LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:50 pm

VI
“Ao ouvir essas palavras, fiquei meditabundo, com as feições alteradas por íntimo sofrimento: pensava em partir, em me separar eternamente daquele santo protector e de Sónia Peterhoff, que eu idolatrava, sentindo por ela um amor invencível, como quando o temos tecido de obstáculos, sem esperança de ser partilhado o nosso afecto, amor que se tornava vibrante, perene, incomensurável!
—Pedro — repreendeu-me brandamente o abade —, ocultas algum pensamento angustioso ao teu confessor e velho amigo?
Pus-me a soluçar. Ele me encorajou ao dizer-lhe eu o que havia de secreto em meu íntimo. Obedeci-lhe.
Ao ouvir-me a confidência, ergueu-se bruscamente, comprimiu a fronte encanecida com as mãos quase imateriais, dizendo compungido:
—Porque, filho meu, não soubeste dominar os impulsos do coração enlouquecido? Porque me não fizeste, há muito, essa grave confissão, Pedro?
Eu estava mudo, sem aventurar uma tíbia defesa. Ele se achegou a mim, pousou a destra no meu ombro esquerdo, falando com inusitada energia:
—É mister partires mais breve do que supunha, para não cavares tua perdigão, antes que seja o teu Espírito lacerado por atrozes tormentos! Não compreendes que serão capazes de tirar-te a vida — o Sr. Peterhoff e o seu filho — se desconfiarem que amas a Sónia? Ela é formosíssima e mais opulenta que o irmão. Há um legado do padrinho — para lhe ser entregue no dia de suas núpcias — avultadíssimo. Seu genitor já me revelou que vai levá-la a Moscou para realizar o consórcio com um sobrinho. Breve, talvez, hás-de vê-la pertencer ao esposo, que não será melhor do que tu, mas desfruta prerrogativas sociais que não possuis... És sombra, na Terra; Sónia é estrela radiosa; concebe-se que a ames, porém nunca a alcançarás, desventurado Pedro!
É assim constituída a sociedade. Quem somos nós, eu e tu, míseros e obscuros, para derrocar leis seculares e absurdas? Deves partir para longínquas paragens, antes que Sónia se enamore de outrem!... Ai! filho meu! Não conheces ainda o suplício inominável que preme um pusilânime coração humano, quando transborda de zelos! Não sabes o que é a dor inaudita que o empolga, ao ver em mãos alheias o seu ideal, o objecto único dos seus sonhos, alvo da sua existência, que o fazia pulsar e conceber aspirações fagueiras... Quando possuídos deste luciferino sentimento — o ciúme — parece que há um desmoronar fragoroso dentro de nossa própria alma, fazendo ruir todos os nossos encantadores anelos; há um cataclismo em nosso coração quando perdemos a esperança de conquistar o único ente adorado neste mundo; cuidamos que se abre um orco apavorante a nossos pés, e um violento ciclone nos impele para ele, vertiginosamente, enquanto o peito nos estala com desespero!... Se, entretanto, resistimos a essas secretas eversões{28} devastadoras, vivemos, desde então, como tendo o coração repleto de escombros, onde não floresce, jamais, o lírio de uma derradeira ilusão, mas vicejam, com exuberância, os cardos pungitivos de todas as reminiscências, de todas as saudades... que só morrem connosco!
Se, ao inverso, nesses momentos de martírio ignorado nos deixamos dominar pela paixão que nos devora, não tendo a energia precisa para triunfar de impetuosos sentimentos, somos impulsionados, como ébrios, a perpetrar os maiores desvarios, as maiores vilanias, os crimes mais execráveis... Foge, Pedro, desses instantes diabólicos! Vai ocultar bem longe desta região as tuas desditas, implorando ao divino Pai que, quando a Ele recorremos, nunca nos abandona — conceder-te denodo moral, perseverança no trabalho, refrigério aos teus padecimentos, esquecimento do passado, e, então, poderes ligar ao teu o destino de modesta criatura, que te fará olvidar essa insânia da juventude... Urge partas depois de amanhã, Pedro! Sou eu, o sexagenário experiente dos parcéis da vida — quem te manda fugir à voragem de que andas próximo... como eu o fiz outrora, a tempo de evitar desventuras que, depois, seriam irremediáveis!
Era uma revelação que ele me fazia e que eu nunca lhe suspeitara... Vi, então, enternecido por intensa piedade, daquele austero ancião sempre tão calmo e resignado, passar a destra fremente pelos olhos, tentando talvez suster lágrimas que afluíam em profusão, todo o seu débil organismo agitado por emoção insofreável...
Compreendi a grandeza da sua agonia, que ele soubera sempre sepultar no coração varonil, sentindo que nunca o venerara tanto como naqueles momentos inolvidáveis em que compreendi não ser o único a suportar angústias infinitas, que outras existem mais atrozes ainda do que as minhas, macerando almas nobres, votadas ao Bem, vivendo sem uma quimera terrena, mas que sabem reprimir seus tormentos para lenir as chagas dos seus irmãos, pungidos da mesma pena...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:51 pm

Comparei a minha mocidade em flor com o glacial inverno daquele velhinho adorado e arrependi-me de lhe haver confessado meus padecimentos, que se amesquinharam em confronto com os seus, com os que flagelavam seu vibrátil coração, morto para todas as felicidades mundanas, e que, por isso, se voltara para as do Empíreo, inexauríveis!...
Até então, amara-o como pai; doravante, porém, que uma grande dor nos aproximara como irmãos da mesma idade, avancei em anos, vi-me como ele, já com os cabelos de neve, no declínio da vida, sem ilusões nem sonhos, e essa igualdade de destinos nos aliou mais, confundiu nossas almas, algemando-as num grilhão indestrutível...
Era mister obedecer-lhe para lhe poupar mais sofrimento, para me desvencilhar do torvelinho que ele antevia, diante e sob meus pés...
Prosternei-me, suplicando me abençoasse, a fim de partir naquele mesmo instante.. .
Sacudiu negativamente a cabeça argenteada:
— Não, Pedro, ainda não disponho da quantia suficiente para a tua longa viagem... Arranjá-la-ei amanhã com um velho amigo.
Fica preparado para partires à tarde. Aluga um bom corcel, prende-o onde te convier e vem, durante o dia, buscar a carta de apresentação, bem como o restante do dinheiro que te pretendo ofertar...
Deu-me uma pequena bolsa com alguns rublos e aconselhou-me a que fosse repousar.
Retirei-me ao tugúrio, mas não pude adormecer. Meu cérebro parecia estar sendo crestado pelos pensamentos, tornados comburentes, quase crepitantes...
Levantei-me ao dealbar e, tendo ido cumprir uma ordem do Sr. Peterhoff, avistei o abade Francisco, que, tão preocupado estava, não me enxergou.
Seu vulto esguio, entrajado de negro, com um capuz à fronte, passou por mim lentamente sem me perceber, e, quando o vi desaparecer além, numa curva do caminho em direcção à residência de um antigo merceeiro, lembrei-me de que ele ia contrair uma dívida para me salvar...
Profundo enternecimento avassalou-me, não podendo reprimir o pranto copioso...
Não me comovera somente a prova de afeição que me dera o nobre velhinho, que eu via distanciar-se, mas a ideia de em breve não poder mais contemplá-lo com veneração, receber suas advertências, seus ensinamentos incomparáveis... Como me pungia a alma o saber que era forçoso apartar-me dele por todo o sempre, e daquela pobre aldeia que, em horas de humilhação e dissabor, eu desejara abandonar, mas que, no momento de realizar esse anelo de servo oprimido, tornava-se um suplício inominável para mim... O pensamento de que jamais poderia rever aqueles sítios, fez-me enxergá-los sob outro aspecto, compreendendo que os amava infinitamente... Olhava-os, já com saudade antecipada, com as pupilas embrumadas de lágrimas...
O coração, senhor, semelha-se a um menino caprichoso e irreflectido: não se sabe, nunca, ao certo, o que almeja realmente, e, por isso, a dúvida o martiriza do berço ao túmulo.
As vezes o sonho fagueiro é-lhe suplício indizível à tarde, uma veemente aspiração, que lhe parece ser a única da existência realizada, encontra-o insensível e, por isso, se uma Fada benfazeja lhe dissesse: — “Pode ser efectuada agora!” ele ficaria perplexo e interrogaria a si mesmo: — “Serei realmente feliz, tornando a flor de um sonho em fruto tangível?” E teme que o seu almejo querido se torne em certeza palpável, porque, logo, se transformará em pó...
É por isso, senhor, que ele vive a fantasiar, a arquitectar castelos de névoas que o Eviterno derroca suavemente, porque o Eviterno sabe que unicamente o Ideal é amado com delírio e pureza; só o que é insaciável, inacessível, tem duração no seio humano; a mais rósea quimera, efectuada, torna-se em cinza, a mais leve aragem a desfaz, polui, metamorfoseia o ouro do Ideal em torno marnel...
Eis o que eu conjecturava naquela manhã, acompanhando com o olhar a silhueta do nobre sacerdote, que ainda adoro como antigamente.
Curvei a cabeça, e, contrito e arpoado por tétricos augúrios, implorei ao Criador me concedesse coragem de partir para sempre, de estrangular no âmago do meu ser os sentimentos que nele se conflagravam, e, sobretudo, para poder sepultar — como o abade, meu irmão pelo mesmo pesar que nos consumia — um amor impossível de ser correspondido, e, por ser irrealizável na Terra, duraria por toda a consumação dos evos...
-*-
No dia imediato ao em que fora decidida a minha retirada da Rússia, André arvorou-se em chefe da jardinagem, para ter ensejo de espezinhar-me.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:51 pm

À tarde, antes de ir à casa do Pope receber suas ordens, apurei meu vestuário e esperei o momento em que Sónia costumava passear no parque, para apresentar as minhas despedidas. Ela, porém, conservou-se reclusa no interior da casa.
Estava na sala de visitas, com as janelas semicerradas executando ao piano, em surdina, um merencório nocturno...
Era um lamento, um doce queixume, que partia da sua para a minha alma.
Ouvi-o religiosamente, com a fronte descoberta, como se estivesse escutando uma prece de sons, com os olhos enevoados, o coração intumescido de acerbo padecer...
Eu me resignava a expatriar-me; mas desejava dirigir-lhe ao menos algumas palavras, apertar-lhe pela primeira e derradeira vez a generosa mão, agradecer-lhe a piedade que sempre por mim manifestara... Ai! e ela não aparecia à janela, e eu receava não a ver jamais, tendo já contado os segundos para fugir de quem ansiava por me não apartar, sequer, um momento...
Recolhi-me ao tugúrio — o qual nunca me pareceu tão mesquinho como naquela tarde, e, no entanto, desejava nele exalar o último alento — solucei por algum tempo, ouvindo ao longe, como em sonho quase indistinto, os harpejos que Sónia arrancava do piano, interpretando os gemidos do meu coração, que eu tinha ímpetos de varar com um punhal calabrês que, havia muito, dele me não separava...
Nunca me julguei tão malfadado, tão só e abandonado no mundo, como naquela hora de sofrimento pungentíssimo...
Formulei, então, um plano para executar naquela noite que se avizinhava.
Então, como tíbia esperança a minorar as constrições do meu secreto prisioneiro, a palpitar enlouquecido, pus-me em direcção ao presbitério.
Recebeu-me o bondoso sacerdote com solicitude paternal, mas imensamente triste, assustando-se por causa da minha palidez, ele que parecia uma efígie de jaspe...
Palestrou longamente comigo. Deu-me instruções proveitosas e imprescindíveis à minha viagem. Ofertou-me algumas centenas de rublos e, depois, falou-me como um inspirado divino, proporcionando-me sublimes advertências. Eu o ouvia, emudecido, sem ousar pronunciar um vocábulo sequer, para dissimular minha agitação, que, de outro modo, explodiria em soluços...
— Compreendo a tua situação, Pedro — disse-me carinhosamente —, e para que te ocultar a verdade? Já estive em idêntica conjuntura. Enterro, porém, no meu seio, que começa a ser invadido pelo gelo sepulcral, todo o meu longo e doloroso passado, para me lembrar apenas do teu aflitivo presente; não quero esquecer-me de que já não careço das felicidades do mundo, para só me lembrar de que devo concorrer para libertar um cativo da tirania de criaturas opulentas, quanto cruéis; e do guante de um sentimento que, baixado talvez do Paraíso, não tem guarida neste planeta soez e deve volver ao ponto de partida...
Partirás ao alvorecer, sem que ninguém o saiba. Dar-me-ás notícias tuas, sempre que o puderes, pois bem sabes que me interesso por ti e desejo saber-te venturoso. Para evitar suspeitas — pois a morte pode ceifar-me inesperadamente — para que a tua correspondência não vá parar em mãos alheias, escrever-me-ás sempre em francês e com este nome — Pierre Doufour — que não é apócrifo. Pertenceu àquele jovem marselhês — da tua idade e com o físico semelhante ao teu — que em peregrinação pela Rússia, à procura de um membro de sua família, há precisamente quinze dias, afectado de febre cerebral, faleceu aqui no presbitério.
Conservo os documentos que trazia, convenientemente legalizados, e, como não tens ainda os teus e para não perderes tempo precioso, utilizar-te-ás dos do pobre morto, para saíres deste país, livre de qualquer perseguição dos Peterhoff, que não hão-de querer perder um escravo como tu, embora proclamem o contrário... Como não és nenhum delinquente, após alguns meses de permanência no Havre, poderás adquirir os documentos de que necessitas.
Agora, porém, é mister um estratagema para evitar prováveis dissabores.
O passaporte de Pierre Doufour ser-te-á de grande utilidade. Mais tarde, então, irás a Marselha restituí-lo, bem como os demais documentos pertencentes à família do extinto, à qual já participei o ocorrido. Podes ir repousar, meu filho, para melhor suportares as fadigas da jornada...
Imploro, neste instante, à Majestade Suprema a sua bênção e incomparável protecção para que sejas, sempre, digno de ser chamado seu servo, cumpridor de todos os preceitos sociais e divinos; para que nunca te desvies da senda alcantilada do Dever e da Virtude...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:51 pm

