LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 7 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:53 am

Fazem como as estriges{69} que, ofuscadas pela luz, preferem abrir os olhos na treva, e, por isso, devem negar a existência do Sol!
Ainda prosseguiremos nossa palestra amistosa, doutor; urge, porém, para não vos fatigar, inteirar-vos a respeito do que há muito almejais conhecer: as causas que me compeliram a abandonar os deleites mundanos, na flor da idade, para viver como um asceta, incompreendido de muita gente e até acoimado de demente ou hipócrita.
*
Dias depois, vendo Richard em condições favoráveis de ouvi-lo sem fadiga, disse-lhe Yvan:
— Escutai-me, pois. Como sabeis, sou descendente de fidalgos franceses e belgas. Nasci neste solar, rodeado de fausto régio, etiquetas e jactâncias. Desde, porém, que em mim começou o desabrochar da razão, compreendi que estava diametralmente divorciado, pelos sentimentos, dos que comigo privavam.
Meus pais — Deus que me julgue e puna neste momento, se sou injusto ou falaz! — eram, como já disse, de estirpe nobre, titulares, ainda ciosos de supremacias de casta; amavam, com aferro, a aristocracia, a ostentação; desejavam ardentemente ver-me imbuído das mesmas ideias e fosse um legítimo sucessor e herdeiro de suas prosápias, como da imensa fortuna que possuíam — acumulada secularmente por nossos avós — e do nome que evoca passadas glórias guerreiras, de seus ideais políticos e cavalheirescos.
Eu me sentia sem ambições, humilde, incapaz de seguir-lhes o exemplo ou satisfazer-lhes os desejos. Uma vez, ao completar doze anos, em raro momento de folga que me deram os preceptores, transpus o gradil do parque e detive-me nos arredores a recrear-me com um pequeno e lindo camponês, Jacques Morei, da minha idade. Sentia-me feliz em liberdade.
O ambiente do castelo era, para mim, irrespirável. Não me acarinhavam nunca. Pareciam todos combinados para me incutir ideias erróneas de orgulho, de preconceitos de raça. Educaram-me como se houvesse de ser um príncipe, ou um déspota.
Naquele dia, ditoso pela primeira vez, corri e foliei com o pequeno campónio, e quando despreocupado voltava ao lar paterno, enlaçando amistosamente o rapazinho, encontrei meu pai extremamente pálido, de cenho contraído, colérico, fitando-me severamente. Estremeci. Jacques fugiu aterrorizado.
—Meu filho — falou-me áspero —, abraças um labrego{70}, como se fosse da tua linhagem?
—Meu pai — respondi baixando o olhar sem afectação, como que ouvindo uma voz secreta, talvez a da consciência, que me tem orientado e inspirado as resoluções supremas, em todos os momentos graves da existência —, quem separou as criancinhas pelas raças, foi Deus, ou foi o homem?
—E quem te ensinou a fazer-me objecções, Yvan? Deus ou o homem, que me adianta sabê-lo? Não vês que as águias não são iguais às serpentes? Estas nasceram para se rojar no pó, ao passo que aquelas podem cindir os ares! Eis a diversidade entre fidalgos e vilões...
—Mas as águias têm asas e os répteis, não... A Natureza fê-los bem diversos, ao passo que meu corpo é perfeitamente semelhante ao do Jacques; apenas a roupa é que nos distingue... Vesti-o de pelúcia e a mim de farrapos, vereis que ele é mais bonito do que eu...
—Que blasfémia, Yvan! Tu, descendente dos barões de Aprémont, opulento, nobre, ombreares-te ao filho anónimo de um sórdido rústico...
—Porque, então, meu pai, me ensinam os livros santos que Jesus, filho do Criador do Universo, anunciado por uma estrela brilhante, podendo ter nascido num palácio, preferiu fazê-lo num tosco estábulo? Porque amava Ele os pequeninos e obscuros? Como é que abençoava e beijava criancinhas de vestes rotas Eram, acaso, todas elas filhas do povo ou dos potentados?
—Yvan! faltas-me ao devido respeito! Usas de uma linguagem imprópria ao filho dos Barões d’Aprémont, desconhecida em nossa família e só apropriada aos plebeus que, não tendo ouro, recorrem a essas ignóbeis ficções para ter culminância entre os ricos e nobres — a quem invejam e odeiam! — forjam fabulosas lendas das quais descreio, porque as considero absurdas, hipócritas, abomináveis!
Quereis imitá-los? Não respondes? Pois bem, vais ser punido por tua rebeldia: vou internar-te, por tempo indeterminado, num colégio só frequentado pelo escol da nossa sociedade, pela progénie de ilustres fidalgos, a fim de te habituares aos de nossa alta hierarquia, e, para que mais tarde, não sirvas de vexame aos nossos gloriosos avoengos! Dão-te ensinamentos contrários à nossa elevada estirpe, os teus mestres...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:54 am

— Perdoai-me, se vos ofendi. Não era essa a minha intenção... Eu vos obedecerei em tudo o que vos aprouver e me determinardes fazer. Quero, porém, ser leal aos que me educam: todos são submissos às vossas ordens, inspiradas pelos Evangelhos, que encontrei em vosso gabinete de estudo...
Meu pai não replicou e foi relatar o sucedido à minha mãe, que ficou alarmada com as minhas tendências para a democracia. Fui sequestrado, num colégio provinciano, durante seis anos consecutivos, com ordem expressa de só me relacionar com os filhos de aristocratas. Apoderou-se de mim invencível melancolia. Invejava as crianças, afagadas por seus pais, e as aves, por terem liberdade. Dedicava-me com ardor aos estudos, e, à noite, passava longo tempo em vigília, orando e meditando.
Sentia-me, então, confortado, e, muitas vezes, parecia-me ouvir, dentro da própria alma sensível, uma entidade imaterial me segredar brandamente:
“— Sê forte, Yvan! Aguarda o porvir. Eleva o teu Espírito ao Criador e hás-de triunfar!”
Minha docilidade e amor ao estudo granjearam a benevolência e estima dos professores, quase todos clérigos. Afeiçoara-me particularmente a um deles, Frei Amâncio.
Um domingo, os docentes resolveram fazer uma excursão campestre com os alunos, após a celebração da missa matinal.
Encontrámos à margem da estrada, não distante da mísera choupana, um menino assombrosamente deformado. Tinha os lábios fendidos, como que rasgados a punhal, ou carcomidos por uma úlcera, os dentes precipitados nas gengivas violáceas, e andava coleando no solo, como um ofídio.
Era um( medonho réptil humano. Quis ocultar-se à nossa passagem, mas não conseguiu fazê-lo a tempo.
—Mestre — disse eu, abeirando-me do venerável e bondoso Frei Amâncio — acreditais na justiça divina?
—Como não? Porque me perguntas?
—Vedes aquele infeliz? Porque seria assim tão mal aquinhoado pela Providência?
Se é um inocente, porque o feriu tão iníqua pena — exarada por Deus, que considero magnânimo e recto? A Natureza tem desvios, também erra...
—Yvan! Não incrimines a Providência divina, quando desconheceres seus sábios desígnios!
—Ò Frei Amâncio! então enlouqueço; não compreendo o que me inspira a razão...
Se a Natureza, que é uma potência do Altíssimo, a executora de suas Leis portentosas e imutáveis, erra, a Humanidade deve estar isenta de todas as culpas...
Acusemo-la de todas as nossas imperfeições físicas e morais — porque não somos produtos de nós mesmos, mas dela e do Criador!
—Não blasfemes, Yvan! Desconheço essa linguagem em teus lábios, pois sempre te mostraste bom e submisso às coisas sacras... Sabes o que penso?
Os culpados são os progenitores... Talvez sejam escarninhos e orgulhosos, e o Omnipotente, para os humilhar, fê-los conceber um monstro...
—Mestre, perdoai-me se discordo novamente. Dizei-me: qual o magistrado incorrupto que manda encarcerar e justiçar o filhinho de um bandido, responsabilizando-o pelos desatinos paternos? Nenhum. A sentença só atinge o réu. Pois haverá mais equidade e rectidão na Terra, do que no Céu? Que culpa me cabe pelas ideias e sentimentos dos que me conceberam? Quero ser humilde, justo — desejam tornar-me vaidoso, inclemente; e será razoável que Deus me condene pelo mal que não desejo praticar, ou pelo que meus antepassados já praticaram? Pois será baseada no Código celeste a pena que fere um inocente para punir o verdadeiro criminoso?
Brada-me a consciência que não, e não! Se Deus é infalível, a Suma Justiça também o será: se aquele desventurado foi assim punido é porque é um réprobo perante o Juiz Universal... Quando e onde praticou ele faltas graves?
Nesta existência curta e misérrima? Não! Nasceu desgraçado, só encontrou no mundo penúrias e dores. Noutra, então? Talvez...
Mistério insondável! Supondes que são seus pais os delinquentes...
Será crível, que, neste palácio — e apontei o lôbrego pardieiro do aleijado — possam viver soberbos escarninhos, mestre? Frei Amâncio, se os filhos fossem condenados pelo orgulho dos pais, eu, e não ele, seria o monstro que ali vedes...
— Silêncio, Yvan! necessitas ser ouvido em confissão. És muito jovem para te preocupares com esses problemas teológicos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:54 am

Mais tarde compreenderás o que agora te parece absurdo...
Notei, porém, que, assim dizendo, ele empalidecera e entristecera. Solicitei-lhe permissão para levar um óbolo ao pequeno deformado, alvo dos olhares e motejos de quase todos os colegiais. Concedeu-me. Quando me aproximei do desventurado e dei-lhe alguns francos, ele os deixou cair no chão, fitou-me insistentemente com os olhos volumosos, desmesuradamente dilatados, com estrias de sangue, talvez comparando o seu corpo e o seu traje sórdidos com os meus, e não articulou um só vocábulo de agradecimento. Que olhar inqualificável e inesquecível o seu! Não sei ainda hoje, escoados tantos anos, se era de ódio, humilhação ou reconhecimento.
 tarde, indo à capela do internato, lá encontrei Frei Amâncio genuflexo, em absorvente meditação, com as pálpebras cerradas, como para impedir fluíssem as lágrimas que já lhe humedeciam as faces descoradas. Por momentos não deu acordo da minha presença. Pelos lustrais coloridos entravam os fulgores do crepúsculo, pondo manchas policrómicas nas toalhas liriais, nas flores das esguias jarras de porcelana-pérola, na fronte argenteada do sacerdote, nas vestes alvíssimas da Senhora do Carmo, que sorria docemente no cimo do altar-mor, parecendo que, naquele recinto silencioso e místico, havia o reflexo de todas as gemas preciosas, ou suave pulverização de astros de diversas cores.
Pressentindo-me a seu lado, ele me fitou e colocou sutilmente a destra em minha cabeça, murmurando com lenidade:
—Fizeste-me sofrer e reflectir muito no que disseste hoje... Lançaste a perturbação em meu Espírito, há muito desligado da Terra e só voltado para as coisas celestiais... Bem sei, Yvan, que tua alma é nobre e tem clarões siderais...
Impreco à Majestade Suprema, a fim de que, antes de exalar o último alento, saiba quem está de acordo com a sua justiça — eu, um ancião prestes a tombar no sepulcro, ou tu, uma criança, mal saída do berço!... Onde a verdade, Senhor?
Mas, choras tu, Yvan? Tens acaso algum pungente segredo a revelar-me? Abre-me teu coração, filho!
Era a primeira vez que alguém me falava com ternura e bondade paternal.
Minh´alma, ávida e despida de carícias, vibrou singularmente. Confidenciei-lhe a origem dos meus pesares. Ele me aconselhou a ser dócil para com meus pais e, ainda prosternado, disse-me, alçando as mãos ao céu:
—Senhor, é um Espírito que aspira a voltar-se para vós e querem desviá-lo nas paixões e preconceitos humanos... Protegei-o, Pai celestial, para que cumpra os vossos desígnios.
Desde aquele dia, meu coração ficou estranhamente confortado. Meu venerando amigo era incansável em me ministrar salutares conselhos, mas, por vezes, assaltavam-me as objecções que lhe fazia, a respeito dos dogmas da Igreja Romana. Ele me esclarecia segundo a Teologia, mas eu tinha argumentos que, muitas vezes, o confundiam.
Emudecia, então, não desejando desgostá-lo.
Quando completei dezoito anos, meu pai tirou-me do colégio onde estive seis anos, e doloroso foi, para mim, o me apartar dos caros mestres — que considerava minha família espiritual — com os quais convivi em estreita efusão d´alma por mais de um lustro, afeiçoando-me particularmente a Frei Amâncio, com quem me correspondo até hoje.
Talvez para excitar minha vaidade e incutir-me amor à ostentação, fui recebido com alarde e principesco festim, ao solar paterno. Achavam-me os convivas — de situação social invejável — belo e donairoso, e falavam para me lisonjear:
—Sois um legítimo Aprémont! Não desmente o vosso porte airoso a vossa elevada genealogia!
Ouvia-os com indiferença e enfado, sem agradecer os encómios, o que lhes desagradou sumamente.
Poucos dias após minha chegada ao castelo, solicitei de meu pai uma curta audiência. Atendeu-me no seu confortável escritório.
—Meu pai — disse-lhe, respeitosamente —, tenciono prosseguir meus estudos. Desejo partir para Berlim, fazer o curso médico na sua Universidade.
Se me derdes consentimento para realizar esse ardente desejo, prometo-vos, ao regressar, cumprir todas as vossas determinações .
Ele fitou-me surpreso, dominando a custo um ímpeto de cólera, e falou-me com ironia mordaz:
—Queres, decididamente, ser plebeu, Yvan d’Apré-mont?
—A Ciência não desdoura os brasões, meu pai, antes, dá-lhes fulgor inextinguível!
Ordenou que me retirasse. Queria reflectir alguns dias; relutou em dar o assentimento, mas, talvez para não ter espicaçado o seu orgulho, vendo-me observado pelos aristocratas que faziam referência à minha indiferença pelos festivais deslumbrantes, aos quais comparecia constrangido e merencório, deu-me, por escrito, para evitar dissensões.
Parti, então, para Berlim, nutrindo n´alma a acariciadora esperança de realizar o meu intento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:55 am

