LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:05 am

—Sim — afirmou a desolada senhora, fitando-o com impaciência.
Ele esteve silencioso por momentos; depois, com a voz alterada por súbita emoção, disse-lhe:
—Haveis de desculpar-me, senhora, a hora imprópria de vir a vossa casa e para desempenhar uma desagradável incumbência... Não credes, porém, na Providência divina? Ela que vos ampare e vos proteja agora, e sempre!
— Por piedade, dizei o que vindes fazer, pois morro de ansiedade e aflição!
—Faço parte da tripulação do Devoir. Sabeis que vosso marido, o marinheiro Pierre Doufour, estava seriamente enfermo?
—Sim, mas escreveu-me de Brest que já se achava melhor...
—Enganou-vos, minha senhora, pois estava cardíaco, e, num momento de verdadeiro desatino, sabendo que jamais recobraria a saúde, pôs termo à existência...
—Que dizeis? Suicidou-se o meu Pierre? — bradou Catarina, lívida, quase desfalecente.
—Sim, precipitou-se ao mar, na noite de 19 para 20 de Setembro. O corpo não foi encontrado.
—Céus! Não se compadeceu de mim nem da filhinha, que parecia adorar!
Catarina caiu num modesto canapé, aos espasmos, sem derramar uma lágrima, porém, numa agonia indescritível.
Depois de alguns momentos de silêncio, o homem falou, mal contendo as lágrimas:
—Tenho, minha senhora, da parte do Sr. Comandante do Devoir, uma missão a cumprir junto de vós. Foi ele quem me enviou até aqui.
—Perdoai-me, senhor, por vos ter recebido sem demonstrações de reconhecimento, mas deveis compreender que, às vezes, a dor suprime as conveniências sociais. Podeis avaliar quanto sofro?
—Sim, bem sei o que se passa convosco: têm-me ferido, várias vezes, estes golpes morais que atingem fundo o coração... Se já tenho meio século de existência! Cuidemos, porém, do que me trouxe à vossa presença.
Eis aqui uma carta do meu chefe, relatando o acontecido e fazendo-vos entrega desta caixa, contendo objectos e algumas economias do desditoso Pierre, às quais seus companheiros, que muito o prezavam, juntaram alguns pequenos donativos, que deveis aceitar sem escrúpulo, como prova de sincera afeição ao pobre morto... Ele também vos escreveu antes de tomar a resolução suprema...
Seus derradeiros pensamentos foram, pois, consagrados aos entes que tanto amava...
Catarina pediu ao marujo depositasse a caixa e as cartas sobre uma cadeira, sem ter ânimo de lhes tocar, talvez para se não convencer inteiramente da tremenda realidade, que, como gigantesco Himalaia, lhe premia o seio naqueles crudelíssimos instantes...
Eram as derradeiras lembranças de Pierre e de seus companheiros, penalizados com o funesto desfecho da vida de um companheiro de fainas marítimas...
Teve, apenas, fortaleza moral suficiente, a consternada viúva, para agradecer ao desconhecido o desempenho de sua missão, rogando-lhe transmitisse ao comandante e à marinhagem do Devoir a sua imorredoura gratidão.
O marujo retirou-se, fazendo-lhe cordiais oferecimentos.
Ketty, ao vê-lo sair, sentindo-se indizivelmente desventurada, a sós com a sua imensa dor, entrou a soluçar desolada.
Não era só o pesar de saber que Pierre não mais existia na Terra, o que a torturava acerbamente, mas o compreender ter tido ele a coragem precisa para atentar contra a própria vida, que lhe devia consagrar até ao extremo instante, sabendo que essa resolução a infelicitaria por todo o sempre!... Não fora amada como presumira, pois a verdadeira afeição consiste no evitar penas aos entes queridos. Aquele que assegura adorar alguém e lhe causa dissabores, não pode ser sincero, não possui o extremo sentimento que diviniza os corações desvelados e leais — o Amor!
Nos paroxismos de atroz sofrimento, esteve estirada no canapé, alheada do mundo, de tudo que a cercava, com a alma divagando pelo Oceano Intérmino, em busca do local onde desaparecera, por todo o sempre, o corpo do marido.
Quando mais intenso era o seu pesar, foi enlaçada por dois minúsculos e cetinosos braços. Eram os da pequena e encantadora Sónia, que, despertando sem ter visto a genitora para lhe dar o costumado beijo, foi à sua procura.
Vestia ampla e alva roupagem, tinha os lindos cabelos em desalinho, multiplicados em leves caracóis que lhe aureolavam a fronte de nácar e lírio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:05 am

Ao ver a mãe querida naquela atitude, afagou-lhe a cabeça pendida, tentando erguê-la para lhe oscular as faces, interpelando-a:
—Que é que sentes, mãezinha? A tua Sóniazinha vai chorar muito!
A mágoa de Catarina fora tão profunda que, por momentos, olvidara a filha idolatrada. Ao vê-la, sua angústia exacerbou-se e, só então, verteu lágrimas em profusão. Apertou-a de encontro ao seio ofegante e, tendo necessidade de expandir o sofrimento, disse:
—Morreu teu paizinho, Sónia!
A criança fitou-a, sem ter bem compreendido as palavras maternas. Que é a Morte para uma criança de cinco anos? Arcano inescrutável...
As crianças ouvem, com frequência, este vocábulo — morte — mas não lhe sabem dar significação, embora lhes dormite n´alma, vagamente, a percepção do que seja a transição de uma vida para outra. No dia em que o compreendem, o instinto de conservação sugere-lhes o temor da morte, pressentindo o enigma do desaparecimento de um ser material do proscénio social. É o receio que experimenta uma ave, pousada em galho vicejante, onde construiu tépido berço, avistando perto um abismo em que poderá ser precipitada, julgando-o insondável, e temendo sejam impotentes as asas para dele sair, porque a impressão do Infinito é que a apavora — este Infinito que nos toca, que existe acima das frontes e abaixo dos pés, do qual nossa alma é um fragmento infinitesimal e só nele se integra... Mais tarde, mudados os cenários, os Espíritos repelem a aversão por Átropos{55}, bendizem-na como a libertadora que os desencarcera da geena da Dor é os arroja aos páramos estrelados !
Catarina falou docemente à filha:
—Morreu como teus avozinhos, Sónia, que nunca mais voltaram, desde que foram para o cemitério, onde lhes levamos flores...
—Então, nunca mais voltará o papaizinho?
—Não, meu anjo...
—Não trará mais brinquedos nem doces para mim?
Silêncio da consternada viúva.
—Diz, mamãe, porque não gosta ele mais de mim?
—Não digas assim, Sónia, ele te amava muito, mas não pode mais voltar...
—Porquê ?
—Atirou-se ao mar e afogou-se!
—Ninguém o tirou, mamãe?
—Ninguém... Era de noite. Todos estavam dormindo e não o viram cair...
Sónia saltou ao chão, bruscamente, e, tentando arrastar a mãe em direcção à porta, segurou-a pela destra, olhou fixamente, falando com indignação e energia:
—Vamos tirá-lo, mãezinha?
—É muito longe o mar onde caiu, e já não vale a pena irmos buscá-lo, porque já morreu...
Sónia, então, abraçou-a soluçante e a desditosa Catarina teve remorsos de lhe haver dito a triste realidade, causando-lhe o primeiro dissabor... Tomou-a ao colo, inundou de lágrimas os seus cabelos maravilhosos, beijou-a sôfrega e repetidamente.
Passaram mais de meia hora assim, ternamente unidas. De repente a menina murmurou:
—Ainda me não deste o leite, mãezinha...
A desolada viúva se levantou, dizendo:
—Perdoa queridinha, vem tomá-lo.
Foi à sala de refeições, preparou uma taça de chá com leite e a deu à criança, mas não sorveu nenhum trago, retirando-se para o seu modesto quarto. Momentos após, estirada no leito, imersa em indizível sofrimento, ouviu uns passos cautelosos de alguém que se aproximava. Viu, então, a encantadora filhinha achegar-se ao leito, segurando com as mãozinhas trémulas uma chávena, esforçando-se por não derramar o conteúdo e, quando conseguiu abeirar-se da progenitora, falou carinhosa:
—Esqueceste de beber o chá, mãezinha! Bebe-o agora; fui eu que lhe pus o açúcar...
Vê como está doce e quentinho!
Deus lhe havia tirado o arrimo do esposo adorado, mas deixou-lhe, para suavizar tamanha mágoa, um meigo anjinho tutelar!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:05 am

III
Oh! aqueles primeiros dias de viuvez! Como foram lúgubres e dolorosos!
Além da mágoa lacerante pela falta do estremecido companheiro, um pensamento a torturava de contínuo — não fora amada, tanto quanto o supusera, nos róseos tempos de felicidade conjugal!
Um verdadeiro amante não se suicida senão diante do corpo rígido de quem idolatra, qual o fez Romeu no túmulo de Julieta; não vibra tão profundo golpe num coração que só por ele vive, que só por ele palpita! O suicídio é o egoísmo do que deserta da batalha da vida procurando o repouso eterno; de quem não possui na Terra nenhum elo afectivo, porque, se o tiver, não quererá ferir o objecto do seu amor!
Porque lhe ocultara a verdade até o extremo instante da despedida?
Porque lhe dera esperanças de voltar e jamais se separarem? Iludira-a, pois. . . O verdadeiro amor jamais perdoa a mentira, a perfídia...
Lembrou-se, inúmeras vezes, do modo por que se despedira de Sónia: fora bem um adeus extremo... Seu pressentimento não falhara... A recordação daquela cena emocionante lhe arrancava, sempre, lágrimas em profusão...
Por fim, quando ao espírito lhe volvera um pouco de tranquilidade, reflectiu no móvel real do ato tresloucada de Pierre, e uma ideia vencedora lhe dominou a mente: havia um mistério tenebroso naquele suicídio! Pierre tinha qualquer segredo que nunca lhe revelara. Não podia compreender, na sua singeleza, como pudesse ocultar-lhe qualquer dissabor, por mais acerbo que fosse! Ainda que houvesse cometido gravíssima falta no passado, ela, por si, ter-lhe-ia dado afectuosos conselhos, suavizado o seu padecer, lenido a chaga que, assim, às ocultas, corria-lhe a vida lentamente...
Que crime teria ele cometido? Oh! se pudesse saber a verdade integral! Se tivesse a faculdade de devassar o tempo transcorrido! Tormento indefinível o seu!
Pouco a pouco, porém, a resignação, a serenidade — apanágio dos seres nobres e honestos — foram-lhe atenuando o desgosto, e voltou-lhe ao íntimo algum alento.
Já não chorava constantemente; dispôs dos móveis prescindíveis; alugou os aposentos já descritos, a um bondoso polaco, neles se instalou com a filhinha e não cessava de trabalhar, confeccionando flores, chapéus, vestidos, etc.
Passaram-se alguns meses.
Estamos na época em que vimos Ketty a meditar profundamente ao lado da formosa Sónia. Era um modelo de sobriedade e honradez. Possuía uma beleza atraente, traços de pureza helénica, mas aquela inalterável melancolia e absoluta honestidade inspiravam, a quantos a viam, veneração e acatamento.
Há nas pessoas virtuosas e castas um como halo radioso, de candidez, uma égide mágica que as protege através da vida, dos perigos, das tentações, como a possuía a inolvidável heroína Joanne d’Arc; ao passo que as criaturas de vida delituosa, desregrada, por mais que pratiquem às ocultas actos condenáveis, tudo lhes revela a impureza — o andar, o sorriso, os olhos, e, por isso, basta fitá-las um instante para lhes devassar o âmago, destruindo-se num segundo a sua aparente virtude, e descobrir as úlceras da alma...
Muitas dessas infelizes são belas, mas possuem um aroma letal, como o do estramónio que produz flores alvas como a neve, mas cujo perfume tóxico produz náuseas, advertindo a natureza humana de que a planta em que desabrocham é nociva à saúde. Podem as decaídas, as filhas do vício trajar-se de rigoroso luto, não erguer o olhar aos transeuntes; mas, à sua passagem, há o que quer que seja que as denuncia, que as segue como um cortejo macabro e tilintante, fazendo-as alvo de sorrisos escarninhos, em vez de lágrimas compassivas...
É o inverso do que se passa com os possuidores de alma açucenal. Esses não têm, às vezes, a beleza plástica, mas há em seus rostos uma luminosidade de olhar que os diviniza, uma irradiação de luar que os segue, que os transfigura da multidão, uma esteira de luz os acompanha como aos astros, tornando-os invioláveis, ilhados para o Mal das tentações humanas...
Assim, aquela formosa viúva, de vinte e seis anos de idade, transitava em silêncio pelas ruas do Havre, como escoltada por uma coorte de alabardeiros celestes; entrava em diversos redutos da moda para adquirir artefactos com os quais confeccionava vestuários artísticos, e ninguém ousava dirigir-lhe um galanteio, uma palavra sequer de sincera ou audaz admiração.
Um dia, ao lado da galante filhinha, saíra para contratar novos trabalhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:05 am