Não te esqueças, nunca, do teu velho mestre, que, para morrer tranquilo, só deseja saber que estás liberto e feliz!
Talvez não nos vejamos mais, e, por isso, transmito-te os meus derradeiros alvitres... Fico mais isolado, agora, nesta aldeia selvagem, sem nenhum lenitivo nos meus últimos dias de romagem terrena... Fazias-me companhia à noite e eu me sentia ditoso enquanto te leccionava. Esquecia-me de que não nasci para compartilhar de nenhum quinhão de felicidade humana, mas para acendrar o Espírito maculado no crisol da dor e da adversidade... Tive, porém, o despertar acerbo, que eu desejava adiar indefinidamente, mas que já se tornou um facto quase consumado: faltam apenas momentos para que te vás para sempre, Pedro! Deus meu! como é pungente o isolamento! A nossa alma — ergastulada em frágil organismo, pressentindo a algidez do sepulcro — entregue a si mesma, sem possuir um ente amigo ao lado, tem desfalecimentos, horas de indescritíveis amarguras; não percebe outro companheiro senão o espectro do Passado ou o vácuo do Presente... Acordo, às vezes, em sobressalto, ouvindo — a quebrar o silêncio absoluto da noite — pancadas misteriosas na porta, parecendo vibradas por falanges dissecadas... Todas as recordações dolorosas da existência, assinalada por cruzes na longa estrada percorrida, são incessantemente avivadas, e, então, em nosso íntimo abrolha a derradeira esperança, o último goivo que nele desabrocha: o desejo de repousar longamente, o advento da enviada celeste — a Morte!
Tu, Pedro, foste o extremo dardo de sol que me alegrou o inverno da vida, e, por isso, egoisticamente queria, sempre, ter-te junto de mim.. . Mas, agora, o temor de te ver infortunado chama à rebate minha consciência, que te alvitra fugir ao resvaladouro de que andas próximo... Concorrendo para a tua ventura, contribuí também para a minha, soterrando pesares inconcebíveis do meu passado lutuoso... Porque me afeiçoei mais particularmente a ti que aos outros discípulos, Pedro? Porque eras o mais desditoso? Talvez... Não soube, nunca, interpretar satisfatoriamente o que se passou comigo, desde aquela tarde em que vieste implorar meu auxílio para poderes estudar: pareceu que me tinhas despertado de um letargo longuíssimo, em que estivera mergulhado até então; julguei reconhecer tua voz e tua fisionomia, de outras eras; cuidei não seres um estranho para minh´alma; que as nossas existências já haviam sido vinculadas por elos subtis, mas indestrutíveis... Desde então, tu te tornaste para mim um filho amado, só me preocupava com a tua educação e o teu porvir, e, se protelava a tua retirada desta aldeia, é que desejava me cerrasses os olhos, Pedro... Agora, sei que vou morrer só, sem um carinho talvez, e que Deus abrevie o degredo é o que lhe suplico... Mas, não, Pai celestial, perdoai-me!
Enlouqueço nos derradeiros dias de vida? Vós sabeis porque assim tem sido profundamente torturado o meu sensível coração, que, nesta existência, jamais feriu o de outrem... Vossos desígnios são, às vezes, impenetráveis, mas sábios e indiscutíveis: sois a Justiça integral, incomparável, perante a qual devemos curvar-nos, pois a vossa vontade é potente, mas paternal! Prolongai meu sofrimento, o suplício moral em que tenho jazido há mais de meio século; dai-me apenas, Senhor, coragem para sorver, até à extrema gota, a taça de amarguras!
Vi-o fechar os olhos, de onde se filtravam lágrimas que me pareceram gotas de luz, ou de sua própria alma agoniada, em prece, com os alvos dedos fortemente enclavinhados...
Respeitei, sensibilizado, aquela dor augusta, e só quando o vi fitando-me com doçura é que fiz menção de me prosternar a seus pés. Ele, porém, me deteve, dizendo brandamente:
—De joelhos, só para alçarmos o pensamento ao Eterno, ou para prestarmos um juramento sacrossanto! Bem sei que és um Espírito nobre e reconhecido — é quanto me basta. Sê, como até hoje, um homem probo, nunca macules tuas mãos com um crime e morrerei tranquilo e feliz, Pedro... Deus, em seu dossel de estrelas, que espreita todos os nosso actos, mesmo os mais secretos, abençoa-nos quando somos os heróis do Dever e temos elevadas aspirações...
Levantei-me, soluçando, e por alguns momentos estive abraçado ao querido benfeitor, sabendo que o fazia pela derradeira vez...
—Parte amanhã ao alvorar, Pedro... — murmurou ele em surdina, como se temesse a minha permanência naquela localidade ou quisesse consumar mais depressa o seu sacrifício, separando-se por todo o sempre do discípulo amado...
—Partirei amanhã, sim, mestre, mas, à tarde... Assim custarão mais a perceber a minha ausência, ou a minha fuga... Tudo já se acha aprestado para a partida ao entardecer.
—Vai, agora, repousar, meu filho. Que o divino Pai te abençoe em todo o percurso da tua existência terrena. Se algum dia regressares aqui, procura a minha humilde cova, depõe nela alguma flor e ora por mim, que, lá das regiões siderais, te verei, sorrindo, por te saber livre e venturoso...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 10, 2023 7:52 pm

Não tarda também eu parta para as misteriosas paragens das quais ninguém regressa... com o mesmo envoltório material!
—Devo, então, ficar para receber a vossa última bênção...
—Não. Quero saber-te longe destes sítios, liberto dos teus opressores! Eis porque me conformo com a nossa separação...
Depois de alguns momentos de reflexão, prosseguiu, mudando de tom:
—Está convencionado que me escreverás em francês, com o nome de Pierre Doufour... Fazes questão de conservar a tua identidade?
—Não, meu pai, Pedro Ivanovitch vai morrer amanhã...
— Que ideia a tua, Pedro! Porque imaginas semelhante loucura?
—É mister tal suceda, mestre, para que um outro Pierre Doufour ressuscite do túmulo, qual novo Lázaro mas ainda com o coração morto e dolorido — para me substituir e assim poder partir para sempre, porque Pedro Ivanovitch não terá ânimo de abandonar esta aldeia onde muito sofreu, mas onde ama como não o suspeitava...
—Ah! compreendo-te, meu filho... Assim acontece algumas vezes em nossa trajectória por este planeta: parece que estranha personalidade substitui inesperadamente — em certos períodos amargurados da existência - o que constitui o nosso Ego desde a infância, quando éramos embalados por sonhos galernos, impulsados por emoções indómitas; a flama das paixões consome a primeira, que se torna em cinza; uma surge, a outra perece, com todas as suas ilusões e esperanças; desde então, nossa alma fica em eclipse permanente, só podendo desobscurecer-se quando transpuser as fronteiras deste mundo umbroso.. . Também eu senti essa metamorfose íntima, percebi que fora transmudada, em meu próprio ser, uma individualidade, anelava os júbilos terrenos — por uma outra bem diversa, no dia em que troquei as minhas garbosas vestes militares pelas de sacerdote — uma mortalha, um luto perene, o luto dos que não têm mais qualquer esperança de usufruir as venturas da Terra, mas as do Empíreo... Eu, porém, já ultrapassava a idade do Crucificado quando ela se alou aos paramos azuis... e tu, Pedro, tens ainda diante de ti mais do meio século para conquistares a felicidade e é razoável que a consigas... Não esmoreças, pois. Confia na protecção do céu...
Após uma pausa concluiu:
— Serás, de amanhã em diante, Pierre Doufour até alcançares a tua liberdade. Expliquei directamente ao meu parente do Havre a necessidade que há, por enquanto, de teres um nome apócrifo...
Quando terminou, osculei-lhe as mãos álgidas e brancas como açucenas, e, cambaleante de dor inexprimível, saí do presbitério em direcção ao meu lôbrego tugúrio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:57 am

VII
“O sono, na superexcitação nervosa em que me achava, não quis cerrar-me as pálpebras magoadas; faltava-me serenidade até para pensar, para coordenar ideias, e, por isso, ergui-me do grabato, abri a janela, debrucei-me ao tosco peitoril, sentindo os cabelos eriçados pelas rajadas glaciais da ventania, que suavizavam a ardência vulcânica do cérebro, e, nessa posição, chorei por algum tempo, angustiosamente... Tive, por momentos, ímpetos de varar o coração com um punhal que trazia à cinta; mas, ao conceber o tenebroso pensamento, pareceu-me vislumbrar nas trevas que me cercavam, nimbado de fulgor estelar, o vulto esguio do abade Francisco, e essa visão fez com que se desvanecesse o meu sinistro intuito, temendo desgostá-lo ou merecer a punição do Altíssimo...
Pela calada da noite, quando mais profundo o silêncio, como se todos os seres e a própria Natureza estivessem imersos em catalepsia, tive ânimo de pôr em execução o plano premeditado à tarde, na ânsia de ver a adorada Sónia pela derradeira vez: escrevi-lhe, implorando não me recusasse o último adeus!
Acendi um denegrido candeeiro, escrevi a lápis, com caracteres incertos, à irmã de André, expondo-lhe o que desejava e, terminando o bilhete, agradecia-lhe a piedade angélica que, em ocasiões pungentíssimas para mim, manifestara a meu favor. Apaguei o candeeiro e me encaminhei para a porta, a cuja soleira parei, a fim de me habituar à escuridão, que transformava o Cosmos num túmulo infindo...
Aproximava-se o Natal. O Inverno já se fazia sentir com toda a rispidez.
A cerração e a obscuridade eram tão intensas que tive a impressão de estar mergulhado em penumbra perene, de haver ficado cego por toda a consumação dos evos.. . Dir-se-ia que a Terra estava submersa num oceano de trevas, pulverizadas e gélidas, e nunca mais houvesse de amanhecer — paralisadas, por todo o sempre, as potências do Universo; em marasmo aterrador, todas as criaturas estivessem adormecidas perpetuamente, e só eu ficasse em vigília e sofrimentos eternos... Caminhei tacteando a caligem e os lugares conhecidos. Parei em frente às janelas do quarto de Sónia, que ficava na ala esquerda do prédio, no primeiro andar, tendo por vizinhança um descomunal salgueiro, cujos ramos roçavam os batentes.
Seu pai, por muitas vezes, quis decepá-los, mas, tanto ela lhe suplicara não o fizesse, que ele desistiu, deixando-os ficar como se achavam então: mal abertas as vidraças, internavam-se algumas frondes pelo aposento da formosa donzela, formando, certamente, rendilhados de sombra no soalho, em manhãs luminosas, e ela as afagava infantilmente, desvelando-se para não as dilacerar, quando se recolhia ao leito.
Servi-me, pois, do gigantesco salgueiro — cujas folhas, a todo o instante, resvalavam e caíam rumorosamente dos galhos, como bandos de pássaros fulminados por caçadores invisíveis — para transmissor de minha pequena mensagem.
Subi à árvore e atei à extremidade de um ramo que mais se alongava pela alcova a dentro, retirando-me depois, emocionado e palpitante...
Quanto desejei ser aquele vegetal, para receber as carícias de Sónia, merecer sua afeição, atalaiar o santuário em que sonhava seus devaneios puros de virgem, e, um dia, quando ela, e não eu, partisse para longe, penderia os meus ramos para o solo e morreria de saudades, estiolado e esquelético qual faquir, à míngua da luz do seu olhar... Tiritava de comoção pelo que fizera, como se houvesse praticado uma audácia imperdoável...
Quem poderia dizer-me se, naquele instante, a sua alma de névoa não pressentira a minha a carpir junto à sua, cerce ao lugar em que dormia placidamente o sono dos que não têm remorso e possuem um breve passado, repleto de flores, candura e bondade?
Não pude adormecer até à madrugada.
Agitado por peníveis pensamentos, levantei-me e pus-me a espreitar, do jardim, o aposento de Sónia. De quando em quando, passava sob as persianas, até que elas foram descerradas...
Um frémito de hipnose percorreu-me todo o ser, acelerando as pulsações do coração encarcerado, que soluçava secretamente...
Verifiquei, dentro de poucos momentos, que o bilhete fora retirado, e, então, via a graciosa irmã de André perscrutar os arredores da árvore, e, ao deparar comigo, empalideceu visivelmente e fez um ligeiro meneio com a destra.
Acerquei-me do local em que se achava, e ela, reclinando-se ao peitoril, murmurou suavemente emocionada:
—Logo à tarde, quando eu sair em direcção ao presbitério...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:57 am