III
Estava cursando o terceiro ano da arte de Hipócrates, que sempre amei, quando, inesperadamente, fui chamado com urgência a Aprémont, pois, numa excursão projectada a um solar vizinho, empreendida em carruagem, meus infortunados genitores foram vítimas de lamentável acidente: os corcéis assustaram-se inopinadamente à passagem de um estreito carreiro, o veículo resvalou e tombou no solo em declive, foi arrastado pelos animais amedrontados, e eles ficaram em estado gravíssimo, com membros fracturados, quase esmagados.
Quando aqui cheguei, dois facultativos lhes prestavam socorros contínuos e inestimáveis, envidando esforços por lhes minorar os padecimentos, mas estes recrudesciam de hora em hora, e foi declarada a septicemia{71}. Velei por eles com carinho filial e tive ensejo de lhes prestar também meus serviços profissionais, e, parece-me que, pela vez primeira, aprovaram minha resolução de estar cursando uma Faculdade médica.
Meu pai, sentindo agravar-se o seu estado, chamou-me junto do leito e falou-me gravemente, mal contendo as dores:
—Parece que uma fatalidade pesa sobre a nossa família: quase todos os nossos parentes e antepassados têm sucumbido em consequência de funestos desastres...
Sinto já os efeitos terríveis da gangrena.
Sabemos, eu e a Baronesa, que estamos perdidos — vamos baixar ao túmulo! Antes que se me extinga a razão ou a voz, quero fazer-te várias recomendações, que, espero, sejam cumpridas.
Tens a herdar uma avultada fortuna, meu filho, em cheques sobre diversos Bancos, em baixelas, jóias valiosas, propriedades. Podes desfrutar uma existência régia. Faze uma aliança nupcial vantajosa com uma descendente de nobres, de nossa casta. Abandona os estudos para que possas zelar pelos interesses d’Aprémont, que são muitos. Os camponeses são exigentes em demasia. Não os favoreças com generosidades descabidas, pois são ingratos, incontentáveis, pouco laboriosos... Todos os documentos de que vais carecer, acham-se na caixa forte, cuja chave aqui tens.
Estendeu-me a mão trémula — a única que lhe restava, pois a sinistra fora amputada — mal segurando uma pequena chave, que guardei no bolso, apressando-me a oscular-lhe a mão, entre lágrimas.
— Pai querido — disse-lhe, com emoção e carinho —, já me falastes das coisas da Terra, quero lembrar-vos, agora, as que pertencem ao Céu!
Por algum tempo, ele e minha pobre genitora me ouviram em silêncio, calando seus gemidos para não perderem um só dos vocábulos que eu proferisse. Desde que, pelo acerbo sofrimento que os torturava, mostravam-se mais acessíveis, com as forças quebrantadas, eu tinha inspirações súbitas, que me faziam levar-lhes a alma excruciada às paragens extraterrenas. Falara-lhes de uma vida futura, que substituiria a material; da necessidade de se voltarem para o Eterno, que os iria julgar como Juiz austero e íntegro; aconselhava-os a não se preocuparem mais com as misérias e ostentações mundanas, no momento em que estavam prestes a comparecer diante do tribunal divino.
Eles me ouviram comovidos, e, por vezes, surpreendi lágrimas nos olhos dos altivos Barões d’Aprémont, o que nunca havia observado. Retinham-me à beira do leito de martírios, exclamando:
— Filho dilecto, quanto lamentamos ter vivido apartados de ti, perdendo o manancial de verdades celestes e de lenitivos que fluem de teus lábios!
Confessaram-se a um venerável pároco e exalaram o derradeiro alento, confortados por nossas palavras, talvez grandemente libertos de seus nocivos preconceitos sociais, com o Espírito iluminado pelas estelares cintilações que antecedem a morte, vislumbradas nos páramos siderais.
Estive alguns dias imerso em profundo pesar. Empolgava-me sensação desconhecida, como se a existência houvesse culminado grandes e inolvidáveis acontecimentos, e eu lhes percebesse a sua aproximação...
Uma semana após os funerais, realizados com a pompa que eles tanto amavam e que eu desejei patentear a todas as pessoas de nossas relações, como última homenagem aos finados, encerrei-me neste solar silencioso, como se o fizesse num claustro. O insulamento foi-me propício à reflexão e às preces.
Achava-me em situação anormal, parecendo-me aguardar um sucesso notável na minha existência, que me apresentava sem alvo para convergir meus pensamentos, sem um ideal definido. A imensa fortuna herdada não me escravizara a alma; não me envaidecia, não me tomara ditoso, antes me causava inquietação... — De que modo a empregaria utilmente? — interrogava-me a todos os instantes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:55 am

Deveria, ou não, concluir os estudos?
Empreenderia, ou não, longas excursões através dos mares e continentes, para colher impressões e instruir-me? Seria conveniente vender meus domínios?
Uma vez, quase ao entardecer, asfixiado em aflitiva perplexidade, fui chamado por um criado, para atender a diversos campónios que mourejam as terras d’Aprémont, os quais, congregados, solicitavam uma audiência.
Recebi-os, solicitamente, no meu gabinete de leitura, convidando-os a sentar-se, o que lhes causou pasmo, porque estavam habituados a falar aos senhores do castelo, de pé, fronte baixa, em atitude de escravos.
Queixaram-se amarga e respeitosamente do quanto lutavam, de sol a sol, para cultivar os terrenos sáfaros que lhes foram confiados, mas que, devido às inclemências e rigores do Inverno, com nos anos anteriores, se viam baldos de recursos para me pagar os onerosos tributos de arrendamento, que deveriam entregar-me dentro em pouco tempo — tinham por perspectiva as famílias reduzidas à miséria... Seus rostos estavam torvos de fadigas e dissabores; usavam vestes quase andrajosas; agitavam, às vezes, no ar, as mãos crispadas, enegrecidas e calosas pelas intempéries e labores agrícolas.
Um deles, já encanecido, disse-me subitamente:
— O Sr. d’Aprémont, nós vos vimos crescer, bom e tão diverso dos que têm habitado este solar, como a única esperança dos nossos infortúnios! Hoje, confiantes em vossos generosos sentimentos, vimos depor em vosso belo coração os lamentos dos nossos — represados em nossos rudes peitos há muitos séculos, pois vos transmitimos também os dos nossos pobres pais e avós, que aqui tiveram a mesma vida angustiada, tragando em silêncio as suas amarguras, regando com lágrimas o solo, quase sempre ingrato para os desventurados lavradores — cônscios de que nos fareis justiça!
Sensibilizado, estendi-lhe a mão, que ele não ousou apertar, e respondi:
— Prometo atender-vos em tudo quanto for justo e razoável. Quero, porém, sejais servidores leais. Encontrar-me-eis sempre pronto a favorecer-vos nas reclamações legítimas. Não vos aflijais pelo que me tendes de pagar. Convoco uma reunião de todos os que laboram nas terras d’Aprémont para o próximo domingo, ao meio-dia. Ide em paz, amigos!
Olhos marejados de pranto, os rústicos se ergueram, desejando oscular-me a destra, o que não consenti. Retiraram-se contentes, murmurando agradecimentos. Fiquei novamente só, vagamente apreensivo, o cérebro repleto de cogitações insolúveis e comecei a percorrer todos os compartimentos desta casa, para ter em que derivar as ideias; detive-me, por fim, no salão onde se achavam coleccionados todos os retratos dos ancestrais e todas as consideradas relíquias bélicas que lhes pertenceram.
Inspeccionei meticulosamente as armas existentes desde as eras das Cruzadas, em suas panóplias de bronze dourado ou ensarilhadas em estantes de ébano; observei, como se visse um arsenal das épocas remotas, tridentes mouriscos, virotes de besta{72}, punhais, estiletes, escopetas, bombadas, clavinotes, trabucos, martelos, machado, espadas albanesas, lanças, zagaias, sabres, gládios de diversos formatos, carabinas, estilhaços de armaduras, arneses, broquéis, brasões heráldicos, viseiras, manoplas, bandeiras esfaceladas, cotas de cavaleiros medievais, ainda com mácula de sangue oxidado; e imaginei quantas dores, quantas agonias, quantas lágrimas ocultavam aquelas fúnebres conquistas dos meus avoengos. .
Depois, comecei a observar cada um dos retratos — alguns de tamanho natural, finamente coloridos — como se nunca o houvesse feito, descobrindo, nas fisionomias que representam, a dureza de coração, o olhar cobiçoso dos falcões extravasando orgulho, crueldade, arrogância, concentrados em séculos talvez de poderio e tirania...
Porque, somente então, as via com esse apavorante aspecto?
Porque me não sentia engrandecido ao contemplar todas aquelas preciosidades que lembravam os passados feitos dos meus maiores?
Quando terminei o exame de tudo o que me cercava, deixei-me cair num canapé de veludo e brocado fulvos, e, temendo enlouquecer, tal a impetuosidade dos pensamentos compressos no cérebro, com a fronte cingida entre as mãos glaciais, marmorizadas, tentando esmagá-los para que me não torturassem, implorei às potências celestiais:
—Inspirai-me! Tenho pavor de residir sozinho neste imenso alcáçar, onde conjecturo tenham ocorrido dramas sangrentos, contendo ainda os despojos das batalhas medievais, instrumentos de morte, de suplícios e destruição! Que devo fazer? Desfazer-me deles por todo o sempre? Terminar os estudos encetados? Ó Deus clemente, ouvi-me, orientai-me, compadecei-vos de mim!
O apelo foi prestamente atendido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:55 am

Passou-se então, comigo, um fenómeno inesperado: fui inopinadamente avassalado por um aturdimento, como se fora presa de uma vertigem. Reclinei-me no canapé, sobre ampla almofada, abandonado por todas as forças físicas.
Pareceu-me ter adormecido pesadamente, mas ouvia, assombrado, o ruído metálico e estridente de todas as armas, como se houvessem caído das panóplias e de suas prisões murais e se chocassem no assoalho...
Bruscamente, julguei ter despertado e aberto desmesuradamente os olhos:
Bruscamente, julguei ter despertado e aberto desmesuradamente os olhos: vi, dos grandes rectângulos dourados, que formam a moldura das telas, todas aquelas personagens de antanho saírem corporalizadas, descendo sutilmente para o solo, com as suas roupagens antiquadas de paladinos, empunhando rapidamente as armas favoritas, como se se aprestassem para uma batalha iminente; e daí provinha o áspero estrépito de ferro abalroado, que eu escutara...
O salão estava imerso em meia penumbra, deixando, entretanto, distinguir multidão compacta de seres intangíveis, como que moldados em bruma; seus rostos, porém, tinham todos uma expressão inolvidável, revelando alguns perversidade, fereza, soberba; outros, amarguras, dores veementes. Alguns tinham a fronte e as mãos ensanguentadas; damas de vestes tufadas ou de longas caudas ostentavam adereços e arrebiques de fogo, como para lhes iluminar as faces horripilantes, tendo o tórax, do lado esquerdo, onde se enjaularam os corações desumanos, e jactanciosos, completamente enegrecido, talvez para mostrar quais haviam sido os seus sentimentos, em vidas estéreis e só consagradas aos faustos e à impiedade: entes humilhados estorciam-se, em espasmos de sofrimento; soluçavam outros, perseguindo com impropérios e brados de vingança os cavalheiros maravilhosamente trajados, mostrando-lhes suas vestes em farrapos; e eles, acovardados, refugiavam-se nos ângulos do salão, tentando enristar armas, que ficavam chamejantes e tombavam com fragor no assoalho, onde desapareciam como serpentes coruscantes; havia ali, em promiscuidade, seres encolerizados, aterrorizados, intimidados; rostos patibulares, tumefactos, esquálidos, insinuantes — revelando astúcia, rapinagem, instintos impuros, remorsos esmagadores, padecimentos inomináveis — de algozes e supliciados...
Eu os fixava, dominado por um terror inconcebível, desejoso de fugir àquele tétrico recinto; mas sabia que estava chumbado às tábuas da grande sala em que me achava... Ergui a vista a uma das amplas janelas ogivais nela existente, querendo daí me precipitar, mas, o que se passava no interior do castelo — que se tornara transparente como cristal — era análogo ao que ocorria em seus arredores: uma coorte incalculável de fantasmas circulava-o, invadia o parque, o pomar, todas as suas dependências... Quis recuar, apavorado, mas não consegui fazer um gesto sequer, como se estivesse anquilosado durante um milénio; naquela aflitiva emergência, proferi o nome sacrossanto do Criador; logo se destacou, então, dentre a lúgubre multidão de duendes — que, por vezes, parecia prestes a arrojar-se sobre mim, ameaçadora — uma entidade de beleza austera, com deslumbrante dalmática de imáculo arminho prateado, fronte resplandecente, cujas irradiações iluminavam suavemente o salão, qual lâmpada de diamante repleta de luar, e, fazendo imperioso meneio com o braço direito alvinitente, para que todos se detivessem, com modulações graves e melodiosas na voz, disse-me:
“— Yvan d’Aprémont, eis-te possuidor de tesouros incalculáveis em ouro, em pedras preciosas — como se fosses um Monte Cristo — e em domínios extensos que —ai!{73} para os teus cruéis antepassados, e para ti mesmo! — foram senhoreados ilicitamente, extorquidos à plebe que desprezáveis, ampliados pelo crime, pela pilhagem, pelo embuste, cobertos muitas vezes de cadáveres — holocausto do despotismo e das iniquidades de outras eras! Não recaem exclusivamente esses delitos sobre aqueles que te precederam, mas sobre os teus contemporâneos de outrora e sobre ti mesmo, porque, como já compreendes por lúcidas intuições, a alma não tem uma, porém, múltiplas existências e torna-se responsável pelo que pratica em todas elas, até que se reabilite, por meio de rudes provas morais e físicas, com a prática do bem e da virtude, dos males que já causou aos semelhantes.
“Já foste, pois, em épocas remotas, um dos tiranos d’Aprémont, um dos fundadores deste solar, vindo dalém do Mar Vermelho com cabedais usurpados a povos oprimidos; já decretaste muitas penas últimas, injustas, para cevar vinganças e paixões inconfessáveis; já deixaste sucumbir de fome, sede e inanição, os que se revoltavam contra o teu absolutismo e arbitrariedades, aliado a dois cruéis verdugos, pai e filho por muito tempo, os quais te incitavam a requintes de torturas inquisitoriais e te arrastavam à perpetração de atrocidades execráveis...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:55 am

