternidade que desejo manter entre todos — partiria para longínquas terras no dia imediato...
Ele — supondo que me preze muito e não ignore que sei transmitir ensinos suficientes para que o filho fique apto a cursar uma Academia, embora eu não alimente essa esperança, pois André é muito bronco — talvez receoso de fazer grandes dispêndios inúteis, com a educação do meu afilhado, acedeu ao meu pedido, permitindo que o descendente de mujiques frequentasse as minhas aulas com o dele, opulento barine... Tu progrediste rapidamente e a tua capacidade mental excitou a emulação excessiva de André, que se tornou teu rival implacável... Agora é que percebo tudo, lucidamente.
A inveja é a víbora que espreita a sua futura vítima a todos os instantes, até encontrar ensejo favorável de inocular-lhe o seu vírus letal...
Para te evitar maiores agravos, declaro que estás, desde hoje, impedido de comparecer à minha obscura escola...
—Vós me expulsais, mestre! — exclamei no auge da consternação, sentindo que, só então, borbotões de lágrimas me afluíram aos olhos.
Ele me apertou a mão, sensibilizado, dizendo:
—Criança! duvidas acaso da minha afeição paternal? Pensas que te abandone em horas de reveses? Escuta-me, Pedro: mortifiquei-me insanamente quando soube havias claudicado, praticando acções vis; mas agora me regozijo por verificar que saíste ileso da imputação de André, continuando merecedor de meus desvelos, e, por isso, estou disposto a fazer por ti o que só faria a um filho amado...
Não quero sejas, a vida inteira, um pegureiro atribulado por vexames e aleivosias, já que o Omnipotente te fez superior a todos os aldeões pelo talento — um dom divino.
Prometes cumprir um pacto sagrado que te vou propor?
—Tudo quanto de mim desejardes, estou resolvido a fazer...
—Pois bem: para não agravar a tua situação, deixarás de vir às aulas...
—Eram as únicas horas felizes da minha vida, as que passava convosco, mestre!
—Não me aparteies, filho, verás o que pretendo pôr em execução... Vais continuar a aprender comigo, mas de modo que ninguém o saiba, para que te não apedrejem com cavilações e ofensas, para que melhor possa eu cultivar tuas faculdades intelectuais, merecedoras de carinhoso desvelo, sem suscitar rivalidades entre os teus colegas.
Não me descuidarei, outrossim, de dar-te a educação moral, incomparavelmente mais valiosa que a científica, porque ela é que arroja nossa alma do tremedal terreno às paragens de luz, libertando-nos da masmorra de trevas em que jazemos, durante a nossa dolorosa romagem planetária!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:48 pm

Não convém — embora isso pareça uma covardia — excitares as hostilidades do Sr. Peterhoff contra ti, pois ele está exacerbado contra o fâmulo melhor aquinhoado pelo Criador, em faculdades mentais, que o filho querido e temível, e, num ímpeto de cólera, cometerá talvez uma violência irremediável contra o indefeso Pedro, não tolerando que Deus, a magnanimidade incomparável, não conceda tudo de estimável unicamente à prole dos barines abastados... É mister te humilhes agora para seres exaltado mais tarde; tens de alicerçar com lágrimas e sacrifícios tua ventura porvindoura... Qual a hora em que os Peterhoff adormecem?
—Às nove, pouco mais ou menos...
—Pois bem, Pedro, a essa hora, cautelosamente virás ter ao presbitério, onde aguardarei tua chegada com alegria, onde te não faltará mais nutrição e agasalho, e, até às onze, eu te ministrarei lições correlatas à tua aprendizagem espiritual e intelectual. Quero que fiques conhecedor de alguns idiomas estrangeiros, para que possas obter vantajosa colocação longe da Rússia, nossa infortunada Pátria, onde o proletário é considerado cativo ou rafeiro... Sê digno da minha dedicação paternal, Pedro, e verás que nunca te arrependerás de haver seguido a minha orientação, que eu pressinto, muitas vezes, vir do Alto, insuflada por entidades bondosas e afeitas exclusivamente ao Bem... Aceitas o que te acabo de expor?
—Meu pai — disse-lhe eu, profundamente grato — farei tudo o que me propusestes, e peço permissão para vos beijar a mão de protector dos desgraçados...