Descobri a fronte, fazendo um movimento afirmativo. Não a vi mais durante o dia.
Pretextando achar-me enfermo, roguei ao Sr. Peterhoff dispensar-me por algumas horas do serviço que me designara naquele dia. Saí, e, em modesta hospedaria situada nas imediações da aldeia, aluguei um ginete, cujo preço fora ajustado desde a véspera, pedindo ao estalajadeiro que o tivesse preso e selado desde as cinco horas da tarde, à frente da casa, para dele me utilizar quando me aprouvesse.
—Vais fugir, ó Pedro? — falou-me o velho a sorrir, maliciosamente.
—Não. Vou levar cartas a um parente do barine; devo regressar antes de uma semana.
— Mas, olha que vais viajar à noite e a neve não está para essas aventuras...
—Cumpro ordens de meus amos e aqui tem estes rublos para não revelares o que te disse, senão depois do meu regresso.
—Podes ficar tranquilo, meu rapaz. Não me iludes nesta idade: presumo que em tua viagem há diabruras do coração — do teu, ou do André Peterhoff...
Voltei ao tenebroso compartimento que ocupava, deitei-me por algumas horas, levantei-me às três da tarde, vesti o melhor fato que possuía — uma dádiva do querido abade — pus à cinta os documentos de que necessitava e aguardei, com impaciência febril, o declinar do dia.
Ao atravessar o jardim, André fitou-me e observou com escárnio:
—Penso vais ser agora o meu patrão... Estás realmente enfermo, como disseste a meu pai, a fim de que te dispensasse do trabalho, hoje.. . Queres algum médico? Vou chamar um de Moscou...
Não lhe respondi, sentindo uma onda de sangue turvar-me a vista, escaldando-me o cérebro, levando, certamente, rubor às minhas faces esmaecidas por sentimentos supliciantes.
Ele insistiu na afronta ao ver-me de cabeça baixa:
—Estás premeditando algum crime? Faz pavor o teu aspecto!
Mentia, para me deprimir e amesquinhar: eu era belo e ele hediondo. Essa supremacia física, que em mim notara, era um dos móveis da sua aversão contra o mísero Pedro Ivanovitch...
Compreendi o seu intento: queria exasperar-me para ter ensejo de cevar o ódio instintivo contra mim, tendo, talvez, planeado alguma vingança diabólica contra o indefeso servo...
Soube conter-me com inaudito esforço.
Retirei-me de sua presença e solicitei uma pequena dispensa ao Sr. Peterhoff para ir a umas milhas de distância, à aldeia de *** adquirir remédios, pois não os havia onde residíamos. Ele me fixou um olhar inquisitorial e, achando-me com aspecto combalido, concedeu-me a desejada permissão para me ausentar por algumas horas. Ia a retirar-me quando surgiu André, que, ao saber do ocorrido, insinuou ao pai:
—Perguntai-lhe quem lhe forneceu a quantia precisa para a aquisição de remédios, visto que não lhe destes...
Eu me detive e respondi-lhe, com cólera mal dissimulada:
—Foi o Sr. abade quem me deu! Nunca roubei.
—Mas és capaz de o fazer! — tornou André com insolência. Quando eras menino, raro era o dia em que não rapinavas alguma coisa...
Seu cruel progenitor aplaudiu-o com uma casquinada de velho fauno...
Há injúrias que vergastam a alma, ulcerando-a por todo o sempre; contundem mais que os golpes do açoite lacerando as carnes, e jamais cicatrizam...
Lágrimas fluíram-me do coração, mas não chegaram a deslizar pelo rosto:
foram extintas por uma flama interna, que me incendiava o cérebro. Calei-me, ainda disposto a ultimar o sacrifício, a esgotar o cálice de tormentos que, havia muito, sorvia lentamente em casa do barine.
Recalquei no imo do meu ser mais aquele ultraje, aguardando apenas a saída de Sónia para abandonar aquela casa execranda. Vi-a, após alguns momentos de angustiosa espera, sair só, em direcção ao presbitério. Deixei-a desaparecer e, logo depois, fui ao seu encalço.
Estava no extremo do grande muro que torneava a sólida morada, quando a alcancei. Custava-me conter os soluços. Não pude expressar-lhe o que almejava — tinha garganta e alma garroteadas pela dor e pela emoção...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:58 am

Foi ela quem falou primeiramente, com a sua voz maviosa, um pouco trémula:
—Estás resolvido a deixar o cativeiro para sempre, Pedro?
—Sim — consegui murmurar —, mas levo só o corpo liberto, porque meu coração ficará, eternamente, acorrentado aqui...
— E porque não o levas contigo, Pedro? — tornou ela, erguendo para mim o olhar casto e formoso, emperlado de pranto incontido... Tive um instante de inebriamento, de desvario, de consolo supremo...
Ia responder-lhe quando, inopinadamente, irrompeu à retaguarda, qual
um tigre feroz, André empunhando o infamante knout, brandindo-o acintosamente, pouco distante de minhas faces e das de sua aterrorizada irmã...
Ai! senhor, só os que já sofreram muitos vilipêndios e foram muito humilhados, poderão compreender a situação desesperada em que me achei naquela hora inqualificável — maldita ou satânica!
Desejava aviltar-nos com o ignominioso knout com o qual me ameaçara espancar, inúmeras vezes, o desumano André? Não se saciara, na minha infância, com as calúnias, os agravos e os castigos bárbaros que me infligira?
Não podia restar a menor dúvida: era seu intuito ferir-me e à Sónia, pois ouvi-o bradar enfurecido:
—Miseráveis! Não vos proibi conversásseis um com o outro? Estais fugindo à minha vigilância, infames? Hoje estão definidas as vossas criminosas relações e haveis de pagar com usura a desobediência às minhas ordens!
Sónia empalideceu de mármore. André, horripilante e colérico, com a barba e os cabelos fulvos revoltos — como se estivesse com a cabeça circulada de chamas prestes a cremar-lhe — levantou para mim o látego, e, como já ia deixá-lo vibrar no meu rosto, sua irmã se postou entre nós dois, heroicamente.
Vi-o, então, empuxá-la com fereza, magoando-a ao ponto de fazê-la soltar um grito de dor, parecendo que ia desmaiar. Fiquei alucinado — não sabia mais se enfrentava um homem, se uma pantera sanguinária!
Então, não pude mais me dominar... É-me ainda penoso relembrar aquela cena trágica e perturbadora para minh’alma agoniada, apesar do tempo decorrido...
Ante a ameaça ultrajante de André, todos os opróbrios suportados em infindos anos de martírio moral, de revolta sopitada a custo, de espezinhações degradantes, explodiram num só momento de ódio veemente: sacando rapidamente da cinta o punhal calabrês — do qual não me separava nunca — enterrei-lhe no coração, e a sensação que experimentei, quando perpassou um osso, antes de pungi-lo, jamais me abandonou, é para mim tortura incessante e inominável... Ele tombou ao solo, pesadamente, praguejando, querendo atingir-me com uma faca que se lhe desprendeu bruscamente da mão crispada, num movimento convulsivo... Quando vi a idolatrada Sónia se retirar a correr em demanda da casa, enquanto o irmão estertorava golfando borbotões de sangue, sem saber que agia por mim próprio ou sob potência estranha, meio louco, pus-me também a correr até onde se achava o cavalo que alugara, galguei-o de um salto, soltei-lhe as bridas e, num galopar vertiginoso de duende, sem parar um instante, comecei uma héjira{29} fantástica, indescritível...
Anoitecera de todo. Invernava implacavelmente. Atravessei vaiados, transpus extensas estepes com o rosto fustigado pela neve, sem chapéu, pois o meu fora arrebatado pelos vendavais — tão impetuosos, que me pareceram desprendidos do Érebro{30}, acumulados de séculos, — ululantes, como bisões irritados que se precipitavam nas planícies, estorcendo as árvores — transformadas em epilépticas — deslocando lajes e blocos de gelo do ápice das serras, os quais resvalavam precipitadamente pelas encostas com fragor de explosões de grisu. Dir-se-ia que iam despojar a Terra de todos os vegetais, de todas as edificações humanas, devastando-as num ermo intérmino, num Saara ilimitado, num orco de suplícios eternos...
Meus cabelos estavam eriçados no crânio, por efeito do pavor e dos furacões infrenes, alvejados pelos flocos de neve — como se todos os génios vingadores e o próprio Deus bondoso, possuídos de cólera contra o desgraçado fugitivo, me apedrejassem do céu, para punir-me do crime que cometera...
Sentia-me inteiriçado sobre a alimária, metamorfoseado em estátua de mármore, enquanto no íntimo o coração estuava de inaudito desespero!
A noite era tão negra que parecia haver descido do Infinito, sobre o mundo, um espesso velário de trevas compactas. Eu divisava, porém — com se as pupilas se houvessem tornado fosforescentes como lampiros — vagamente, desfiladeiros que cresciam à minha passagem; os alvíssimos cristais que caíam do alto, vistos de relance na obscuridade em que me achava, tomavam formas inomináveis e assombrosas: semelhavam seres infernais, trasgos, zanagas, com esgares medonhos, perseguindo-me sem cessar, como escoltas aéreas; outros, pareciam mochos muito brancos, em combate com todas as aves, verdadeiros exércitos alados, compostos de pequenos monstros, alguns decapitados, outros aos quais faltavam asas, membros, corvejando ao redor de minha cabeça e de meu rosto, lacerando-me quase, com as garras ferinas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:58 am

Julgava ver, desfilando ininterruptamente, alcateias de ursos brancos e de todas as feras foragidas das selvas africanas e de todas as jaulas, silenciosas e velozes, seguindo-me para me devorar, já com as fauces hiantes...
Sentia-me celeremente levado pelo corcel — que parecia também estar delirando ou pertencer ao mundo irreal que me cercava, um novo Pégaso com asas de nótulas{31} — desviado dos caminhos, como se houvesse compreendido a minha situação e quisesse livrar-me de crudelíssima falange de policiais, cujo tropel das montarias eu escutava, mas sem me alcançarem nunca...
O que me espavoria, porém, era ouvir, de vez em quando, fendendo os ares, lugubremente, os gritos de Sónia, como trazidos pelas fibras de um aparelho mágico, para me flagelarem...
Subitamente passou-se um fenómeno inusitado, enlouquecedor: julguei divisar, vinda do Espaço, gigantesca e hedionda como nunca tinha visto, descendo lentamente, uma cabeça humana decepada, de coma desgrenhada, barbas intonsas, que, ao princípio, supus fossem negras, mas, quando de mim se aproximaram, observei serem cor de fogo; os olhos moviam-se nas órbitas sem pálpebras, projectando um clarão fosforescente; o rosto, tornado lívido, parecia de gesso, mas eu o reconhecia — era o daquele que eu havia trucidado algumas horas antes... Dirigia-se para mim como um vampiro, com as maxilas escancaradas, sedento de sangue, a cabeça encimada por um polvo de fogo e, então, extenuado, transido de horror, hirto de frio, com os músculos transformados em gelo, caí em profundo fosso que não pude distinguir de pronto, enquanto o cavalo, livre de qualquer obstáculo, continuou certamente a galopar pelas planícies, talvez como eu, delirando, desejoso de liberdade ou de alguma furna onde pudesse abrigar-se, livrando-se do azorrague de uma tempestade de neve...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:59 am

VIII
“Assim fiquei semimorto, atirado a uma cava por algumas horas, após aquela correria infrene pelas campinas desertas, semelhando o génio da loucura ou do desespero... Sentia o corpo inerte, frígido, dorido, transmudado em chumbo — para jamais poder erguê-lo do solo — mas a alma estava lúcida, viva, concentrada no cérebro, como que contraída num refúgio incandescente...
Tinha a sensação de que um aracnídeo flamejante se me apegara ao crânio, enquanto que todo o organismo se congelara qual um iceberg... Não cessei de sofrer um só instante, desde a queda, de perscrutar todos os lances angustiosos da existência e — coisa inexplicável para mim, até então! — embrenhara-me por outras eras remotas, compreendia que já tivera outras vidas tumultuosas, sombrias, iníquas, nas quais ora me transformava em carnífice, açoitava seres humanos, que, não resistindo às minhas crueldades, tombavam ao solo com as carnes dilaceradas; ora me sentia preso por guantes de ferro que me esmagavam lentamente os ossos, transmudando-me em massa imóvel, como naqueles instantes...
Quando descerrei as pálpebras, membros ainda marmorizados, o Espírito como que exumado de tétrica masmorra, içado de uma voragem insondável onde estivera sendo martirizado, tripudiado, seviciado, jungido porém ao meu corpo material, para ser atormentado por uma coorte de evocações pungentíssimas — apoderou-se de mim um desalento e uma consternação invencíveis, um desejo ardente de ser aniquilado, um pesar inominável por haver voltado à vida, para não lembrar que estava irremediavelmente perdido, que era um homicida tendo por futuro unicamente o remorso, a vingança do barine, o calabouço ou a morte patibular... Não pude, então, conter gemidos que cortavam funebremente os ares, exprimindo imperfeitamente o padecimento e a amargura indizíveis do coração, mais ferido pela ansiedade e agonia moral, do que aquele que, na véspera, eu esfacelara... o André, cuja lembrança nítida me atemorizou, pois julguei vê-lo como no momento em que baqueara ao chão, com os cabelos rubros, ouriçados de sanha impotente contra mim...
Mas, quem gemia realmente: eu, ou o meu coração excruciado ? Não vos sei dizer, senhor... Era eu uma dor corporizada, com a configuração humana, eterno condenado por Deus e pelos homens...
O Sol já havia surgido, aquecendo-me docemente, e eu o amaldiçoava, pois seria preferível que na minha infortunada situação jamais ele assomasse no horizonte — para que sucumbisse de inanição — ou descambasse ele, por todo o sempre, nos abismos do Espaço incomensurável.
Um esgotamento invencível se apoderou de todo o meu ser.
Tornei-me indiferente ao destino, almejando até me arrastassem a um ergástulo, a um cadafalso; mutilassem-me, esquartejassem-me... No entanto, sobressaltei-me ao deparar com um desconhecido, tentando descer à sepultura em que me achava, ainda aprisionado à vida que eu execrava... Para que existir fisicamente, quando a alma está denegrida, inumada qual um rei egípcio — sob uma pirâmide de reminiscências — sem uma esperança a doira-la, sem um afecto a confortá-la?
Viver, — sabendo que o mundo tão vasto e impiedoso não possui uma caverna, bastante recôndita para ocultar nosso corpo magoado, na qual possa adquirir serenidade o Espírito conturbado; sem ter quem estenda benfazeja mão para comprimir a nossa, dando-nos alento ao coração desfalecido — não é viver, é deixar que o destino nos arrebate num turbilhão, qual o que impetuosamente arranca as derradeiras folhas do Outono, mirradas e descoloridas como as ilusões que existiram em nosso âmago...
Fechei os olhos numa apatia desoladora, entregando-me à justiça terrena, pois supus fosse aquele indivíduo algum encarregado de minha prisão, que me seguira através dos campos soturnos, e predispus-me a uma captura. Fiquei surpreso, quando o ouvi dizer alegremente, afagando enorme cão:
— Eh! camarada, escapaste de ficar sepultado na neve... Foi o Criador que me fez seguir por um atalho, há muito desprezado... Vim, com a minha telega{32} e o meu fiel Kiew, por estes lados, a fim de encurtar a jornada a NijniNovgorod, quando ele começou a uivar; segui-o até este valo... A custo descobri o camarada sob uma camada de gelo. Já aí fui, fiz algumas fricções por teu corpo, mas, julgando-te cadáver, retirei-me para relatar o ocorrido às autoridades, quando ouvi os teus ais... Retrocedi e eis-me às tuas ordens, camarada. Tens a cabeça ferida. Para onde devo levar-te? Como foi que vieste ter a este ermo?
—Viajava à noite, sem conhecer os caminhos — falei-lhe com dificuldade.
Porque me não deixaste morrer, bom homem? Assim a justiça divina e humana teria sido feita com maior presteza...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:59 am

