LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:47 pm

IV
“Quando despertei, supus que houvesse sido vítima de um pesadelo.
Experimentei uma sensação indefinível de placidez ao tomar parte nas fainas marítimas. Um favónio delicioso me refrescava a epiderme. O Sol, qual pérola de fogo, parecia ter emergido das profundidades do Oceano para se engastar na concha sideral, levemente opalina.
Estava à amurada da embarcação, quando se aproximaram do local onde me achava, embuçados em mantos negros, dois indivíduos, um jovem, outro idoso.
Sem fazerem reparo na minha presença, começaram a conversar em tom velado, em língua eslava.
O moço falou, visivelmente contrariado:
—Muito me apoquenta o sucesso da noite finda... Aqueles gritos são comprometedores... Vamos, hoje, ser alvo de indagações curiosas...
— Não estás mais enfadado do que eu, Sacha.. . Somos forçados a declarar que aquela desgraçada sofre das faculdades mentais, que a tratamos carinhosamente, empenhados em lograr melhoras à sua saúde... Causa-me indignação vê-la sempre insubmissa às minhas determinações, não esquecer o sicário que nos infelicitou, pronunciar com carinho o seu nome, o que não faço, para não queimar meus lábios!
A palestra prosseguiu no mesmo tom, por mais de um quarto de hora. Eu estava estarrecido, pois acabara de reconhecer o velho e a sua voz inolvidável.
— Peter- hoff! — ali a poucos passos de mim!!!
Mais convicto fiquei dessa alarmante realidade, quando o ouvi dizer:
— Há muitos anos vivo sob a acção de um ódio virulento, que intoxica todos os segundos de minha existência. Quando me lembro que tive em minha casa aquele facínora, podendo tirar-lhe a vida sem que ninguém o soubesse; calcar-lhe a cabeça qual a de uma víbora peçonhenta, e, no entanto, deixei-o viver em liberdade, frequentar a mesma escola que meu adorado André, para ser, depois, o seu carrasco, sinto-me sublevado contra mim mesmo e contra o próprio Deus — se é que há realmente Deus, que não fulmina os assassinos, deixando-os frustrar a justiça dos pais extremosos!
Pela continuação das confidências, averiguei que estavam de posse da carta que eu escrevera ao abade, envaido-lha sem o seu consentimento, e, por ela, sabiam que Pedro Ivanovitch achava-se como tripulante de uma nave francesa. Descobriram as relações afectivas entre ambos, e, por isso, cobriram-nos de injúrias e impropérios...
A situação aclarou-se, mas eu me sentia indefeso, acovardado, sem ânimo de enfrentar meus cruéis adversários...
Quis retirar-me da presença de tão terríveis indivíduos, mas, faltaram-me forças; tinha a impressão de estar pregado ao solo e à amurada do navio, compelido a ouvir o que me causava tormentos inenarráveis... Sobre todas, uma ideia me vergastava o cérebro — ia rever Sónia Peterhoff, demente! Estava, pois, viva ainda e não me havia esquecido! Amava-me, continuava a ser desditosa por minha causa... Maldição sobre mim! Eu a merecia, para expiar meus crimes, que se agravavam dia a dia!
Sentia-me desvairar ouvindo as confidências dos infames, e, ao mesmo tempo, duas resoluções me vieram à mente — matá-los, ou me suicidar...
Estive meditando longamente, até que me chamaram para desempenhar um mister do meu cargo, e, então, afastei-me dos celerados, cambaleante como um ébrio, sentindo-me trespassado pelos olhares dos dois abutres humanos, investigando em todos os marujos a presa cobiçada...
Eu estava, certo, bem mudado: um decénio de lutas físicas e morais, modificara o meu aspecto por completo — minha fisionomia perdera o encanto juvenil, tomara-se a do homem que moureja ao sol e à chuva, padece sobressaltos e desgostos incessantes, que se vão patenteando nos sulcos da fronte, na expressão do desalento, nos olhos nevoados, nas faces empalidecidas, nos cabelos que branqueiam prematuramente... Minha tez, que era alva, tisnara-se à canícula dos Trópicos. Vendo-me, o próprio abade, se ainda existisse, certamente só me reconheceria com a visão mágica de sua alma lúcida...