Ele me estendeu a destra alva e diáfana, que cobri de carícias plenas de reconhecimento, tendo tido, então, a inabalável convicção de que, neste orbe, nunca encontraria afecto mais puro e desinteressado que o seu, e pressagiei que ele me guiaria através das procelas da vida, como o fazem os anjos tutelares, espalmando as níveas asas sobre os berços dos infantes adormecidos, sustendo os com mãos luminosas — mas invisíveis para nós, mortais imperfeitos — pelas vestes fragílimas, à beira dos abismos, de que está eivada a vida terrena...
Depois, com imensa brandura, falou-me:
—Estás dispensado, meu filho, até amanhã.
Acompanhou-me com um dos braços cingindo-me as espáduas, até à sala de aula, onde as crianças fizeram um movimento de curiosidade ou de ansiedade mal reprimida, talvez de alegria, supondo fosse eu ser desligado brutalmente da escola que frequentávamos. O abade divagou o olhar por todo o recinto e, docemente, interpelou:
—Qual, dentre vós, já presenciou uma acção má praticada por Pedro Ivanovitch?
Silêncio tumular.
E prosseguiu:
—Não o conheceis, desde que ficou órfão, sempre modelar no procedimento, cortês para com os companheiros, respeitoso para com os anciães, delicado para todos que a ele se dirigem?
Um pequenino falou, timidamente:
—Sr. Abade, foi André quem nos contou ter ele se embriagado, depois de ter morto um cordeirinho de seu pai...
—Onde se acha André para sustentar e provar a veracidade da sua acusação?
—Ele e outros meninos aguardam, lá fora, a saída de Pedro para o apedrejarem, Sr. Abade...
—Queridos filhinhos — continuou o Pope, com inexprimível melancolia — que ato indigno cometestes hoje! Deus, em seu sólio incrustado de astros, de onde investiga tudo o que se passa no Universo, não ignorando nem o palpitar de uma estrela, nem o adejo de um beija-flor, deve estar enfadado convosco, pois todos vós, hoje, tendes a voejar sobre as vossas róseas frontes o vampiro negro do pecado... Não nos assiste, nunca, o direito de condenar a quem quer que seja, sem provas evidentes de sua culpabilidade. Jamais devemos motejar, nem dirigir apodos aos que erram, por mais criminosos que sejam, nem atirar calhaus aos loucos, aos ébrios, aos desventurados; antes, é nosso dever estender-lhes a mão fraterna, guiá-los através das estradas desertas, compadecer-nos de suas desditas... Quando soubestes que o vosso colega Pedro praticou um acto degradante — ao qual nenhum assistiu — devíeis ter-vos lembrado de que não vos competia o direito de puni-lo, direito que a mim competia, como seu mestre e confessor. Devíeis, antes, apiedando-vos dele, ter orado ao Pai divino, esperando que as minhas exortações o desviassem da senda do mal!
Vós que o achastes um perverso, merecedor de severos castigos, tivestes maiores faltas que as de que o acusastes, pois deveis juntar à vossa violência a dor do remorso, porque injuriastes um inocente...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:48 pm

Vede-o: Pedro não é um malfeitor, porque o seu passado imáculo é um desmentido à incriminação que lhe fizestes, e, se soubestes que ele desmaiou na estrada, é porque se acha enfermo, foi presa de uma vertigem... Há muito está sendo consumido de febre... Olhai-o: tem a palidez dos mortos, mas não a catadura dos réus!... Em vez de terdes comiseração dele... atirastes-lhe pedras e vitupérios!
As crianças choravam, com as louras cabeças pendidas... O mesmo aluno que já se havia dirigido ao abade, intentou uma defesa para si e os colegas:
—Foi André quem nos aconselhou que batêssemos no Pedro, Sr. Abade, e que sobre ele recaia toda a responsabilidade do que fizemos...
—Estais arrependidos da acção reprovável que praticastes? Acenai as cabeças afirmativa ou negativamente.
Todos baixaram mais as frontes, murmurando como um sussurro de brisa:
—Estamos.. .
—Pois bem, espero jamais cometereis um ato condenável. Agora vos declaro que o pobre Pedro não vai ser expulso desta humilde casa de instrução — porque, se eu o fizesse, perpetraria uma clamorosa injustiça, merecedora da punição divina — mas, não o vereis mais entre vós, até que recupere a sua saúde, e...
—Pode ele morrer, senhor professor? — indagou um outro menino a prantear de compunção pelo que havia feito o enfermo sofrer.
—Quem te responderá com acerto, filho? Sentenciados à pena última, todos nós o somos pelo Juiz Supremo, que, quando mal o cogitamos, nos faz comparecer ao seu tribunal para julgar todos os nossos actos, bons e maus, cometidos neste cárcere tenebroso — a Terra...