—Ai! camarada, falas em ir para a cova em tão bela idade? Aposto em como estás enamorado de alguma beldade... que preferiu outro noivo! Diz-me de que aldeia vieste... que te direi onde deixaste o coração...
Ele proferiu estas últimas palavras fazendo um gesto longo, e não sei expressar o que se passou em meu ser — cuidei divisar ao longe, na fímbria do horizonte, a pequena povoação de que fugira, salientando-se o presbitério em que vi, curvo qual se conduzisse pesado mas invisível madeiro, o abade Francisco...
Inenarrável entrernecimento fez que o pranto me jorrasse dos olhos... Que me valeram os doutos conselhos do santo varão? Porque não havia partido ao alvorecer, como fora por ele determinado? Perdidos todos os seus esforços para me libertar da opressão em que vivia, todos os seus desvelos para me encaminhar a uma existência serena, para a conquista das venturas terrenas, do amor casto de uma esposa... Recordei-me de suas expressões de austera moral incitando-me a ser honrado e laborioso, e, no entanto, todos os tesouros que acumulara em meu Espírito — em tantos anos de dedicação e sacrifício — foram destruídos, submersos num báratro infindo, num instante de desvario...
Era a minha sina —tinha de ser desgraçado desde a infância: uma fatalidade inexorável esmagava-me, e, por isso, todas as minhas lutas para atingir a felicidade foram anuladas, reduzidas a pó... E, para cúmulo de suplício, a amada figura do virtuoso sacerdote apareceu-me com o olhar severo, indicador estendido, expulsando-me de sua presença, abandonando-me à minha dor e à minha abominação... Odiado, eu, pelo adorado mestre e por Sónia — supremo martírio! Estar sentenciado a viver, desde então, foragido, vilipendiado, pungido de remorsos — era sentir a demência apoderar-se de mim, e, num impulso de revolta e desespero, quis esfacelar a fronte entre as mãos. Elas, porém, estavam gélidas e amortecidas... Fora eu, porém, o exclusivo culpado de tudo o que sucedera? Porque me detestava, desde a puerícia — órfão e desvalido — o perverso André? Que mal lhe fizera para me tiranizar com tantos agravos e humilhações ? Ai! fora ele quem me arrastara ao crime, mas ninguém daria crédito à minha defesa; ninguém no mundo se comoveria com a minha desdita; seria entregue às violentas leis de minha pátria, morreria de vexame e de amargura em alguma enxovia, sem merecer uma palavra de comiseração de quem quer que fosse... Arrependia-me de não ter repelido a tentação da vingança, de haver deixado a aldeia, sem me despedir de Sónia, a fim de poder, no porvir, receber a derradeira bênção do abade e do próprio Criador do Universo... Um segundo de insânia desmoronara para sempre todo o áureo castelo do meu futuro, alicerçado num passado de misérias, de lágrimas, de sacrifícios! Tudo estava desoladoramente acabado! Que mais poderia esperar da vida?
A perseguição, a vindicta, o sofrimento. Era mister entregar-me à polícia, ser condenado, execrado, martirizado...
Minha existência terrena arruinada, sem horizonte, entrincheirada em muralhas intransponíveis, onde não penetrava nem um dardo de Sol... Para isso é que me retirara daquele amplo sepulcro um desconhecido, a mim, a ovelha transviada do dever e da virtude, que rolara ao fosso da desventura, como acontecera à que, na adolescência, eu apascentava e que fora causa de tantos dissabores? Ovelha, eu? Não. Dessa vez fora o próprio pegureiro que tresmalhara do rebanho de Jesus, de que me falava, como um enviado do Céu, o abade Francisco ... Para requinte de meu suplício continuava a escutar os gritos estrídulos de Sónia e parecia-me ter sido anatematizado pelo Mestre estremecido... Horror! Podeis avaliar o meu tormento, senhor?
Porque não sucumbi, deixando meu corpo de repasto aos corvos? Ah! é que a minha expiação pungentíssima não estava senão in limine...
Tinha de levar ao Gólgota a esmagadora cruz da minha redenção.
O compassivo mujique, vendo-me chorar, falou para me encorajar:
—Ânimo, camarada! Não te abandonarei neste estado. Toma alguns tragos de vodka{33}. Moro acolá naquela cabana e ficarás comigo até que estejas em condições de viajar.
Compreendi que era um ente leal e generoso e não devia usar de perfídia para com ele. Disse-lhe resolutamente:
—Não sabes a quem socorreste... Não sou digno da tua comiseração.
—Seja como for — replicou, soerguendo os ombros — sei unicamente que estás carecendo dos meus socorros: se fores um assassino, não me hás-de tirar a vida sem te ter eu molestado; se um ladrão, vou conduzir-te à minha palhoça...
e desafio que encontres alguma preciosidade para surripiar! Mas olha que estou apenas a fazer conjecturas: não pareces nem uma nem outra coisa...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:59 am

Depois, tirando o chapéu, aparecendo-lhe a bela fronte aureolada de cabelos louros, voltou a olhar para o zimbório celeste, de onde caíam ainda lírios de neve, e tornou com energia que revelava a nobreza dos sentimentos:
—É em nome do Altíssimo que te quero salvar, camarada, sem cogitar de gorjeta... que não aceitarei, se me deres!
Fiquei sensibilizado. Aquele homem não estava mentindo. Era rude, mas abnegado.
—Vejo que és bondoso e honrado — disse-lhe com amargura — e, por isso, não desejo iludir-te: sou um homicida! Entrega-me à justiça.
Ele estremeceu, olhou-me fixamente e, no mesmo tom de confiança e clemência, murmurou:
—Abre-me o coração, camarada! Diz-me porque cometeste o crime de que te acusas...
Relatei-lhe todos os infortúnios desde a infância até o desenlace dramático da véspera. Quando terminei a sincera confissão, vi o campónio muito pálido ajoelhar-se a meu lado, suster-me a cabeça quase novamente desfalecida em suas mãos vigorosas, e depois, com os olhos turvos de pranto, falou-me com ansiedade:
—Diz-me: como se chama o algoz a quem foste entregue? Peterhoff?
— Sim. Como o sabes?
— És Pedro Ivanovitch?
— Sim... Vais entregar-me à prisão?
—Ai pobre e desventurado Pedro! Não te lembras mais de Frederico... o teu irmão mais velho?
Não podia perceber claramente a inesperada revelação, sentia as ideias anarquizadas pelo efeito da intensa comoção. Ele continuou com uma voz em que vibrava piedade e carinho infinitos:
—Perdoa-me, Pedro! Sou o culpado do delito que praticaste, pois há muito devia ter ido procurar-te, arrancando-te às garras dos Peterhoff, que eu sei desumanos !
Eras o mais novo quando nossos pais morreram, mais necessidade tinhas de minha protecção. Perdoa-me irmão querido e desditoso! Fugi da maldita aldeia onde tanto sofreram nossos míseros pais, mas devia lá ter voltado para me inteirar da tua sorte...
Era a minha sina, Frederico: tinha de ser consumada!
Vi-o, então, havia pouco tão contente, abraçar-me soluçante...
Oh! senhor, como nos conforta a alma, quando, na hora da angústia se nos depara um amigo leal, que compreende a nossa dor e chora connosco as nossas vicissitudes! Como abençoei aquele encontro providencial com um irmão já esquecido, um protector enviado por Deus para balsamizar meu coração chagado de desventuras! Iludira-me quando, poucos segundos antes, supusera estar abandonado no mundo, qual bergantim desarvorado e sem palinuro sobre um mar proceloso. Foi ele quem insuflou coragem ao meu Espírito consternado:
—Tu, Pedro — afirmou —, não serás entregue às leis crudelíssimas do nosso país. És bom, padeceste muito, foste levado à prática de um crime, por um perverso! Foge meu irmão, à vingança de Peterhoff e faze o que te aconselhou o Pope: trabalha, sê honesto, expia nobremente a tua falta por meio do dever e de acções meritórias! Eu devia expatriar-me contigo, mas, não sei que ímã poderoso me atrai a estes sítios, talvez por serem uma solidão: esquivo-me à humanidade impiedosa, que deixou nossos pais morrerem de penúria e só amo este recanto solitário e o meu cão — meu único amigo até hoje — a nada mais aspiro senão tê-lo a meu lado e lutar, enquanto as forças não me faltarem... Nunca me casarei.
Para que hão-de os malsinados dar o ser a outros, que têm por herança somente a pobreza e a desventura? Sou um rude, sem ambições, sem ideias, analfabeto, sei que hei-de sucumbir ignorado de todos, como se fosse árvore isolada em deserto, ceifada por um raio, que tomba sem ser vista sequer por uma ave errante.. . Quem se detém perante um tronco caído num ermo?
Ninguém. Sou uma árvore humana que passará despercebida em Sua obscura existência, até ser alcançada pelo corisco da Morte... de que ninguém se livra!
Tu, porém, tens direito à vida noutras condições: és muito jovem, possuis um tesouro que invejo — a instrução. Não sejas avaro: reparte-o com os famintos do pão de luz, que se chama saber; eu darei o da terra aos que me estenderem as mãos engelhadas de frio... os que não têm tecto, agasalho, alimento!
Não sou um egoísta, Pedro. Em minha choupana tenho asilado muitos párias. Vivo de transportar mercadorias para Nijni-Novgorod e de cultivar estes terrenos. Durante o Inverno presto o meu auxílio aos que caem exânimes sobre o gelo. Precisas, porém, de alimento e não deves mais permanecer aqui.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 10:59 am

Vem, Pedro. Ali está a minha telega. Vou deitar-te nela, sobre a minha tulupa.
Assim fui instalado no grabato de Frederico, sorvi leite aquecido e adormeci por algumas horas. Meu irmão não se achava junto de mim.
Decorridos alguns momentos, abriu a porta frontal do casebre e sentou-se a meu lado, esmaecido e agitado.
—Que tens? — interroguei-o.
—Andava acolá na estrada, quando fui abordado por uma patrulha que anda à tua procura... Fui inquirido por um policial. Mostrei-me alheio a tudo quanto indagou e convidei-o a vir tomar vodka em minha cabana, jogando essa cartada arriscadíssima para dissipar qualquer suspeita... Tremo ainda ao imaginar se ele aqui viesse ter!... Compreendes a tua situação, Pedro. Não sejas louco em te entregar à bárbara justiça de nossa infortunada pátria. Deus te proteja para que em breve, restabelecida a saúde, te possa evadir para a França...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:00 am