Mais de um transeunte se deteve para melhor poder vê-las, não sabendo qual a mais encantadora — se a Madona, que andava sutilmente, mal roçando as calçadas, ou a criança, um querubim ao qual houvessem arrancado as asas para o deter na Terra algum tempo, parecendo ambas nimbadas de estelífera auréola, fitando-se mutuamente de instante a instante, como duas almas amantes que, tendo estado longo tempo apartadas em longínquas regiões, ao se encontrarem, alfim, temessem uma nova separação e, por isso, para se certificarem que estão ao pé uma da outra, contemplam-se, momento a momento, as mãos unidas, como que ligadas por algema imantada ou forjada de diamante.
Esta, a ventura paradisíaca neste orbe, mas plena de receios... Integral, só existe nos mundos dos evolvidos.
Iam em direcção a um grande atelier de modas femininas. Começaram a descortinar o mar undoso e muito azul, que banha a formosa cidade francesa.
Catarina Doufour deteve-se a ler um cartaz que noticiava a chegada do Devoir, justamente àquela hora.
Uma viva emoção fê-la levar a destra ao seio ofegante. Conhecia o Devoir...
Muitas vezes, previamente avisada pelo seu esposo, fora esperar que o navio ancorasse, a fim de encurtar o tempo de o abraçar e matar saudades.
Viu o vapor no instante em que estava fundeando. Uma insopitável emoção a abalou fundamente e seus belos e serenos olhos de turquesa ficaram orvalhados de pranto; pareceu-lhe ter avistado um grande túmulo flutuante, o túmulo do seu adorado Pierre e um desejo indómito de ir até lá e cobri-lo de flores, ajoelhar-se nele para fazer uma prece pelo morto querido, depois de percorrê-lo todo, dirigir-lhe interrogações relativas ao drama silencioso que presenciara, foram as ideias surgidas ao deparar-se-lhe o navio onde, por muitos anos, viveram dois entes inesquecíveis — o marido e o tio Guilherme...
Deveria pô-la em prática? Repentinamente, lembrou-se de que é infinitamente triste e desolador possuir alguém as mais fagueiras recordações de um lugar, e, quando a ele novamente volve — falecidos ou separados os entes amados com que lá fora — encontrar somente estranhos, indiferentes às reminiscências ainda nítidas na retentiva, mas alheias à multidão que o cerca...
Como a receberiam a bordo? Quem lhe afirmaria não supusessem que ela procurava um novo auxílio dos companheiros de Pierre? Indecisa, agoniada, parou por momentos e, apontando o vapor que acabava de ancorar, disse à filhinha:
— Olha o navio em que viajava o teu paizinho!
— Vamos entrar nele, mãezinha?
O ingénuo convite deu-lhe ânimo para executar, sem mais vacilações, os seus desejos.
— Sim... Vamos depressa! — respondeu-lhe Ketty.
Aproximaram-se do local onde fundeara o Devoir e, por instantes, estabeleceu-se completa confusão: passageiros que desembarcavam pressurosos, amigos e curiosos que os aguardavam, carregadores de malas, camelots{56}, carruagens que se aprestavam para receber os recém-chegados, enfim, uma onda compacta de homens, senhoras e crianças que se movimentavam em diversas direcções.
Ketty aguardou que se normalizasse o trânsito e, vendo um marujo do Devoir, dirigiu-se a ele cortesmente, solicitando-lhe que a levasse à presença do comandante. O marujo fitou-a e à filhinha, com imenso pasmo e deslumbramento. Ambas estavam encantadoras. A emoção dera tons de vivo coral às faces de Ketty, cuja beleza era realçada pelo modesto mas elegante traje de luto. Assim como no jaspe negro é que se distingue o ouro do cobre, a cor preta é a pedra de toque com a qual se afere a formosura feminina; uma veste negra, mal delineada, amortalha, empalidece, afeia, avelhenta quem a traz; a genuína beleza é ressaltada pelos tons sombrios. A mulher enlutada, que se torna atraente, pode ufanar-se de ser bela, de ter um aspecto venusino. Ketty, casta e humilde, era um desses seres favorecidos prodigamente pela Natureza:
era uma estátua de alabastro vivo, cuja alvura se destacava do tecido negro que a envolvia artisticamente, e cujos magníficos cabelos de ouro eram realçados sob o singelo chapéu de crepe.
O marinheiro, maravilhado por duas criaturas tão gentis, desfez-se em amabilidades. Levou-as à presença do seu chefe, que se preparava para sair.
Ketty aproximou-se, dizendo com visível emoção:
—Sr. Comandante, sou a viúva de Pierre Doufour e venho agradecer-vos o que por nós fizestes.
—Grande prazer em vos conhecer. Nada tendes a agradecer-me. Pierre Doufour era um digno e honrado companheiro e mereceu, sempre, a estima de todos os que laboram no Devoir. Posso ainda vos ser útil em alguma coisa?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:06 am

Estou ao vosso dispor...
—Obrigada! Desejo apenas percorrer o navio em que ele viveu por tantos anos, senhor.
—Pois bem, necessito entrevistar o cônsul americano que, hoje, sei, está no Havre. Vou sair, mas antes vos apresentarei um magnífico cicerone, um amável cavalheiro que me substituirá com vantagem e poderá satisfazer vosso desejo.
Desapareceu por momentos e voltou em companhia do imediato do navio, um esbelto rapaz de trinta anos presumíveis, alvo, louro, de uma distinção de maneiras que o tornavam insinuante ao primeiro golpe de vista.
Rápida foi a apresentação. O comandante osculou a linda fronte de Sónia e partiu apressadamente. Ketty ficou em companhia do imediato, Gastão Duruy, que, de uma cortesia a toda prova, começou a percorrer os compartimentos do Devoir, fornecendo-lhe indicações precisas de tudo o que pudesse interessá-la.
Conversou longamente sobre Pierre, sobre sua vida, sempre alheio às alegrias dos camaradas de bordo, dedicando as horas de folga ao estudo e à meditação.
—Era um filósofo que se fez marítimo, senhora! De onde era natural seu esposo?
—Parece-me que de Arras. Ele conversava pouco a respeito da sua infância, da qual tinha amargas recordações. Dizia ter ficado órfão em tenra idade e sofrido muito, em lar estranho. Não o interrogava para não entristecê-lo... Se não for demasiada importunação, Sr. Duruy, desejava me relatasse o que se passou a bordo, antes do ato tresloucado de Pierre....
Depois de reflectir um instante, o amável Gastão Duruy pô-la ao corrente de quanto ocorreu, relativamente a Pierre — enfermidade incurável, o desaparecimento inexplicável, nas proximidades de J..., provavelmente.
Contou-lhe, depois, que um passageiro russo, do qual não recordava mais o nome, de regresso da França para Liverpool, tivera suspeitas de que o morto fosse um seu patrício, que lhe assassinara o único filho, tendo conseguido escapar à polícia; até que, julgando tê-lo encontrado, ia denunciá-lo às autoridades de Londres, onde contava bons amigos, quando se deu o seu fim desastroso.
Ketty empalideceu, tomada de indescritível tortura.
—Pierre era francês! — exclamou, com indignação.
—Foi o que todos afirmaram e ninguém deu crédito ao detestável russo, que vociferou furiosamente quando soube que Pierre morrera, frustrando-lhe a vingança.
—Porque suspeitou de Pierre?
—Simples semelhança física. Julgamos, porém, que o motivo da aversão que nutria contra o pobre Pierre se originou do seguinte: vosso esposo e o Dr. Dudevant, clínico deste navio, descobriram que o russo era algoz da própria filha, tuberculosa e louca, com a qual viajava para a América, desejando forçá-la, assim chegassem em Nova York, a contrair casamento com um sobrinho dele, que os seguia, a fim de entrarem na posse de considerável fortuna que o padrinho da desventurada prometeu entregar-lhe somente depois de casada, ignorando, certamente, o estado em que se achava a afilhada.
Ketty não disse palavra, sentindo que, se o fizesse, prorromperia em soluços. Mal continha as lágrimas, que não lhe inundaram os olhos, mas lhe pareciam estar represadas no coração agitado.
Seria tudo uma calúnia forjada pelo abominável russo? Teria falado a verdade? Seria Pierre um homicida? Esse o sigilo que tão avaramente guardava, tornando-o desditoso a vida inteira? Teria posto, realmente, termo à existência para fugir à justiça?
Porque perpetrara um homicídio?
—Não! — pesou a pobre Ketty — o meu Pierre não era um criminoso, pois a sua vida foi um modelo constante de sobriedade, de bons actos, de labor, de honestidade, tendo recebido na infância uma educação moral severa, ministrada por um santo abade, como ele chamava ao mestre querido! Era uma aleivosia vil, contra ele urdida, o que dissera o odioso estrangeiro!
O imediato notou a angústia de Ketty e disse-lhe:
—Desculpai-me, se vos causei algum desgosto relatando, como solicitastes, tudo quanto ocorreu a bordo até ao passamento do vosso caro companheiro.
Não vos aflijais.
É uma calúnia sem fundamento o que forjou o execrável russo, que não conseguiu tisnar a memória de Pierre.
Tranquilizai-vos, pois, e convencei-vos de que, para todos nós, o falecido continua a ser um carácter ilibado!
Ela agradeceu, sensibilizada, as generosas referências feitas ao finado e ia retirar-se quando Duruy lhe disse:
—Deixai-me o vosso endereço. Talvez os amigos de Pierre possam desvendar toda a verdade do lamentável acontecimento, e então recebereis informes positivos de tudo que for apurado...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:46 pm

IV
Dias e dias esteve Catarina impossibilitada de trabalhar, pois as novas colhidas a bordo do Devoir lhe abalaram a saúde.
Seu cérebro lucubrava nos mais antagónicos pensamentos: ora, cria na inocência absoluta de Pierre; ora, na sua culpabilidade... O pensamento — a mais bela potência anímica, revérbero íntimo, que, às vezes, se propaga a centenas de milhas distantes, centelha divina, que se pode tornar mais negra que uma dor, déspota arbitrário, nos momentos de perplexidade ou de angústia, que não se condói da mente em que fosforeia... Ai de quem se deixa subjugar por ele! A energia cessa por completo, o descoroçoamento avassala o organismo e a alma.
É mister reagir. Como?
A criatura, nesses instantes de agonia, jaz completamente exausta, esmorecida, pois a impetuosidade das ideias deixa-a extenuada, inactiva, como se elas se alimentassem de sangue e músculos, esgotando-os como sanguessugas famulentas...
No entanto, todos têm ao seu alcance o modo de dominá-las, por mais contumazes e desordenadas, vorazes e flagelantes que sejam, é alar o espírito ao Eterno e lhe implorar calma, conforto, esperança, que, qual orvalho benéfico, descerão a flux sobre ele...
Ketty, porém, não soube suplicar esses talismãs celestiais — deixou-se ficar, quase inerte, e, um dia, estava tão descorada que o seu lindo rosto parecia esculturado em níveo Paros{57}.
A pequenina Sónia, apesar da tenra idade, dotada de inteligência e compreensão maravilhosas, era quem a consolava nos momentos de crise e de lágrimas.
Tão visível era a consternação de Sónia, que, compadecida e sensibilizada, Ketty, num esforço quase sobre-humano, ergueu-se do leito, fez ligeira toilette e atirou-se ao trabalho doméstico.
A criança tranquilizou-se, foi buscar seus bonecos e disse à mãe:
—Sei porque você tem chorado tanto.. .
—Sabes? Como assim?
—Por causa do que te disse aquele moço do navio...
—Pois tu compreendeste o que me disse o imediato do Devoir, Sónia? — interrogou Ketty, alarmada.
—Sim. .. Ele falou que o paizinho se atirou ao mar sem ninguém ver, pois um homem mau queria prendê-lo .. .
—Deus meu! Como compreendeste semelhante coisa, Sónia? Era de outro marinheiro que ele falava. Não queiras entristecer tua mãezinha falando mais sobre este assunto... Vem beijar-me e esquece o que ouviste.
Aquela inesperada revelação da filhinha adorada chamou-a à realidade, dando-lhe ânimo para lutar contra os próprios sentimentos, e, desde então, porfiou em se não referir ao passado, a fim de que Sónia não percebesse que o pai era suspeitado de homicídio. Para evitar um desgosto àquele ente estremecido, sentiu-se com invencível coragem de ocultar, para sempre, no seu íntimo, o que lhe dissera Gastão Duruy e lhe causara um desgosto inominável.
Havia muito, desconfiava houvesse um segredo tenebroso, de suma importância na vida de Pierre, mas nunca supusera fosse assim tão grave...
Queria esmagar, no mais escuso escaninho d´alma, essa odiosa suspeita; ela, porém, voltava-lhe à mente com frequência, como se tentassem mergulhar no Oceano uma esfera oca, que, apenas coberta pelas ondas, emergisse à tona,
estabelecendo-se insustentável luta entre ela e quem desejava afundá-la:
quanto mais alto a atirasse ao pego, mais rapidamente volveria à superfície, flutuando, por fim, vencedoramente sobre as vagas...
Reflectiu, porém, que, se Pierre fora levado ao desatino de cometer um crime, devia ter tido um motivo poderoso para assim proceder — isentava-o de todo o sentimento perverso e perdoava-lhe, mas, não podendo transmitir essa triste verdade à Sóniazinha, era mister ocultar-lhe para não a contristar, para não lhe causar o mais ténue dissabor... Queria que a memória de Pierre pairasse imaculada e venerada na mente da filhinha.
Fez um esforço ingente para não mais chorar. Pensou detidamente no porvir, na sua precária situação. Era mister ser forte e resoluta. O menor desfalecimento ser-lhe-ia de consequências desoladoras. Calculou quanto despendia mensalmente; um dia que deixasse de labutar lhe traria dificuldades pecuniárias; uma semana de inactividade poderia implantar a miséria no lar...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:47 pm