Deixai-me, porém, concluir o que tenho a dizer-vos: não sei, ao certo, quando tereis o Pedro em vossa companhia ... Talvez nunca mais... O futuro é tão vago e duvidoso!
Ide, agora, todos vós — do lugar em que permaneceis — estender-lhe a mão direita, significando isso que continuareis a prezá-lo, que estais arrependidos do dissabor que lhe causastes, considerando-o doravante digno da vossa amizade e consideração...
Todos de uma só vez alongaram os braços; viam-se mãozinhas trémulas como adejantes falenas níveas ou cor de rosa...
O sacerdote, então, enxugando os olhos, onde cintilavam lágrimas, voltou-se para mim, quase desmaiado, e segredou-me, para que eu reproduzisse, em voz inteligível:
—Perdoo-vos. Adeus!
Depois que proferi estes vocábulos, o abade me osculou a fronte e acompanhou-me à porta.
Tinha eu dado apenas alguns passos fora do colégio, quando André e outros rapazinhos, que aguardavam minha saída com inquietação selvagem, ao me avistarem, prorromperam em assuadas, atirando-me seixos, que, por vezes, me atingiram o crânio e as faces, fazendo abrolhar sangue...
—Fora o assassino!
—Morra o bêbedo!
—Foi escorraçado pelo Pope!
Assim bradavam; eu, porém, não os ouvia quase: pareciam-me suas vozes, irritadas, uivos de feras enjauladas ...
Caminhava nas trevas, cambaleante, mas tinha a engalanar-me a alma lúcidas rosas da esperança que, pela primeira vez na existência, desabrocharam nela, tornando-a edénica primavera: antevia a minha liberdade, e só esse pensamento grandioso ofuscava as minhas penas, obumbrava todos os meus tormentos físicos e morais...
Subitamente, deslizou entre eles e mim o vulto esguio do abade Francisco.
Debandaram todos, acossados pelo temor de serem reconhecidos por ele.
Achei-me só, em frente ao venerando mestre.
—Vou denunciar-vos todos a vossos pais, covardes! — exclamou distintamente o virtuoso sacerdote, cuja silhueta negra mal se divisava no luto da noite... Eu, porém, detive-lhe os passos, segurando-lhe uma das mãos geladas:
—Não, querido Pope, voltai! Quero provar-vos que compreendi os vossos belos conselhos, que almejo ser digno da vossa solicitude. Denunciá-los aos pais será perder-me, invalidar nossos planos, excitar o rancor dos Peterhoff contra mim, indispô-los para convosco!
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:48 pm

Deus os punirá, Deus unicamente! Não vos inimizeis com os meus senhores — tão cruéis para comigo! — pois seria malogrado o vosso projecto, que encheu de júbilos minh´alma atribulada... Não compliqueis a nossa situação angustiosa, mestre! Suportarei, sem um gemido, todos os opróbrios que me infligirem meus algozes, sabendo que vós e Sónia não me desprezais, não me julgais um delinquente, não desconheceis os meus infortúnios!... Desejo é não desmerecer do vosso inestimável concerto, tendo, agora, a iluminar-me o Espírito — até então amortalhado em crepe — o rosicler de uma esperança que nele fizestes surgir; a conquista da minha liberdade!
Ele, então, sem proferir sequer um vocábulo, me conchegou ao seio emagrecido, que — não sei por qual brusca metamorfose — cuidei possuísse a maciez das pelúcias e dos arminhos, parecendo-me entrever — nos intervalos dos ossos da caixa torácica, mal coberta de carne — um coração fulgurante, de onde se irradiava luar opalino, dulcíssima fosforescência de lampiros, que iluminou o meu, incitando-o a crer no porvir... Vi-o, lentamente, dirigir-se ao presbitério.
Quedei-me, no mesmo lugar em que o abraçara, absorto e aturdido, percebendo, porém, claramente, que, naquele amplexo de afeição extrema, não foram os corpos que se uniram, mas as nossas almas que se agrilhoaram por todo o sempre, quer na vida, quer na morte...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:48 pm

V
“Ã noite imediata àquela em que me agrediram André e seus sequazes, assim que cessou o rumor de passos na habitação do Sr. Peterhoff, ergui-me da enxerga em que jazia e, com precauções de felino, como bandido que quer entrar furtivamente num palácio, pus-me a executar as determinações do Pope.