IX
Frederico desvelou-se, por muitos dias, no meu tratamento físico e moral.
Pouco a pouco, suas palavras tomaram vulto em meu âmago: não devia entregar-me ao desforço de Peterhoff, mas ir para um país longínquo, mourejar de sol a sol, tornar-me modelar em probidade, reparando assim meu delito condenável, embora não premeditado.
Quando mais acerbas eram as recordações, meu irmão me cingia em seus braços robustos e falava-me com bondade e energia:
—Coragem, Pedro! Desperta para a vida. Sê forte e vencerás!
—Quando estás junto a mim, tornas-me impávido e fortalecido, mas, quando te afastas, quando me vejo isolado, sinto-me tão desalentado e infeliz, que tenho ímpetos de voltar à aldeia, beijar as mãos do abade Francisco e depois me entregar ao inimigo, para pôr um paradeiro ao meu sofrer.. . Para que hei-de continuar a viver assim torturado, Frederico?
—O tempo desvanecerá teus pesares atuais e a virtude resgatará todos os erros do passado...
—Se fosses comigo...
—Pensemos primeiramente em tua saúde, que urge seja recobrada...
Ficávamos horas seguidas dialogando, a lembrar nossos pais, nossos irmãos dispersos por lugares ignorados, nossas privações e angústias e, às vezes, traduzindo mágoas inauditas, lágrimas nos vinham às faces...
Um dia, disse-lhe:
—Eras venturoso nesta humilde choupana; vivias despreocupado e tranquilo, trabalhando na prática do bem, auxiliado por Kiew; eu vim trazer-te inquietações, perturbar a paz que desfrutavas...
—Sinto-me ditoso — retorquiu ele — sempre que socorro algum desventurado e, por isso, abençoo o ensejo que tive de te livrar da morte e de um algoz desumano...
Vieste-me lembrar a prática de um dever: não abandonar em mãos alheias os que podemos amparar e proteger... Vamos, porém, tratar agora do teu futuro.
Não poderás ficar sepulto neste casebre, ameaçado continuamente de seres descoberto por um acaso. Não acho conveniente seguir-te, para não suscitar desconfianças.
Combinávamos planos, para os realizarmos no início da Primavera. Ele comprou um fato não usado pelos campónios, chapéu, sapatos, mala, em NijniNovgorod. Cortou-me os cabelos e a barba de modo inverso ao que eu usava.
Faltava-me, para a viagem marítima, alguns documentos, além dos que possuía.
Ao cabo de alguns meses de permanência na cabana, menos apreensivo com a saúde já restaurada, mas tristonho e saudoso, ao alvorar de um belo dia primaveril, parti em direcção à almejada cidade, oculto na telega de meu irmão. Em lá chegando, apresentei-me ao comissariado central de polícia, dizendo em francês:
—Sou marselhês. Fui agredido e roubado no caminho. Desejo legalizar meus documentos, pois alguns que trazia desapareceram.
Olharam-me com desconfiança e um agente policial, consultando apontamentos exarados numa carteira, inquiriu:
— Ouviste falar que há quatro meses, precisamente, foi praticado um bárbaro homicídio na aldeia de... ?
—Sim — respondi tranquilamente — e não ignoro que foi cometido por um mujique, talvez analfabeto, por isso não podeis suspeitar de mim que vos dirijo a palavra em francês; aqui tendes meu passaporte, que testifica a minha identidade...
Ele se excursou da interpelação após examinar detidamente os papéis apresentados e forneceu-me os que eu desejava. Ficámos, eu e Frederico, por dois dias, em modesta casa de pasto, sem ter ânimo de nos separarmos.
Na manhã do terceiro dia, emocionado, disse-me ele haver resolvido partir no mesmo instante.
Apareceu-me subitamente, na tela interior do cérebro — onde se arquivam todas as reminiscências — o seu casebre, na solidão em que jazia, no qual passámos horas inolvidáveis, em fraterna comunhão de ideias... Ele estava, como eu, atormentado por dolorosos pensamentos. Temperamento quase selvagem, tinha, contudo, meigo e afectuoso coração, potente inteligência, realizava actos heróicos e altruísticos, que ficavam ignorados do mundo — como diamantes atirados a um paul, mas que, no entanto, o Criador deve ter contado, vendo-os lá do domo sideral, para tecer fúlgidos lauréis que hão-de lhe aureolar a fronte de abnegado...
Reiterou ansiosos conselhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:00 am

Abracei-o, lacrimoso, por momentos; quis dar-lhe alguns rublos para fazer reparos na sua palhoça. Recusou, quase ofendido:
—Tu, e não eu, necessitas de dinheiro para a viagem.
—Pois bem! respeito-te a vontade, mas não deixes de aceitá-los, com esta condição: sempre que salvares alguém do guante da morte, sob o gelo, dá-lhe uma destas moedas, rogando-lhe que ore por mim... Bem sei que te não posso recompensar pelo muito que fizeste, nem tento fazê-lo, senão acumulando n´alma um eterno reconhecimento... Abençoados dias passei em tua companhia, Frederico! Deus te pague quanto por mim fizeste, devotadamente, meu irmão!
Ainda nos encontraremos. Onde? Não sei. Na Terra ou no Espaço, hão-de se reconhecer nossos espíritos, estreitamente unidos por uma afeição que, sincera e vibrante, há-de desafiar os séculos!
Guardou os rublos um tanto constrangido. Disse-lhe ainda.
—Desejo, de vez em quando, dar-te notícias minhas. Para onde devo dirigir-te minha correspondência?
—Não, Pedro — respondeu meneando a cabeça, negativamente, com imensa mágoa — não me deves dirigir carta nenhuma! Não sei ler; o que me escreveres será lido por estranhos e as tuas referências talvez suscitem desconfianças... É mais um sacrifício que se nos impõe; vivamos como até há pouco tempo, ignorados um do outro! Se algum dia puderes voltar à Rússia, já sabes onde é a minha choça, e, se a encontrares ocupada por outrem, é sinal de que o Altíssimo já se compadeceu de mim e deu-me descanso... Faz por mim uma prece e prossegue a tua jornada, Pedro!
E o pobre irmão partiu com os olhos nevoados de lágrimas.
Uma vez só, invencível desalento dominou-me algumas horas. Depois, com esforço heróico, consegui reagir contra os próprios sentimentos e resolvi prosseguir minha romagem. Em São Petersburgo fui aturdido pelo bulício da grande capital moscovita, eu, um pegureiro habituado à plácida vida aldeã...
Parecia-me sempre que ia ser reconhecido por alguém; que estava sendo seguido por policiais secretos; que um gemido me acompanhava onde quer que estivesse... Tudo quanto via — rumorosas urbs, paisagens desconhecidas, o mar — causava-me profunda impressão, mas coisa alguma me atingia, pois me sentia isolado no seio das multidões, deslocado em ambiente no qual não fora criado, tudo visto através do pranto que me nublava os olhos, através da mágoa que me velava o coração...
Alheava-me da vida que se me deparava tão diversa da que havia tido até então; julgava estar sob o domínio de uma efialta martirizante; não achava serenidade em parte alguma; deixei de elevar o pensamento ao céu, que, certamente, havia de repeli-lo como indigno de lhe penetrar o âmago radioso e puro; sentia-me demais no mundo — que supunha execrar-me como a Caim — parecendo se houvesse transformado num ente humano, hostil à minha pessoa, ou fosse um tribunal inexorável, apto a condenar-me, a degredar-me para o Averno, em punição perpétua: eu temia, pois, senhor, a Deus, a Natureza, a Humanidade, os meus pensamentos, a própria existência...
Punha-me a contemplar as ondas, que admirava, mas, horas havia em que, para meu cérebro doentio, elas tomavam formas assombrosas de monstros fabulosos, de polvos líquidos e ferozes, que erguessem os tentáculos para me arrastarem a um precipício e devorar-me vorazmente, eternamente...
Cheguei, afinal, ao Havre, sem nenhum incidente digno de registo.
Apresentei-me ao parente do Pope e fui admitido a bordo do Devoir{34}, um magnífico transatlântico, e fiquei fazendo parte. da sua tripulação.
Escoaram-se os meses.
Não podendo olvidar meu benfeitor e para desafogo de minhas penas, escrevi-lhe longamente, narrando-lhe a viagem, as determinantes do crime e prometendo reabilitar-me nobremente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:00 am

X
Passaram-se meses, esperei, dia a dia, numa ansiedade indefinível, notícias do amado mestre e momentos havia em que me sentia apavorado, conjecturando houvesse minha carta parado em mãos alheias...
— Quem sabe — pensava agoniado — já não ascendeu ele aos páramos azuis, alanceado em pleno coração pelo desgosto que lhe causei! Quem sabe, vendo fracassar todos os seus sacrifícios, ficou abominando-me como o próprio barine?
Já não nutria esperanças de qualquer resposta do abade quando, em chegando ao Havre pela sétima vez, depois que lhe escrevera, recebi uma carta expedida da Rússia. A letra era do venerável sacerdote. Abri-a com avidez, almejando lê-la de um jacto, mas subitamente deteve-me um augúrio de infaustos sucessos...
Acalmei-me ao cabo de alguns segundos e iniciei a leitura da missiva, que, efectivamente, era do abade. Sintetizo-a nalguns tópicos, que ainda tenho gravados na memória: “Escrevo-te na calada da noite, imerso no silêncio do presbitério, e, tão nítidas são as recordações que de ti me pairam n´alma, que chego a iludir-me: parece-me ver-te a meu lado, Pedro, como outrora... Quanto tenho padecido desde o teu sumiço, acabrunhado por causa do acontecido, no nefasto crime que perpetraste — certamente dominado por Satã — tu, tão bondoso, de sentimentos tão nobres que me enlevavam e desvaneciam !...
“Não sabes ainda todas as lamentáveis consequências do teu ato de insânia: Sónia enlouqueceu, está tresvariando desde o momento fatal do homicídio do irmão...”
Foi com extrema dificuldade, com o cérebro incendido e as mãos trémulas a ponto de fazerem bailar a carta que sustinham, que prossegui na leitura:
“Julgo prudente — continuou o abade noutro tópico — não me escreveres mais, enquanto não fores previamente avisado, pois me acho enfermo, à beira do túmulo, e temo sejam tuas cartas entregues a pessoas adversas, após meu passamento...
“Lembro-me muito de ti, Pedro; e quando mais vivas são as lembranças, faço rogos a Deus que te inspire louváveis resoluções, encaminhando-te na senda áspera, mas luminosa, da Virtude...
“Não te condeno nem absolvo, como sacerdote: só Deus tem o direito de o fazer. Envio-te, do meu leito de quase agonia, um amistoso — Adeus! — que será o derradeiro nesta existência de amarguras; mas, prometo — se o Criador me consentir — continuar a velar por ti, quando meu corpo baixar ao sepulcro e minh´alma escalar as mansões sidéreas, pois muitos anos, de duras provas, talvez já lhe tenham dado jus a fruir venturas e paz, inatingidas neste planeta tenebroso...”
Quando finalizei a leitura, tive instantes de desvaira- mento, ao imaginar que a adorada Sónia ficara alienada, pelo pesar que lhe causara, e que o meu incomparável benfeitor, aturdido pelo mesmo dissabor, ia baixar à tumba...
Essas duas lúgubres notícias levaram-me ao apogeu do sofrimento. Até então, considerava-me um transgressor do Código Penal: desde aquele segundo, fui um ofensor das Leis Divinas.
Rasgar o peito a um contendor que nos detesta, em defesa própria, é um crime com dirimentes e atenuantes legais; embeber um punhal na alma dos que nos amam é a superlativa iniquidade! Trucidar corações que palpitam por nós é a suprema covardia, é o mais hediondo de todos os delitos! Deixei de ser exclusivamente assassino para tornar-me um celerado, um réprobo, um maldito!
No entanto, o abade, um ministro do Juiz Supremo, não me incriminara e ainda expendera pensamentos que revelavam o mesmo paternal afecto por mim, patenteado quando eu era justo e bom... Sua missiva, nas últimas páginas, tinha vestígios de lágrimas, pois nelas havia máculas de tinta, irradiadas dos caracteres que ficaram ininteligíveis, como quando um manuscrito é aspergido com água...
Senhor, às vezes a piedade é um látego: exacerba mais o nosso padecer que o aguilhão da violência... Eu perpetrara um crime que se tornara nefando, porque tivera consequências funestas, deploráveis — atingira duas almas imaculadas, dignas de todas as ditas do Universo! Por isso, se verberassem o meu ato ignominioso, se supliciassem o meu corpo num pelourinho e ultrajassem o meu Espírito mofino, sentiria decrescer meu íntimo sofrimento, que transbordaria do coração, qual de uma taça um vinho efervescente, deixando-o após, pacificado e sereno; gotejaria com o sangue que se derivasse dos músculos dilacerados... Ao inverso, a bondade com que me tratara o abade, as suas expressões de carinho represaram-me as lágrimas, aumentaram-me o remorso, que, então, crescera até o ilimitado, pois fora o causador não de um, mas de três infortúnios...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:01 am