Depois, um deles se tornou teu rival — tu e ele vos enamorastes de uma encantadora jovem, frívola, abastada, vaidosa, que exacerbava, constantemente, o ciúme de ambos, sem ter amor a nenhum — e os dois rivais que zombavam das afeições puras, que desonravam lares honestos seduzindo esposas e inexperientes pucelas pertencentes às classes humildes, dominados por incoercível e forte sentimento, desde então se tornaram implacáveis adversários, sedentos de vingança, tentaram tirar a vida um ao outro em odiosas emboscadas; finalmente, foi ele vencedor, arremessando-te ao chamado abismo d’Aprémont, onde mandavas atirar tuas vítimas; onde, outrora, arvoraram-se, por tua ordem, patíbulos e pelourinhos, que, por desígnios do Alto, foram sepultados nos escombros, na incomensurável cova que se abriu na terra, exausta de suportar tantas barbaridades praticadas sobre ela, revoltada por tantos crimes impunes!
“Por muito tempo estiveste atormentado por enlouquecedores martírios morais — acorrentado a estas paragens, enfrentando aqueles que espoliaste, afrontaste, supliciaste; ouvias pragas, maldições, ultraje, sem poderes reagir, espezinhado em tua honra, em teu orgulho, em tua nobreza, porque eram teus antigos fâmulos e vassalos que te insultavam e estavas entregues à sanha de sua vindicta...
“Um dia, quando penetrou a contrição em tua alma, eu, teu Guia espiritual através de milénios, sempre pugnando para que deixasses a abominação e fosses bom e recto — graças às preces que dirigi ao Senhor, consegui quisesses reparar os teus flagícios.
“Tiveste, então, encarnações obscuras, de enfermidades, penúrias, deformações orgânicas, loucura, cretinismo, e várias vezes te aliaste àqueles que foram teus cúmplices. Tiveste algumas quedas; compreendendo, por fim, a magnitude da vida humana, começaste a ser devotado ao Dever e ao Bem, humilde, amante da instrução, compassivo com os desvalidos.
“Possuindo já excelsos sentimentos, não soubeste, contudo, vencer uma árdua expiação em que foi posta à prova a tua coragem moral, e fracassaste aniquilando a vida ao teu antigo émulo, transformado em contendor rancoroso... Fugiste à justiça humana e te entregaste à divina; foste, então, atribulado até ao fim da vida, sempre amedrontado, rastejante, mas justo e bom.
“Sofreste o tormento da fome e da sede; perdoaste aos adversários; depuraste o Espírito, esclarecido pelas verdades emanadas do Além, e solicitaste ao Pai celestial uma arriscada missão, a fim de, saindo dela triunfante, conquistares a tua completa reabilitação espiritual.
“Foi atendida a tua imprecação. Eis-te senhor dos mesmos cabedais de outrora, e vais passar por tremendas provas... Foste, novamente, da condirão de pária, de anónimo, elevado à aristocracia, à opulência, onde a vangloria e a soberba imperam; és belo, inteligente, sensível; vais inspirar paixões ardentes e não te unirás, pelo matrimónio, a nenhum ser, sacrificando assim os teus próprios sentimentos, a fim de poderes, sem empecilhos, agir com inteira liberdade e te dedicares, como verdadeiro apóstolo do Bem, à propagação das tuas ideias e à execução da tua tarefa espiritual.
“Não fruirás o amor conjugal, mas o fraternal e divino. Se fores, pois, humilde na grandeza, justo e compassivo com os pequenos e com os que te infligirem dissabores, adquirirás méritos excepcionais.
“Muitos desses campónios que aqui vivem são os mesmos a quem usurpaste e fraudaste no passado; leva ventura e conforto às suas mansardas; balsamiza-lhes as desditas; aconselha-os à prática do louvável e meritório aos olhos do Criador; sacia a fome e a sede dos peregrinos e infortunados; transforma Aprémont, antigamente masmorra de gemidos e dores, em guarida de esperanças, de luzes espirituais, de amparo aos sofredores; sê a providência e o arrimo dos desgraçados, das ovelhas desgarradas do aprisco de Jesus; sê o médico d´alma dos que padecem e não abandones, um momento sequer, esta região, onde te prendem deveres sagrados, a cumprir heroicamente, e onde cometeste ignomínias, injustiças, desumanidades, que tens de ressarcir... Serás inspirado para as mutações que houveres de fazer neste solar-teatro, muitas vezes secular, onde se consumaram tragédias assombrosas, e das quais foste sempre um dos principais comparsas... Agora, segue-me, Yvan.
“Vem comigo. Vou levar-te aos lugares em que delinquiste também, e onde já sofreste acerbos reveses...”
À sua volição potente, fui desprendido do solo, levitei sutilmente, arrebatado da sala e, por momentos, tal era a sensação de estar realmente cindindo os ares, que tive receio de perder o equilíbrio e cair, esfacelado, nalgum precipício... Divagámos pelos arredores do alcáçar, onde se movimentava silenciosamente uma falange incalculável de fantasmas lívidos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:55 am

O actual abismo em que resvalaste, doutor, havia desaparecido; o solo estava nivelado e sobre ele erguidos um cadafalso e um pelourinho: perto estertoravam entes humanos com as faces convulsas de dor; outros me mostravam as mãos rubras tentando, debalde, limpá-las nas vestes negras, que se desfaziam em farrapos; outros caminhavam curvos, arrastando um baraço pendente do pescoço denegrido...
“— Eis onde tripudiaste das leis humanas e divinas — murmurou, com amargura, o bondoso Guia. — Vês, agora, cenas retrospectivas...”
Apavorado, eu gemia e bradava:
— Piedade! Tirai-me deste Averno dantesco, antes que enlouqueça!
Misericórdia, Deus meu!
A meu lado, desde que contemplei aquele lugar maldito com seus instrumentos de tortura, achava-se um especto, que, por algum tempo, me seguiu com insistência: tinha a cabeça e a destra encerradas num elmo e numa bronze manopla ensanguentados, destacando-se--lhe do corpo muito alvo, qual estátua de neve, cujas extremidades fossem purpurinas; o desditoso esforçava-se desesperadamente pelos arrancar de si com a única mão livre, qual garra de tigre ainda molhada com o sangue de alguma vítima imbele...
Sua presença era-me insuportável. Ouvi-o, às vezes, gargalhar, talvez da sua ou da minha angústia, e apontava-me a um hediondo fantasma que também nos seguia, como um abutre em perseguição da presa, e queria, em certos momentos, arrojar-se a mim, sem conseguir fazê-lo, porque meu Protector, o luminoso clérigo, o repelia com um gesto apenas, e, alçando uma das mãos ao céu constelado, murmurou:
—Vai-te! Ele está entregue à justiça do Eterno!
—Porque me odeiam tanto ? — interroguei-o a custo.
—Ambos, coligados por muitos delitos e mútua afeição, eram teus capciosos inspiradores e executores de tua despótica vontade; depois, tendo tu rivalizado com o filho, por causa da formosa... (não me recordo do nome enunciado) e sabendo que ambos se tornaram teus inexoráveis adversários, desejosos de te tirarem a vida, temendo-os, conseguiste prender, executar e esquartejar o pai; então, o outro, por vindicta e ciúme, tendo conhecimento que... ia ser tua esposa, lançou-te, traiçoeiramente, no precipício d’Aprémont. . .
—Basta! É horrível! Recordo-me de tudo...
Bruscamente vi o local onde se achavam erectos o pelourinho e a forca — ainda com uma vítima balouçante no baraço, com a língua denegrida estirada, tendo a encimar o aparelho de suplícios uma inscrição de proporções anormais, da qual pude apenas ler este vocábulo — Traidor —, mas logo estremeceu, convulsionado por uma coreia que me pareceu universal; vagalhões de sangue fluíram das fendas colossais, abertas como crateras, desde as entranhas até a crosta terrestre; depois, tudo desmoronou envolto em negro vulcão, ruiu com fragor, como que absorvido, sugado por um dragão gigantesco, e, então, tal qual se acha na actualidade o denominado despenhadeiro d’Aprémont, parecendo um imensurável cancro corroendo o seio da Terra — revoltada, sobre ele...
—Queres saber como ocorreu o acidente que levou ao túmulo os últimos barões d’Aprémont?
Não lhe respondi. Tinha a energia embotada.
Achei-me pouco distante do castelo, numa estreita vereda, tornejando um vale alcantilado, beirando um despenhadeiro considerável. Observei, com precisão, uma de nossas carruagens, com o brasão de minha família gravado na parte posterior; reconheci meus genitores reclinados nas almofadas; no instante em que passava o ponto mais exíguo do carreiro, apareceu, subitamente, uma alcateia de duendes medonhos, iracundos — certamente muitos dos que eu vira circulando o solar — postando-se à vanguarda dos corcéis, com os braços escarnados erguidos ao céu, clamando vingança; os cavalos, vendo-os, começaram a corcovear, a saltar enfurecidos e apavorados, atirando o veículo ao solo, arrastando-o assim tombado sobre calhaus, com os meus pobres pais já ensanguentados e desfalecidos dentro dele...
— Perdão! — supliquei com veemência. Tirai-me daqui, por piedade, destes lugares malditos, que me causam torturas!
Minha súplica foi ouvida. Meu voo tornou-se vertiginoso. Fui arrebatado daquelas regiões sinistras para outras bem diversas. Lembro-me de haver chegado a planícies desoladas, amortalhadas em neve, onde imperavam a miséria e as asperezas hibernais; vi-me andrajoso, faminto, mendigando; senti-me azorragado por dilacerante knout; tornei-me um ser disforme, espezinhado, ultrajado, desditoso; por fim, vítima de um naufrágio, vendo o navio em que viajava fendido por um icebergue, debati-me com vagalhões rugidores e morri asfixiado, estrangulado, estertorando; recuperei a vida e vi-me abandonado, só, no alto de um penedo, querendo atirar-me às ondas, pois eu tinha fome e sede e desejava, delirante, para aplacá-las, romper as artérias com os dentes para sugar o próprio sangue...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:56 am

Julguei ter desmaiado... Volvi a Aprémont, mas o castelo estava envolto em esmeraldina luminosidade, como se fora um luar visto através de turmalinas verdes; nem um duende mais nele vislumbrei; tudo era silencioso e belo qual sonho feérico; vagas de dulcíssima e aveludada luz jorravam de todas as janelas; havia potentes faróis incrustados em todos os minaretes, confundindo as suas irradiações de esmeralda com o ouro dos astros que fulgiam no zimbório sideral...
Fui brandamente deposto, como por braços tutelares, no canapé em que adormecera ou fora empolgado por inolvidável efialta, ouvindo ainda estas palavras, no mesmo timbre conhecido, veladas de tristeza e bondade:
“— Tudo o que acabas de presenciar, com acuidade e precisão, não existe senão em teu próprio âmago: todas as acções, todos os pensamentos adquiridos, acham-se arquivados, pirogravados nos refolhos d´alma, indelével e perpetuamente — basta uma auto-inspecção, ao influxo pujante da vontade, quando ela se acha exteriorizada da matéria, fazendo vibrar os átomos imponderáveis que constituem o corpo astral — para se manifestarem à visão psíquica todos os sucessos retrospectivos, de passadas existências.
“Cada ser humano é um incomensurável, um inexaurível{74} Oceano, um acervo de impressões eternas, o denunciante de si mesmo aos olhos argutos do Juiz Supremo, que deste modo julga, com rectidão admirável, todos os seus filhos... Os delitos tingem de rubro ou negro os átomos do perispírito; os actos nobres, os de benemerência e sacrifício, clarificam-nos, tornam-nos radioso; ficam, assim, fotografadas neles, como se fossem microscópicas miniaturas luminosas em placas de alabastro diáfano, eterizado. Viste, pois, com exactidão, o que já foste. Muito podes fazer por tua completa regeneração. Coragem, Yvan!
Tua missão vai ser longa, penosa, arriscada, sublime, e só estará consumada quando, nos ares, planarem águias de ferro que, sobre este alcáçar, deixarão 285cair penas mortíferas e destruidoras. .. Então Aprémont será apenas ruína, após ter sido Bastilha execrada e delubro{75} resplandecente...”
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:56 am