Imaginai, como vivi desde então, no Devoir, onde me sentia asfixiar, sem garantia, sem tranquilidade espiritual, sabendo que estavam na minha pista dois lobos sedentos de vingança.. .
— Porque — indagava eu, intimamente — trazem consigo a pobre Sónia?
Onde a querem levar? Urgia saber o mistério que encerrava a sua ida a América.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:48 pm

Dois dias foram decorridos sem que houvesse algum sucesso notável.
Ao entardecer do terceiro dia, depois que deixámos as costas da França, tornei a ficar inquieto. Estava sôfrego para que a noite amortalhasse o Atlântico: receava a luz solar, temendo ser espionado por Peterhoff e seu sequaz.
Parecia-me, naquele crepúsculo, haver olvidado por completo que possuía um lar distante, que era esposo e pai extremoso, para só me ocupar de Sónia Peterhoff...
Amá-la-ia ainda? Não sei dizê-lo, ao certo. A inesperada revelação de que ela me correspondia — o que ignorava, quando a adorava com intensidade — perturbara-me por completo o coração, que sentia enfermo, após tanto sofrer...
Há ocasiões em que nós mesmos nos desconhecemos; nossa individualidade, depois das grandes tempestades morais, torna-se enigmática e indecifrável — parece que um outro ser, estranho ao nosso, apodera-se do nosso organismo, embrenha-se em nossa própria carne, substitui por completo o que éramos, abala e destrói nossas mais puras convicções. É como se houvesse uma hecatombe em nosso íntimo, sucumbindo nela todos os nossos anelos, ilusões, esperanças...
Não era mais, talvez, amor o sentimento que por ela experimentava, mas, um acervo de remorso, de reconhecimento, de comiseração infinita por suas desventuras, de reminiscências da infância e da juventude, o que me dominava naqueles instantes...
Temia vê-la e, no entanto, era um suplício inominável saber que ela estava perto de mim, sem poder falar-lhe, implorar-lhe perdão por tudo quanto lhe fizera padecer, e por tudo que ainda sofria por minha causa...
Desejava vê-la, pois, uma só vez que fosse, mas faltava-me a precisa coragem para notar a máscara de dor que, certamente, havia substituído sua venusina e angelical formosura...
Engolfado em tétricas cogitações, tardei em observar que, de há muito, a noite envolvera o mar num sudário de trevas, para ocultá-lo à fronte da Terra, por algumas horas. Nas proximidades do Equador nunca há treva absoluta, a não ser em noite procelosa: após o crepúsculo, a escuridão invade subitamente a Natureza, mas, pouco depois, surge o zimbório celeste constelado de sóis longínquos e multicores — como que agitando asas ou velas de bergantins luminosos — reflectidos pelas ondas, que começam a bailar docemente ao ritmo de uma orquestra misteriosa, só percebida pelos idealistas...
A embarcação singrava em vagas fosforescentes. Eu e diversos passageiros estávamos alheados à realidade, empolgados pelo espectáculo majestoso que nos oferecia a Criação. Repentinamente, ouvimos gemidos e vozes exaltadas, partindo de um beliche da ala esquerda. Os viajantes ficaram atentos, trocando comentários. Quando maior era a ansiedade geral, surgiram no convés três personagens, dois dos quais todos já conheciam — Peterhoff e o sobrinho — ladeando uma dama esguia, trajada de branco, cingida em alva mantilha, com o andar trôpego — o dos enfermos incuráveis, para os quais vai faltando o equilíbrio, a força centrípeta, ao passo que aumenta a da atracção do Ilimitado...