Começou, então, a mourejar incessantemente e, em exíguos momentos de lazer, iniciou ensinos morais e literários à pequenina Sónia, que, desde as primeiras lições, revelou uma compreensão invulgar. Vivera, assim, durante alguns meses: trabalhando sem tréguas, rememorando passado, sofrendo em silêncio.
Uma tarde, estando a concluir um trabalho doméstico, recebeu a inesperada visita de Gastão Duruy.
Ketty emocionou-se.
Depois de cumprimentá-lo cortesmente, interrogou-o, surpresa e visivelmente inquieta:
— Que é que vos traz a esta humilde morada, senhor? Descobristes a verdade relativa ao suicídio de Pierre? É grande a minha ansiedade!
—Nada sucedeu de anormal, senhora. Não se perturbe. Eu me interesso infinitamente pela viúva e pela filhinha do meu amigo Pierre e, de retorno da América, vim vê-las e saber como passam de saúde. Fiz mal em tomar essa resolução, sem vosso prévio consentimento?
Após um momento de reflexão, Ketty respondeu:
—Não, senhor, só tenho motivo para vos agradecer a gentileza. Tende a bondade de sentar.
A pequenita, que se conservara a distância de Gastão Duruy, intimidada com a sua presença, aproximou-se de ambos.
Estava encantadora a unigénita do casal Doufour. Trazia um vestidinho modesto mas gracioso, azul celeste, realçando-lhe o colorido das faces e o ouro da cabeleira encaracolada. O imediato beijou-a na fronte.
Palestraram, por momentos, sobre assuntos diversos; depois, subitamente, o visitante interpelou:
—Senhora, perdoai-me se me torno indiscreto, mas desejo saber se tendes parentes próximos, protectores naturais que possam socorrer-vos no caso de ficardes enferma, porque sei que viveis do vosso labor...
—Não tenho parentes próximos no Havre; os únicos que possuo, em grau afastado, residem na Inglaterra. Fui criada e educada por meus tios paternos, que, pouco antes de Pierre, faleceram. Não conheci meus progenitores. Conto apenas com o meu trabalho para manter a mim e à querida Sónia.
—Bem vejo que não podereis viver sem receios...
—Não descreio da protecção divina...
—Faz muito bem. Ela não nos abandona jamais, porém, concede-nos a faculdade de pensar no porvir, conceber projectos, a fim de, efectuando-os, podermos ficar ao abrigo das surpresas da sorte.. .
—Que é, pois, que me aconselhais a fazer?
—Vejo-vos abatida, presumo sejam penosas as vossas lides e grandes as amarguras que tendes curtido; venho, pois, entregar-vos um pequenino auxílio, enviado por um bondoso companheiro de Pierre, que deseja ficar incógnito.
Aceitando-o, podereis repousar um pouco até recobrardes alento e forças para continuar a faina...
—Oh! senhor! — exclamou Ketty, comovida e ruborizando-se — esse oferecimento me sensibiliza imensamente, mas não devo aceitá-lo, porque, na minha situação de viúva, tornar-se-ia desairoso...
—Bem sei — disse-lhe Gastão — que o mundo é implacável em seus julgamentos para connosco: ninguém deseja concorrer para a nossa ventura, mas todos se prontificam a destruí-la, se a temos, arvorando-se gratuitamente em censores e algozes... Que importa, pois, o julgamento do mundo? Não tendes a consciência tranquila e Ilibada?
—Sim, mas estou ainda em condições de trabalhar para o meu sustento e o de minha filha...
—Pois bem: consentis que um amigo invisível oferte esta pequenina dádiva à formosa Sónia?
Ketty concentrou-se alguns instantes, depois falou em tom grave e cheio de dignidade:
—Interrogai minha filhinha e a sua resposta será uma sentença a cumprir.
O imediato perguntou à criança:
—Minha bela menina, um amigo de teu paizinho te enviou algumas moedas para comprardes teus bonecos e alguns bombons — aceita-as?
Ela ergueu para a mãe o lindo olhar e disse:
—Eu já tenho um boneco que o papai me deu. Não quero outro. Aceito-as, porém, para tratar da minha mãezinha, quando ficar doente...
Emocionado, Gastão Duruy osculou-a nas faces e depôs-lhe na minúscula destra uma bolsinha repleta de luíses.
Sónia entreabriu-a, mas não ousava tocar nas reluzentes moedas, perplexa, duvidando da realidade.
Gastão levantou-se e, antes de se retirar, falou a Ketty.
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 5 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:47 pm

—Peço permissão para repetir minha visita ao regressar da América. A viagem vai ser longa, pois o Dovoir vai ao sul do Novo Continente e à Califórnia.
A viúva Doufour agradeceu-lhe o bondoso interesse. Tinha o rosto entristecido e os olhos lacrimosos. Assentiu ao pedido com um movimento de cabeça.
Decorreram alguns meses
Ketty vivia calmamente em sua pequenina mas ditosa habitação, quando Sónia enfermou, de repente, com uma febre violenta que resistiu aos primeiros medicamentos de que fez uso.
Um desconforto inaudito a empolgou por completo: não quisera ainda utilizar-se da generosa dádiva de Duruy, por excesso de escrúpulo, só justificável nas consciências virginais, e via-se quase reduzida à penúria, porque a enfermidade de Sónia fizera-lhe interromper seus penosos misteres.
Achou-se sem recursos pecuniários dentro de poucos dias. Como é dolorosa a situação de quem, vendo-se baldo de recursos, não sabe de que lançar mão para socorrer entes estremecidos! Quanto pensava no querido morto! Parecia, por vezes, esquecer-se de que ele já não pertencia ao mundo material e que, repentinamente, ia regressar da América para socorrer a adorada enferma. Rogava-lhe, em pensamento, que não a abandonasse, pois enlouqueceria se se visse privada dos carinhos da filhinha... Não cessava de fazer preces fervorosas, às vezes em alta voz, obsecrando ao Altíssimo piedade para si, conforto para suas tribulações, narrando-lhe todos os seus sofrimentos, suplicando-lhe um conselho paternal e um concurso extraterreno. Então, nesses momentos, sentia-se como que imersa em sutilíssimo éter, as suas angústias eram atenuadas, julgava estar em paragem espiritualizante, cujos eflúvios benéficos lhe penetrassem na alma atormentada... Algumas vezes, Sónia despertava do letargo da febre e, recobrando por momentos as faculdades mentais, interrogava-a:
—Como quem estavas conversando, mãezinha?
—Com Deus, filhinha, para que te faça sarar depressa!
—Obrigada, mãezinha! Já voltou o meu papaizinho?
—Não te lembras de que ele não voltará mais?
—Não... Vi-o há pouco. Estava tão belo e quase luminoso... estendia-me os braços para que passasse uma estreita ponte sobre um rio enorme, como nunca vi outro igual, muito mais largo que o Sena, que a mãezinha me mostrou...
Tornava a cerrar as pálpebras, com o angélico rosto purpureado pela febre intensa, os formosos cabelos atados ao alto da cabeça por uma fita azul, aureolando-a de caracóis de ouro flexível. Ketty não despregava a vista daquele ser adorável, querendo perscrutar-lhe os órgãos para saber qual o que não funcionava com regularidade, ameaçando-lhe a vida precisíssima.
O médico assistente não lhe dera esperança de salvar a doentinha.
Ketty, desde então, sem pronunciar uma palavra, postou-se à beira do leito durante o dia todo, como sentinela dedicada nas fronteiras da Pátria querida, ameaçada pela invasão de uma horda adversa, resolvida, talvez, a pelejar com a própria morte, quando quisesse apoderar-se daquele entezinho adorado.
Absorvida por tétricos presságios, como que atraída a alma por um magneto potente, que o era, para seu amor profundo, a pequenina flor humana a que dera o ser!
A noite começou a lançar no ambiente o seu turbante de crepe. Ai! o crepúsculo, o anoitecer para quem se acha em isolamento e com o coração varado de dor, parece que, ao mesmo tempo que enluta o mundo, entenebrece também a alma! Tem-se a impressão de que, com o derradeiro raio de Sol, se esvai a derradeira esperança, no seio alanceado pelos venábulos do sofrimento; parece que o Espírito vai penetrar a sós em galeria infinda, repleta de brumas negras; que os olhos estão vendados por todo o sempre para o Sol, e que somente o coração se mantém vivo, palpitante, aberto a todos os padecimentos e amarguras!
Avassaladora tristeza se apoderou de Ketty ao dar uma colher de poção à enferma, vendo-a indiferente, insensível aos seus ósculos, notando que a sua cor se tornara marmórea...
Prosternou-se perto do alvo leito de Sónia e nunca seus lábios, ou antes, sua alma proferiu uma prece tão veemente, implorando ao divino Pai, com as mãos unidas e alçadas ao céu, que não lhe arrebatasse o querido anjo do seu lar, sua única alegria, seu encanto, derradeira esperança da sua atribulada existência...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:47 pm

A princípio, orava com voz ininteligível, mas foi elevando-a aos poucos, e, de súbito, pareceu-lhe que a alcova se encheu de sombras movediças, de seres intangíveis, que lhe estendiam as mãos de névoas, e, então, ela lhes rogou que transmitissem ao Omnipotente os seus brados de dor, as suas súplicas ardentes!
Depois, silenciou soluçante, as lágrimas brotaram-lhe em caudal dos olhos, e, como estava com a cabeça pendida no rebordo do leito, julgou que alguém estivesse a seu lado, que duas leves mãos, como enluvadas em pelúcia, lhe pousassem na fronte e ouviu, no íntimo d´alma, este vocábulo ciciado dulcidamente:
— “Espera!”
Por momentos ficou imersa em torpor invencível, que lhe tolheu todos os membros, e então, por mais de um quarto de hora, adormeceu profundamente.
Viu-se, em sonhos, numa região longínqua, ao lado de Sónia, já adolescente, e de um menino louro, galgando uma penedia{58}, cujo ápice parecia aninhar-se no domo sideral, envolto em nevoeiro argênteo...
Repentinamente, avistou Pierre, de alva túnica à romana, espécie de peplo, de linho nevado, próximo de um ser flamante, de dalmática de prata luminosa, extremamente belo, que a acolhiam — e aos que a seguiam, com os braços estendidos, como os de Jesus sobre as vagas de Genesaré, para salvar o amado discípulo vacilante na fé...
Foi despertada, violentamente, por uma pancada na porta de entrada, que, no silêncio em que se achava mergulhada toda a casa, lhe pareceu o rumor de uma falange de archeiros enfurecidos, que iam fazê-la em fragmentos com as alabardas, para penetrar no recinto e arrebatar-lhe a doentinha...
Levantou-se apavorada, acendeu uma lâmpada e foi verificar quem estava batendo. Teriam, de fato, batido, ou as vibrações misteriosas — ecoadas funebremente pela casa em quietude absoluta — eram o prenuncio de inevitável desventura?
Ofegante, ouviu segunda pancada à porta. Era Gastão Duruy, irrepreensivelmente trajado de preto. A chegada do amigo de Pierre causou-lhe indizível emoção. Ficou queda, com os olhos vendados por um lenço negro, parecendo que suas lágrimas, de tantas e tão amarguradas, já a haviam tornado daquela cor sombria...
—Que sucedeu, senhora? Onde está Sónia? — interrogou com ansiedade.
Ketty mal pôde responder-lhe:
—Está mal, Sr. Duruy, a minha querida filhinha! Parece-me que Pierre, por tanto adorá-la, veio buscar o nosso tesouro!
—Seria crueldade sua, senhora, e a verdade é que era tão borídoso!{59} Mas.. . posso vê-la?
Ela hesitou por momentos.
Sua aflição, porém, era tão grande, que o temor de uma censura, por introduzir no recesso do lar o imediato do Devoir, foi vencido.
—Sim — disse resoluta. — Vinde vê-la.
Ele a seguiu sutilmente, e, ao avistar a pequenina, de uma formosura arcangélica, de jaspe, enterneceu-se até às lágrimas e, inclinando-se, osculou-lhe as mãos ardentes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:47 pm