IV
Despertei. Sentia-me fatigado, aturdido. Achava-me ainda estirado no fauteuil{76}, o meu improvisado leito.
Os róseos clarões aurorais entravam suavemente pelos vitrais. Alguns servos, aguardando o meu despertar, não se haviam deitado até aquele instante.
Um deles, que me conhece desde menino, abeirou-se e falou respeitoso:
—Senhor, nós vos encontrámos aqui adormecido, profundamente.
Esperando acordásseis de um momento para outro, passámos a noite velando por vós, que certamente tivestes sonhos aflitivos, pois vos ouvimos chorar, gritar, gemer... Vede: as lâmpadas ainda estão acesas! Estais doente?
—Não, Luís — respondi-lhe, erguendo-me —, acho-me de perfeita saúde.
Tive, realmente, sonhos desagradáveis. Agradeço a todos o cuidado que tiveram. Podem ir repousar. Ficam dispensados dos seus labores por um dia.
Fui para o quarto e só então conciliei um sono reparador e calmo. Ao despertar, conservei nítida, indelével, a recordação dos fenómenos psíquicos daquela noite inesquecível. Compreendi que não tive um sonho vulgar, mas recebera alvitres de inestimável valor. Desejo, pois, até à morte, seguir as orientações preciosas que, por ilapso, recebi do Alto, transmitidas por uma radiosa entidade. Acreditais, agora, na sinceridade de minhas intenções?”
—Sim — respondeu Richard, convicto — é estupenda de precisão e lógica a revelação extraterrena que tivestes!... Comigo também, por duas vezes, ocorreram fenómenos análogos aos que narrastes, mas não lhes dei o mesmo crédito que vós...
Credes, pois, insofismavelmente, que representem eles inconcussa realidade e patenteiem os sucesso de existências consecutivas?
—Positivamente. Até então, nunca havia feito estudos psíquicos; agora, já os efectuei e estou capacitado da veracidade e identidade dos fenómenos anímicos. Lereis os livros da nascente filosofia espírita e ficareis plenamente convencido da realidade que a ciência oficial ainda refuta. Eu, porém, mesmo que os não conhecesse, não duvidaria da continuidade das existências planetárias — interceptadas pela morte — para indenização de passados delitos.
É a única explicação plausível para as desigualdades do destino de cada indivíduo, das deformações inatas, dos sofrimentos daqueles que são beneméritos que só praticam o Bem e se veem perseguidos, caluniados, de acordo com a justiça do Sumo Juiz, que não exara sentenças iníquas...
—Como a mim sucede, Sr. Yvan d’Aprémont... Nasci com aparência patibular; tenho-me esforçado no cumprimento austero de todos os meus deveres, mas só encontro aversão, escárnio, ingratidões... Houve um tópico de vossa narrativa que me abalou até às mais secretas fibras do coração: a aparição de um, espectro vingador, cuja cabeça estava cingida por um elmo ensanguentado... Oh! a intuição terrível, que sempre me assalta, que fui um verdugo, um temível sicário!. .. A repulsa que senti por vós, sem causa justificada, a primeira vez que vos vi.. . Minha queda no abismo d’Aprémont, talvez por uma punição divina, no mesmo loca! onde fostes arremessado outrora, onde estertoraram as nossas vítimas... Mas, tudo isso é horrível! Dizei-me: qual a impressão que tivestes ao ver-me?
— Penosa... — confessou lealmente Yvan. - No entanto, logo envidei esforços para vencer a animadversão, e, desde o instante em que vos salvei do precipício, compadeci-me de vós, compreendi luminosamente que vossa vida se tornou sagrada e piedosa para mim...
—Porque tendes, realmente, uma alma fidalga e de excepcional magnanimidade... Eu não vim a estes sítios animado de louváveis intuitos... É bom que o saibais, Sr. d’Aprémont! Confesso-vos sinceramente, para que melhor me conheçais. Seria preferível me houvésseis deixado sucumbir... talvez no antigo túmulo de nossas crueldades, de onde as avantesmas clamam vingança... Vou também expor-vos toda a minha existência e agonias morais, para que o vosso Espírito generoso me julgue com equidade.
Richard descreveu-lhe todos os seus tormentos desde a infância, as humilhações por que passara no internato em que estivera poucos dias, todos os seus reveses, perdas de entes amados, a separação voluntária de Sónia, só omitindo a paixão por Arlette, convicto de que Yvan não a ignorava, e concluiu dolorosamente a sua confidência:
—Eis-me, hoje, sem família, isolado, vivendo de cruciantes recordações, sem um alvo, um apoio na Terra ao qual me apegue; sem aspirações, sem uma esperança sequer, parecendo-me avistar o futuro qual nevoeiro intérmino de regiões polares...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:56 am

Sou qual marujo atirado a um oceano de sombras, longe da pátria, sem lobrigar um farol, sem ilusões, sem nau, sem bússola, sem um pensamento fagueiro, sempre na expectativa de novas lutas, de indizíveis dissabores!... Como hei-de tolerar, assim, a existência, Sr. d’Aprémont? Não será pouco piedoso desejar alguém que se prolongue, indefinidamente, o meu suplício? Sinto que sou execrado por todos, que pesa sobre mim uma sentença tremenda, irrevogável, sem apelação!
— Pois bem, doutor — disse-lhe Yvan, com as faces subitamente coradas, transfigurado com um olhar que parecia ter fulgurações astrais —, compreendo a exactidão e intensidade das vossas amarguras, mas — permiti que vos diga! — estais desiludido, desolado, combalido, torturado, porque tendes concentrado todos os vossos anelos nas coisas terrestres, olvidando as espirituais e celestes:
nunca elevastes, nos momentos de ríspidas provações, vossa alma às regiões etéreas; nunca a norteastes para Deus, que nos fita da amplidão sidérea como um Argos, com seus milhões de olhos fúlgidos! E é assim que procede, em geral, quase toda a Humanidade, mormente na quadra juvenil, isto é, no início de uma existência, que deve ser consagrada ao Criador... Todos pensam exclusivamente em si, almejam gozos, olvidando a Deus quase totalmente. Na juventude insana e irreflectida, quase todos são sonhadores insaciáveis, com a alma florida de enganadoras esperanças, arquitectam a ambicionada ventura sobre alicerces fragílimos de vidro, argamassados de ilusões falazes e fantasias irrealizáveis; e, julgando-a sólida, imaginam um porvir de delícias inexauríveis, contando fruí-las perenemente; mas um dia o harmatã{77} do destino — originado no Saara vastíssimo das paixões mundanas, nos delitos de transviadas existências — abala-a bruscamente, reduzindo-a a escombros, tornando-a em torvelinhos de pó e cinza, que revoluteiam nos ares e desaparecem no Espaço... Desditosos, em vez de erguerem a fronte e fitar as estrelas onde se enclausura o Sumo Ideal, o Bem imperecível, continuam curvados para o solo, fixando as ruínas amadas, apegados às migalhas de sonho que ainda restam da Jerusalém de suas almas, até que tropeçam no túmulo, semimortos que eram, antes de mergulhar o corpo exausto em seu seio frio e tenebroso... Todos estão iludidos com o seu destino de calcetas da dor e do Omnipotente; como aspirar a júbilos na masmorra do Sofrimento? Como, se os órfãos, as lacrimosas mães e viúvas buscassem sorrisos no Campo Santo onde repousam entes adorados? Para que, pois, tentar a posse de um tesouro que não é da Terra — a felicidade? Há possibilidade de se engastar no lodo um fragmento de sol? Já se encontrou na vasa uma jazida de diamantes? Como, então, almejar nas trevas o que só existe na luz? Concentremos nossas esperanças no que é do Céu, inextinguível, eterno, e não ficaremos à mercê das decepções...
Temos um alvo a atingir — a redenção psíquica — e, a todos os momentos, esforçando-nos por alcançá-la, abençoando as nossas vicissitudes saneadoras, libando a taça das expiações acrisolantes com resignação, estamos trabalhando por nosso futuro, melhorando as nossas condições de galés e peregrinos, conquistando o alvará de liberdade perene, fazendo jus à sonhada ventura que, com tanto afã, nossos corações aqui desejam em vão...
Sigamos o modelo que o próprio Sempiterno nos concedeu há muitos séculos e que, no entanto, não enxergamos, e queremos ser o seu inverso: Jesus de Nazaré, a mais luminosa Entidade que baixou à Terra, e Embaixador celeste que entregou à Humanidade as credenciais divinas — os “Evangelhos”. ..
Estudemo-los, imitemo-lo. Vei-O Ele desfrutar os gozos planetários? Não.
Renegou-os a todos, só cuidando do Espírito, semeando o Bem, balsamizando chagas físicas e morais. Ele deixou, no cimo do Gólgota, o emblema da magnanimidade deífica — os seus braços abertos — parecendo querer enlaçar
todos os párias, todos os desgraçados, fundindo num só amplexo a Terra e o Infinito! Quem já buscou aqueles braços e os encontrou cerrados? Quem se voltou para Ele e não encontrou palavras de perdão, carinho e esperança? O Rabi da Galileia dissera: “meu reino não é deste mundo” e, sendo justo e bom, vilipendiaram-no, crucificaram-no... Pois bem: se o seu reino não é deste orbe de ingratidões e reveses, nem o nosso; a ventura que nossa alma sonha só existe além, depois de cumpridas todas as provas de que necessitamos para resgate de nossas iniquidades, depois de concluído o nosso tirocínio na “Academia de Lágrimas”, que é este planeta. Esqueçamos nossa personalidade egoísta e incontentável, nossos dissabores; lembremo-nos do Enviado sideral, até alcançarmos a Canaã com que sonha a nossa alma de réprobos! Ele é o modelo celeste e queremos ser o seu contraste — Jesus teve a fronte pungida de acúleos e desejamos a nossa engrinaldada das rosas efémeras das felicidades terrenas; almejamos, como um nauta, com a galera desarvorada — o nosso Espírito, delinquente, despido de virtudes — singrar para a Pátria distante, onde vivem os heróis espirituais!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:57 am

Loucura, irrisão! Temos de aureolar a fronte com os espinhos de todas as torturas morais, lacerar as mãos com os cravos das vicissitudes, das dores físicas, trespassar o coração com a alabarda de todas as decepções, de todos os desenganos, de todos os tormentos íntimos e inconsoláveis, curvarmo-nos ao peso da cruz das traições e injustiças mundanas, e só assim ficaremos libertos dos liames terrenos, aptos para ascender aos páramos luminosos!
Doutor, ouvi-me: somos Espíritos que se reencontram no maremoto das paixões humanas, no Oceano infindo e revolto do destino; fomos, em eras remotas, certamente, aliados para a perpetração de crimes hediondos; tenho disso plena e clara intuição. Fomos, antigamente, algozes nestas regiões, nas quais a sina ou Deus nos reuniu de novo, para remirmos nossos passados gravames, praticando o Bem em comum, arrebanhando ovelhas para o aprisco do Nazareno.
É assim que o Altíssimo, — o Arbitro de nossas ignomínias — sempre benemérito, nos faculta os meios da própria emancipação. Não sejamos indiferentes e surdos aos clamores e celestiais apelos, às concessões do Alto:
congracemo-nos para a prática da caridade — serei o médico das almas e vós, o dos corpos chagados!
Aliemo-nos para um empreendimento sublime, socorrendo, amerceando, amparando nossas vítimas de outrora, laborando, assim, para que o Eterno nos conceda seu indulto ou a nossa alforria espiritual!
Yvan inclinou-se para o doente, que nunca o vira tão belo e idealizado, e interrogou-o:
— Tendes ânimo suficiente para digladiar serenamente contra as injustiças, as ingratidões, os motejos que nos hão-de confundir o coração, esquecidos do nossas próprias angústias, tendo apenas por escopo lenir os sofrimentos que flagelam nossos irmãos, nossos companheiros de cativeiro?
Richard, vibrando de emoção, silenciou por momentos, como para tomar uma resolução suprema. Depois, com os olhos cintilantes de pranto, falou com firmeza:
— Compreendo, agora: sois o que todos afirmam serdes; só eu — por lamentável equívoco! — estava iludido com as vossas puras e nobres intenções!
Sois, realmente, o ser mais nobre que conheço... Convosco, terei a coragem e o estoicismo precisos para empreender o que me propusestes — olvidar acerbas recordações e mágoas, calar minhas agonias, suportar sem um queixume as minhas úlceras morais, porfiando por cicatrizar as alheias; viverei para os que padecem, sepultando no báratro d´alma os lamentos, os ruídos da revolta contra o destino justo e remissor!
Ensinar-me-eis — como na infância o fazia a idolatrada Sónia — a amar o Eviterno e a Jesus, quanto os adorais vós, tornando-me submisso aos decretos do Céu! Subamos o Calvário da existência... de mãos dadas, curvados ao madeiro da mesma dor, mas tendo por mira os páramos azuis, espargindo o bem a mancheias — a semente divina que, deitada às almas, se transforma em pomos de flores de luz, como soem existir nos Hortos do Cultor das estrelas!
Ouvindo-o, Yvan, erecto e majestoso, alou o Espírito radioso às paragens siderais, em prece ardente de reconhecimento ao Omnipotente, por causa da conversão de um céptico e, depois, estendeu a destra ao médico. Ambos, olhos turves de pranto, estiveram por instantes estreitamente unidos, reconciliados por mútuo perdão, como, outrora, por delitos nefandos...
Deus, naquele momento de triunfo espiritual, se fosse, qual ente humano, susceptível de emoções com indícios de regozijo, teria sorrido do Infinito, tendo lágrimas — que se metamorfoseariam em astros — a lucificar-lhe os olhos de Argos do Macrocosmo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:57 am