Ao deparar com aquele espectro de níveas roupagens, quase perdi os sentidos; tive, logo após, ímpetos de soltar um rugido de aflição que me oprimia o peito... Fui recuando até encontrar apoio na amurada, com uma das mãos crispadas sobre o lado esquerdo do tórax...
Consumara-se uma das provas mais atrozes desta existência, fértil em lances dramáticos — a presença da adorada vítima de um dos meus crimes, tendo no rosto, já sepulcral, os vestígios de inauditas agonias!
Deus! como a vossa justiça se exerce às ocultas, mas eficazmente! Como o réprobo padece, excruciantemente, as consequências de suas iniquidades, resgatando, às vezes, num só instante de dor superlativa e incomensurável, séculos talvez de execrandos delitos!
Deixai-me tomar fôlego, senhor: sofro, ainda, ao rememorar o que ora vos relato... Cuido que, naquela hora de angústia, uma esponja embebida na lixívia de lágrimas acerbas, empunhada por um dos executores das Leis Divinas, passou-me n´alma, desvanecendo dela uma das suas máculas mais denegridas...
Se eu estivesse com as carnes a calcinarem-se numa. pira indiana, ou com o crânio dilacerado nas fauces de um leopardo, não teria padecido tanto como deparando com o avantesma vivo de Sónia Peterhoff!
Assassinara, ao mesmo tempo, os dois irmãos: André, fisicamente; Sónia, mentalmente. Compreendi bem, então, essa pungente verdade: Peterhoff tinha razão em me odiar: despovoei e desgracei o seu lar!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:48 pm

Sónia, tão formosa e meiga, em plena juventude, transformara-se em fantasma visível para todos, naquela noite radiosa que eu desejaria fosse de densa caligem, para que não na visse tal como se achava então: esquelética, envolta num como sudário de neve, o rosto encoberto, os olhos móveis e ardentes; era, em suma, a personificação da Dor em seu auge, a estátua do desalento mais intenso que, até hoje, já observei...
Senhor, mais que sempre, julguei-me maldito pelo Todo-Poderoso... Para mim, a pena última, ou a de galé perpétua, não seria suficiente à expiação do meu crime: ser o causador da desventura de quase toda a família Peterhoff!
Vendo a pobre louca, quase todos os viajantes estavam compungidos — só eu não podia chorar naqueles momentos atrozes, porque me parecia estar sendo devastado por um incêndio interior, que consumia todas as gotas de pranto que deveriam subir do coração aos olhos, e que eu desejava fossem realmente comburentes, para me calcinar o corpo, tornando-o em pó, que seria abatido no convés e levado pelos euros marítimos, até ao abismo de Tétis ou do Espaço... e assim, não pudesse mais enxergar a fúnebre aparição que, no entanto, se me infiltrava nas pupilas, na mente, no próprio Espírito, ao ponto de supor que estivesse sendo fotografada em meu cérebro, para não poder esquecê-la jamais! Vê-la-ia até de pálpebras cerradas!
Achava-me tolhido, mãos contraídas como garras, bendizendo a penumbra junto à chaminé, na qual me refugiava para esconder minha perturbação, meus olhos dilatados, imóveis, fixos no vulto branco que deslizava entre dois algozes, que, por fim, deixaram-na em liberdade.
Súbito, estremeci, tocado como por uma descarga eléctrica, com a celeridade de um corisco; alguém, que outro não era senão Sónia, estava ao pé de mim. Sentia-lhe o hálito em pequeninas gotas...
Todos estavam mudos...
Apavorado, dei alguns passos laterais, fitando a desditosa que me seguia, fixando-me também com insistência, como se me houvesse reconhecido por uma intuição sobrenatural, para se vingar de todos os martírios que lhe causara...