V
O imediato ficou calado por instantes e, depois, tomando repentina resolução, disse:
—Há mister de um médico assistente, dado o estado em que se acha vossa filhinha...
—Bem sei, mas não me permitem minhas modestas posses.
Pois bem, tenho estudos médicos, até o quarto uno. Quereis confiá-la aos meus cuidados?
—Sim. Obrigada.
Gastão retirou-se e, pouco depois, regressou, conduzindo frascos de reagentes febrífugos.
Durante horas, pôs em prática tudo quanto lhe parecia sugerido por seus conhecimentos científicos, mas, hoje — podemos asseverar, sem deprimir a arte de Esculápio — que, sem o saber, Duruy agia sob uma influência anímica ultra-terrena, inspirado por benfeitores intangíveis, médicos siderais que o circundavam, atraídos pelas ardentes preces de Ketty.
Houve um momento, porém, em que a atribulada mãe supôs que a doentinha fosse expirar, e, então, sua angústia não teve limites... Gastão compartilhou dos seus receios. Emudecidos, durante longas, horas, somente troçavam palavras imprescindíveis, absorvidos por uma só ideia — salvar a menina. Pela madrugada a febre começou a declinar.
A respiração deixou de ser estertorosa, para se tornar normal.
Agitou levemente as pálpebras, tentando desuni-las; não o conseguiu, porém, devido à prostração física em que se achava.
Ketty e Duruy entreolharam-se: um bruxuleio de esperança lhes animou ao pálidas feições.
Ainda por momentos Gastão permaneceu ao lado da enferma, e depois disse a Ketty:
—Senhora, retiro-me agora. Vou tranquilo a respeito de Sónia, que está sensivelmente melhor.
Podeis repousar um pouco. Deveis estar exausta. Permitis que, logo, venha prestar meus serviços à querida doentinha?
Profundo reconhecimento estuou na alma de Ketty, que apenas pôde proferir estes vocábulos:
—Senhor, foi Deus quem vos enviou à minha triste morada. Considero-vos um cavalheiro nobre e digno de ser acolhido em todos os lares, fraternalmente.
Obrigada! O Omnipotente vos recompense de quanto tendes feito por mim e por Sónia!
Acompanhou-o até à porta.
Fechou-a, espreitou carinhosamente a filhinha, que dormia sossegada, e, então, estirou-se no leito, vencida pela fadiga e por violentas comoções.
Adormeceu por algumas horas, reparadoramente. Despertou, alto dia, em sobressalto, temendo houvesse sucedido algo de anormal à menina. Aquietou-se, porém, vendo-a ainda adormecida, com um leve nacarado nas faces. Fez a toilette e saiu às compras, tendo, pela primeira vez, despendido uma das moedas ofertadas por Gastão.
Venceu o escrúpulo que, até então, lhe persistira na ilibada consciência...
Porquê? Compreendeu que ele era dotado de sentimentos puros e, pelo que fizera à dilecta enferma, lhe inspirou imorredoura gratidão, tornou-se um ente familiar e venerado.
No decorrer do dia, já em bonança, aguardou com impaciência a volta de Duruy.
 tarde, viu-o chegar sobraçando uma esguia caixa envolta em papel rosa.
Solicitou permissão para ver a pequena e exultou com o seu estado lisonjeiro. Combatida a debilidade orgânica, a criança recobraria a saúde.
Ao beijá-la, vendo-a fitá-lo meigamente, inquiriu:
—Já te não lembras de mim, Sónia?
—Não és o amigo do meu paizinho?
—Sim. Estive ontem aqui e não me viste...
—Onde é que eu estava?
—Dormindo... Trouxe-te uma lembrança... Queres vê-la?
Abriu a caixinha e mostrou-lhe uma fascinante boneca, muito loura, de lábios purpurinos, entreabertos graciosamente, mostrando minúsculos dentes como aljofres, num lindo sorriso, trajada de cetim azul com rendas prateadas.
Sónia ficou deslumbrada, sem ousar tocar-lhe nas formosas vestes, e perguntou:
—Posso aceitá-la, mãezinha?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:48 pm

A resposta foi afirmativa. Gastão observou Ketty: sorria, tendo lágrimas a brilhar nos olhos de safira, e ele nunca a achou tão bela... Aquele crepúsculo d´alma —misto de tristeza, doçura, felicidade — lhe deu um novo aspecto, transpareceu-lhe na fronte límpida como um halo de luz astral, irradiou um clarão de formosura imaterial, aureolando-a de rara e espiritualizante beleza — a dos mártires, santificados pela dor...
A roupagem negra realçava-lhe a alvura da epiderme, onde havia diluído um leve tom de flores de macieira, os cabelos tinham reflexos áureos, parecendo que iam transmudar-se em estames{60} estelares...
Aquela criatura revelava tanta elevação de sentimentos, que seduzia castamente a todos que a viam. Até então, Duruy fora o companheiro e amigo de Pierre; tudo quanto fizera, por Ketty e sua filhinha, traduzia afecto paternal — daquele momento em diante, porém, sentiu-se enamorado da jovem viúva, atraído ao mesmo tempo pela beleza plástica e pela do espírito, que se lhe difundia no grato semblante, qual lâmpada acesa e velada numa redoma de cristal...
Naquela noite, conversaram longamente e ambos pareciam estar agrilhoados por uma trama subtil, de recíproca simpatia.
Ela teve enternecidas expressões de reconhecimento pelo que lhe havia feito em prol da filha; ele se mostrava venturoso por lhe ter restituído a tranquilidade espiritual.
Quando se dispôs a partir, Ketty entristeceu-se repentinamente.
Ele, que a observava intimamente, se regozijou.
Falou-lhe com polidez e emoção:
—Senhora, haveis de permitir que, quando regresse da América, reitere minha visita...
Faço votos ao Criador pelo completo restabelecimento de Sónia. Um outro pedido vos dirijo, esperando que o atendais — não vos sacrifiqueis, trabalhando em demasia!
—Obrigada, senhor! Uma verdadeira mãe, porém, não julga excessiva, jamais, o sacrifício por um ser adorado!
—Bem sei, senhora; se o labor é nobilitante para o homem, às mulheres santifica. Mas — permiti esta respeitosa observação: porque não vos quisestes utilizar do pequeno pecúlio ofertado à vossa filhinha?
—Já o fiz hoje, senhor — balbuciou enrubescendo.
—Podeis continuar a fazê-lo, sem desdouro para vossa consciência escrupulosa.. .
Ao apresentar-lhe as despedidas, solicitou que, ao menos uma vez, o cientificasse a respeito da doentinha.
Comovido, notando fulgor de lágrimas nos belos olhos de Ketty, foi com
pesar que se ausentou do Havre, levando o segredo do seu amor pela devotada progenitora de Sónia.
Escoaram-se alguns dias, após a partida de Gastão; Sónia, já convalescente, folgava com a gentil boneca que lhe fora ofertada. Sua progenitora ultimava um vestido róseo, que contrastava com o seu, e, por vezes, parecia absorvida em sonhos...
Seu pensamento divagava pelo Atlântico intérmino, como outrora, quando o Devoir o sulcava em demanda das plagas americanas. Repelia-o, mas ele lhe voltava à mente com insistência.
Sua atenção foi despertada pela chegada de uma carta, expedida de Londres.
Emocionou-se, verificando a assinatura de Duruy, a reclamar notícias dela e de Sónia.
Ao finalizar a leitura, sem poder reprimir os próprios sentimentos que lhe turbilhonavam n´alma, prorrompeu em soluços.
—Porque choras? — interrogou, aflita, a criança.
—Recordações que me magoam, filhinha.
—Do paizinho?
Não respondeu prontamente: havia quase remorso, ao pensar no morto querido, percebendo que, aos poucos, essa imagem ia sendo substituída pela de Duruy...
—Sim... — murmurou, finalmente.
—Quem te escreveu e te fez sofrer, mãezinha?
—Gastão Duruy, que te manda um beijo...
—E por isso choraste, mãezinha? Dá-me a carta: quero lê-la!
—Pois já sabes ler, filhinha?
Sónia esteve, por momentos, com a carta aberta na mão e, depois, fitando a mãe, arguiu-a com firmeza:
—Gostas muito de Gastão?
—Porque me perguntas, Sónia?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:48 pm

—Porque eu gosto muito dele, e queria que vivesse connosco...
—Para te trazer confeitos e bonecos?
—Não, para não ficarmos sós e tristes...
Decorreram alguns meses. Ketty havia escrito uma singela missiva a Duruy, na qual falava apenas da filhinha. Não obtivera mais notícias do imediato do Devoir.
Uma tarde, sentiu-se com a saúde alterada. Foi compelida a recolher-se ao leito, acometida por um acesso violento de febre. Sónia, com sete anos incompletos, manifestou dedicação inexcedível e precoce compreensão da gravidade de sua situação, durante a enfermidade de sua mãe. Ouvindo-a delirar, sem lhe responder com acerto às perguntas que lhe fez, tomou súbita deliberação — chamar um médico para tratá-la. Sabia onde residia um bondoso e velho doutor, que, uma vez, já havia receitado para Ketty.
Era ao entardecer. Nevava.
Ela se embuçou em ampla mantilha negra, usada com frequência por sua mãe, ajeitou-a na formosa cabecinha, da qual se evadiam dourados caracóis, e foi em busca do que almejava. Ao verem-na passar, alguns transeuntes se detiveram para a contemplar, atraídos por seu encanto infantil.
Chegou à casa desejada e bateu resolutamente à porta. Fizeram-na entrar em modesto consultório e ela se achou na presença do Dr. Deveu. Ele, que a conhecia, observou com admiração:
—Vieste só, minha menina?
—Sim — respondeu-lhe com os olhos nevoados de pranto.
—Que desejas? — inquiriu o médico com doçura.
Vim buscar-vos para examinar minha mãezinha, que está muito mal...
—Foi ela quem te enviou ao meu gabinete?
—Não. Ela quase nem fala; e, quando o faz, não compreendo o que diz...
—Delira, certamente. Tens a quantia precisa para aviar a receita?
—Tenho-a, sim, e também para a consulta.
—Ai! filhinha, pelo que vejo, estás rica... Vamos. Irás comigo num tílburi{61}.
Em poucos minutos se achavam junto à enferma, que não os percebeu entrar no quarto.
Depois de vê-la e auscultá-la, o médico emitiu opinião:
—É grave o estado da sua mãezinha. É mister que arranjes alguém para tratá-la...
—Não conheço ninguém que possa vir fazer-nos companhia. Dizei-me o que tenha a fazer. Farei o que me ordenardes...
—És inteligente e extremosa, mas serás vencida pelo sono e pela fadiga...
Vou providenciar para que conduzam a doente a um hospital. Levar-te-ei comigo...
Sónia, desatinada, pôs-se a soluçar, implorando-lhe:
—Por Deus, não o façais, doutor! Deixai-a ficar aqui até amanhã... Se não amanhecer melhor, então fareis o que dissestes.
O Dr. Deveu, sensibilizado, disse-lhe:
—Vou mandar manipular os remédios... Se não tens dez francos para comprá-los, eu te darei...
— Tenho-os, sim. Vou buscá-los.
Ao retirar de uma gaveta do toucador a quantia solicitada pelo médico, notou restarem apenas cinco francos ... Toda a fortuna de sua mãe!... Ficou inquieta e entristecida.
O médico, ao regressar da farmácia, entregou os remédios à criança, fazendo-lhe recomendações ao seu alcance, para ministrá-los à enferma. Ele próprio lhe aplicou a primeira dose, e, prometendo voltar pela manhã, dispôs-se a sair. Sónia acompanhou-a até à porta, sobraçando um invólucro rectangular.
Velava-lhe os lindos olhos o braço esquerdo. O doutor, penalizado, disse-lhe:
—Não chores mais, menina, talvez tua mãe melhore durante a noite...
Ela, sem fitá-lo, muda, estendeu-lhe o volume que sustinha; ele, surpreso, interpelou:
—Que é isto?
—Supus — respondeu-lhe, com voz trémula — que a mãezinha tivesse ainda muitas moedas... mas, na gaveta, ficaram apenas seis. Prometi pagar-vos, doutor, e antes que ela acorde... levai isto, que eu ganhei e deve valer muito!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:49 pm