V
Richard, exangue como se achava, teve prolongada convalescença.
Tinha a impressão de que, conjuntamente, nele se operavam duas curas:
uma orgânica, outra moral. Durante o tempo em que esteve no leito, e quando, amparado por Yvan, pôde percorrer o castelo interiormente, observou quanto o seu anfitrião fora infatigável em proporcionar-lhe conforto material e espiritual. Levara-o ao salão onde estiveram as armas e os retratos dos seus ancestrais, já completamente transmudado. Era situado no primeiro andar, do lado ocidental do prédio.
Suas paredes estavam pintadas de azul celeste, esbatido, suavíssimo, como o firmamento da Palestina, e uma, apenas, era realçada por imensa tela de notável beleza artística, representando Jesus circulado por crianças e lilases, inspirada nas palavras do Rabi: “Deixai vir a mim os pequeninos!” Yvan adquiriu-a, recordando-se do que dissera ao pai, quando este o encontrara a folgar com Jacques Morei.
—Todos os petrechos bélicos — explicou-lhe o Sr. d’Aprémont — foram enviados a Bruxelas, cedidos a coleccionadores de armas, e o produto da venda doado a diversas casas pias. Os retratos de meus antepassados acham-se encerrados em compartimento raramente aberto. Só conservo os de meus pais na sala de recepções. Não quero mais expor os outros a olhares curiosos, pois me parece que todos hão-de vê-los como os vi naquela noite inolvidável... Este salão, doutor, é consagrado à instrução dos filhos dos campónios e aldeões. Às vezes, faço prelecções às criancinhas, com os olhos no inconfundível Nazareno...
Havia uma sala destinada às audições musicais. Vários instrumentos eram nela exibidos. Yvan para lá se dirigia quase todas as noites, ao lado de Richard.
Executava, com maestria, piano e harmónio. Durante os anos de reclusão no internato de..., dedicou-se, com ardor, à arte de Rossini e compusera melodias e fantasias de indizível maviosidade. Quando Richard o via sentado a um dos instrumentos favoritos, observava que ele se transfigurava: seus dedos alvos, longos e ágeis, revoavam sobre o teclado, como asas níveas desprendendo harmonias incomparáveis; o rosto tornava-se-lhe de alabastro radioso, e, por vezes, supunha estar próximo de uma entidade extraterrena. Uma vez Duruy, extasiado, inquiriu:
—Qual o seu compositor predilecto, Sr. d’Aprémont?
—Oh! doutor, aprecio igualmente a todos os cultores de harmonia... Porque me perguntais ?
—Porque desejava adquirir essas admiráveis sonatas para as enviar a Sónia...
—Impossível, doutor, satisfazer-vos o desejo; componho-as de improviso e, quase sempre, esqueço-as depois.
—Que dizeis? Deus meu! Essas encantadoras composições são, pois, vossas?
—Sim. .
—Como se chama a que executastes há pouco? Melancólica, vibrante, até parecia um lamento, um soluço d´alma, em hora crepuscular de intensas e dolorosas reminiscências! Não tem nome?
—Chamou-se Nostalgia do exilado do Céu.
—Como deveis senti-la! E a que lhe antecedeu? Era mais merencória ainda...
—O Adeus!
—Basta! Vossas músicas são poemas de sons, sinfonias de dor...
Quando Richard recobrou a saúde, Yvan levou-o a passear pelos arredores do castelo e, uma tarde, detendo-o perto do despenhadeiro onde o encontrara semimorto, mostrou-lhe, alongando o braço. Duruy, por alguns momentos, fixou-o, tal se achava — hiante, como cratera de extinto vulcão, já meio invadido de trevas, parecendo um Cáspio esgotado, mas cheio de lúrido nevoeiro... Richard, angustiado, recuou, exclamando:
—É-me intolerável este local, Sr. d’Aprémont!
—Como já o foi para mim, doutor! Trouxe-vos, porém, aqui, propositadamente... Sabeis qual o pensamento que me ocorreu ontem, neste lugar? Mandar obstruir este boqueirão, ameaçador como a fauce de um crocodilo... Fostes a última vítima. Já contratei um engenheiro e diversos operários para a execução do meu intento. Serão construídas, ali, muralhas profundas, tornejando a cavidade, que, então, ficará entupida de pedras e argamassa até formar um plano resistente... e neste levantarei um Sanatório para todos os enfermos pobres, que serão aí acolhidos humanitariamente...
Achais aceitável a ideia?
—Magnífica e benemérita, digna de quem a concebeu! Ides, assim, transformar o antigo antro de suplícios em mansão de lenitivos... Deus há-de amercear-se de vós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:57 am

Já verificastes se ali foram realmente praticados os crimes que em nítidas visões presenciastes?
—Sim. Interroguei diversos camponeses dos mais antigos nas terras d’Aprémont, e todos confirmaram, baseados em remotas tradições, o que vos relatei e até então ignorava.
Mudando de entonação, o fidalgo disse:
—Escolhi-vos, doutor, para dirigir o Sanatório. Aceitais o convite?
—E a minha clínica na aldeia, quem o faria?
—Já fostes substituído. Contratei dois ex-colegas meus, sendo um para clinicar na aldeia de... e o outro para vos auxiliar aqui. O hospital, modelar no género, terá uma secção destinada exclusivamente às crianças. Não saireis mais d’Aprémont. Sereis vantajosamente remunerado.
—Sois um perfeito cavalheiro, mas declaro poder associar-me à vossa obra de benemerência, sem nenhum interesse pecuniário, sem nenhuma indenização, pois tenho fortuna pessoal.
—Muito vos agradeço a generosidade. Desejo, porém, gratificar-vos pelos serviços profissionais que ides prestar no Sanatório, e a vossa escusa em receberdes bem adquiridos honorários — a que dareis o destino que vos convier — será interpretada como recusa à minha proposta.
—Pois bem, acho-me ao vosso inteiro dispor. O essencial é atingir o nobilíssimo objectivo.
Pouco tempo depois, Richard, que há muito não se correspondia com a irmã, foi surpreendido com a sua chegada em companhia do esposo e filhos, que tiveram dificuldade em reconhecê-lo, tão alquebrado e envelhecido o acharam. A emoção que dele se apoderou foi extraordinária. O pranto embargou-lhe a voz, por momentos. Depois, quando adquiriu calma, pô-los ao corrente do acontecido e de todos os seus projectos, aliado ao digno Yvan d’Aprémont, que os recebeu jubilosamente, instando com o Dr. Duplat para que, com a sua família, ali se instalasse, pelo tempo que quisesse, no que foi atendido.
Já o Sanatório havia sido construído, com sobriedade e solidez. Todo o castelo fora reparado, destituído de aparatos, sendo apenas conservados os móveis e objectos artísticos. Havia nele conforto, mas não o fausto de outrora.
As crianças que frequentavam as aulas diurnas enchiam de risos e gorjeios o formoso parque, antigamente deserto e silencioso. Para os adultos, havia aulas nocturnas. Faróis gigantescos, postos em alguns minaretes do alcáçar, projectavam na sombra rutilações de esmeralda, pois neles havia reflectores de cristal verde.
A chegada da família de Richard foi motivo de regozijo para todos. Os filhos do casal Duplat eram gentilíssimos. Yvan sentiu-se estranhamente comovido ao vê-los, beijou-os com ternura, e, antes de se retirarem, presenteou-os com jóias de subido valor.
Sónia e o esposo estavam maravilhados com a lhaneza e inteligência do castelão.
Estando o médico a sós com a irmã, disse-lhe confidencialmente:
—Sónia, Yvan d’Aprémont é um ente de excelsas qualidades morais, como se fora um super-homem...
Ocultou-lhe todos os seus reveses, apenas relatando a queda no extinto precipício d’Aprémont, e a sua longa enfermidade.
Ela o censurou brandamente por não a ter chamado para tratá-lo.
à noite, Yvan e seus hóspedes, reunidos no salão de música — onde
realizadas encantadoras sessões culturais, algumas vezes por exímios artistas e franqueadas a todos que a elas desejassem assistir — palestravam amistosamente. Quedavam-se os visitantes, atónitos, ouvindo as belas e originais dissertações filosóficas e transcendentes, ou as arrebatadoras composições sinfónicas do genial fidalgo.
Um dia, Sónia confessou, quase em surdina, ao irmão:
—Richard, não sei expressar a emoção que de mim se apodera quando vejo o teu nobre amigo...
— Ó minha irmã! tu, que tens sido tão venturosa, deves partir, então, antes que seja levemente abalada a tua felicidade conjugal, pois, perdendo-a, jamais a encontrarás alhures... Yvan d’Aprémont possui um encanto irresistível, prodigioso — fascina os que dele se aproximam...
—Que loucura, Richard! Bem sabes quanto prezo e amo a meu marido — que não reputo inferior ao Sr. d’Aprémont — a minha emoção é espiritual; experimento, ao vê-lo, a sensação intraduzível de que já conheci este fidalgo, de que já me foi um ente caro... noutra existência!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 10:57 am

—Quem sabe, Sónia, se não estás com a verdade, assim pensando? Assim como o Omnipotente consagra os adversários num mesmo local, para reparação de crimes praticados em comum, pode aliar os que se amaram noutras eras, e daí provirem as afeições profundas, imorredouras, os amores inolvidáveis... As almas amigas, minha irmã, pressentem-se quando Se encontram:
compreendem-se por uma suave e mútua irradiação, que as unifica, tornando-as afins e coesas por toda a consumação dos tempos...
Antes de se ausentar, Sónia interpelou-o:
—Quando irás à ilha de..., Richard ?
—Não me esperes lá senão raras vezes, pois aqui me prendem deveres sacrossantos... Quero cumpri-los espartanamente.
Mme. Duplat não insistiu no assunto, mas compreendeu que, na relutância do irmão, havia um mistério inescrutável... Na véspera da partida da família Duplat, Yvan estava merencório. Executou ao piano sonatas magistrais e enleadoras; depois, como estivesse amena a temperatura, propôs aos hóspedes um passeio ao parque. Sentados sob o dossel de bizarro caramanehel de clematites em flor, todos o escutavam embevecidos, a discorrer sobre temas metafísicos. Subitamente, já erguido para se recolher ao castelo, apontando o ilimitado Saara azul com seus oásis cintilantes, falou com entusiasmo:
—Não calculam a atracção que exerce em meu ser o zimbório divino... Às vezes, em noites límpidas e consteladas, passo horas a fio a contemplá-lo...
Jorram-me de lá ideias grandiosas e lenitivos incomparáveis, como se minh´alma recebesse catadupas de eflúvios balsâmicos e de espumas luminosas... Fito os corpos siderais e comparo-os uns com os outros, considerando-os sob um aspecto que — bem o Sei — não é real, mas de acordo com a visão terrena, causando-me impressões indeléveis; os planetas são, para mim, cadáveres celestes — falta-lhes a luz, que é a alma inexaurível das estrelas! Os cometas — que já tive ensejo de observar por duas vezes — ao inverso, com a sua juba eriçada, — leões radiosos, insaciados — numa floresta de sóis! — parecem-me astros vivos, que enlouqueceram bruscamente, punidos por indómita curiosidade, porque, em sua vertiginosa trajectória pelo Infinito, contemplaram de visu{78} todos os portentos do Universo... ou o próprio Omnipotente! As estrelas são moedas de luz que o Nababo celeste, quando as acumulava nos seus inesgotáveis mealheiros, achando-as em demasia para encerrá-las em seus mágicos erários — de onde medram, ininterruptamente, maravilhas — num gesto de munificência, arremessou-as a mancheias, a esmo, pelo Espaço, que ficou repleto de óbolos rutilantes, as quais, da Terra, deslumbram os olhos dos mendigos idealistas, que debalde as imploram; imantam nossa alma de usurários ávidos de luz, que cobiçam vê-las de perto para possuir todos os tesouros esparsos pela Amplidão...
*
* *
No dia imediato, o Dr. Duplat saiu do solar d’Aprémont com destino à Ilha de... Sónia reiterou o convite ao irmão para ir vê-la, ao menos uma vez anualmente. No momento da partida, estreitando-a nos braços, murmurou ele:
—Prometo ir, minha irmã; agora que a minha existência tem um alvo, não receio mais as ciladas e as insânias das aspirações terrenas, dos irrealizáveis sonhos de felicidade... que jazem, todos, incinerados em minh´alma... votada ao Dever e ao Sacrifício!
A permanência daquelas criaturas amáveis e formosas no castelo, levara-lhe um hausto de animação e alegria. Sua ausência entenebreceu os corações vibráteis de Yvan e do médico.
—Ó Sr. d’Aprémont! — queixou-se com amargura o médico — não será porventura a maior expiação de nossa existência o renegarmos as incomparáveis afeições que só a família pode conceder-nos?
—Sim, meu amigo, reconheço deliciosos e compensadores os afectos que nos consagram santamente aqueles que Deus ligou ao nosso destino, como satélites que gravitarão ao redor de nossa alma, nesta e em porvindouras encarnações; mas vós vos iludis — aqui também nos rodeiam entes que, talvez em pregressas etapas, tiveram direitos ao nosso carinho e foram por nós duramente tratados... Amemo-los agora, e cada lágrima de reconhecimento que seus olhos verterem será uma gota de bálsamo instilada em nosso coração, muitas vezes constringido de dor... A nossa família aumenta dia a dia: não têm número fixo os desventurados!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:24 pm

Certa feita, tendo ambos se desvelado no tratamento de muitos míseros afectados de febre tifóide, souberam que se haviam retirado do Sanatório sem uma palavra de agradecimento e ainda os caluniaram torpemente. Richard ficou infinitamente contristado. Yvan foi ter com ele e falou-lhe, com os olhos turvos de pranto:
—Doutor, muitos desistem de cultivar o cardo santo da Caridade, porque seus frutos são, para os necessitados, as flores para o Omnipotente, e só os espinhos para os que dele cuidam, borrifando-o, às vezes, com lágrimas, espinhos esses que lhes laceram as frontes. Tal sucedeu a Jesus e a outros grandes benfeitores da Humanidade! Devemos renunciar ao seu cultivo? Não.
Sejamos fortes e abnegados. Continuemos a amanhar o precioso cardo nos corações sangrantes pelas injustiças e falta de reconhecimento dos que favorecemos com as mais puras intenções: as flores da mais formosa planta terrena ascendem ao Céu, o próprio Criador as aspira, não fenecem nunca e hão-de, mais tarde, metamorfoseadas em açucenas de luz, engrinaldar-nos e cicatrizar os ferimentos de nossas frontes, ora pungidas pelos acúleos da ingratidão...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:25 pm