Quando maior era a minha tortura, chamou-me à realidade a voz retumbante de Peterhoff, que, em péssimo francês, disse, tentando segurar a filha pelas vestes:
—É louca, senhores; no intuito de melhorar seu deplorável estado, experimentando diversos climas, empreendemos esta longa viagem da Rússia à Norte-América, a fim de que, vendo ela novas terras e outros céus, tratada por abalizados médicos, talvez se consiga voltem a saúde e o senso que lhe faltam há dez anos, esquecendo, para sempre, o passado...
—Pobre moça! — exclamou um clérigo normando, já idoso.
Ela se afastou de mim e aproximou-se dele. Sem ter compreendido o que dissera o clérigo, emitiu em língua eslava ali desconhecida, excepto por mim e seus parentes:
— Conheceste meu irmão? Ai! como era cruel para com o desventurado Pedro! Ó Pedro, porque fizeste nossa desgraça, tirando-lhe a vida?
Levou uma das extremidades da mantilha aos olhos, para enxugar lágrimas; depois, andou precipitadamente e, desprendendo-se dos braços paternos que a retinham, parou outra vez à minha frente. Por momentos, seu olhar ardente, dardejando um fulgor fantástico, cruzou com o meu...
Retrocedi novamente, apavorado, não podendo suportar o brilho daqueles olhos, que me causticava o coração, como se fora de ferro candente...
Tive ímpetos de me ajoelhar, implorar-lhe perdão e após confessar publicamente as minhas faltas, entregar-me à vindicta do feroz Peterhoff...
Não pude, porém, efectuar meu intento: dominava-me uma potência insuperável, que me vedava expressar em linguagem articulada os pensamentos; dir-se-ia que uma repentina paralisia me imobilizara a língua e todo o sistema nervoso, sentindo, no entanto, apuradas, todas as faculdades psíquicas...
Seu pai advertiu-me, em alta voz, para que todos o ouvissem:
— Ela é inconsciente, senhor, mas não ofende a ninguém ... Está com as faculdades mentais anarquizadas desde que presenciou uma cena horrível: o assassinato do único e idolatrado irmão, por um bandido... Só o que faz, é lastimar-se...
O padre tentava prender a atenção da alienada, e, não sabendo expressar-se em russo, rogou a Peterhoff interpretasse o que almejava falar-lhe, assim concebido:
—Minha filha, todos aqui são teus amigos e não te querem mal...
Diz-me: que é que sofres?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:48 pm

Peterhoff usou de uma revoltante felonia: depois de interrogar os circunstantes se conheciam o seu idioma e receber resposta negativa, em vez de transmitir à filha o que o sacerdote dissera, repreendeu-a, ordenando-lhe que calasse. Compreendi a falsidade de que usava o infame, quis pôr em evidência a sua hipocrisia, mas bruscamente lembrei-me de Ketty e nossa filhinha e, mais uma vez, dominei-me, estuante de indignação...
Ela porém, por uma percepção lúcida, duvidou da asserção do pai, que, para etemorizá-la, dissera seria espancada pelo clérigo, se desse um só grito que fosse...
Abeirou-se dele, dizendo, com voz lamentosa:
—Pois não tendes piedade de mim, vós que sois irmão do bondoso padre Francisco? Que mal vos fiz? Dizei-me! Conheceste o abade? Era o único amigo do Pedro...
Exaltou-se subitamente, não logrando resposta compreensível.
Peterhoff perdeu a paciência e bramiu ameaçador:
—Cala-te, cala-te, maluca! Todos te detestam!
Compreendendo, porém, que todos o olharam repreensivos — pois a entonação da voz patenteava estar profundamente encolerizado — mudou de táctica, falando-lhe em surdina:
—Não sejas idiota, ninguém, aqui, conhece as pessoas da aldeia de!...
Somente eu, para meu tormento, compreendia o que falava o desventurado pai!
Sónia calou-se, esteve alguns instantes queda, circunvagando um olhar repleto de desconfiança por todos que a rodeavam; depois, estugando o passo, num movimento rápido e imprevisto, quis atirar-se ao mar...