Incomensurável minha culpa; inominável e imperdoável meu crime! Eu próprio me julgava um bandido, um précito passível de tormentos inquisitoriais e eternos, indigno da compaixão humana: devia ser amaldiçoado e não confortado...
Como é que o Pope, um santo, um incorrupto, não me acusara? Sua increpação vibrante ter-me-ia feito alçar a fronte, do caos em que me achava, para retorquir-lhe com altivez: “Mestre, teria suportado mais uma atroz afronta de André, mas não poderia consentir açoitasse brutalmente um anjo de indizível clemência e pureza — Sónia Peterhoff! Foi para defender minha generosa protectora que me tornei assassino... Venham agora, para mim unicamente, todos os martírios, mas, seja ela feliz e bendita pelo Criador, é o que aspiro!”
Eu, porém, não tinha mais direito a essa escusa: vitimara ao mesmo tempo o algoz e a cândida presa...
André jazia num sepulcro; Sónia tornara-se desventurada; fizera eu extinguir em sua mente — pelo excesso de sofrimento e terror — a lâmpada maravilhosa da Razão; matara-lhe o coração em flor, pois o louco é um morto vivo, é um ser de quem se desliga o Espírito, deixando-lhe apenas fragmentos, para que o organismo não entre em putrefacção.. . É a demência um cataclismo no cérebro, com repercussões demolidoras n´alma, ocasionado por um frémito de dor infinita; é qual terremoto que faz trepidar um vergel florido, tornando-o, bruscamente, em fendas ou num abismo hiante... E esse delito fora cometido por mim, o maior desgraçado da Criação; ele é que me fazia os cabelos eriçarem-se no crânio vulcanizado, os dentes a rilharem de desespero, dobrarem-se os joelhos sobre o soalho e não ter ânimo de implorar misericórdia ao Todo Poderoso, que, certamente, não atenderia às minhas imprecações, repeliria as minhas preces do Empíreo, tão infame eu próprio me considerava...
Como é que o abade Francisco — protótipo de virtudes! — não me acusara, conhecendo toda a hediondez de meus crimes?
Devia fazê-lo como austero sacerdote.
Sua comiseração por mim é que me esmagava, tirava-me a coragem da defesa: precisava ser justificado, garroteado, guilhotinado ou azorragado, para que meu Espírito adquirisse serenidade; para que minha consciência ficasse aligeirada do peso eril{35} que me fazia pender para um despenhadeiro apavorante, uma cratera insondável, a qual, começando no Equador, houvesse já perfurado as entranhas da Terra, ligando-se do Polo Sul ao Espaço indefinido, somente conhecido do Eviterno... Derramara ele bálsamo em meu coração dorido e equimosado, em vez de lhe tocar com pedra-lipes{36} para comburir e sanear-lhe as chagas; por isso, não lhe sentira a suavidade, parecia estar metamorfoseado em bloco de gelo polar, coagulando no seu âmago o pranto que não chegara aos olhos...
Estava em meu beliche, prosternado no chão, com a carta do Pope contraída na destra crispada, braços pendentes, sem ousar erguê-los ao alto, possuído de angústia inenarrável... Anoitecera.
Uma vela ardia a meu lado.
— “Senhor — murmurei a medo, como se a voz me fosse estentórica e pudesse ecoar, atroadoramente, por todo o Universo: — iludi as leis de meu país, mas não posso fazê-lo às vossas.. . Eis-me aqui, Senhor, entregue à vossa Justiça! Puni a Pedro Ivanovitch, o mais celerado dos delinquentes!”
Ateei fogo à missiva do abade e, por segundos, vendo-a inflamada, tive a impressão de que lançara às labaredas infernais o meu próprio coração, para reduzi-lo a cinzas...
Ainda genuflexo, passou-se comigo estranho e inexplicável fenómeno: de olhos cerrados, divisava, além, descendo lentamente do Firmamento, uma taça de ametista rutilante, de beleza e melancolia indescritíveis, donde transbordava um fluido subtil e violáceo, sustida por uma entidade extra-terrena da qual apenas pude distinguir um braço de névoas alvinitentes... Estendi uma das mãos trémulas para recebê-la, julguei tê-la aproximado dos lábios — no meu Horto ignorado de agonias — sorvi todo o conteúdo, que me deixou nos lábios, por muito tempo, um travo de absinto, indelével... Tombei no soalho, em delíquio que durou horas. Quando recobrei os sentidos, havia baixado à enfermaria de um hospital, ardia em febre e supus haver sonhado o que sucedera comigo...
Quando recuperei a saúde e reencetei meus labores marítimos, tive a impressão de que me achava degredado em mundo no qual a ninguém seria permitido apiedar-se de mim; parecia-me ser odiado universalmente; compreendi não ter jus a nenhuma ventura terrena. Ludibriara a justiça humana, mas entregara-me à divina; e esta, arvorara um tribunal em meu próprio imo — a minha própria consciência, implacável como a do Iscariotes, Juiz em causa própria, que me sentenciara a não fruir um instante de tréguas, não olvidando um segundo os meus crimes, avivados incessantemente, como por uma tinta lúcida, em minha mente...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:01 am

Para maior tortura tinha o corpo enclausurado no Devoir{37} e a alma acorrentada à longínqua aldeia onde delinquira: ora peregrinava no presbitério, no qual via pálido e agonizante o amado benfeitor, ora em casa de Peterhoff, onde via passar com os cabelos desalinhados, olhos esgazeados, feições descompostas, a idolatrada Sónia...
Como não endoideci também, senhor?
É que a insânia, para mim, seria a revogação da pena que me fora imposta pelo Código celeste; seria uma inaudita felicidade, pois esqueceria os meus transvios e eu precisava ter intactas as faculdades mentais, todas as potências anímicas, para reparar, no sofrimento moral e físico, todas as minhas culpas...
Estava, enfim, senhor, condenado a viver, desejando se me extinguisse a existência, sem ter a enflorá-la a mais ténue ilusão, um único sonho mundano...
Ai! senhor! sabeis o que é assim viver alguém, com o coração árido, sem o menor bruxuleio de esperança? Não? Como sois afortunado, senhor! Pois bem:
vou dizer-vos eu, com triste e longa experiência própria: é sentir morta, para as alegrias humanas, a própria alma sepulta num jazigo vivo e sensível — o corpo material — que se move, respira, age, tem faculdades fisiológicas, palpita, chora arrastando sua desditosa companheira emasmorrada em diversos pontos do globo terráqueo; é ser impelido, com indiferença, pelo destino, qual globo de granito desgarrado de um penhasco, rolando sem cessar, como a pedra de Sísifo por uma encosta íngreme e áspera, que vai terminar em voragem; é sentir-se asfixiado pela cerração intérmina do desalento a envolver-lhe o Espírito, que se torna qual galera desarvorada e perdida em regiões árcticas, tendo partida a bússola e extinto o fanal; é prantear no isolamento em que permanece de contínuo, e não ter um ente amigo que dele se aproxime para dizer-lhe: “Espera e crê no porvir! Venho enxugar-te as lágrimas, lenir a tua dor, de que compartilho, e, por isso, dividida ao meio, decrescerá...”
É imaginar que pode expiar abandonado por todos, não tendo, na hora da agonia extrema, quem lhe chegue à mão um crucifixo, quem lhe cerre as pálpebras arroxeadas, e, depois, à beira da cova humilde, quem verta uma lágrima de saudade, deponha nela um goivo{38}, profira uma prece; é estar sentenciado a não ouvir senão o silêncio nocturno, nas infindas horas de vigília e de incomensurável flagelo moral; é viver sempre estranho perto dos que sorriem de júbilo — do qual não pode compartir — e que o olham com desconfiança ou desdém, porque ele possui no rosto macerado o estigma de secretas mágoas; é soluçar às ocultas e não ter a quem dizer: “— Sofro! —” porque o homem é egoísta e escarnecerá da sua dor sagrada; é sentir-se, ininterruptamente, resvalar para um vácuo — o Futuro — e não divisar nenhuma teia de aranha a que se apegue no Presente umbroso, soturno, hibernal: é, enfim, senhor, existir como existe o mineral nos filões do subsolo — sem afectos, sem sonhos, sem sorrisos, isolado, sem quimeras, bloqueado de trevas; não tem um alvo ao qual colime seus pensamentos; seu cérebro fica enevoado, entenebrecido; o coração calcinado, sem norte, sem Deus, sem roteiro, sem amor...
Assim foi que vivi por alguns anos... Compreendeis quanto tenho padecido?
Não vos importuna a narração de meus infortúnios? Dizeis que não, mas estais fatigado... Amanhã prosseguirei a tragédia da minha existência. Ide em paz, abnegado desconhecido que tendes lacrimado, ouvindo o relato das minhas amarguras... Obrigado! Já não tenho quase lágrimas, senhor: extingue-se, aos poucos, essa bendita fonte de consolação, tanto tenho carpido nesta minha atribulada vida... No entanto, sou agora menos desgraçado do que antigamente, pois julgo haver atingido a meta dos meus reveses... Supus, outrora, poder conquistar a ventura terrena; mortifiquei-me por vê-la sempre a se esquivar — qual sombra de nuvem errante — e só agora começo a vislumbrá-la longe da orla do horizonte, muito além e acima de nossas frontes, lá onde adejam as estrelas, as douradas falenas divinas... A Esperança gorjeia em minh´alma, que concebe uma felicidade ideal, não inacessível no céu, porque o é neste planeta, onde tudo é falaz e efémero...”

FIM DO LIVRO I
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:01 am

Livro II - Entre o céu e o mar

I

“Minha existência, desde que deixei de ter tranquila a consciência, se me tornou uma incessante expiação. Não achava prazer em folgar com os outros marujos, quando o nosso transatlântico ancorava nalgum porto. A bordo, tornou-se proverbial a minha taciturnidade.
Nas horas vagas, ficava contemplando o Oceano, que o Devoir singrava, e só uma ideia me dominava, qual tentação satânica: atirar-me às ondas e desaparecer para sempre... Desapareceria, porém, realmente?
Era a interrogação que eu próprio me fazia, miríades de vezes, com o cérebro a escaldar, sem que pudesse dar-lhe resposta satisfatória...
Ocorria-me, então, à mente, os divinos conselhos do abnegado padre Francisco, e só ao pensar no mestre venerando, um enternecimento indizível assenhoreava-se de todo o meu ser, fazendo com que o rocio da saudade me aljofrasse os olhos, recordando, com precisão admirável, tudo quanto me dissera sobre o suicídio — que ele considerava um dos mais execráveis delitos, porque não só afronta directamente o Criador do Universo, como fica impune pelas leis humanas:
“Todos os crimes — dizia — são praticados contra o próximo, e, segundo a sua gravidade, são previstos pelos Códigos penais, que estabelecem para todos sentenças equivalentes à culpa, ao passo que o suicídio atinge directamente o Omnipotente, é uma revolta contra as provas necessárias à lapidação do Espírito maculado, estatuídas por Ele para reparação de faltas abomináveis, e não pode ser punido pelas leis sociais... É, pois, o suicida, o delinquente máximo: pratica um homicídio voluntário, premeditado, torna vítima o próprio corpo indefeso pelo qual deve desvelar-se, foge ao proscénio da vida onde veio reabilitar um passado poluto, burla a justiça humana, e, por isso, há a intervenção da justiça divina, que nunca é demasiado severa para um delito tão hediondo...”
Rememorando essas palavras do provecto sacerdote, supunha, às vezes, vê-lo surgir-me qual fantasma de brumas alvinitentes, as mãos alçadas como quando elevava a lirial eucaristia em gesto de bênção, ou me apontando o céu, onde tenho de ser julgado... Então, repelia com pavor todos os mais sinistros pensamentos que me haviam aflorado ao cérebro incandescido.. .
Ao chegar o Devoir — cujo nome me suscitava a única directriz de toda a existência — a algum porto americano, em que costumava fazer escala, descia à terra apenas para adquirir algum livro de moral ou de ciências exactas e regressava logo, pondo-me a lê-lo em todos os momentos de lazer, para refrescar as ideias, temendo qualquer divagação pelo passado...
Certa feita, o comandante, inspeccionando o navio, deteve-se a observar-me. Eu me achava sentado numa escada atento à leitura. Ao vê-lo, fechei o livro. Era ele já um sexagenário, porém robusto, de tez rosada, aspecto nobre, olhar franco e penetrante. Fiquei surpreso ao ouvi-lo dizer:
—Como é possível que sendo tu marítimo, preso a bordo dias seguidos, em vez de te alegrares nos momentos de liberdade — como o fazem teus companheiros, sempre folgazões — voltas ao cárcere para te entregares à leitura de livros que demonstram não seres um rude, nem desprovido de cultivo intelectual?
—Senhor — respondi-lhe com humildade e voz contrafeita — só me apraz, nas horas de folga, a companhia dos meus livros... Apenas sede de saber, senhor!
—Pensas admiravelmente bem, meu rapaz, e felicito-te por assim procederes, mas, onde adquiriste conhecimentos filosóficos e científicos? Há dias estavas a ler Spencer e hoje Buffon. .. E’ mister saber o teu preparo intelectual, para que mais tarde ocupes melhor lugar...
—Senhor, não tenho aspirações. Desejo apenas um ganha-pão para não morrer de fome. Não posso, entretanto, deixar de vos agradecer o generoso interesse que por mim manifestais. Obrigado! Deus vos recompense.
—Porque ocultas o que sabes?
—Porque sou um desventurado, não tenho família e desejo morrer como tenho vivido até hoje — ignorado e obscuro... Recebi austera educação ministrada por ilustre sacerdote, e talvez ainda me faça clérigo.
—Não me iludes, meu rapaz: tens é grande desgosto a mortificar-te e, por isso, te tornas misantropo{39}; mas o tempo dissipa todas as mágoas e tenho a convicção de que ainda te verei animado de ideias menos sombrias....
Não protestei. Baixei a fronte, sentindo as lágrimas prestes a rebentar-me dos olhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 11:01 am