Eu dormia, então, em lôbrego compartimento contíguo ao redil, apenas entaipado; abri a única janela nele existente, a qual ficava em frente, do lado posterior do quintal — que formava um grande rectângulo murado — e, para não despertar um destemido molosso{21}, guarda vigilante do rebanho, sondei por alguns momentos a escuridão nocturna e atirei-me sutilmente ao solo. Não obstante estar próximo à residência dos Peterhoff, construída de cantaria, inexpugnável como um fortim, difícil foi divisar-lhe os contornos. Passados alguns instantes, comecei a lobrigar árvores frutíferas, que, desde o início do Inverno, estavam despidas de folhas, parecendo corpos dissecados com os nervos salientes, ou múmias retiradas de seus estojos, e que, a todos os momentos, abolindo a sua rigidez secular, se curvassem às lufadas ríspidas dos vendavais... Reinava por todos aqueles sítios um silêncio de necrópole romana, abandonada desde os tempos ominosos de Nero...
Nenhuma luz interior ressaltava das grades das persianas, por onde, às vezes, rajadas de procela sibilavam tragicamente.
Velava apenas o mastim, que rosnou — quase como um rugido — ao ouvir a bulhe dos gonzos oxidados da janela e a de meus passos cautelosos...
Estremeci, apavorado, temendo ser atacado pela fera ou pressentido por alguém...
Felizmente o cão era meu amigo, e, aspirando ruidosamente as trevas, bocejou, sonolento, entrechocando as mandíbulas e aquietou-se de novo.
Então, escalando o muro num ponto acessível junto a um olmo, atirei-me para o exterior do quintal e, depois, calcando a neve por caminhos esconsos, beirando as míseras choupanas da aldeia, achei-me em frente ao presbitério, tiritando de frio, mal podendo firmar-me nos pés entorpecidos. Bati mansamente à porta com as falanges contraídas e enregeladas.
A porta foi aberta pelo abade, cuja silhueta se desenhou, por segundos, numa tela de luz formada pela projecção da lâmpada suspensa ao centro da sala.
Dificilmente galguei os degraus da pequena escada frontal.
— Que tens? — inquiriu ele, aflito, vendo-me vacilar.
— Estou ébrio, mestre! — respondi-lhe eu com amarga ironia.
— Céus! vieste sem uma tulupa!{22} Entra depressa, meu filho, para te aqueceres... Podes ficar gravemente enfermo, assim como te achas, Pedro!
Ele me auxiliou a entrar para o recinto tépido, foi buscar um agasalho incolor, pela idade, mas ainda espesso; envolveu-me nele, fez-me sorver um trago de falerno, que ganhara pelo último Natal.
Observando que me voltara a cor às faces esmaecidas, falou:
—Esqueçamos as urzes do presente para só nos lembrarmos das flores do porvir!
Seu semblante, sempre severo e triste, estava transfigurado, qual se o iluminasse suavemente um fanal interior. Meditou um pouco e prosseguiu:
—Pedro, vais doravante adquirir conhecimentos literários e científicos que, no decorrer desta longa e dolorosa existência, nunca tive ensejo de proporcionar a alguém... Apraz-te saber que ainda poderás viajar em todos os Oceanos, exercendo a gloriosa profissão náutica?
— Sim, mestre, desejo conhecer os mares e os países dos quais apenas não ignoro os nomes, abandonar estas regiões onde tenho já sofrido decepções e agonias! Talvez muito além encontre uma nação em que haja mais compaixão para com os desventurados, do que na Rússia...
Ele me fitou, repreensivo; e falando com mágoa:
— Aqui tens sido tratado cruelmente por todos, Pedro?
Compreendi a alusão de suas palavras e fiquei ruborizado de vexames...
Arrependi-me do que dissera irreflectidamente; surgiu-me à mente a imagem cândida e linda de Sónia... Havia sido duplamente ingrato!
— Perdoai, mestre! — exclamei emocionado. Julguei neste instante não pertencíeis mais à humanidade terrena que tantas vezes me tem excruciado, mas a uma outra isenta de imperfeições... Já sois um ente mais ligado ao céu do que ao mundo vil que habitamos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:49 pm

Sois um inspirado apóstolo de Jesus, mestre!
Ele se comoveu com as minhas palavras. Seus olhos enevoaram-se.
Após alguns momentos de reflexão, continuou carinhosamente:
— Olvida, Pedro, os que te fazem padecer, isto é, os que te facetam a alma...