Peterhoff, compreendendo-lhe o trágico intuito, susteve-a pelas vestes, fazendo em farrapos a mantilha que lhe envolvia a cabeça, e, então, surgiram-lhe os cabelos cortados até o occiput, completamente encanecidos...
Antes dos trinta anos de idade, Sónia, como a infortunada Maria Antonieta, ficara com os cabelos prematuramente brancos; parecia ter mais meio século de existência...
—Vamos, maldita — bradou novamente Peterhoff, esquecendo-se de que se achava na presença de indivíduos civilizados, como se se dirigisse a míseros mujiques — estás, hoje, muito inconveniente!
Ele assim falou, premendo-lhe brutalmente um dos braços, num assomo de cólera irreprimível. Sónia começou a gritar lancinantemente, e, pondo as mãos em rogativa, murmurou, com uma voz em que havia terror e pranto:
—Não me espanqueis mais! Vou ficar quieta... muito quieta!
Ah! Senhor... Ouvira, enfim, a revelação que previra, dos próprios lábios da infeliz: era seviciada pelo monstro que lhe dera o ser!
Um estremecimento de ódio me abalou todos os nervos. Quis verberar em público o procedimento indigno de Peterhoff, relatando o que surpreendera, pelo diálogo que ouvira, entre pai e filha, mas algo de extraordinário me empolgava, cortava-me o desejo de libertar minha protectora do guante do seu algoz, pois, se desse a conhecer que compreendera a língua eslava, teria de entrar em explicações, suscitaria a desconfiança de quem estava no meu encalço. Seria perder-me para sempre, levar a desonra ao meu próprio lar...
Para salvaguardar o nome de minha família era mister deixasse Sónia consumar seu longo martirológio...
Julgava-me covarde, pusilânime, mas sentia-me subjugado por uma força invencível, para que me conservasse em mudez absoluta, ao passo que me ressoavam no íntimo estas palavras misteriosas:
“— Tu te entregaste à Justiça celestial: és um galé divino! Não te denuncies mais aos tribunais humanos: sofrerás mais, em silêncio, vendo torturada aquela que amas, do que no cárcere ou no patíbulo...
A tua expiação e a de Sónia Peterhoff atingem a meta..
Calei-me, pois, mas a Providência não abandona os desditosos; todos compreenderam a situação da louca e censuraram o procedimento bárbaro do pai, pois ninguém mais duvidou de que fosse espancada...
O arcano aclarou-se: estava desvendada a origem dos gemidos dolorosos que, desde que o paquete zarpara do Havre, os passageiros ouviam quase todas as noites...
Mas, porque a execrava o pai?
Porque ainda não olvidara a Pedro Ivanovitch? Não era racional que a deixasse morrer em sua longínqua pátria? Porque levá-la à América para — no dizer do celerado — ser tratada por médicos famosos?
Qual o empenho em lhe conservar a vida, a que ela própria desejava pôr termo?
Para prolongar o suplício, num requinte de perversidade? Ninguém saberia elucidar o mistério existente entre aqueles dois seres...
Para finalizar a cena que todos presenciaram, compungidos, o primo de Sónia deu-lhe o braço e levou-a, quase de rastros, para o camarote. Peterhoff segui-os.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:49 pm

V
Depois de muitos comentários dos viajantes, o tombadilho ficou ermo, todos foram repousar.
O que se passara diante de mim, as emoções que me haviam feito vibrar todas as fibras mais recônditas, quebrantando-me as forças físicas, aturdiram-me, deixaram-me como que imbecilizado e apático, sem energia precisa para tomar qualquer deliberação judiciosa...