Ele se afastou pensativo e eu ia reencetar a leitura, quando, de súbito, inesperadamente, senti leve pancada no ombro direito. Ergui o olhar e defrontei idoso e rústico marinheiro bretão, de rosto acerejado e risonho. Uma fisionomia ressumbrando franqueza e bondade — dessas que parecem possuir
perpétua infantilidade, mesmo quando a fronte já está aureolada de neve, como os Alpes no Inverno...
Sorria-me e, entre malicioso e repreensivo, disse:
—Deixaste noiva em tua aldeia, ó camarada?
Estremeci. Era necessário, porém, dominar-me. Aparentando indiferença e contrariedade, falei:
—Que te importa a minha vida, tio Guilherme?
—É que andas sempre arredio às diversões, tão macambúzio que os nossos colegas — uns bons rapazes brincalhões! — andam a suspeitar algum mistério em tua vida... Na tua idade, viver meditando e lendo, não é natural...
Lá isso salta à vista de qualquer bolónio{40}... És algum sábio ou asceta disfarçado em marinheiro?
—Não acho prazer em jogar nem em me embriagar — prefiro aqui ficar estudando. Todos se lembram do corpo para lhe dar gozos; eu me lembro da alma e tento fazê-la melhor...
—Qual camarada, estás é perdidamente enamorado, e por alguma campónia que, talvez, já seja de outrem ... Olha que só depois de morto é que me hão-de atirar terra aos olhos!
—Amo somente o mar e os meus livros... Sofro, porque receio estar separado, para sempre, de minha família...
—És casado?
—Não. Tenho apenas irmãos, esparsos pela Polónia e pela Rússia...
Tio Guilherme pôs-se a rir, ruidosamente, e, sempre jovial, retrucou:
—Viveres assim macambúzio pela ausência de irmãos, tem graça, Pierre!
Queres iludir-me, meu rapaz, mas não o consegues... Abre-me o teu coração e diz-me que deixaste alhures uma amante ou uma noiva adorada que te não é fiel, e é o zelo, o desgosto de a teres perdido que te causam essa constante tristeza... Nosso coração é sensível ao afecto da família; enternece-nos a recordação dos velhos pais e dos companheiros de infância; mas, o que nos faz desgraçados, insociáveis, é o ciúme que nos devora, quando nos falta o coração, roubado por alguma formosa mulher! Os filhos sabem rir e bailar longe de suas mães velhinhas, que, quase a desaparecer no túmulo, opressas de saudades, choram por eles, vivem a rogar à Virgem Maria que não lhes suceda nenhum mal; estes, porém, só se julgam desditosos e pranteiam quando ausentes de suas amadas, ou de suas esposas, e sabem que elas possuem outros predilectos... Esta é uma verdade que, em minha longa vida — a que não faltam dolorosas experiências — nunca foi desmentida e não o será, que já estou com os cabelos transformados em flocos de algodão e com a sepultura quase aberta para receber o corpo fatigado de lutar contra as tempestades da existência e do oceano — o nosso temido e adorado adversário...
Não me enganas, pois, rapaz; tu tens algum compromisso amoroso e sofres, longe da tua prometida...
—Não, tio Guilherme, não atinaste com a causa de minha tristeza. Sou um mísero marinheiro e não penso em contrair tão sério compromisso, qual o de constituir família...
Ele descobriu a fronte ampla e passou a mão áspera pelos velos de prata que a cobriam. Estava visivelmente preocupado e, como se fora contagiosa a minha melancolia, tornou-se repentinamente grave e apreensivo. Ficou silencioso por instantes, olhou-me fixamente e falou, baixando a voz:
—Pois camarada, vou dizer-te a verdade: simpatizo contigo, aprovo teu modo de pensar e de proceder, tanto me cativaste o coração, que concebi um projecto a teu respeito...
—Que projecto é esse, tio Guilherme?
Ele hesitou por alguns momentos e, depois, disse-me com a franqueza habitual:
—Vou ser sincero contigo, Pierre, pois detesto os segredos... Bem sabes que sou casado; mas o que ignoras é que o bom Deus nunca me concedeu um filhinho, o que foi motivo de dissabor para mim e para a fiel companheira, durante muito tempo. Disse dissabor e não expressei bem o que queria dizer:
tinha grande pesar por ter sempre despovoado o lar, e esse sentimento foi agravado pelos zelos que tive do meu único irmão que, consorciado muitos anos depois de mim, em pouco tempo viu a sua união abençoada pelo Altíssimo com o nascimento de uma encantadora menina, digna de ser uma rainha...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:46 pm

Confesso-te que invejava intimamente a ventura de meu irmão, apesar de idolatrar a sobrinha, minha afilhada, e para a qual escolhi o nome de Catarina, que é, para mim, o mais belo do mundo, porque era o de minha santa mãezinha...
Subitamente, a felicidade de João foi perturbada: minha cunhada adoeceu gravemente e rendeu a alma ao Criador; meu irmão, inconsolável, não tendo quem cuidasse da filhinha, entregou-a aos cuidados de minha mulher e, então, começámos a adorá-la ainda mais do que quando não era nossa. Viveu ele sorumbático alguns anos e também veio a morrer-me nos braços... Não é que os olhos ainda se me arrasam de lágrimas, passado já tanto tempo da morte do meu João? que o coração da gente é como este mar em que vivemos: nunca lhe faltam gemidos, nem água para subir pro céu — do qual parece ter saudades e, por isso, quer alcançá-lo, sempre em vão...
O destino é caprichoso, meu rapaz: porque era necessário meu irmão ser desgraçado para eu ser venturoso? Porque é que Deus me não concedeu uma filhinha legítima e lançou em nossos braços uma orfãzinha, para nos fazer ditosos? Não sei. Há mistérios nos desígnios da Providência, que nunca poderemos desvendar... Parece-me que, dessa vez, ela quis repartir o mesmo tesouro com os dois irmãos — como se possuísse um só no Paraíso...
Seja, porém, como for, alegrei-me bastante com a dádiva que nos fez.
Agora, terminando a história — que eu não sei se te comoveu ou não - completo também o que desejava expor-te: Catarina conta, presentemente, dezoito primaveras, é educada, prendada, sensata, bondosa e bela qual princesa dos contos de Fadas... Pois, meu amigo, sabes o que anda a me preocupar os miolos? É que já não sou positivamente um jovem, temo deixar o mundo a qualquer momento, e a minha Catarina ficaria órfã pela terceira vez...
Conheço-te, tenho estudado o teu carácter, acho-te trabalhador, bem comportado e imaginei que poderás fazer a felicidade da minha sobrinha... Que respondes a isso, meu rapaz?
Era a primeira vez que alguém me acenava com um pouco de ventura realizável neste planeta. Fiquei comovido e enleado.
Reflecti alguns instantes, e, repentinamente, esvoaço-me na mente a triste visão de Sónia, louca por minha causa... Como poderia tentar a felicidade, se a fizera desgraçada? Julgava-me um réprobo, mas não um covarde. Era meu dever recusar a taça de ambrosia que me ofertava o generoso velhinho, para libar até às fezes a do absinto, que o Altíssimo me fizera chegar aos lábios.
Disse-lhe, então, com indescritível amargura:
—É demasiada, para mim, a honra que me concedes, tio Guilherme! Não me conheces ainda suficientemente, para que me consideres merecedor do inestimável tesouro que ora me ofereces...
—Deixa-te de modéstias, rapaz! Pois, então, em três anos de convivência contigo, ainda não sei quem és? Um excelente mancebo de óptimos costumes!
Baixei a cabeça, entristecido. Porque não inteirar da verdade os bravos companheiros? Algo de extraordinário passou-se em meu íntimo: pareceu-me que alguém., naqueles segundos, vedava-me a liberdade de ser sincero, de expandir os meus secretos pensamentos... Foi ele quem quebrou o silêncio, falando-me a rir:
—Não tomes, por enquanto, nenhum compromisso, Pierre! De retorno ao Havre, levar-te-ei a nossa casa, apresentar-te-ei à minha dedicada companheira e à formosa Ketty...
Olha que vais ficar maravilhado, meu rapaz, e verás se tio Guilherme sabe mentir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:47 pm

II
“Pouco tempo decorrido dessa confabulação com o velho marujo - tendo-se, desde então, estabelecido recíproca afeição entre nós — regressámos ao Havre e tive ensejo de ir ao seu pobre mas ditoso domicílio.
Fiquei atónito, senhor, ao ver-lhe pela vez primeira a ideal sobrinha: basta dizer-vos que era a sósia de Sónia. Peterhoff, como se fossem gémeas e iguais!
A mesma altura, o mesmo porte airoso, os mesmos cabelos de topázio luminoso, o mesmo timbre mavioso de voz, os mesmos olhos azuis, repletos de suavidade e melancolia! Parecia-me estar delirando...
Ver a gentilíssima Sónia transportada a um lar amigo, poder conversar com ela livremente sem ser espionado por André, ser permitido unir ao meu o seu destino, abençoado por Deus! Seria demência minha? estaria desperto, ou sob acção de paradisíaco narcótico? Era excessiva ventura para que eu a considerasse viável.
Mostrei-me perturbado e absorto na presença de Ketty, e, enquanto ela palestrava comigo, sentia-me torturado: se não fosse estar incurso nas leis divinas e sociais, seria a ocasião propícia de ser ditoso; mas, as reminiscências do passado aniquilaram-me, pois seria um crime aliar ao meu coração conspurcado o daquela pura e fascinante donzela!
Não permitiria o Todo Poderoso que se unisse a noite à alvorada — porque esta repele aquela, como a virtude à iniquidade; como a água ao réptil!
Retirando-me do lar do meu companheiro de lides oceânicas, parecia-me ter sido vítima de uma alucinação, ter ouvido um filtro enfeitiçante, e nunca me julguei tão mal-aventurado...
Tinha de renunciar a uma ventura inconcebível, por me julgar indigno de merecê-la, para evitar prováveis dissabores a um ente tão nobre quanto Ketty.
Não pude adormecer durante a noite em que travei relações com ela.
Levantei-me aos primeiros albores matinais, mais acabrunhado que de costume.
O navio tinha de permanecer alguns dias no Havre e tio Guilherme insistiu para que repetisse as visitas ao seu lar.
Tentei esquivar-me, mas a tentação de rever a estátua de Sónia arrastava-me até lá, era mais forte que o desejo de reagir à invasão de um sentimento avassalador...
Achava-me ao mesmo tempo deslumbrado e infeliz. Dir-se-ia estar dominado por intensa magia, por força magnética indómita. Dentro em pouco eis-me insanamente enamorado de Ketty, e notei que ela não era insensível ao meu amor — que eu não sabia se lhe consagrava, ou à imagem viva de Sónia Peterhoff, sempre adorada e inolvidável, e cuja evocação me punha travos de fel na boca e lágrimas nos olhos... Venci, porém, todos os escrúpulos da consciência, e, numa das viagens de volta à França, desposei a graciosa sobrinha do bondoso Guilherme. Vivi alguns meses sob a égide de fagueiro sonho; senti amortecidas minhas ânsias e tribulações. Venturoso, enfim, eu, o trânsfuga, o précito? Não estaria iludido ou tresvariando? Houve um interregno de pesares e remorsos; um rejuvenescimento espiritual; cheguei a conjecturar que, com o correr dos anos, esqueceria o passado tenebroso...
Enganava-me, porém. O que eu supunha fosse dilúculo, início de uma estação radiosa, era apenas crepúsculo, prenuncio de noite cerrada e intérmina...
Eu tinha sede de expansão. Comecei a pensar fixamente em contrariar a vontade expressa na carta do abade Francisco, em lhe escrever longamente, implorando-lhe abençoasse, em hora de preces, no santuário do presbitério, o meu enlace com Catarina.
Uma tarde, por um passageiro eslavo, recentemente chegado de NijniNovogorod, soube que ele ainda existia, mas seriamente enfermo.
Escrevi-lhe minuciosamente, e no cabeçalho da epístola grafei, como endereço: “Bordo ão D..."
Desde, porém, que expedi a carta, sem atinar porque, algo de inquietador começou a turvar-me a efémera ventura.
— Quem sabe — inquiria-me secretamente — ao chegar a carta à Rússia já não estará ele morto? Onde irá ter, nesse caso, minha confidência?
Voltei a ser o taciturno Pierre, que todos conheciam, tão opresso vivia.
Uma tarde, senhor, atemorizado por não haver logrado receber a anelada resposta, fiquei insone. Já quase meia-noite e não me retirara do tombadilho do paquete, contemplando o Atlântico. Não sei se o conheceis nas zonas tropicais...
É um verdadeiro portento! Um cenário imponente, parece uma apoteose em que tomassem parte atores siderais, após a representação de uma ópera divina...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:47 pm