Atenta, agora, no que te vou ensinar. Consoante já expus, desejo ensinar-te, além das ciências exactas, o idioma francês, porque tenho, pelo lado materno, diversos parentes domiciliados no Havre, e um deles é sócio de uma companhia transatlântica. Quando concluíres teus estudos, hei-de escrever-lhe a teu respeito, a fim de que te coloque a bordo de um de seus paquetes; assim terás ensejo de percorrer o hemisfério ocidental, onde, mais tarde, escolherás para residência permanente o país que te aprouver.. .
Eu estava encantado.
Por mais de uma hora ele me proporcionou doutas explicações, mostrou-me grandes planisférios, seguindo, com a ponta de um lápis, viagens simuladas pelos continentes terrestres.
Omito, porém, senhor, muitos pormenores da minha vida de aprendiz, para abreviar o que tenho a narrar.
Uma vez, ao ver-me chegar ao presbitério, açoitado por temerosa tempestade de neve, o bondoso abade, sensibilizado, exclamou:
— Que imenso é o teu sacrifício, Pedro!
— É o preço da minha alforria, mestre! Não é preferível fazê-lo, a continuar cativo?
Por espaço de alguns anos frequentei as aulas clandestinas do preclaro sacerdote. Meu Espírito recebeu projecções de sol, mas o meu organismo, exausto por contínuas fadigas, começou a definhar.
Foi mister um interregno em meus estudos, para me fortalecer. Completei dezoito anos de idade. Restritas eram as minhas relações sociais. Dotado de temperamento pouco expansivo, nunca fui seduzido pelos folguedos mundanos. Ocultos em sórdidas algibeiras, levava ao campo preciosos livros, que o abade me confiava para estudar.
Minha situação na casa dos Peterhoff tornava-se dia a dia mais intolerável. André, que não conseguira cursar nenhuma academia, não se ausentava nunca, e, sem motivo plausível, perseguia-me com afrontas que eu, a custo, deixava de repelir.
Vitorioso, por supor ter eu deixado de estudar com o Pope, invejava o meu aspecto, pois, apesar de emaciado pela falta de conforto, era insinuante, de maneiras distintas e corteses, parecendo pertencer a uma estirpe superior à sua, destacando-me entre ele e os rústicos de nossa aldeia, que me olhavam de soslaio, consumidos de inveja.
Tratavam-me todos com dureza, excepto o abade e Sónia, que me expressava a sua complacência pelo olhar boníssimo, como a Imaculada deve fitar, no meio das labaredas do Averno{23}, os que lhe imploram patrocínio e bênçãos...
E, aí de mim! antes nunca a tivesse tido a meu favor...
Antes me houvesse ela tratado rispidamente, como quase todos os que comigo privaram.
Foi a sua comiseração que me perdeu para sempre, senhor... Desde aquele funesto dia em que esmorece na estrada, todas as tardes, ao regressar do pasto, encontrava um invólucro sobre o meu grabato, contendo pão, queijo ou algum fruto saboroso...
A primeira vez que tal aconteceu, fiquei perplexo, indeciso se deveria ou não tocar-lhe; mas, vencida a momentânea relutância, tive aclarado o mistério, lendo um dístico grafado sobre ele, em belo cursivo feminino:
“Para o Pedro levar às estepes, quando for pascentar o seu rebanho.” Nada mais. Nenhuma inicial o assinalava, ocultando-se no anonimato o anjo compassivo que, a furto, entrara em meu lôbrego dormitório, para praticar um ato filantrópico. Conjecturei, por um momento apenas, proviesse a dádiva do altruístico casal que me recolhera desfalecido; mas essa suposição foi logo pulverizada, pois o quintal da habitação dos Peterhoff era intransponível, sem nenhuma passagem, e patrulhado por terrível canzarrão... Era, pois, Sónia, a fada benfazeja que continuava a proteger-me na juventude, qual o fizera na infância.
Guardei, por muitos meses, o minúsculo bilhete encontrado sobre o primeiro farnel. Li-o centenas de vezes, como se não o houvesse esculpido —
desde o segundo em que o vi — em minha mente reconhecida, até que se deliu num dos bolsos do meu roto gibão.
Desde que o recebera, porém, me pareceu ter-se uma pétala da alma lirial de Sónia ligado à minha; percebi que um vínculo potente e indissolúvel unira os nossos destinos...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:49 pm

Com pouco mais de três lustros, podendo ser o modelo das Madonas de Murilo ou Corrégio, ela vivia enclausurada naquele casarão adarvado de muralhas — qual se fora uma alcáçova{24} — sempre silenciosa, merencória, passeando apenas no jardim que ladeava o prédio à direita.