Estive muitas horas a cogitar no que fizesse, mas as ideias estavam obumbradas por compacto nevoeiro, formavam um caos insondável, predominando, porém, o intento de me denunciar, para que se pudesse aclarar a situação de Sónia. Vencido pela fadiga e por uma depressão moral indizível, findo o meu quarto daquela noite, recolhi-me ao beliche, exausto, e contra a minha expectativa adormeci pesadamente e comecei a sonhar: vi, então, com exactidão assombrosa, numa das ruas do Havre mais movimentadas, uma criaturinha loura, de quatro anos presumíveis, mal coberta de farrapos negros, tiritando de frio, estendendo à caridade dos transeuntes a violácea e magra mãozinha, e, ao mesmo tempo, como se os seus pensamentos tivessem sido concretizados, eu avistava, ao longe, aquela para quem ela esmolava... sua mãe, em miserável catre, já com a fisionomia cadavérica. Quis depor um óbolo na sua mãozinha, antes de ir beijar a minha encantadora Sónia, mas, debalde procurei um soldo nas algibeiras, pois não só estavam vazias, como deixavam a mão atravessá-las, como se estivessem com rupturas que as tornassem abismais, insondáveis...
Ao ver-me, a criança estugou o passo.
Penalizado, acompanhei-a, e, então, ao abeirar-me do leito da enferma, notei que era o meu. Quando as vi abraçadas, soluçando, reconheci-as: Sónia e Catarina Doufour, transformadas em espectros, como a irmã de André... devido à penúria em que se achavam, num pardieiro lôbrego e sem pão...
Fiquei terrificado, e, despertando em sobressalto, compreendi que o Omnipotente não me exigia o sacrifício imaginado para se concretizar no dia já prestes a desabrochar no Levante: — entregar-me às autoridades francesas, após relatar quanto sabia a respeito de Sónia Peterhoff, para que pudesse perecer livre do monstro paterno, tranquilamente...
“— Quê! — supunha alguém a segredar-me — será lícito lançares à miséria, à viuvez e à orfandade dois seres válidos e inculpados, para socorrer quem não pertence mais a este mundo senão por limitados dias? Não será, o que pensas efectuar, mais uma iniquidade a se juntar às que perpetraste? Olvidas que não podes mais dispor livremente de tua pessoa? És um calceta confiado à tua própria guarda: foste sentenciado a sepultar no coração a tua dor infinita, para que jamais possas ouvir uma palavra de conforto ou de esperança, proferida por algum ente humano!”
Comecei a gemer, em surdina, proferindo queixumes, chamando pelo abade Francisco, narrando-lhe minha penosa situação, suplicando-lhe um conselho, rogando-lhe protecção...
Repentinamente, aquietei-me, deixei de soluçar e uma calma invencível me empolgou, parecendo que sobre a fronte febril pousaram duas leves mãos tutelares, e, sem estar adormecido, estabeleceu-se entre mim e um amigo imaterial um diálogo secreto, de alma para alma... Seus alvitres não se me fizeram esperar: meu Espírito, exteriorizado do combalido organismo, ouvia um silencioso solilóquio, do qual não perdia um vocábulo, pois todos se me impregnavam na mente.
Confabulámos, assim, longamente; belas exortações jorravam a flux no meu ádito, ordenando-me fosse forte, repelisse o desalento, sofresse em segredo e com resignação meus infortúnios, resgatasse com lágrimas todos os meus delitos impunes pelos códigos humanos, que eu havia burlado em findos avatares.
“— És — disse-me ele — um sentenciado pelo Juiz e Legislador Supremo e não mais pelos tribunais humanos, de que fugiste... Estás sendo justiçado lenta e eficazmente; deves padecer, agora, só, as consequências de tuas culpas, e não é justo sacrifiques duas criaturas insontes{44} — esposa e filha — executando o plano que concebeste. Se fosses unicamente responsável por tua individualidade, sem ter que velar por aqueles entes e protegê-los, praticarias um ato nobilíssimo e meritório denunciando-te para libertar Sónia Peterhoff do jugo de seu algoz; mas, contraíste perante Deus sacros deveres conjugais, tens um nome a zelar — o qual foi sempre impoluto, porque não é o do homicida Fedro Ivanovitch, mas o de um probo marselhês, que o deixou sem desdouros, e é iníquo queiras levar a desonra a teu próprio lar, para emancipar a tua desventurada protectora, que está quase liberta pela Morte e pelo Sempiterno... Teus delitos serão mais produtivamente reparados se te não entregares tardiamente às leis humanas, pois num presídio, murado, em soturna e lôbrega enxovia, inerte e inútil à sociedade, não padecerás tanto como lutando contra a adversidade, livre perante o mundo, mas prisioneiro dos executores do Código divino... Não cogites, agora, para salvaguardar uma de tuas vítimas, de fazer mais duas...”