Ele, cheio de curiosidade, desfez o invólucro e ficou atónito, ao deparar-se-lhe uma sorridente e formosa boneca...
Sónia já não lacrimava — tal a intensidade do seu martírio moral, do sacrifício que estava fazendo. Agitava-lhe o débil corpinho um tremor indómito. O médico, que a observava, compreendeu-lhe o inaudito sofrimento, e, enternecido, falou, apontando a fronte argenteada:
—Já não brinco mais com bonecas. Veja a cor dos meus cabelos.. .
—Podeis vendê-la! — murmurou surdamente a criança, sem despregar a vista da Annette, talvez querendo gravar, por todo o sempre, na mente, a sua imagem fagueira.
O Dr. Deveu depô-la docemente nos bracinhos frios da menina, dizendo, nobremente:
—Teria remorsos se roubasse o teu tesouro, pobre criança! Podes guardá-lo.
Não te preocupes com o que me ficares devendo... Eu não me escravizo ao ouro, mas a Deus, que não desconhece nenhuma de nossas acções, nem o mais recôndito pensamento... Sou pai e sou avô, e, de hoje em diante, hei-de te considerar uma netinha muito gentil e bondosa. Até amanhã. Dá-me um beijo.
Estou pago.
Depois que o médico se ausentou, Sónia fechou a casa, abraçou e osculou a graciosa Annette, que, por momentos, julgou não mais lhe pertencesse, e foi, pé ante pé, para junto de sua mãe Catarina. Chamou-a. Não obteve resposta.
Começou a ficar amedrontada. Sentiu-se isolada pela primeira vez em sua curta existência. Teve sede e, como necessitasse, para saciá-la, ir à sala contígua, não ousou transpor-lhe os umbrais. Olhou maquinalmente para seu alvo leito e viu nele, risonha e aureolada, de cabelos de sol, a sua linda Annette.
Tomou-a carinhosamente nos braços. Era a companheira que, naqueles instantes aflitivos, o Pai celestial lhe concedia. Como pudera imaginar privar-se daquela inestimável preciosidade, que, então, se lhe afigurava um ser vivo, uma graciosa companheirinha?
Quanto seria desditosa sem ela! Pareceu-lhe que era uma irmãzinha, descida das regiões etéreas, para lhe fazer companhia, mas — com pesar, reflectiu judiciosamente — uma irmãzinha indiferente ao estado de sua adorada mãe, que sorria sempre, quando ela estava apavorada e tinha ímpetos de soluçar...
Apertou-a de encontro ao seio palpitante, beijou-a muito e disse-lhe, meio agitada:
—Tem juízo, Annette! Nossa mãezinha está doente. Não sorrias mais!
Vamos buscar um copo d’água. Sim? Tenho a garganta abrasada...
Um gemido, exalado por Ketty, fê-la estremecer e recuar da porta, que ia transpor a passo hesitante.
—Quem sabe — pensou aterrorizada — vou ficar sem a mãezinha, só no mundo, apenas com Annette?
Confrontou a insensibilidade da sua poupée{62} com os afagos maternais e um tremor lhe abalou todas as fibras do coração... Sem Annette seria infeliz; sem a mãe, sumamente desgraçada!
Subitamente, relanceando a vista pelas paredes do aposento, temendo deparar sombras de avantesmas nelas projectadas, fixou a vista numa tela primorosa — cópia da Assunção, de Murilo — diante da qual sua genitora orava prosternada, fazendo-a imitar e reiterar súplicas a Maria.
Fitou-a e nunca a vira tão bela.
Tinha uma ventura imaterial a irradiar-lhe do pulcro semblante, no qual havia também um vislumbre de melancolia, como se estivesse já saudosa do orbe negro que lhe fugia sob os pés, ou como se recordasse, ainda magoada, o drama pungentíssimo do Gólgota...
Circulavam-na nuvens diáfanas, levemente azuladas, de onde emergiam bustos e graciosos corpos desnudos de anjos, esvoaçantes, nédios e róseos, em diversas posições, como um cardume de falenas revoluteando ao redor da Virgem, ditosos e risonhos, porque estavam ascendendo ao Paraíso, enquanto que Ela parecia não os ver, engolfada em preces, com o pensamento fixo em Jesus ou no Criador, que, certo, iam recebê-la com sinfonias siderais...
Sónia, sem saber interpretar o sentir da Imaculada, via apenas os anjos e convenceu-se de que eram travessos infantes, foragidos dos colos maternos; bonecos do céu que se podiam equilibrar nos ares sem tombar no espaço, e que ficariam jubilosos se levassem a sua Annette para os páramos constelados — onde talvez não houvesse alguma tão linda, quanto ela — para seus incessantes folgares...
Desde que Catarina adoecera ainda não havia orado. Ajoelhou-se, então, com a boneca erguida nos bracinhos trémulos, e murmurou, fixando a efígie de Maria, com os olhos rútilos de lágrimas:
“— Boa Nossa Senhora, daí saúde à minha mãezinha, que adoro tanto quanto a vós!
“Nada vos posso oferecer, senão a minha Annette, que muito amo e que o doutor não quis levar... É vossa. Aceitai-a para os anjos que vos acompanham brincarem no céu... mas, deixai na Terra a minha mãezinha, que não sorri quando estou triste, só a chorar, como agora!”
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:49 pm

VI
Precisamente no momento em que Sónia imprecava à Virgem, Ketty despertou do letargo em que jazia, como que abalada por mãos invisíveis, e, por alguns segundos, duvidou da realidade — não sabia, ao certo, se estava acordada ou sob a acção de um sonho, em que a filhinha genuflexa parecia uma visão extraterrena, tendo a evolver-lhe a loura cabecinha um resplendor astral...
“ — Vede — julgou ela ouvir, docemente — o mérito incomparável da prece, quando parte das almas cândidas. ”
Soergueu-se nas almofadas, sentindo-se reanimada por magnética energia; repentino conforto a dominou por completo, teve a impressão de que um éter suavíssimo lhe penetrava todo o organismo, balsamizando-lhe as dores, refrigerando-lhe a febre que a abrasava...
Quando Sónia concluiu a invocação e ia encaminhar-se à porta — abraçada à sua camaradinha, cujos cabelos estavam diamantizados pelas gotas de pranto que neles haviam caído, como as mais belas flores pelas pérolas de orvalho — Ketty exclamou:
—Vem dar-me um beijo, filhinha!
Ela retrocedeu e, rapidamente, atirando a boneca ao leito materno, alvoroçada, galgou-o de um salto, e, chorando e rindo a um só tempo, abraçou-se à enferma, como alguém que, meio submerso num oceano encolerizado, encontrasse um calvário de pedras ao qual quisesse enlaçar-se e, então, avistando ao longe o revérbero de um fanal, todas as esperanças lhe renascessem n´alma, como lírios numa várzea, no apogeu da Primavera...
Catarina osculou-a, murmurando:
—Como estavas formosa, filhinha, orando a Nossa Senhora! Ela já atendeu às súplicas que lhe fizeste, pois me sinto melhor. Vem agora repousar a meu lado, queridinha! Vou também elevar meu pensamento ao Criador, agradecendo-lhe a graça obtida e o tesouro que me concedeu na Terra, para meu consolo e alegria!
Passados momentos, já com serenidade, a criança falou:
—Tive tanto medo, mãezinha, quando te chamei e não me respondeste!
Estava com sede e não tive ânimo de ir à sala, pois julgava que, se o fizesse, lá encontraria fantasmas para me prenderem, e, assim, jamais lograsse voltar para junto de ti!
—Alegra-te, filhinha: a Virgem já te ouviu os rogos! Ainda tens sede?
—Sim. Vou buscar o moringue{63}.
—Irei contigo...
—Não. Já tenho coragem. Irei só...
—E Annette?
Sónia meneou a gentil cabecinha, negativamente:
—Vou guardá-la, mãezinha: já não me pertence...
— Não, queridinha, ela será sempre tua, pois o que a Mãe de Jesus aceitou foi a prece que lhe dirigiste, foi a tua dedicação filial, foi o teu amor puríssimo.
Guarda, sim, a tua Annette, para com ela brincares amanhã...
A pequena obedeceu. Foi destemidamente buscar o que desejava, ofereceu a Catarina uma taça de chá e, pouco depois, adormeceu tranquilamente, tendo nos lábios seráfico sorriso, incomparavelmente mais belo que o de Annette — produto de artífice, que, debalde, procurou imitar o que só a Natureza, a divina criadora, pode engendrar com primor, porque o artífice não lhe pode infundir uma alma, e o sorriso infantil tem algo de celestial, de maravilhoso — misto de candura e bondade — que não provém dos lábios, unicamente, mas do espírito que se expande, revelando sentimentos impolutos, que os homens não podem impregnar na matéria inerte...
Pela manhã, sentindo-se reanimada, Ketty tentou erguer-se mas não o conseguiu; e, com pavor, se lembrou de que, não podendo trabalhar durante alguns dias, a penúria alojar-se-ia definitivamente no lar...
Sónia, assim que despertou, abriu as janelas e, guiada pelos ensinamentos maternos, preparou ligeira refeição para ambas.
Cedo chegou o médico e ficou surpreso de encontrar Catarina em excelentes condições.
à noite voltou, e, ao transpor a soleira da modesta habitação, deparou-se-lhe Gastão Duruy que ele conhecia de menino, filho de um colega. Abraçaram-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:49 pm

Deveu interrogou-o:
—Quando chegaste?
—Hoje. Venho visitar Mme. Doufour, que muito considero.
—Já a viste?
—Acabo de chegar...
—Vais encontrá-la ainda enferma...
—Que diz? Muito mal? — interpelou com ansiedade.
O médico pô-lo ao corrente da situação penosíssima da enferma, e, ainda sensibilizado, relatou-lhe a abnegação de Sónia, o seu tocante sacrifício da véspera. Gastão, enternecido, beijou a criança e disse-lhe, carinhosamente:
—Queres que te ame como o teu paizinho?
—Sim, e que não vás viajar mais, para não cair ao mar...
Ele sorriu, e, em companhia do médico, penetrou na alcova de Ketty. Cumprimentou-a, comovido, achando-a definhada e compreendendo que, tanto quanto as privações e a faina incessante a que se entregava sem tréguas, tétricos dissabores acabrunhavam-na, fanando-lhe, aos poucos, a beleza helénica.
Fitou, penalizado, aquele rosto emagrecido, surgindo como alva açucena, ou escultura de alabastro, dentre a catadupa dourada de suas opulentas madeixas, e se deixou dominar por irreprimível piedade daquele ser humano, frágil na aparência, mas possuidor de um Espírito heróico, apto às imolações mais sublimadas, cultuando a Virtude e o Bem — vínculos de luz que agrilhoam as almas nobres ao Omnipotente.. .
—Senhora — disse o Dr. Deveu, contentíssimo — operou-se um milagre:
ontem eu a considerava presa da Morte; hoje, vejo-a liberta de suas garras... No sacerdócio da Medicina há desses mistérios inexplicáveis... Dou por finda a minha tarefa.
—Eis quem operou o milagre, por intercessão de minha Sónia, doutor! — disse Ketty, apontando a tela da Virgem e narrando o que presenciara na noite antecedente.
Ao retirar-se, a convalescente expressou-lhe efusivos agradecimentos pelo seu desinteresse e dedicação.
—A gratidão, para mim, vale mais que o ouro! — exclamou o Dr. Deveu, ao sair.
—Deus vos recompensará! — tornou Ketty.
—Ele que me abençoe e ficarei satisfeito.
Não tenho aspirações terrenas. Os filhos já dispensam o meu auxílio.
Nem tarda transponha os pórticos da Eternidade: — quero, apenas, levar para as regiões etéreas este tesouro incomparável — a consciência sem máculas nem remorsos! Os homens, quase na sua totalidade, desprezam-no, mas Deus sabe dar-lhe o justo valor.
Retirou-se, então, acompanhado de Sónia, que lhe segurava a destra, ditosa e sorridente.
Depois de lhe haver beijado as faces, partiu a pé, não tendo nas algibeiras senão alguns soldos; mas no seu Espírito havia muita luz, que parecia difundir-se através dos seus cabelos brancos.
Quando Sónia voltou para junto de Duruy, este abraçou-a, dizendo a Catarina:
—Senhora, Deus certamente não aceitará como holocausto digno de galardão o vosso lento suicídio, que terá como consequência deplorável deixar ao desamparo esta criança, tal como esteve a pique de suceder ontem... Desejo ampará-las ambas, sem que vos sintais vexada...
Aceitais, doravante, minha protecção respeitosa, como noivo?
Ketty, depois de alguns instantes de penosas cogitações, respondeu:—Não, Sr. Duruy, pois viveis como o pobre Pierre, à mercê dos Oceanos traiçoeiros, e eu, que muito vos prezo, não quero, como outrora, continuar sob o guante do mesmo suplício moral que me torturou por alguns anos, à espera de um ente querido, sempre temerosa de perigos e desastres irreparáveis... Meu coração está exausto de esperar, de sofrer...
Indecifrável a alma humana! Ketty estava emocionada! Lágrimas lhe defluíam dos olhos, parecendo-lhe derivadas do coração, que se confrangia, martirizava-se, recusando uma afeição nobre, que, durante meses, tinha sido o seu único lenitivo... Sentia-se, havia muito, abandonada no Saara intérmino da vida, apegando-se ao amor de Sónia, que, na sua idade, não lhe compreendia as lutas e o infortúnio. Começou, então, a afeiçoar-se a Duruy, reconhecendo nele um carácter sem jaça. Porque, então, não aceitava, reconhecida, a honrosa proposta de casamento?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:50 pm