VI
Por mais de cinco lustros Richard e Yvan estiveram confraternizados na prática de inolvidáveis actos de abnegação, sacrifícios, desvelos, verdadeiramente sensibilizadores.
Eram infatigáveis no cumprimento austero dos sacrossantos deveres impostos pela própria consciência recta de ambos. Aqueles dois entes — tão diversamente favorecidos pela Natureza, um belo, apolíneo; outro horrivelmente trágico — contrastando no físico, mas irmanados pelo espírito, esquecidos da própria individualidade para só se lembrarem da consecução da obra gigantesca que, sem esmorecimentos, desejavam consumar com o derradeiro sopro vital, tornaram-se inseparáveis.
Viam-nos onde estivesse a dor — física ou moral. Um, levava lenitivo às almas turvas ou desventuradas; outro, os recursos da cirurgia ou da ciência médica aos corpos enfermos. Não havia lar humilde, lôbrega mansarda em que entrassem, onde não ficasse um óbolo, um alívio: transformavam o pranto do sofrimento em pérolas de consolo e gratidão. Erguiam-se do leito à hora em que os chamasse um desditoso, ou um aflito.
As ríspidas noites de Inverno não eram empecilhos para socorrerem os infortunados e prodigalizarem cuidados aos enfermos. Já as suas frontes começavam a alvejar, quando, uma noite, Yvan revelou a Richard, sorrindo, com uma resignação de Purna{79} que lhe santificava o semblante:
—Meu amigo, se o Criador me conservar a existência por mais alguns anos, toda a imensa fortuna acumulada pelos Aprémont estará esgotada...
Quem sabe se não terminarei meus dias compelido a estender a mão à caridade dos peregrinos que por aqui passarem, ou em longínquas terras?
—Não reitereis semelhantes palavras, Sr. d’Aprémont! Esquecei-vos de que possuo alguns milhares de libras nos Bancos, muitos deles ganhos em vossas pródigas mãos? Não poderei resignar-me com o me separar de vós um só dia:
viveremos em modesto lar, ao abrigo de qualquer necessidade, até que Deus dê por finda a nossa missão terrena... É meu ardente desejo que fecheis os meus olhos...
— Obrigado, meu amigo! Também nutro igual desejo a vosso respeito — murmurou Yvan comovido.
Estavam ambos tristes, meditativos, propensos às confidências. Nevava...
Os vendavais sibilavam soturnamente, como alcateias de cervais{80} famintos, fazendo trepidar as vidraças e as portas, parecendo que esquadrões invisíveis tentavam escalar o castelo, forçando as suas entradas mais acessíveis.
Inopinadamente, disse Richard com grave entoação, desvendando um pensamento que o molestava:
— Perfeita tem sido a nossa união, Sr. d’Aprémont, há um quarto de século... Parece que nossas almas estão eternamente confraternizadas. O destino harmonizou-as e irmanou-as. Nenhuma reserva deve haver entre nós...
Permiti, pois, que vos interrogue?
— Porque não, meu amigo? — respondeu Yvan, surpreso.
—Porque me ocultastes um grande pesar — haverá seguramente 23 anos — quando, recebendo uma carta, à noite, inclusa em vossa correspondência diária, chorastes e a reduzistes a cinzas?
—Para vos poupar um dissabor, meu amigo.
Não suspeitastes de quem era?
—Positivamente, não...
—Era de Arlette...
—De Arlette? Por Deus! dizei-me: que desejava ela?
—Escreveu-me no leito da agonia, vítima da mesma enfermidade que lhe ceifou a progenitora. Despedia-se de mim e pedia-vos perdão das torturas que vos causou... Foi-me enviada sua primeira e derradeira missiva por um parente, após o seu falecimento.
Richard apertou convulsivamente a cabeça entre as mãos, como que tentando esfacelar no cérebro recordações pungentes, e retorquiu:
—Como hei-de perdoá-la, sem ressentimentos? É alçada superior às minhas forças morais. .. Ela foi cruel para comigo. Ouvi tudo o que vos confessou, depois de me ter traído impiedosamente...
Foi ela quem arrefeceu em minh´alma a flama da esperança, calcinou-me todos os sonhos de ventura, tratou-me com asco e ingratidão...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:25 pm

—Era uma criança, apenas impelida pelo coração enamorado que enlouquece e foi pungido pelas mesmas urzes que feriram o vosso, pois não pôde realizar as suas aspirações... Não vos comove o seu prematuro passamento, após dois anos de angústias no exílio?
— Apiedou-se ela de mim? Não me odiava?
—Não vos odiava doutor, apenas o amava como a um benfeitor. Vi-a oscular-vos as mãos antes de partir para sempre...
—Que dizeis? Endoideço, agora, que já me abeiro da tumba? Conheço a magnanimidade de vossa alma: assim falais para que lhe perdoe...
—Juro-vos que vos disse a verdade!
Richard fitou o fidalgo e tanta era a sinceridade existente nos seus olhos límpidos que, sem replicar, deixou-se cair numa cadeira, ocultando o rosto com as mãos e tentando ocultar as lágrimas que por ele deslizavam.
Yvan esperava aquela explosão de sentimentos, desejava-a de há muito para alcançar — por meio de verdades que só ele conhecia — a sua reconciliação com a morta querida. Richard, por minutos, rememorou o passado, lembrou-se minuciosamente da cena que evocara, do instante em que vira o Sr. d’Aprémont ler a carta que, então, sabia ser da pérfida que tanto amara, e, logo após, chorando, atirá-la às chamas da lareira. Depois, observou-o, com surpresa, merencório e belo, dirigir-se ao Pléyel{81}, do qual fez desprender-se uma revêrie{82} excepcional, que arrancaria lágrimas a todos que a ouvissem:
eram as sonoridades, cascatas de lágrimas cromáticas e harpejos que faziam a alma vibrar no seu ergástulo de carne... Nunca pudera olvidar aquela sensacional, plangente e dolorosa composição. Pouco depois do que presenciara, notou que Yvan, antes de se retirar para o seu quarto, escrevia celeremente e, uma vez, lhe dissera:
—Doutor, começo a receber mensagens de Além-túmulo...
—De que modo...
—Por meio da psicografia.
—Com quem vos correspondeis?
—Com um dos meus Protectores espirituais e com um ente amigo e familiar... Ambos me orientam, esclarecem e confortam o coração...
—Quanto sois mais afortunado do que eu!
—Deus não privilegia a quem quer que seja. Porque não experimentais também, meu amigo?
Não tendes, no mundo espiritual, seres que adorais — os vossos progenitores ?
—Sim. Que ventura a minha se deles recebesse mensagens consoladoras!
Por algumas noites Richard fez tentativas, sempre infrutíferas, para se corresponder com os invisíveis. Só conseguiu, uma vez, traçar com caracteres incertos, sob um influxo estranho, estas palavras:
“Sus!{83} Não esmoreças. Nós te nortearemos por meio de perceptíveis intuições. Coragem e esperança!”
Terminando todas essas reminiscências, Richard ergueu-se subitamente.
Aproximou-se de Yvan, muito pálido, contemplativo, e tocou-lhe subtilmente num dos ombros, como para despertá-lo do seus cismares:
—Senhor — disse ele, com voz trémula — julgo que a afeição profunda que nos liga jamais será abalada; bem sei quanto vos devo: vós me salvastes de dois abismos — o de Aprémont e do suicídio... Sejamos, pois, leais um para o outro...
Dizei-me, pois: qual o sentimento que consagráveis àquela a quem nos referimos?
—Amor...
—Amor? Que dizeis? E foi por minha causa que o sacrificastes, renunciando a uma felicidade ao vosso alcance?
—Que é a felicidade, meu amigo, senão a consciência sem jaça? Como poderia ser ditoso cavando um túmulo — o vosso — para fruir uma egoística ventura? Não me arrependo de haver cumprido um dever, livrando-vos de futuros e tremendos sofrimentos, pacificando vosso coração torturado, abdicando, convosco, os gozos mundanos. Minha aliança convosco foi mais profícua do que se a realizasse com Arlette; o meu amor, imáculo e quase fraterno, nunca teria por consequência o consórcio. A ventura faz, quase sempre, o egoísta. Se eu prendesse ao meu o destino de outrem, por meio do matrimónio, não poderia agir com plena liberdade para dispor da herança legada por meus maiores. Se possuísse descendentes seria um dever salvaguardar-lhes, pecuniariamente, o futuro; e toda a minha projectada obra de altruísmo, nesta existência, teria fracassado. Não foi, pois, exclusivamente por vossa causa, mas, no meu interesse espiritual, e em prol dos infortunados, que reneguei todas as prováveis ditas terrenas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:26 pm

Arlette — confesso-vos realmente — foi o meu único amor, sincero e profundo. Sofri imensamente por não lhe poder patentear o meu afecto, igual ao seu, veemente e ilimitado, no dia em que ela me revelou...
Ai! doutor, se a vísseis, como eu, na hora da partida (que eu observei transido de dor, oculto num dos torreões do solar, trajada de luto recente, soluçante, tão débil e amargurada, quase expulsa desta habitação que tem sido o refúgio dos desditosos, sempre aberta aos que sofrem e somente cerrada para ela; apenas acompanhada por Jacques Morei, desprotegida, para, longe destes sítios amados, ir definhar de saudade e desgosto), vós já a teríeis perdoado, há muito!
Deu-me forças, para ser inflexível, o vosso melindroso estado. Entre o Amor e o Dever, optei pelo último, certamente inspirado pelos luminares divinos. Bastava-me estender a mão para alcançar a ventura, mas, logo após, teria de tropeçar numa tumba — a vossa...
Preferi salvar uma vida a fruir uma vã e criminosa felicidade terrena. A consciência asfixiou o coração. Tive ímpetos de ir no encalço de Arlette e dizer-lhe: “Volta, pobre ser órfão e desamparado, acolhe-te, para sempre, sob um tecto amigo e tutelar. Sê, doravante, uma irmã querida, um consolo, uma auxiliar — em nossa futura Cruzada do Bem — de nós ambos — eu e o Dr. Richard!” Mas vós me odiáveis... Porquê? Injusto e cego é o ciúme! Vós me execráveis... porque em nosso espírito vibrava, acorde, o mesmo pensamento: achávamos formosa e digna do nosso amor a mesma criatura! Não acederíeis, nunca, ao meu desejo, e, se tal o fizésseis, a sociedade corrupta em que vivemos, que intoxica todos os nossos mais impolutos anelos, cavilosa e caluniadora, não acreditaria, jamais, na pureza de nossas intenções, em nosso pacto fraterno, e atirar-nos-ia sua nauseante peçonha... Era mister dar-vos, e a toda gente, uma prova da minha lealdade. Eu vo-la dei, condenando ao exílio aquela que, pouco depois de sua partida, sucumbiu talvez de mágoas cruciantes... Três vítimas se fizeram, devido à imperfeição das leis sociais que nos regem, e às nossas rudes percepções terrenas, quando podíamos ser felizes, vivendo irmãmente debaixo do mesmo tecto, agrilhoados por uma afeição imorredoura... Ai de mim!: como pude idear a ventura neste antro de gemidos a Terra? Sucedeu o a que tínhamos jus.
Cumpriu, cada qual, seu doloroso destino. A felicidade, irrealizável outrora, será uma realidade no futuro, quando nossos corpos deixarem no sepulcro a mortalha de carne e podridão...
Quando voltei a beirar o leito em que sofríeis duplamente, tive a coragem precisa para consumar meu sacrifício... Desvelei-me por vós, como sabeis, desejando vos fosse restituída a saúde e a calma, e o Altíssimo ouviu meus rogos. Quantas vezes, em horas de acerbas recordações e pesares, ao entardecer, tenho voltado ao local de onde vi Arlette pela derradeira vez, reproduzindo-se então, para meu suplício, a cena que presenciei, no instante da separação, mas não me arrependo de haver cumprido o que me parece um dever sacrossanto.
Apenas prantos me afloram aos olhos, dúlcidos lenitivos refrigeram-me o coração. Abençoo, pois, todas as mágoas que hei curtido, com a imolação de um sentimento extreme, pois elas, e não os gozos que poderia desfrutar neste mundo, são as únicas flores olorosas que posso ofertar ao Criador. Fixou-se-me uma ideia na mente, desde que Arlette se foi — adquirir vossa amizade, ligar-vos à minha missão espiritual — e, pouco a pouco, minha afeição por Arlette se transformou noutro sentir — fraternidade ou amor psíquico. Desde que soube do seu desprendimento do mundo material, lembro-me dela como de uma entidade angélica, e, muitas vezes, tenho-a visto mais linda do que antes, sorrindo e apontando-me o Firmamento... Ela se corresponde comigo, diariamente, e, podeis crê-lo, nunca este vocábulo — amor — foi ditado por
nas revelações do nosso passado tenebroso: muitas vezes, nossas existências estiveram algemadas, mas logo a separação nos apurava a alma. Porquê? Para reabilitação de faltas deploráveis cometidas outrora, quando nos prendiam paixões impuras, geradoras de torpezas. Sua vida, neste último avatar tão breve, teve apenas um alvo — vincular à minha a vossa existência. A sua curta, profícua e sublime missão terrena foi esta — servir de hífen entre o meu e o vosso Espírito, porque entre o meu e o dela já havia indestrutível afinidade e coesão, ao passo que no meu e no vosso coração havia o divórcio, a repulsa originada pelo ódio...
Se eu a desposasse, certo o Criador não desaprovaria a nossa união; mas imolando o meu afecto para me reconciliar com um secular adversário — como pressinto que o éreis — aos olhos do Supremo Árbitro das consciências o meu acto foi mais meritório. Não era mister o conúbio, para que a minha alma se unisse à sua; era mister uma missão de sacrifício e devotamento, para que o meu e o vosso coração palpitassem em uníssono. Esqueçamos, agora, o passado; pensemos no porvir. Não tarda que a senectude, o inverno do organismo, branqueie nossas frontes, a penderem para o sepulcro. Olvidemos a Terra; lembremo-nos do Céu. Não estamos mais na era florida das ilusões fagueiras; urge encaremos com ânimo forte a realidade.
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 7 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:26 pm