Nas cálidas noites de estio, nunca se faz noite plena, porque a escuridão não pode vencer o lampejo das constelações que fulguram no zimbório celeste do hemisfério ocidental, como se Deus lhes houvesse atirado a esmo cornucópias repletas de moedas de diamantes acesos, em todas as direcções, qual verdadeiro Nababo da luz, que Ele o é...
O oceano, reflectindo as irradiações astrais, tinha as ondas balouçantes, incrustadas de incomparáveis miríades de pérolas luminosas, que, desgarradas dos seus prodigiosos estojos de nácar — sequestradas na profundidade das águas, nalgum alcáçar encantado — houvessem subido à tona para um festival em homenagem a Anfitrite...{41} Dir-se-ia, também, que, das jazidas celestes, houvessem rolado toneladas de gemas preciosas sobre as vagas siderais, que têm sob a sua guarda os tesouros divinos.
Eu estava estupefacto, contemplando a Natureza portentosa, quando, repentinamente, vi formar-se à flor das vagas, qual se fora feito de espumas, um corpo humano ... Seria um náufrago ? Ia prestar-lhe socorros, mas logo reflecti que a nenhum mortal Deus outorgou o poder de se equilibrar nas ondas e palmilhá-las, qual outrora o Cristo sobre o azul Genesaré, como o fazia sutilmente, aquele estranho ser, deslizando em direcção à nau...
Fiquei apavorado, petrificado, imóvel, debruçado na amurada, sem poder desviar a vista da aparição, na qual reconhecia o meu benfeitor... o abade Francisco! Glacial suor cobriu-me o corpo, transformando-o em bloco de gelo...
Tive a iniludível certeza de que ele havia deixado a vida material, e, antes de se librar ao Empíreo, fora dar-me o testemunho de sua amizade inigualável...
Caí genuflexo — o que não fazia desde que recebera sua primeira e última carta — com os braços estendidos para a visão querida, como se tentasse apertá-la de encontro ao peito, onde rumorejava de dor o íntimo ergastulado... Deixara de existir, neste orbe miserando, o mais dedicado protector dos órfãos e dos desamparados, o mais nobre dos anciães e fora eu — de quem tantas vezes ele aligeirou as penas! — que lhe causara o pungente dissabor que o levara ao sepulcro, fazendo-o agonizar durante anos de tortura indómita!...
Que sublime criatura aquela, que, não me amaldiçoando, e devendo fazê-lo, ainda me buscava antes de ascender às paragens estelares? Através das lágrimas que, copiosas e ardentes, me humedeciam as faces, pude contemplar longamente a diáfana aparição, que elevou a destra num gesto de bênção, ou como a apontar-me a umbela constelada, para a qual estava de partida, até que se esvaiu qual floco de bruma, de alvura lactescente...
Eu continuava ajoelhado e soluçante, compreendendo que findara a minha breve felicidade terrena, que se avizinhavam novas e tétricas tormentas, e que somente cruciantes sofrimentos poderiam reabilitar-me ante o Criador do Universo... E foi nessa posição súplice que me encontraram dois marujos, julgando que houvesse enlouquecido por causa dalgum recôndito desgosto.
Por muitos dias estive tresvariando, acometido de febre cerebral. Pouco a pouco fui recobrando o senso e a saúde, que se tornaram alteráveis à menor emoção.
Fui salvo, senhor, de gravíssima enfermidade, porque ainda não estava consumada minha expiação: era mister viver, lutar e padecer!
Naquela noite memorável, que venho de referir, não estava a bordo do Devoir o tio Guilherme. Quase à hora do embarque fora acometido de súbita indisposição e ficara em tratamento em nosso lar, pois vivíamos em comum.
Quando regressei, não mais pude vê-lo — tinha também morrido! Chegara-lhe a extrema hora, durante minha ausência; não cerrara os olhos, como de seu desejo, no bojo do Devoir, embalado pelas ondas, nas quais quisera ser sepultado. Deus lhe chamou a alma generosa e leal mais depressa do que previa, e, certamente, ele se lhe apresentou risonho, sem um delito a enodoá-la, pois essa alma, a meu ver, deve ser alva como um jasmim, pura como a de uma criança. De volta ao Havre, ainda convalescente, encontrei os nossos envoltos em crepe. Fui, na companhia de Ketty, levar algumas flores ao modesto sepulcro do velho marítimo, e, ao prosternar-me ali, assim, lembrei-me doutro, muito longe, também recém-aberto... Compreendi que, ao mesmo tempo, perdera as duas mais profundas afeições paternais que possuíra na Terra — a dele e a do abade Francisco...
Abriram-se, em dois pontos distantes do mundo, duas campas rasas, ligadas, para mim, pelo hífen da Saudade, parecendo-me que haviam sido cavadas no meu próprio coração, desde então fendido por dois vácuos impreenchíveis...
Nossa alma, quando vivemos mais de um quartel de século, se vai tornando funérea Necrópole, onde fenecem, inumadas, caras ilusões e alvissareiras esperanças; povoa-se, apenas, de dolorosas lembranças, de espectros queridos, e, por isso, pontilha-se de cruzes e saudades...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:47 pm

Passaram alguns anos sobre os episódios relatados. Meus conhecimentos náuticos, aliados ao estudo incessante a que me entregava, fizeram-me acatado por todos os que comigo privavam, mormente pelo comandante do navio, de quem granjeara simpatia, e que prometeu promover-me a primeiro piloto logo que houvesse vaga. O anelo de melhorar de situação despertara-se em mim, ao conceder-me o Omnipotente uma bela filhinha, imensamente semelhante à sua progenitora e, portanto, à Sónia.
Como já havia feito estudos de filosofia hindu, que assevera a peregrinação do Espírito em sucessivas reencarnações neste planeta, até atingir a perfeição psíquica, supus que, falecida na Rússia, houvesse nascido em meu lar a irmã de André, para poder amá-la santamente, retribuir-lhe em carinhos a piedade que tivera por mim, beijar-lhe a fronte angelical, sem ver erguido para nós um knout ultrajante...
—Fechou-se, pois, um túmulo — pensei eu —, para surgir um berço; desfolhara-se um goivo{42}, além, no Império moscovita, para abrolhar uma açucena em França; voara do cárcere cândido colibri, para pousar em humilde ninho humano, no qual não lhe faltariam ternuras, alimento, conforto...
Tão convicto fiquei de ser a minha galante e loura filhinha a encarnação do Espírito imaculado de Sónia Peterhoff, que lhe fiz sua homónima. Quando a estreia Decorreu um decénio, após minha evasão da aldeia de... Vivi quase sempre com o cérebro ofuscado por atrozes reminiscências; uma única ideia punha-lhe laivos de rosicler — rever a meiga esposa e a linda Sóniazinha...
Quando desta me apartava — como sucede agora, em que tenho em eclipse todo o meu ser —, sentia-me acabrunhado.
Haveis de estranhar narrar-vos tudo no pretérito, como se a família não existisse mais... Ainda existem, sim, aqueles dois seres estremecidos que a constituem; eu, porém, é que me considero morto para ambos, pois sei que estamos separados, neste mundo, por todo o sempre; e, por isso, faço-lhe referências qual se já fosse um ente extraterreno...
Havia, em minha vida, períodos de desânimo, em que desejava, com veemência, perecer; outros, em que sentia avigoradas as potências psíquicas, almejando posição invejável, para tornar ditosas a consorte e a filhinha.
Um dia, sem motivo justificável, me senti inquieto, lembrando os tempos idos. Quanto mais mortificado, mais percebia a meu lado um ser invisível, gargalhando continuamente, qual Satã zombeteiro e vingativo... Que seria?
Fiquei alarmado, com receio de endoidecer. Eu considerava uma punição do Alto essa vibração de escárnio que ecoava em meu ser, para que não pudesse planejar venturas irrealizáveis, avivando na memória o ocorrido em minha pátria, na qual revia todas as cenas relativas à minha vida, desde a orfandade até a fuga... Tentei descartar-me desse efialta, mas meu pensamento se achava acorrentado à mísera localidade em que fui criado, qual um aeróstato cativo, querendo librar-se aos espaços interplanetários e tendo a retê-lo, neste orbe, um cabo indescritível e possante...
Esforcei-me por fazê-lo voltar até ao Eviterno, dirigindo-lhe uma prece, mas não consegui formular nem uma Ave Maria!
Algo de inusitado se passava comigo, em meu âmago e no meu exterior:
acastelavam-se em derredor de mim nuvens tempestuosas, nimbos denegridos.. .
Queria desvendar o futuro e este me parecia paralisado por súbito staccato, desaparecido num terremoto que só eu via, tornando-se em mar de sombras e escombros, e unicamente o que eu havia sido é que se me desenhava, nítido, na retentiva, como se esta fosse dividida por muralha que
separasse o Porvir e o Passado — este em pleno dia e aquele em densa escuridão...
Cuidava me bradassem na mente — que repercutia com as pancadas de um camartelo gigantesco, de ferro candente, empunhado por Titã ultriz — estas palavras, que só as compreende quem as tem gravadas a fogo:
“— És um maldito! Tiraste a vida a um irmão, mataste de pesar a dois entes nobilíssimos, que te amavam! Caim, não podes aspirar aos júbilos do mundo, que os não merece um réprobo, o qual pode esconder os seus delitos dos homens, não do Eterno, que o espreita em seu próprio adito — a consciência — o seu mais implacável verdugo, um espelho cristalino, onde se reflectem a todos os segundos as faltas perpetradas... Vê se te ocultas a ti mesmo, assassino!
Pensavas poder ser ditoso tendo feito tantos desgraçados, Pedro Ivanovitch?”
— Deus — imaginava —, de onde provém essa voz sibilante, na qual cuido reconhecer a de André? Será a de algum severo executor das leis divinas, testemunha de todos os meus actos, intérprete de todos os maus pensamentos, para que o Direito celestial não seja burlado?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:47 pm

Naqueles momentos aflitivos, não me flagelava unicamente o remorso por haver interrompido a vida de criaturas humanas, mas a dor de ter perdido a virtude; de ver derruídos totalmente todos os meus planos de ventura, pois quem é delinquente não pode ser feliz em parte alguma, na Terra ou no Espaço; não há antro que o açoite, nem abismo em que esteja, sem que lá não ressoem os gritos de suas vítimas!
Porque, após alguns anos de letargia, recrudescera então, como nos primeiros tempos, tão atroz compunção?
Porque não lenia mais os meus sofrimentos a imagem risonha da minha pequenina Sónia?
Não me era dado chorar, para aligeirar meus pesares excruciantes.
Patenteou-se-me, então, em toda a luminosa hediondez, um outro crime que cometera: — dar o nome da pobre louca à minha filha, supondo fosse a encarnação de sua alma, como se o Omnipotente — a Suma Justiça — pudesse pactuar comigo, premiar as minhas iniquidades, entregando-me uma de minhas vítimas ... Porque, somente então, fora minha consciência devassada por um jacto radioso, descido do Alto, para desnudar todos os meus erros?
Ai! senhor, é que soara o momento da expiação, e, hoje, devo abençoar minhas horas de agonia, que vos relato agora como se falasse de outro ente, que não este, visto nesta rocha, com aspecto medonho, semelhante ao de uma larva monstruosa...
Não me reconhecia mais, parecia ser outro indivíduo, nunca ter praticado um só ato meritório, ter sido arrastado a um tribunal que eu temia, mas que dele não poderia fugir, se o tentasse.
Fiquei insone, a contemplar o Oceano, como era meu hábito. A noite ia alta. De repente, alguém me tocara sutilmente no ombro direito. Julgando fosse algum companheiro de faina marítima, voltei-me prestes para atendê-lo, mas, na penumbra em que me achava, distingui vagamente um ente imaterial, envolto em clâmide translúcida.
Reconheci nele, por secreta intuição, o padre Francisco... Vi-o estender um dos braços para o centro do navio, e logo após se esvair, qual incenso de turíbulo a que faltasse lume...
Era aquela noite — memorável nos fastos de minha vida — a primeira após o Devoir haver zarpado do Havre. Ainda me achava agitadíssimo depois da aparição célere que vira por segundos, quando ouvi, quebrando a quietude da Natureza, um grito estrídulo, partido de um dos beliches da primeira classe.
Eu estava dominado pelo sobrenatural: não sabia distinguir se o grito proviera de algum enfermo ou de um duende, de alguma alma penada de náufrago — que lançasse aquele brado de dor aos vivos, para assinalar o lugar onde encontrara a morte do corpo, devorado pelas feras marinhas — se saíra do abismo de Neptuno ou do meu próprio Eu...
Em qualquer outra ocasião, talvez não me causasse tanto temor supersticioso; mas, na superexcitação nervosa em que me achava, pareceu-me um pio agourento de estrige fantástica... De quem seria ?
Verifiquei que o médico não fora chamado para atender a qualquer doente. Comecei a andar pelo tombadilho do Devoir. Outros génios voejaram lugubremente pela vastidão oceânica...
Oh! como fremia o meu próprio Espírito dentro dos músculos enregelados, desejando — como aquela criatura que, perto de mim, manifestava o seu sofrimento —, soltar ais lancinantes, para aliviar o peito opresso, em preamar de prantos, e dizer ao desditoso que os proferira:
— Teus brados de desespero ou de angústia me repercutiram no íntimo em vibrações indeléveis: compreendo-os, porque os que estrangulo na garganta seriam iguais aos teus, de tormento inaudito, se eu os proferisse! Vinde, desgraçado que gemeis — carpindo, talvez, uma ventura dilacerada pela engrenagem do Destino! — e, ambos, eu e tu, ajoelhados sob o céu sem estrelas, como a nossa vida, em luto perene, peçamos a misericórdia de Deus; depois, de mãos dadas, busquemos nas vagas o repouso para os nossos corações — eivados de remorso ou de padecimentos incompreendidos!”
Teria eu expresso esses pensamentos em linguagem articulada? Talvez... Eu estava prestes a endoidecer ou a desmaiar. Escutei vozes alteradas pela ira. Os gemidos decresceram até se extinguirem. Restabeleceu-se o silêncio a bordo. Só eu velava — além dos tripulantes de serviço, alheios ao meu secreto sofrimento — para meu eterno suplício...
Só ao amanhecer é que procurei o leito, onde me estirei pesadamente.
Dormi pouco, incompletamente, como se o Espírito recusasse desprender-se da matéria vigilante, por sabê-la em perigo iminente, estabelecendo-se um colóquio entre ele e o invisível, zurzido por gargalhadas estrídulas e gemidos dolorosos...
Sentia-me opresso, como se um iceberg, rolando de um dos Polos, houvesse parado, de súbito, sobre meu peito, para me reduzir o coração a lâmina delgadíssima como na tortura da roda de pedra, ao tempo de Torquemada{43}...
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