No momento em que tacteava uma provável felicidade, vislumbrando um rosicler no lúrido firmamento da sua existência, que, por vezes, julgava unicamente votada ao sofrimento e à penúria; descortinando, ao longe, como um náufrago, baldo já de alento, a asa branca de uma caravela, aproximando-se para a salvar... recusou, estoicamente, a taça de hidromel{64}, para sorver a de fel. ..
Porquê? Vacilava, prevendo novas dores. Não conhecia já um dos mais intensos padecimentos que experimenta um ente débil, a sós para mourejar contra os reveses do destino, sem ter ao lado um pai, um esposo, um irmão, alguém que a ajudasse a suportar esses reveses, que lhe dirigisse palavras de conforto? Sim...
Quantas vezes, em horas de isolamento e atrozes evocações, sentia atormentá-la, causando-lhe mágoas e esmorecimentos, supondo que a sua desdita já durasse séculos — a falta de um ente amigo que partilhasse consigo as vicissitudes terrenas!... Pensava que duas almas coesas, vinculadas por afeição impoluta, caminhariam impávidas pela Via-crucis do mundo, sem desfalecimentos, confortadas por mútuo afecto, vencedoras de todos os óbices, arrostando todas as tempestades morais, todas as desventuras, todos os empecilhos, serenamente, ao passo que, quando uma delas se desliga, fica a outra perplexa, hesitante, trôpega, sem equilíbrio, sem ilusões, e, então, começa a peregrinar pelos ínvios carreiros da existência, como Jesus pelas ruas de Jerusalém, levando aos ombros ulcerados o madeiro do suplício — que o aguardava, além, no Gólgota — conduzindo, acurvado ao peso descomunal de todos os tormentos morais, o instrumento de sua própria tortura, sabendo que somente encontraria repouso quando o Espírito radioso se alasse às amplidões celestes... Não há criatura antagónica ao Cristo, que não necessite de um bendito Cireneu para lhe amparar a cruz das provações terrenas — seja ele visível ou invisível — para conseguir repô-la no Calvário, isto é, atingir a perfeição psíquica, que é a sua redenção. A cruz é, pois, ao mesmo tempo, o símbolo do martírio e da remissão. A alma, quando a conduz pelas veredas da dor, tem momentos de revolta e desalento, muitas vezes a maldiz, sente os ombros chagados — porque se acha ainda enclausurada na carne — mas, quando conquista todas as virtudes, podendo, então, fruir todas as maravilhas do Universo, isenta do sofrer, tornando-se águia divina, agente benfazejo do próprio Criador, sabe abençoá-la e adorá-la. Na Terra, parece-lhe de chumbo; no Céu, leve, diáfana com a luz. No cárcere planetário, arrasta-a a passos morosos e vacilantes; às vezes, tem quedas e descoroçoamentos; depois, quando redime todos os delitos — que a faziam pesada e insustentável — ela é que a toma nos braços amplíssimos, que terminam no Espaço, porque é fincada no solo, tem por pedestal um orbe fecundo de prantos, mas o cimo ultrapassa as nuvens, atinge o Infinito... Perguntai a essa alma isolada, aturdida, infeliz, impelida pela mão premente da adversidade, se renega um apoio, uma destra amiga — que se torna fúlgida como um dos anéis de Saturno — um afecto casto, e ela terá pavor de repelir essa ventura, aterrorizar-se-á lembrando-se do porvir, que é entrevisto como um eclipse perpétuo, porque existe no seu próprio íntimo — chama-se abandono, viuvez, saudade, desânimo...
No entanto, a criatura nunca sofreria esse tormento indefinível, nem se julgaria desamparada, se estivesse convicta de que, nas horas de ríspidas expiações, possui a amizade e o auxílio incomparáveis que provêm de entidades magnânimas, dos filantropos celestes, que lhe prestam valioso concurso e a norteiam para Deus... Padece, pois, por ignorar as Leis supremas...
Às vezes, não só as desconhece, como sentimentos opostos aos do próprio coração medram-lhe num cérebro torturado... Estava num desses momentos enigmáticos a mãe de Sónia Doufour...
Amava a Duruy e recusava a felicidade que ele lhe oferecera — um indissolúvel pacto de destinos... Porquê?
A ventura é incompreensível; foi criada para ser inatingida... Não existe integral no espírito dos justos, nem em toda a Criação. Alguém aspira a alcançá-la, acalenta-a por muito tempo, sonha realizá-la, mas, apenas a sente roçar-lhe a fronte suas níveas asas, borrifadas de diamantes, hesita em aprisioná-la e murmura febrilmente:
“— É verdade que me pertences? Não me trarás amarguras e decepções?
Não te acorrento, visão encantada e fagueira; volta ao Empíreo de onde vieste — não podes ter guarida na Terra, o calabouço humano! Só tens amplo asilo além, onde gravitam os sóis, onde há claridades inextinguíveis, e não aqui, onde sorvemos trevas, onde há caudais de lágrimas...”
Compreendeu esse flagelante embate travado no íntimo de Ketty, aquele que anelava torná-la ditosa, e disse-lhe:
—Se essa é a objecção que apresentais contra a minha pretensão, eu vos desvaneço por completo; já não sou mais o imediato do Devoir, pois aceitei a gerência de próspera empresa comercial, fundada em Bruxelas, e da qual faz parte um meu parente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:50 pm

Partirei breve para a Capital belga. Podeis, pois, aceder à minha solicitação... Quereis, Catarina Doufour, fazer a minha ventura?
— Que ventura, senhor — replicou ela, com melancolia — podeis encontrar num lar onde, de há muito, só há luto, penúria e pranto?
—Esquecei-vos de que há nele também tesouros dignos do Paraíso — virtude, beleza moral e física, puras afeições — méritos inestimáveis, e, antes que pertençam ao Eterno, de que são dignos — poderão fazer-me feliz neste mundo... À senhora, não temo confiar meu futuro e meu destino...
Tanta nobreza manifestada por Gastão cativou, por todo o sempre, o coração de Ketty, que não relutou em firmar com ele um contrato nupcial.
Um mês após esse diálogo, realizou-se com extrema singeleza o consórcio de Gastão Duruy com Catarina Dufour, tendo por um dos paraninfos o generoso Dr. Deveu.

FIM DO LIVRO IV
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:50 pm

Livro V - “Ressurrecto!”

I

Doze anos decorreram após a descrita aliança conjugal.
Temos agora por cenário a capital da Bélgica.
O casal Duruy habitava aprazível vivenda.
Gastão via, quotidianamente, florescer a empresa a que se associara.
Adorava a esposa e a enteada que, então, contava mais de três lustros, era meiga, formosa e primorosamente educada. Um lar de todo invejável, se não fora um sucesso inesperado. Os mais fúlgidos diamantes também têm, por lhes diminuir o brilho, o câncer da jaça. A mais bela e odorosa flor é a que atrai o verme mais asqueroso e roaz. É que a ventura, tal como a sonha a Humanidade, jamais existirá na Terra, planeta inferior, masmorra de delinquentes, onde há incessantes pugnas morais, para que o Espírito se burile ao escopro da dor.
Qual, porém, a penumbra que inopinadamente eclipsara quase a felicidade reinante naquele lar que, carinhosamente constituído, era um Éden terreal? O nascimento de um menino, o unigénito do casal Duruy.
Consorciados e felizes, aspiravam à dita de lhes conceder Deus um entezinho ao qual amassem tanto quanto à Sónia.
Esperavam-no ansiosamente, sôfregos por beijá-lo e fazê-lo venturoso, quanto o eram eles próprios. Seu advento, porém, que ia ser saudado com estos de júbilo e preces de agradecimento ao Criador, que os fizera tão ditosos, foi-lhes amarga decepção...
Nascera-lhes, simplesmente, um pequenino monstro.
Desmoronara-se toda a alegria arquitectada em torno de um alvo berço engrinaldado de flores, um contraste irrisório, ou doloroso do ser que nele se abrigara. A criança inspirava pavor a quem a visse.
Não que lhe faltassem membros, ou que os afeassem aleijões propriamente teratológicos, retorcendo-os ou tomando formas aberrantes; era bem proporcionado, mas a fisionomia assemelhava-se a horripilante máscara de sangue; olhos garços, estrábicos, cabelos cor de fogo, boca desmesuradamente larga, que lhe dava a aparência de réptil sui generis, de mandíbulas sem dentes. Era, ao mesmo tempo, satânico e repulsivo. Os próprios progenitores não tiveram coragem de beijá-lo.
Ketty, desde que o vira, após convulsivo soluço ficara com a saúde para sempre alterada. Por momentos, desejara que a morte ceifasse o pequenino ser a que dera à luz, mas, compassiva e magnânima, por índole, repeliu tal pensamento e sentiu infinita piedade pelo filhinho, que fora levado à pia baptismal com o nome de Richard. A criança foi assim crescendo num ambiente de melancolia e carinhos reservados. Nunca tivera as expansões da infância, que, em geral, é nédia e despreocupada.
Ele era descarnado, esguio, não lhe faltando esbeltez plástica; o rosto, porém, era horripilante — causava a impressão de que afivelara à face uma diabólica máscara rubra.
Os pais o afagavam, às vezes, com os olhos marejados de pranto, mas não o osculavam nunca.
Richard tinha um génio violentíssimo. Nos primeiros anos de sua puerícia, manifestou carácter indomável e perverso, desejando torturar os animais domésticos, regozijando-se com os seus gritos de dor. Ketty compreendeu a necessidade de lhe combater os maus impulsos. Não o tendo beijado nunca, também não queria magoar-lhe a carne; mas improvisava-lhe sempre novas e úteis punições morais. Richard admirava e amava a irmã, que era sempre afectuosa e compassiva para com ele. Quando praticava alguma falta grave, Ketty dizia-lhe:
—Hoje não poderás conversar nem brincar com Sónia...
—Por Deus, mamãe, perdoai-me! Eu prometo ficar muito quietinho e bom.
—Pois bem; se cumprires o prometido, poderás, logo à tarde, passear com ela. Era o castigo que mais o atormentava — não poder aproximar-se da irmã querida!
De longe a fitava, no prisma das lágrimas e achava-a, então, mais bela, como que envolta em diamantes líquidos, focalizados em rósea alvorada; desejava atirar-se-lhe aos braços, e a tortura por que passava, impedido de o fazer, mortificava-o grandemente.
Ketty sofria, ao vê-lo arrependido e isolado, mas era inflexível.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:51 pm

Muitas vezes disse ao marido:
—Fisicamente, nosso filho é monstruoso; quero embelezar-lhe a alma, norteá-lo para o Bem e para o Criador!
Aos poucos, o carácter do pequeno se foi modificando: sua irascibilidade atenuava-se; as arestas das imperfeições eram desbastadas; tornou-se humilde e compadecido do sofrimento alheio. Quando enraivecido — o que sucedia raras vezes — Sónia dizia-lhe repreensiva:
—Richard, como ficas feio quando choras ou estás encolerizado!...
Ouvindo-a, ele estrangulava um soluço que lhe irrompia do peito, e, tal a violência do esforço para se dominar instantaneamente, que, só então, empalidecia — tornava-se um cadáver de gesso... Era tormento incessante de sua alma o saber-se horrível. Compreendera a dolorosa verdade, desde os primeiros anos de existência. Não ousava convidar os meninos da sua idade para brincarem consigo, porque os via olharem-no com pavor e percebia-lhes o sorriso de escárnio.
Maior a sua tortura, porque, vendo-se horripilante, extasiava-se ante o belo, os primores da Natureza — as flores, as aves, as estrelas... Uma tarde — tinha ele precisamente dez anos —achava-se no jardim em companhia de Sónia, então encantadora adolescente, quando a interrogou:
—É verdade, Sónia, que Deus é realmente muito bom?
—Sim. Porque me perguntas?
—Porque Deus não gosta de mim...
—Que dizes, Richard? Que é o que te faz pensar assim?
—É porque fez tantas coisas belas e, a mim, tão feio como aquele crocodilo que me mostraste hoje no teu livro novo! Porque não teve Deus pena de mim?
—Porque Deus não quer o corpo mais belo do que a alma. É destino do corpo baixar à sepultura, transformar-se em podridão e pó, ao passo que o da alma é viver eternamente, servir e amar o Pai celestial.
Somos seus filhos bem-amados, herdeiros de todas as maravilhas que elaborou e tanto aprecias!
Ele criou, para todos os seres, os mais encantadores e os mais hediondos, o mesmo céu opalino, os mesmos frutos saborosos, as mesmas flores sedutoras!
Quer, apenas, que sejamos bons. Se tu o fores, bem como piedoso e obediente, quando subires aos páramos azuis onde se acham os sóis, Ele te fará muito formoso, dar-te-á longas asas, brancas como as do cisne e possantes como as da águia, e, então, poderás voar de estrela em estrela, como os colibris de rosa em rosa!
—E há-de me beijar?
—Sim, e abençoar-te também — respondeu-lhe a irmã em extremo sensibilizada, pois compreendera o alcance das palavras do irmãozinho, magoado porque nunca o beijavam... Sentiu os olhos inundados de pranto, e, tomando-lhe a destra delicada e alva, osculou-a longamente.
—Olha, Sónia — continuou, atirando-se aos braços da irmã — se Ele me transformasse em pássaro, dando-me asas, eu gostaria de cantar e não me importaria de ser medonho... porque voaria para muito longe, onde ninguém risse de mim!
—E quererias deixar-me?
Não... Eu te viria ver... quando estivesses sozinha...
—E não terias saudades de nossos pais?
—Teria... mas não os queria ver chorar como acontece às vezes, quando me avistam... porque me acham horrível, como toda a gente!
— Mas eles te amam muito.
—Sei, mas a ti muito mais, porque és bela e muito boazinha... Também eu te idolatro e acho-te formosa como um Anjo de Guarda.
Sónia, dotada de inteligência, consolava-o, acariciava-o sempre, incitando-o a ser bondoso, a não massacrar os animalejos e as plantas, a amar os pais. Uma tarde, já em trajes de passeio, aguardando apenas que os progenitores terminassem as suas toilettes, Richard, aproximando-se de uma roseira em plena florescência, engrinaldada de rosas rubras, como que talhadas em púrpura, notou que, num dos hastis, rastejava uma larva repugnante. Num brusco movimento, atirou-a ao solo com a farpa de um galho partido e esmagou-a de uma só vez.
—Que fizeste? — bradou a irmã.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 8:51 pm