Quereis, ainda, alimentar rancor contra quem vos cerca de cuidados fraternos, quem se refere a vós com carinho e bondade, quem vos solicita perdão com frequência, quem foi o corisco que alumbrou o firmamento de nossas existências e tornou-se o elo radioso de nossas almas? Amigo, nossas cabeças começam a branquear:
concentremos atenção no que nos aguarda post mortem; não mais considereis Arlette a noiva traidora, mas uma irmã desditosa que cometeu uma falta grave para cumprir um desígnio divino — consumar, extinguir o ódio que nutríeis contra mim; dirimir a aversão latente em nosso íntimo, derivada da ignorância e mútuos delitos praticados em transitórias existências, e vereis que a sua falta, se falta houve, será atenuada, perdoada, santificada até... Deus, a Suma Justiça, há-de galardoar-vos pelo que tendes feito à Humanidade, não olvidando a vossa benemerência, a vossa dedicação aos que sofrem, especialmente às criancinhas, e a vossa renúncia aos gozos mundanos. Nossa vida, quase de ascetas, não tem um deslize.
Pensemos, agora, exclusivamente, no porvir do Espírito desprendido de todos os grilhões terrenos. Como haveis de ingressar na Eternidade conservando ressentimentos d´alma contra uma criança desventurada, cuja vida foi fértil em flagelos morais, cuja idade lhe atenuou a falta, que, se a considerastes grave, não ignorais, agora, ela a expiou com remorsos, sofreu abominavelmente os tormentos da separação e da saudade, padecendo, como vós, o mesmo suplício — o de se ver repudiada por quem amava com intensidade?
Ah! doutor, vossa existência que tem sido tão valorosa e fecunda, em actos benéficos, precisa ser encerrada com um fecho de ouro — o esquecimento dos agravos de um ente que, na hora extrema em que as acções se apresentam nuas à plena luz da realidade, vos suplicou perdão, e, há muito, se corresponde espiritualmente comigo, insistindo no mesmo pedido, referindo-se a vós com ternura e admiração. Meio século de vida, de rudes provas, pesa sobre nós, doutor: é mister, agora, olvidar o passado e cogitar do que nos aguarda no Além, do nosso inevitável encontro com Arlette, que, por mim, nunca foi pretendida para amante ou esposa, mas adorada como irmã ou noiva ideal...
Amai-a também assim, meu amigo: ela vos aguarda nas fronteiras da Eternidade, com uma afeição impoluta e imaterial, ávida de se reconciliar convosco. Olvidemos o longo e sombrio passado de iniquidades, que nos aliciaram outrora, e cujas reminiscências ainda nos conturbam nesta encarnação. Voltemo-nos para Deus. Arlette, certamente, tem sido o pomo de nossa discórdia, o nosso ideal inatingível, o magnete a prender, a atrair nossos Espíritos, ora para o abismo, ora para o céu... Lembremo-nos, agora, de encontrá-la mais radiante de beleza do que a conhecemos, aureolada da luz que se localiza nas frontes aformoseadas pelo escopo da dor, quintessenciadas pelos prantos vertidos — torrentes do Jordão redentor; consideremo-la, doravante, irmã bem-amada, filha do Pai celestial, sem que jamais o meu ou o vosso afecto possa causar ciúmes injustos, antes que sentimentos puros e fraternos...
Richard, olhos velados por um lenço, ouvira-o com admiração e recolhimento, compreendendo a grandiosidade do sacrifício que ele fizera por sua causa, e disse-lhe:
—Vossa nobreza espiritual é inconfundível, ultrapassa a de todas as criaturas humanas. Sois uma criatura superior, proscrita na Terra para nortear os réprobos à Pátria divina... Reflectirei esta noite no que me dissestes, Sr. d’Aprémont, e Deus me inspire na resolução que deva tomar!
Yvan, afeito às subtilezas d`alma, não insistiu mais. Levantou-se, dirigiu-se ao piano e abriu-o. Enquanto fora os aquilões{84} convulsionavam a Natureza, no ambiente de uma sala, Yvan fazia o Pléyel desprender torrentes de melodias. Nunca se sentira tão influenciado pelos artistas siderais. Percorreu o teclado com um harpejo dulcíssimo; depois trilou, nos agudos, um admirável gorjeio, como o despertar de um rouxinol prestes a enlouquecer, pungido de saudade da morta companheira de ninho, que ele vira baleada numa selva florida, banhada de luar; depois, foi elevando-o, num crescendo progressivo, entremeando-o de notas graves como gemidos, até que as sonoridades se generalizaram em quase todas as cordas; suas alvas mãos se tornaram quase invisíveis, arrancando ao instrumento Niágaras de maviosidades, quérulas, expressivas, suplicantes, que penetravam os corações como estiletes de luz ..
Era a mais bela de suas inspirações. Quando terminou, Richard já se havia recolhido ao quarto. No dia seguinte, apareceu-lhe calmo, pensativo, e confessou ao fidalgo:
—Como me torturou o espírito a vossa estupenda sonata de ontem, Sr. d’Aprémont! Pareceu-me ouvi-la, ininterruptamente, durante toda a noite, que foi de vigília ... Adivinho-lhe o título...
—Então, diga-me...
—Sim... Súplicas de Além-túmulo.
—Maravilhoso! Foi precisamente o que ouvi quando tocava. E a vossa resposta, meu amigo, a essas súplicas de um ser que, talvez para ser ditoso, aguarda apenas o vosso perdão?
Richard tinha os olhos turvos de pranto, mas conservou-se calado. Yvan abraçou-o, murmurando satisfeito:
Que felicidade a minha, meu amigo! Compreendo que lhe perdoastes...
Penso que minha existência atingiu a meta...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:26 pm

VII
Uma semana mais tarde, por uma noite frígida, de ríspidos vendavais, foram chamar o Dr. Richard para auxiliar o seu colega da aldeia, que pretendia realizar uma intervenção cirúrgica, de parto. Ele se dispôs a partir imediatamente. Yvan segui-lo-ia, como o fazia sempre que o médico saía à noite. Quando o criado ia cerrando a porta, à passagem de ambos, o médico notou que o castelão estava desprovido de qualquer agasalho.
— Como?! — interrogou com espanto e inquietação — ides cometer a temeridade de sair com este tempo agressivo, sem estar convenientemente agasalhado?
Yvan respondeu-lhe, tiritando:
—Quero experimentar a sensação dos que não têm um manto; dos que Se cobrem de farrapos, para melhor aquilatar a penúria e o sofrimento alheios...
—Deus não exige essa experiência de quem tem sido a Providência dos desgraçados, como sois havido pelo povo, com inteira justiça!
Voltai, senhor d’Aprémont, ide resguardar-vos da intempérie: eu vos peço como médico e amigo... De outro modo, não sairei... deixando uma vida em perigo por um extravagante desejo vosso...
Aquela resolução de Richard foi decisiva. Yvan atendeu-lhe o conselho:
chamou um servo, que lhe trouxe espesso manto de astracã no qual se envolveu, mas a lufada de ar glacial, que recebera à porta, foi-lhe perniciosa.
Regressou ao solar, alta noite, sentindo-se febril, e, no dia seguinte, Richard, com angústia inaudita, verificou tratar-se de violenta pneumonia dupla.
Duruy, coadjuvado por dois facultativos, não cessou de prestar-lhe todos os cuidados profissionais. Seu estado, porém, agravava-se de hora em hora e a notícia correu pelos arredores de Aprémont como se fora um cataclismo mundial. Ao entardecer do sétimo dia, o enfermo achava-se prostrado, delirando, e um dos médicos assistentes julgou-o irremediavelmente perdido, em estado desesperador. A amargura de Richard não tinha limites. Só, então, compreendeu a afeição ilimitada que consagrava ao fidalgo; a ideia de que ele ia desaparecer para sempre, fazia-lhe gelar o sangue nas artérias, constringir-lhe o coração; olhava o doente com fixidez, como querendo gravar aquelas nobres feições, indelevelmente, na própria alma; conservava-se mudo, porque lhe parecia que, se proferisse um só vocábulo, a dor lhe explodiria em soluços.
Tinha desejos de oscular-lhe as desmaiadas mãos, implorar-lhe perdão pelo injusto conceito que dele fizera outrora, confessar-lhe lealmente que, na noite em que caíra no despenhadeiro, fora a Aprémont com o intuito de assassiná-lo... O remorso e o sofrimento moral pungiam-no, então, imensamente. Houve um instante em que o enfermo, recobrando perfeita lucidez, lhe fez sinal para se aproximar do leito, e, penosamente, assim falou:
—Meu amigo, parece-me que vou partir para sempre ... Se tal se der, não interrompais, por enquanto, a nossa obra, que dura já um quartel de século...
Ainda há recursos para a prosseguirdes por mais alguns anos. Substituí-me. Não esmoreçais nunca, até ao derradeiro alento. Não lamenteis minha transição para uma vida que não desconheço, e na qual, deixando aqui corações dedicados, vou encontrar outros seres queridos, que me aguardam radiantes... Já fiz, há poucos meses, as declarações que desejava: o pouco que me resta vos ficará pertencendo e a Jacques Morei. Meu testamento acha-se em poder do notário de...
—Não faleis assim, Sr. d’Aprémont — pôde dizer Richard, agoniado — quero que sejais vós quem me cerre os olhos.
—Deus sabe, meu amigo, porque me chama primeiro ... Também nutro igual desejo... Mas Deus já decidiu: estou pronto para a partida!
Richard retirou-se para uma sala contígua, que era a das audições musicais. Ao passar pelo Pléyel fechado e mudo, teve a impressão de que executavam, em surdina — “Súplicas de Além-túmulo”... — Era demasiado tormento para sua alma ciliciada. Recuou até uma das janelas frontais, querendo concentrar todas as suas potências psíquicas para debelar o desalento que o avassalava, mas sentia-se jungido àquele local, magnetizado, prestes a cair em plena inconsciência. Quando percebeu que havia cessado a misteriosa sonata, com os olhos fúlgidos de lágrimas, julgando-se alucinado, olhou para o exterior do castelo e sua atenção foi atraída para uma multidão de pessoas que o circulavam, como se fora a reprodução do sonho retrospectivo que, havia muito, empolgara o fidalgo, quase moribundo, então.
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 7 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:27 pm

Era constituída pelos camponeses, aldeões, jovens, mulheres apertando ao colo os lindos filhinhos, todos os habitantes, enfim, das cercanias do castelo, que, inquietos em seus lares, acorreram pressurosos ao abrigo dos desventurados, ansiosos por notícias do Sr. d’Aprémont.
Ninguém proferia palavra, a não ser em surdina, temendo molestar o caro enfermo; mas todos, com frequência, levavam o lenço aos olhos orvalhados de pranto. As crianças, quebrando o silêncio que imperava àquela hora de um merencório pôr de sol, não tendo permissão para ver o castelão, carpiam tristemente.
Duruy fitou a turba por momentos e foi logo, como que impelido, até onde se achava Yvan, ao qual relatou o que vira. Ele, compreendendo o que se passava, sorriu docemente, e, deixando algumas pérolas de emoção deslizarem-lhe pelo rosto marmóreo, disse:
— Quem sabe, amigo, se todas essas criaturas, pacíficas e dedicadas, que cercam o solar, não são as mesmas que, outrora, me execravam e
amaldiçoavam, e, hoje, inspiradas por Deus, vêm-me trazer o seu perdão? Que maior júbilo poderia fruir minh´alma antes de cindir o Espaço? Ide lá, doutor, e agradecei aos nossos amigos a sua presença... Se o Criador me chamar logo, orem por mim... Partirei saudoso de todos... e não os esquecerei, jamais!
Richard obedeceu. Retirou-se e, animado por uma força extraterrena,
assomou a uma das sacadas do edifício. Houve um cicio confuso de vezes e soluços mesclados, partidos da multidão ensofregada. Todos os olhares se concentraram no médico, cujas feições estavam alteradas pela angústia que lhe abalava o Espírito. Um campónio alteou a voz, interrogou-o comovido, mal contendo soluços:
—Como passa o mui nobre Sr. d’Aprémont, doutor?
Duruy, com um esforço heróico, pôde repetir-lhe as palavras do amado enfermo, e, depois, disse a custo, tal a emoção que o dominava:
—É gravíssimo o estado do nosso ilustre e generoso benfeitor. Os recursos médicos estão esgotados. Concentremos nossa esperança na misericórdia divina. Vamos, pois, amigos, alçar os nossos pensamentos ao Altíssimo, suplicando-lhe, com fervor — se for de sua vontade — a permanência, entre nós, por mais algum tempo, da mais digna criatura que conhecemos...
Um como sussurro se elevou dos lábios daquela multidão, aprovando a ideia do Dr. Richard. Em uníssono, todas aquelas almas aflitas e entristecidas vibraram, obsecrando{85} ao Eterno a conservação da vida do seu incomparável protector.
Duruy acompanhou, em seu imo, as férvidas súplicas, mas, súbito, sentindo-se impotente para reagir à eclosão de dor que lhe estuava no coração, retirou-se para um aposento contíguo à sala de onde se dirigira ao povo, tentando acalmar-se, para reaparecer ao doente e não mais o abandonar.
Bateram-lhe precipitadamente à porta. Aberta esta, achou-se em frente de Jacques Morei, que, quanto ele, velava dia e noite por Yvan d’Aprémont. Iria noticiar-lhe o passamento do fidalgo, após a emoção recebida com a presença de todos os beneficiados? Fitou-o, aterrado, e recuou involuntariamente.
Era o mordomo d’Aprémont, alto, vigoroso, alvo, de cabelos negros, extremamente insinuante. Naquele momento estava pálido, com as mãos crispadas pela hiperestesia dos nervos sensoriais.
—Doutor disse —, é verdade que nenhuma esperança resta para salvar o nosso benfeitor?
Richard respondeu-lhe, lívido e sensibilizado:
—És testemunha de quanto eu e meus colegas nos temos esforçado para que ele recobre a inestimável saúde, mas, desventuradamente, julgo o seu mal irremediável ...
Com voz trémula Jacques confessou:
—Ah! doutor, bem sabeis, tenho esposa e filhos, que idolatro, mas, sobre todos neste mundo, prezo e amo o Sr. d’Aprémont... Penso que enlouquecerei se o vir morrer!
—Avalio o teu sofrer... igual ao meu! Não, mais atroz é o meu, Morei, pois tens esposa e filhos adorados... e eu, sem ele, ficarei só, com o meu pesar acerbo e inconsolável!
—Tendes razão, doutor, compreendo a vossa amargura. Não temos, porém, tempo a perder. Aqui estou para vos dizer: a Ciência exauriu os seus recursos, mas, infinita é a clemência divina... Aos rogos feitos há pouco, em prol do caroável doente, juntaremos os nossos... Vinde, doutor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:27 pm