Às vezes, cumprindo alguma determinação de André, eu deixava de ir ao campo, para o auxiliar no amanho das plantas do jardim e do pomar, mister para o qual revelava capacidade aproveitável; tinha, assim, ensejo de encontrá-la; e, quando ela me interrogava algo sobre um vegetal, fornecia-lhe informes que lhe causavam admiração.
Uma tarde disse-me inopinadamente, mostrando surpresa e colhendo uma rosa:
“— Tu, Pedro, não tens a linguagem nem a aparência dos outros aldeãos...
Dir-se-ia que descendes de nobres e não deixaste de frequentar as aulas do abade Francisco!”
Sua perspicácia angelical adivinhara a verdade. Fiquei ruborizado e entristecido: era eu tão mesquinho que a todos tinha de ocultar o óbolo inestimável que me dava diariamente o venerável sacerdote, que eu e ela adorávamos...
Uma vez, em hora matinal, vendo ela o irmão aproximar-se de nós, não pôde sofrear um gesto de impaciência e murmurou, rapidamente, quase em segredo:
— Queres ver, Pedro, como André vem enfadar-nos? Ele, e não tu, parece um lapúrdio{25}...
Fiquei atónito, enlevado. Dia a dia achava-a mais graciosa, sua presença causava-me um enleio indizível — misto de magia e vago temor pelo que nos poderia suceder inesperadamente...
Ela não se enganara. André, que era um rapaz de altura descomunal, ruivo, horripilante, encaminhou-se para mim com arrogância:
—Não revelas, nunca, habilidade para qualquer serviço: és mau jardineiro quanto péssimo pegureiro!{26}
Ia fazer algum reparo injusto sobre o cultivo dalguma planta — para me espezinhar e alardear superioridade — mas, antes que o fizesse, ouvi a gentil Sónia interpelá-lo, sorrindo com aticismo{27}:
— Porque continuas a ser impiedoso na mocidade qual o eras na meninice, André? Que mais desejas para ficar contente e não hostilizares o fiel servidor de tantos anos?
— Que este labrego aprenda a trabalhar!
— E tu, meu irmão, porque não conseguiste fazer os preparatórios para te matriculares em uma Academia, com grande dissabor para nosso pai?
Baleado na sua vaidade excessiva, disse ele à irmã, já imensamente colérico:
— Começas a defendê-lo, Sónia, como naquele dia? Hei-de relatar tudo a nosso pai, para que te proíba conversares com este biltre!
— Não converso nunca com o Pedro; apenas lhe transmito ordens que ele — ao inverso do que propalas — executa inteligentemente...
— Pois bem, doravante estás proibida de lhe dirigir a palavra... O amanho de todas as nossas terras está sob minha exclusiva direcção; ele somente fará o que eu determinar; é a mim, pois, que tens de manifestar os teus desejos...
Sónia retirou-se prudentemente, talvez para me não acarretar maiores gravames. Senti-me subitamente inquieto, aniquilado, como se um fragmento da própria alma acabasse de submergir num caos insondável, compreendendo que amava delirantemente a irmã daquele que eu abominava! Pressagiei, para mim, um pélago de dores e humilhações, servindo sob a tirania de André.
Passei o dia opresso. Anoiteceu. Pude, enfim, estar a sós com o Pope. Estava mais descorado que nas outras noites e o nervosismo que me agitava era tão visível que, ao transpor o limiar do presbitério, o Pope, aflito, indagou da minha saúde.
Não tardei a manifestar-lhe as minhas apreensões, fazendo-o conhecedor do incidente da manhã.
Ouviu-me, como sempre, com benevolência; depois, tomando pronta resolução, falou:
—Urge que partas, meu filho, mais breve do que eu conjecturava, para outro país... Aqui, não passarás de fâmulo dos Peterhoff; alhures, com os conhecimentos acumulados em anos de estudo e sacrifício, poderás desfrutar as regalias sociais dos povos cultos. A ocasião é propícia para executar o plano que há muito elaborei a teu respeito. Já escrevi ao meu parente do Havre. Ele te aguarda para dar cumprimento à minha solicitação.
Dar-te-ei o auxílio pecuniário imprescindível à tua longa viagem. Prepara-te, pois, para partires esta semana.
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