—Não viste? Matei uma nojenta lagarta que iria corroer aquelas rosas que tanto aprecio, se lá a deixasse ficar! Fiz mal? Se Deus fez tão feia, e má, a lagarta, é para que a matemos!
—Como te iludes, Richard! Não são os mais belos seres os que produzem as obras-primas, ou úteis à Humanidade. Os grandes génios têm sido destituídos de beleza física; os beija-flores, formosas jóias aladas, são improdutivos, inúteis, ao passo que a madrépora, gelatinosa e repulsiva, produz a pérola, que parece uma gota de luar, cristalizado.
Nós, imperfeitos, é que amamos somente o que nos parece lindo; e Deus, que é a perfeição quintessenciada, não selecciona os seres senão pelos nobres predicados que possuem. Quem sabe se, para Ele, uma larva não vale mais que uma rosa? Deu-lhe vida, movimento, instinto de conservação, faculdade de segregar o fio de seda com que são urdidos os mais formosos tecidos, como o cetim, o veludo, o crepe da China, que seduzem pelo tato e pela vista e, fazendo-a extremamente repugnante e feia, deu-lhe apurado gosto, pois ama as flores e, mais tarde, depois que produz o casulo mimoso, torna-se tão bela como a própria rosa, metamorfoseia-se em borboleta!
—É verdade o que dizes, Sónia? Aquela horrível lagarta poderia ainda se transformar em falena azul?
—Sim!
—Ah! então, sou muito perverso!... Perdoa-me. Tu não me bates porque sou feio e Deus me conserva a vida, podendo esmagar-me qual o fiz à lagarta!
Como sou mau!
Depois, fitando a irmã, radiante de formosura, alva, trajada de cetim-rosa, disse-lhe:
—Mas, porque Deus me fez lagarta... e a ti borboleta?
—Ainda serás borboleta! É mister, porém, produzas o fio luminoso com que tecerás a própria felicidade — todo o bem que puderes praticar na Terra...
Deus não vende nem dá a ventura — permuta-a pelas boas acções dos que desejam conquistá-la, e pelo sofrimento suportado com resignação...
—Quem te disse, Sónia?
—Alguém, um ser invisível, talvez o meu anjo tutelar, que me segreda o que te digo, às vezes; e porque também já li, num livro deixado por meu pobre paizinho, assinalado de lágrimas em diversas páginas, “que é a Dor a conquistadora da felicidade que nos aguarda além, nos páramos divinos!” Sofre, pois, Richard, com resignação, e serás por Deus galardoado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 14, 2023 10:46 am

II
A situação pecuniária de Duruy continuava a prosperar, permitindo-lhe proporcionar à família o máximo conforto. Residiam em casa aprazível, onde havia luz, pomar, caramanchéis floridos, aos cuidados de Sónia e do irmão, que os ornamentavam de raros espécimes vegetais; Richard estudava com eméritos professores que, quase diariamente, iam a domicílio leccionar-lhe diversas matérias. Fora, ao completar dez anos, internado em afamado colégio de Bruges; mas, a tortura que em poucos dias lhe infligiram os condiscípulos, fez que o pai fosse buscá-lo prestamente.
A sua efémera permanência no internato assinalou-se por inolvidáveis dissabores: os alunos dirigiam-lhe palavras mordazes, galhofeiras, escarninhas, alcunhavam-no de apelidos deprimentes, não se aproximavam dele voluntariamente senão para atormentá-lo, fazendo-lhe caretas horripilantes, que, no entanto, representavam, quase com precisão, a sua fisionomia... Dir-se-ia que a presença de Richard transformara todos os alunos em desenhistas humorísticos, ou autores de sátiras. Os professores, exasperados, puniam os mais rebeldes, mas toda a repressão era improfícua, pois os meninos sentiam recrudescer a animosidade contra Richard, que se humilhava, tinha o coração confrangido, mas não chorava, para que se não tornasse mais horrível, para que não escarnecessem de suas lágrimas...
Escrevera ao pai, em momentos de dor acerba, relatando-lhe os lamentáveis sucessos do internato. Duruy foi buscá-lo imediatamente, logo que recebeu a carta, e resolveu fazê-lo estudar em casa. Sónia exultou ao ver o irmão regressar, pois muito o amava e não se conformara com a separação. O ensino individual foi-lhe vantajoso.
Ele era inteligente, analista ponderado, propenso às induções científicas, espírito pesquisador e reflectido. Seu carácter, que nos primeiros anos se manifestava violento e irascível, devido à educação moral que recebia incessantemente, abrandara-se, adoçara-se; tornou-se compassivo e meigo, não só para com os irracionais como também para com os infortunados. Sofria estoicamente, sem um lamento, as espezinhações que lhe infligiam os que o achavam horripilante. Não tinha um brado de revolta contra o destino, mas vivia sob o guante de um dissabor indizível e inconsolável, oriundo do seu físico, que lhe dava a aparência de um carnavalesco de carantonha trágica.
Amava o convívio social e padecia intimamente por ser compelido a viver como um recluso, para não ser alvejado pelos olhares curiosos e cruéis, dos que nele se fixavam só com o fim de fazerem zombarias.
Sónia completara dezoito anos. Era esbelta, pálida como Pierre, tez primorosa de camélias brancas expostas ao luar, com tonalidades de nácar nas faces; cabelos castanhos semi-dourados, em ondas flexíveis, olhos merencórios, cílios longos, como para atenuarem o brilho das pupilas de topázios fúlgidos.
Richard atingira os onze anos. Era descarnado, porém airoso como seu genitor. Seu corpo de níveo jaspe e de contornos aristocráticos contrastava frisantemente com o rosto, sempre rubro, com máculas cor de avelã; nariz que se tornava cada vez mais desproporcionado, olhos estrábicos, glaucos, boca desmesuradamente grande, como que desarticulada quando falava, dentes desalinhados, cabelos que lembravam chamas, apenas aparados como os dos meninos ingleses.
Uma tarde, estavam ambos com vestuários de passeio. Sónia, radiosamente bela, trajava de róseo; Richard trazia uma roupa de veludo safira.
Aguardavam os pais, que ultimavam suas toilettes.
Richard mirava-se ao espelho, o que, aliás, raramente fazia. Por momentos, analisou atentamente a própria fisionomia; depois, com um rictus doloroso, esforçando-se para que o pranto não lhe borbulhasse nos olhos sem brilho, como que apagados, nevoados como os dos seres inanimados pela morte, disse à irmã querida:
—Sónia, parece-me que meu organismo é a junção de dois corpos diversos: do pescoço aos pés sou um fidalgo, um príncipe talvez, alvo e donairoso; do mento para cima sou um ser horrível; minha cabeça é a de um outro ser, de alguém que já tivesse sido sepultado em começo de decomposição; ou antes, tenho a cabeça de um guilhotinado, que houvesse rolado no próprio sangue, sobre a terra denegrida — conservando ainda vestígios de ambos, terra e sangue — e que, depois, apanhada por um Cagliostro prodigioso, fosse colada a um pescoço de gentil-homem... Causa-me horror o meu aspecto! Sabes o que imaginei, agora? Costumas dizer que há uma crença — conhecida desde os tempos imemoráveis pelos povos mais antigos do Egipto, da índia e da Grécia — a qual afirma termos mais de uma existência, ou antes, que a nossa alma progride, transmigrando em diversos corpos...
Quem sabe se há, realmente, mais de uma encarnação? Em tudo quanto vemos há tanta harmonia — no céu e na Terra, nas aves e nas flores! Porque, pois, sou um ser à parte, uma selecção da Natureza, um corpo que oferece contraste nos próprios membros, que parecem fragmentos de diferentes criaturas?
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 5 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 14, 2023 10:46 am

Acabo de imaginar que outrora fui um carrasco, muito cruel, que se comprazia em esquartejar, mutilar entes humanos, e hoje, para expiação de seus crimes, minh´alma liga dois fragmentos de pessoas diferentes — das muitas vítimas que decapitei impiedosamente — unindo assim o corpo de um aristocrata à cabeça degolada de um bandido!
—Por Deus, Richard, não digas semelhante coisa, que me amedrontas! — exclamou Sónia apavorada, realmente, pois naquele instante tivera o mesmo pensamento que o irmão, calando-se, contudo, para não magoá-lo.
Fitou-o, com indizível amargura, vendo-o lacrimoso, de face contraída, e com tal expressão de dor que a fez pensar:
—Quanto vai padecer o pobre Richard no decurso da vida! Parece, incontestavelmente, que o próprio Deus lhe afivelou ao rosto hedionda máscara, para representar na Terra uma tragédia shakespeariana...
Depois, acercando-se do irmão, enlaçou-o afectuosamente e disse:
—Sê sempre bom e todos te acharão belo como Jesus!
—Diz-me, Sónia, não te vexas de sair à rua comigo — tu, que és linda, comigo, que sou um monstro?
—Não, meu querido exagerado, porque te quero muito... Às vezes, acho-te formoso... Sabes quando? Quando progrides nos estudos, quando manifestas nobres sentimentos, quando praticas acções louváveis!
—Obrigado. Não és somente bela — mas piedosa e boa também. És anjo na alma e no corpo.
O diálogo foi interrompido com a chegada dos esposos Duruy —ainda moços, gentis e enamorados sempre.
—Querem saber o que acabo de resolver? — disse Gastão dirigindo-se a Sónia e ao filho.
—Diga, papai.
—Pretendo ir breve à Inglaterra, desembarcando antes na ilha de J..., para visitar um irmão e paraninfar o consórcio de minha primeira sobrinha. E resolvi que iremos todos.
—Muito nos alegra a boa nova — murmurou Sónia, radiante. — Folgamos em saber que vamos viajar por mar. Não iremos à França também?
—Sim, na volta.
Palestrando amistosamente, saíram, como sempre, de carruagem, para não fazerem reparo em Richard.
Poucos dias após essa afectuosa confabulação, Duruy e a família embarcaram em Antuérpia num navio com destino à Grã-Bretanha, com escalas pelo Havre, Brest, ilha de J..., e finalmente Liverpool, onde Gastão pretendia demorar-se algum tempo.
Richard e Sónia estavam maravilhados com a viagem marítima. Ficaram longo tempo no tombadilho a contemplar o pego azulado, permutando ideias que traduziam íntimas impressões. Observaram que alguns passageiros faziam comentários a respeito de Richard. Sónia, pesarosa, convidou o irmão a retirar-se e foram ambos encerrar-se no camarote. Sentiu-se a jovem subitamente entristecida, apreensiva, dominada por vago temor, misterioso e indomável.
Depois da segunda refeição, ao lado de Richard, foi novamente mirar as vagas imersas nos derradeiros clarões crepusculares. Lembrou-se do genitor com enternecimento e saudade, fitando a vastidão oceânica, o seu túmulo — túmulo de marinheiro, quase infindo, no qual jamais poderia espargir flores, mas onde as estrelas se retractavam enamoradas do próprio fulgor, como Narcisos de luz...
Entardecia.
O mar, muito sereno, não tinha gemidos como um coração ditoso, reflectindo, qual espelho, a luminosidade do céu que o coloria de tons purpurinos, parecendo que um artista sideral, repentinamente enlouquecido, depois de haver pincelado o horizonte de tinta nacarada, vazasse o sobejo nas ondas, cujas cristas espumosas se cobriam de coral fúlgido e se tornavam diáfanas, luminosas, engrinaldadas de rosas subtis, que desabrochavam e se desfaziam com rapidez feérica... Quando as primeiras estrelas abrolharam no Firmamento, como se este fosse um imenso zimbório de catedral gótica verrumado a esmo, jorrando ouro e luz em cada orifício, incendendo suavemente o sendal nocturno, os filhos de Ketty encaminharam-se à grande sala reservada às refeições. Não distante, no salão de reuniões e palestra, harpejavam num melodioso Pléyél, dolente rêverie.
Sónia e Richard, evitando prováveis comentários, instalaram-se à extremidade de pequena mesa, entretendo-se com um jogo infantil, combinando cubos diversamente coloridos para completar as imagens neles fragmentadas.
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 5 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 14, 2023 10:46 am