Richard seguiu-o maquinalmente. Jacques introduziu-o no aposento em que Yvan costumava orar. Era amplo e azul, com janelas ogivais para o Ocidente, apenas ornamentado com um painel primoroso, representando o Rabi súplice, genuflexo, agoniado, pálpebras cerradas, rosto macilento, fronte pendida, antes de libar a taça dos próximos martírios, ainda sustida por uma entidade arcangélica de beleza surpreendente, iluminada por um revérbero áureo que fendia o Espaço, ligando-o ao Horto entenebrecido — o símbolo daquele em que a Humanidade toda tem de sorver o cálice das expiações amargas... Era, certamente, contemplando-o, comparando a grandiosidade dos padecimentos, dos suplícios que aguardavam o Pastor celestial, com os seus, que Yvan encontrava o segredo da força indómita que o impelia à prática de todos os deveres cristãos, a imitá-lo, a suportar resignadamente todas as agruras terrenas...
Uma das janelas — tão distantes se achavam do solo — estava aberta com para a amplidão sidérea, que, naquela noite, tremeluzia de astros, parecia ornada de lâmpadas multicores para receber o Espírito radioso de Yvan. Uma poltrona de veludo carmesim, postada à sua frente, revelava que era ali que, depois de longas e ardentes preces, ia ele meditar, mergulhar a vista perscrutadora na imensidade azul, para receber orientações preciosas do Alto, eflúvios balsâmicos, inspirações nobilíssimas, que o nortearam na existência
benemérito da Humanidade.
— Parece-me — murmurou, consternado, Jacques Morei — que, aqui, há fragmentos de sua alma luminosa, que este recinto é sagrado e propício à oração, é um pedaço de céu, e, por isso, penso que Deus nos ouvirá melhor deste local, do que num templo. .. Uma vez, à noite, necessitando falar-lhe, vim sutilmente até aqui, e, — juro-vos, Sr. doutor! — não tive ânimo de chamá-lo: vi-o ajoelhado, como este Cristo, e a luminosidade que envolve o arcanjo semelha-se à que observei nimbando-lhe a fronte, de onde, por certo, irradiavam pensamentos puros e magnânimos...
Richard, ouvindo o angustiado mordomo, sentiu as lágrimas, que pareciam intumescer-lhe o coração, premidas pela dor, deslizarem livremente pelas faces, e, mudo, genuflexo em frente ao agoniado Jesus, cuja amargura comparou à sua, começou a orar como nunca o fizera em sua vida.
Alheou-se, por completo, do mundo objectivo.
Sentiu a alma dissociada da carne, livre, subtilizada, cindir as alturas, suplicando ao Eterno que, se permitido fora, conservasse a vida inestimável de Yvan, para fechar seus olhos nos extremos instantes — olhos de desventurado, que tantas lágrimas já haviam vertido! — e oferecia-lhe, em holocausto, sua própria vida, que permutaria de bom grado pela do agonizante.. .
Foi, bem o compreendeu ele, a sua primeira prece vibrante e fervorosa.
Jamais orou assim. Teve a impressão de que, por muitos séculos, estivera distanciado do Omnipotente, com o Espírito tisnado, perpetrando delitos nefandos, e, só então como pássaro baleado em pleno ar — acossado pela dor, caíra-lhe aos pés, humilde e contrito. O cepticismo, que por vezes o avassalara, fundiu-se naqueles instantes de pesar profundo, diluiu-se como um iceberg que resvalasse ao Equador, sob intensa canícula; sentiu-se eterizado, liberto de um peso descomunal. Reconciliara-se com o Eterno. Sentira-se outro ser diverso do que fora até então; julgara-se, sempre, um réprobo, um maldito e, enquanto orava, teve a impressão de que uma bênção radiosa se lhe difundira n´alma, que uma fulgurante mão lhe roçara a fronte abatida... Esteve assim imóvel, exteriorizado do mundo real por algum tempo, e, quando se erguera, desperto do transporte absorvente, estava sereno, sem lágrimas, com um conforto estranho e inefável no seu íntimo.
Ajoelhara-se agrilhoado à dor, premido à terra; levantara-se alado, atraído para o Infinito. Dir-se-ia que, desde aquela hora, seu Espírito se emancipara do arnês{86} de bronze das iniquidades, dos assomos de rebelião, aos quais era propenso, e entrara em plena comunhão com o Soberano do Cosmos e com entidades astrais. Por segundos teve a percepção de que tacteara o mundo dos invisíveis, que lhes ouvira as vozes consoladoras; que, desde então, não se consideraria mais isolado; voltara-se inteiramente para o Altíssimo, que começara a amar sem ressentimentos, com ternura infinita, admiração intraduzível, como o fazia o querido enfermo, percebendo que, pela vez primeira, houve a efusão da Fé e da Esperança em seu âmago... Que é que operara semelhante prodígio? O sofrimento e o amor — os alviões{87} que pulverizam odiosidades, aveludam as asperezas d´alma, dissipam as rebeldias contra o destino, diluem o gelo do cepticismo.
Prosternara-se infortunado, alçara-se um outro ente, que acharia ventura até no próprio martírio.
Compreendeu como podiam sorrir, fitando o azul, os primeiros cristãos, tendo os corpos lacerados pelos açoites, triturados pelas feras, consumidos lentamente pelas chamas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:28 pm

Foi despertado pela voz de Jaques — pois sentia-se aturdido, como se estivesse ainda sob os últimos influxos do enérgico anestésico — a dizer-lhe:
—Senhor doutor, tenho o coração inundado de alentadora esperança:
nossas súplicas vão ser atendidas pelo Criador, segredou-me íntima voz; no entanto, penso ser egoísmo nosso, senhor, o querermos aprisionar na Terra o que só é digno do Céu — o Espírito do amado Sr. d’Aprémont!
Retiraram-se para junto de Yvan, que não deu acordo da chegada de ambos. Parecia estar já em estado de coma. Uma placidez e alvura de neve idealizavam-lhe o semblante. Dir-se-ia a efígie de uma entidade extraplanetária, roubada a um santuário e colocada num leito.
Ao amanhecer, sorriu; depois, reanimando-se, fitou Richard, que, em mutismo cerrado, não cessava de fixar-lhe a vista, e balbuciou debilmente:
— Estranhos fenómenos psíquicos passaram-se comigo nestas últimas horas: pareceu-me que duas correntes magnéticas poderosas disputavam ao mesmo tempo o meu Espírito: uma atraindo-me a este orbe, outra, elevando-o ao Espaço... Muito rogaram, dedicados amigos, ao Pai divino, para a minha permanência no vale de lágrimas!... Pois já não era ocasião de partir?
Duruy, prosternado junto ao enfermo, sem proferir, sequer, um monossílabo, osculou-lhe a fronte quase álgida.
Durante o dia as melhoras do fidalgo acentuaram-se. Richard, Jaques e todos os habitantes d’Aprémont exultaram. Após algumas semanas de penosa e lenta convalescença, pôde ele abandonar a cama.
Sensível mudança operara-se no seu físico: macilento, descarnado, alquebrado, cabelos quase níveos, não era mais o mesmo gentil-homem varonil e airoso que fascinava os corações femininos; mas um suave velhinho, cujo aspecto infundia veneração e piedade a quem o visse. Duruy, também encanecido pelo excesso de tormentos morais que o mortificaram durante a enfermidade de Yvan, só então compreendeu que o amava sem ressentimentos, intensamente: a formosura plástica que, até então, todos admiravam no castelão, causara-lhe sempre um misto de secreta inveja e amargo desgosto, que o supliciava... Desde sua chegada ao solar, ficara como que mesmerizado, entusiasmado por sua inteligência e nobreza de carácter, mas, só depois que soubera da imolação do seu amor, e por sua causa, e que o vira prestes a baixar ao túmulo; depois, decaído do sólio de sua beleza inexcedível, surpreendente, maravilhosa, achara-o mais humano, e, só então, começou a amá-lo sem mágoas, sem queixume, sem reservas, percebendo que, doravante, à afeição que lhe consagrasse seria eterna, esposar-se-iam por todo o sempre os seus Espíritos, libertos do negrume do ódio e das represálias!
Houve, no Espírito de Duruy, uma visível transformação, que o transfigurava, que lhe transparecia no semblante, dando-lhe serenidade, distendendo-lhe os músculos faciais e os supercílios, até então sempre contraídos, atenuando-lhe o aspecto sinistro que o tornava hediondo.
Yvan observou a metamorfose operada em Richard, que, até ali, só lhe chamara senhor, e não amigo qual o fazia agora, e abençoou todos os padecimentos por que passara.
—É a dor o lapidário da alma — pensou radiante — e unicamente o seu cinzel destrói-lhe os vincos, tira-lhe as escabrosidades, adelgaça-a, dá-lhe polimento e facetas que a tornam — diamante divino e vivo que o é — luminosa e resplendente.
Confidenciou ao médico:
—Meu amigo, muito próximo estive da sepultura.
Devo, agora, agradecer ao Ente Supremo o meu sofrer, porque, enquanto estive tombado no leito, inesquecíveis provas de afecto e gratidão me foram patenteadas pelos amigos deste e do mundo espiritual...
Pressinto, porém, que minha vida material está em declínio, começa a descambar o sol da existência terrena, aproxima-se o crepúsculo, que se tornará em alvorada, quando meu débil corpo, em decadência, for encerrado no sepulcro.... É tempo de cuidar das minhas derradeiras resoluções... Temos o cemitério, pouco distante do castelo, em que foram inumados os meus ancestrais, por especial e antiga concessão do governo de nossa pátria.
Tenciono mandar construir ali o meu último abrigo — uma cova singela e anónima, apenas encimada por uma cruz — o símbolo da que trazemos aos ombros, que se curvam ao seu peso, mal o homem atinge meio século — com esta única inscrição:
A nobreza do sangue é pó; a da alma, luz!{88}
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 15, 2023 7:28 pm

Há-de, bem o prevejo, ter uma lápida olorosa — formada de flores orvalhadas de prantos, que, sobre ela, os amigos espargirão — mas, como não desejo nenhum aparato, nenhum vestígio de vaidade no derradeiro albergue de quem, animado pelo Espírito, recusou todas as pompas mundanas, quero, enfim, verificar, com os próprios órgãos visuais, a sua humildade...
—Haveis de consentir — redarguiu Richard — que a minha campa seja aberta ao lado da vossa, e, em tudo, igual àquela em que tencionais ser inumado...
—Sim, meu amigo, porque não consentiria em aceder a esse fraternal desejo?
Unidos pela mesma Cruzada do Bem, unidos no mesmo trato de terra, unidos no Além...
Não é isso que o Omnipotente deseja aos dois revéis e rancorosos rivais? O último Aprémont — rompendo com as tradições e com o orgulho dos seus antepassados — consente que os seus afeiçoados, e não exclusivamente os da sua estirpe, repousem no mesmo rectângulo de pó...
Yvan, apoiado ao braço de Duruy, pôde ir ao Parque pela primeira vez, depois da prolongada enfermidade, por amena manhã de sol. As crianças que frequentavam as aulas matinais, jubilosas com o restabelecimento da saúde do idolatrado benfeitor, como se estivessem previamente avisadas por misterioso radiograma, esperavam-no quais risonhos sílfos ocultos nas frondes em flor e atrás dos caules vetustos das árvores centenárias, trajando roupas leves e claras, levando ao regaço pétalas multicores, que se espargiam à sua passagem e sobre sua fronte argenteada...
—Quanto sois feliz, meu amigo — exclamou tristemente Richard —, tendes o afecto sincero e espontâneo das crianças... que se esquivam de mim!
Yvan, com os olhos nevoados de pranto, alteou a voz, simulando não ter ouvido o que lhe dissera o médico, e falou aos graciosos meninos:
—Obrigado, filhinhos! Obrigado! Deus vos abençoe e proteja! Como, porém, vos esquecestes do bom doutor que, com os seus desvelos, me roubou ao túmulo?
Vinde, queridinhos, quero oscular-vos as lindas cabecinhas, mas, depois, osculai também estas mãos generosas que ainda me amparam: destes-me flores, dai-lhe beijos, muitos beijos!
Um bando álacre de querubins humanos obedeceram-lhe ao carinhoso apelo e Richard, surpreso, quase desfalecendo de emoção, recebeu, naquela existência, a primeira e última carícia infantil, que lhe abalou até as mais recônditas fêveras do coração sedento e sempre baldo de ternuras...

FIM DO LIVRO VI
Ave sem Ninho
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