Bruscamente, seus olhos foram atraídos para uma estranha personagem, que irrompeu na sala e eles ainda não tinham visto, infundindo-lhe pavor:
fitava-os, com insistência, a poucos passos do local em que se achavam, um septuagenário que devia ter sido descomunalmente alto, mas que, então, estava com o dorso vergado como o de um dromedário; rosto puníceo, ravinado de sulcos profundos em diversas direcções, como feitos a escopro por escultor excêntrico e macabro, nariz adunco, formando quase um ângulo recto; olhos encovados, salientando-se as órbitas como que vazias, mas possuindo um brilho fosforescente, mesmerizante; boca semiaberta, onde havia plantados raros dentes negros, parecendo carbonizados; tendo, enfim, a aparência de um Mefistófeles decrépito, em ruína, banido, por um instante, ou eternamente, do Averno, talvez expulso pelos que mais o temessem...
Richard deixou de jogar, achegou-se à irmã, trémulo, e murmurou quase imperceptivelmente:
—Sónia, que homem medonho! Tenho receio de ficar assim, quando envelhecer! Será mesmo um velho?
Quem sabe se não é Satanás a bordo deste navio para o arrebatar ao Inferno, fazendo-o soçobrar ?
Vamos para junto de nossos pais... Tenho medo... Reza baixinho, Sóniazinha, que ele já está perto de nós...
Ergueram-se os dois, mãos entrelaçadas, com o intuito de fugirem do recinto onde estavam, mas o horripilante velho já se achava próximo deles, andando sempre em sua direcção, rumorosamente, como o faria um gigante de chumbo, trôpego, mal firmado nos pés esmagadores, titânicos...
Abeirou-se de Richard, no qual fitava os olhos torvos. Depois, colocando-lhe a destra engelhada, em forma de garras de falcão — à criança pareceu pesada manopla de bronze que fosse achatá-la —, sobre os seus cabelos fulvos, alisou-os com carinho e falou com indizível emoção:
—Como te chamas, meu menino?
Antes que Richard lhe respondesse, vergou mais o corpo ciclópico, fixou-lhe a vista, que desprendia estranho brilho — como se de suas órbitas de dragão fantástico se filtrasse uma chama subtil, de fogo fátuo, originada em sua alma que ardesse, qual ponche, dentro do crânio volumoso, para o enfeitiçar — e falou em francês alterado por dição exótica, com a voz trémula, parecendo saída de uma caverna ou báratro profundo:
—Como és belo, meu menino! Belo!
Richard cerrou as pálpebras, subitamente descorado e como tomado de vertigem: um relâmpago de intensa ventura deslumbrou-lhe a alma, fascinando-a, inebriando-a de luz! Julgava estar delirando: aquele ente hediondo — e se não o fora, também tal não lhe diria! — achara-o belo... Era a primeira vez e, certamente, a última, que lhe diriam... Seria gracejo? Ele, Richard, não podia ter ilusões a respeito do seu físico: desde que em sua mente dardejara o uso da razão, compreendeu que todos, inclusive seus genitores, achavam-no monstruoso; e era essa a opressora realidade que o espezinhava, que o esmagava, que o isolava dos outros meninos que o temiam — o mesmo temor instintivo que se lhe apoderara da alma, ao ver aquele velho repulsivo...
Um brusco enternecimento lhe germinou no coração, fazendo que lágrimas ardentes humedecessem seus olhos de zanaga... Teve ímpetos de segurar a mão engelhada que se acurvava sobre sua fronte e cobri-la de beijos — beijos de gratidão, de eterno reconhecimento! A um monstro, era lícito acariciar outro...
Jamais — pensou a criança, antevendo o futuro — em todo o curso da sua existência, alguém lhe diria aquelas palavras mágicas, fascinadoras...
Estavam todos estarrecidos, como sob o influxo de misterioso efialta. Foi Sónia quem interrompeu o silêncio, dizendo ao desconhecido:
—Porque falais assim, senhor? Meu irmão não é bonito, tal.
—Não é? Ora essa!
Pois acho-o adorável, um anjo! Sabes porquê? Ah! não compreendes — tu, feliz — o que se passa neste velho coração ajoujado, intumescido de rancor e de desgostos, tantos, tantos, que me fazem andar arqueado como um cutelo... É bastante dizer que tinha um filho idolatrado, o qual, quando criança, era o retrato do teu irmãozinho. Depois, em plena juventude, na flor da vida, mataram-no barbaramente, menina! Ai! já lá se vai mais de um quarto de século que não o vejo, e tenho sempre viva, perfeita, a sua imagem gravada na mente; não posso dele me esquecer um só instante! É a primeira vez que encontro alguém semelhante ao meu André! E quanto isso me comove! Agora, reparo que também possuis alguma semelhança com minha filha... uma infeliz que morreu louca! Porque me persegue hoje o acaso com estas evocações pungentes, agora que me julgo à beira do túmulo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 14, 2023 10:46 am

Que perversa entidade preside ao meu destino, para se comprazer em me revolver n´alma a adaga dessas lembranças cruéis? Para que recrudesça o meu rancor? Maldito seja ele — Deus ou Satanás! Quando me acerquei de vós, julguei estar alucinado, sob a pressão de um pesadelo, vendo reproduzidos os espectros de duas criaturas que, há muito, jazem em longínquos sepulcros...
Retirou a mão da cabeça de Richard, dominado por sentimentos impetuosos.
Sónia, apesar da intuitiva aversão que sentia por aquele homem, disse-lhe com doçura, desejando acalmá-lo:
—Não recordeis o passado! Não tendes mais família?
—Não. Roubaram-me os filhos e a mulher e deixaram-me infortúnios e dissabores. Ganhou, pela certa, quem permutou comigo. Dizem que Deus é misericordioso e justiceiro; mas eu só vejo iniquidades... Porque consente Ele que Satanás se compraza em nos atormentar desde vivos, e, depois, ainda lhe outorga o direito de nos arrastar ao Inferno? Estais apavoradas, crianças? Já estive iludido outrora, como vós. Hoje me acho em plena realidade. Desconfio que tudo — Deus e Lúsbel — não passam de absurda, monstruosa ficção... Mas, mudemos de assunto. Como se chama teu irmãozinho, minha menina?
—Richard Duruy.
—Um lindo nome. E o teu?
—Sónia Doufour.
—Sónia Doufour... Não estou louco? Ouvi mal? — disse soturnamente, gesticulando desordenado, e, iracundo, abeirando-se da jovem, que empalideceu e recuou um passo, interrogou abruptamente:
—Sónia Doufour, órfã de pai?
—Sim, senhor.
—Quem era ele?
Antes de lhe responder, Sónia circunvagou o olhar pela sala. Estava amedrontada. Tinha a vaga intuição de um perigo iminente. Recobrou ânimo, avistando Gastão e Ketty, que andavam à sua procura. Duruy ouviu a arrogante arguição do horripilante ancião, e estremeceu recordando-se, repentinamente, de já tê-lo visto a bordo do Devoir.
Sónia respondeu-lhe com voz meiga:
—Era o primeiro piloto do Devoir, um navio francês, —Maldição! Maldição! — rugiu, apopléctico, tornando-se mais medonho e rubro. Cerrando os punhos, brandiu-os ameaçadoramente e desfechou forte pancada sobre a própria fronte intumescida e congesta, como que encapelada, sulcada de vincos tão profundos que patenteavam a violência vulcânica dos seus pensamentos, medrados na cratera do cérebro, de que era a crosta purpúrea, parecendo fendida em momento de terremoto...
—Que tendes? — interveio Gastão, encarando-o de frente. Reconheceu, nitidamente, naquele indivíduo, o execrável passageiro do Devoir, perseguidor implacável de Pierre, que, talvez para dele se libertar, tivesse posto termo à vida... Peterhoff não o ouviu, tal a exaltação em que se achava. Dirigiu-se a Sónia, com verdadeira cólera leonina:
—Sabes quem era teu pai?
—Um honesto francês.
—Ele mentiu a todos. Era um foragido da Rússia — o assassino do meu André! — tornou Peterhoff com um brado selvagem, atirando ao chão o barrete negro de astracã, que trazia à cabeça pendida, quase perpendicular ao tórax, surgindo, então, aos lados do crânio volumoso, desnudado da testa ao occiput, raros cabelos brancos e ruivos — mescla de fios de prata pincelados a sangue — dando impressão, a quem os via, de haverem colado a uma esfera purpurina algumas mechas de algodão, servindo de penso a uma chaga cancerosa...
Quem o fitasse naqueles instantes, compreenderia a exacerbação do seu espírito, a veemência dos seus sentimentos. Dir-se-ia que as ideias lhe rumorejavam no cérebro, projectavam fagulhas ou lavas candentes, detonadas surdamente, qual explosão subterrânea de grisu.
O cérebro — onde se impregna a mente, o cerne d´alma — é a jazida inesgotável dos pensamentos. Se estes são castos, generosos, calmos, não deixam vestígios na fronte, que apresenta sempre a serenidade de um horizonte azul, como o dos países meridionais; se, ao inverso, são ardentes, impuros, rancorosos, esculpem nela estrias profundas, indeléveis, como feitas no mármore pelo buril de um escultor delirante.
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 5 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 14, 2023 10:47 am

A fronte é, pois, o reflexo do que se passa na mente, o firmamento da alma, onde se patenteiam, de modo indiscutível, as suas borrascas ou as suas luminosidades de estrela Vésper, que a engrinaldam de clarões suaves.
Duruy compreendeu o que esfervilhava naquele Vesúvio humano, a efervescência dos sentimentos prestes a explodir em imprecações, e disse-lhe com energia:
—Provai o que dizeis!
—Quereis provas? — rugiu estentoricamente Peterhoff. — Tive-as agora insofismáveis, irrefragáveis! Ides sabê-lo dentro em poucos momentos. É mister, primeiro, saibais quem sou: natural da Rússia, o barine{65} de uma aldeia de Novgorod, onde, outrora, vivia feliz, com minha esposa, que mais tarde morreu de desgostos, e um casal de filhos adorados e formosos. Fui atuado por Belzebu para acolher no meu lar venturoso um pária, um cão chamado Pedro Ivanovitch — ouvi bem este nome execrando, que me escalda os lábios ao pronunciá-lo! o qual foi criado com carinho, ao lado dos meus...
Sabeis como retribuiu ele a minha afeição paternal?
Enamorou-se de minha filha, de nobre estirpe, não cogitando da distância que os separava; e, como André descobrisse a sua audácia inqualificável, foi por ele barbaramente apunhalado! Procurei-o, desde então, baldamente por muitos anos. Quando consegui, por vagas informações e suspeitas, saber que ele se açoitava a bordo do navio francês Devoir, com o falso nome de Pierre Doufour — que roubou a um marselhês falecido na Rússia, repentinamente — e ia entregá-lo à Justiça, o miserável, adivinhando o meu intuito, atirou-se ao mar...
Entregá-lo à Justiça, disse eu? Menti! Não, mil vezes não! Queria apenas ter a inconcussa certeza de que era eze{66}, para, em pleno tribunal, embeber-lhe no coração o mesmo punhal com que feriu André!
Trago-o comigo, sempre, espreitando a hora bendita da vingança... Pesa-me, como avalanche polar, sobre o coração, pejando-o de ódio, que nunca saciei... Foi para atirá-lo — como um desafio e uma afronta — ao local onde se arrojou o bandido, que empreendi esta viagem, longa e penosa para mim, enfermo e prestes a baixar ao túmulo, a fim de, aliviado do peso desta arma mil vezes maldita, poder cerrar por todo o sempre os olhos, tendo talvez de morrer abandonado entre estranhos!
Se ainda pairasse um átomo de dúvida em meu espírito, quanto à identidade do facínora, o acaso providencial encarregou-se de me fornecer a prova concludente — o nome desta menina, que é o mesmo da minha filha, que morreu louca por ter assistido ao homicídio do irmão querido!
Duplamente criminoso o maldito — dar à filha o nome de uma de suas vítimas! Celerado! Compreendo, agora, o que vim fazer a este navio: chamou-me a voz do sangue de André, soou o momento delicioso da revanche... Do Inferno, onde se acha o vilão que infelicitou o meu lar, há de ele sofrer como eu tenho sofrido... Anos seculares de angústia, ides ter uma compensação! Não pude cevar, até hoje, a minha justa cólera, o meu ódio santo; não pude justiçar o carrasco de meu filho adorado; percebo, porém, agora, o que o destino me ordena e me arrasta a realizar — arrancar a vida à filha do infame que, qual terrível furacão passou pelo meu lar, desgraçou os que me eram amados, tornou-me um Belibeth desventurado, um Judeu-Errante sem pátria e sem família, com o mesmo punhal que trespassou o coração generoso de André! É formidável, é justa, é nobre, é santa a minha desforra!
Enfurecido, pletórico, Peterhoff levou a destra — oscilante de sanha, como um pêndulo — à algibeira do casaco, do lado esquerdo. Tinha o hórrido aspecto de temível e cruel verdugo...
Richard, soltando um grito estrídulo, abraçou-se à irmã idolatrada. Duruy, como que electrizado, sacou rapidamente da cinta um revólver em defesa de Sónia, contra o perverso agressor, mas este não chegou a desembainhar a arma homicida— caiu qual bloco de pedra no soalho, acometido de apoplexia cerebral.
Gastão foi comunicar o ocorrido ao comandante do navio, e, ao regressar à sala onde estava a família, encontrou Richard desmaiado nos braços de Ketty. Tomou o filho, e, acompanhado de Sónia e da esposa consternadas, encerrou-se no camarote.
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