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:49 pm

Concluiu a voz amiga incitando-me a erguer uma prece ao Criador do Universo, que, sendo a Suma Clemência, não repeliria — qual supusera — as rogativas de um delinquente arrependido, antes as receberia com júbilo paternal... Ditou-me uma imprecação sublime e fervorosa, que eu repetia mentalmente, deixando escoar, pelas pálpebras semicerradas, lágrimas de reconhecimento e balsâmico lenitivo...
Cessou então, de súbito, a influência espiritual; adormeci por momentos e, quando já levantado fui encetar meus misteres, julguei houvesse sonhado o que acabo de vos narrar lealmente; mas, ao passar à frente dum espelho, quase soltei um grito de pavor e surpresa; supus estar nele reflectido um estranho, como se meu corpo houvesse sido substituído por outro durante a noite, tendo vivas e palpitantes todas as suas dores e recordações em um novo cárcere desconhecido .. Meus cabelos estavam transformados, prateados: envelhecera decénios numa só noite de agonia profunda e dantesca! O rosto lívido, macilento; a fronte sulcada — tal a tormenta que se me desencadeara no cérebro em algumas horas de compunção e padecimentos morais indizíveis!
Meus lábios contraíram-se num rictos de amargura ao observar a mutação que se me operara no físico, dizendo comigo mesmo: Deus, a incomparável previdência que cogita de todas as suas obras, corroborando as exortações do abade Franesico, dera-me, durante a noite, uma verdadeira máscara forjada pela Dor, para afivelá-la ao rosto, tornando-me quase irreconhecível e podendo assim escapar à Justiça terrena, mas assinalou a sua posse — como se o fizesse com um ferrete, por meio de indelével estigma — o do sofrimento —, apoderou-se do meu Espírito, aprisionou-o em novo ergástulo, fê-lo em momentos ressarcir muitas faltas desta e de transactas existências, de que me ficaram vagas reminiscências na memória...
Admirei a Justiça divina que me feria fundamente: senhoreando-se da sua presa, livrara-me, contudo, dos calabouços da Terra.. .
Eu poderia, se quisesse, regressar à Rússia: ninguém mais se lembraria, vendo-me, de que ainda vivia o homicida Pedro Ivanovitch... Meu nome e meu organismo tornaram-se os de outro ser: apenas a alma era a mesma, pois só ela, sendo imortal, teria de remir seus crimes... A Dor me libertara de Peterhoff.
Iludira-o, mais uma vez, mas não poderia embair o Eterno. Desvencilhara-me de um abutre, que se cevaria numa vingança contra a matéria — que se dilui em vermes — para ser a presa de uma Águia de Luz, que perscrutara meu Espírito até seus mais ocultos escaninhos, mas poderá alçá-lo ainda aos paramos constelados...
O corpo estava sem grilhões, mas a alma cativara-se em Deus...
Cobri a fronte encanecida com a boina que aqui vedes, e, ao apresentar-me ao comandante para receber as ordens daquele dia, fui observado com espanto:
— Como é isso possível, Pierre — falou-me, cheio de assombro — teres-te assim transformado em poucas horas? Dir-se-ia que padeceste um desses abalos tremendos que podem fulminar um indivíduo! Que te sucedeu Pierre ?
—Estou enfermo — respondi-lhe, baixando o olhar.
—Sim, deves estar seriamente enfermo. Urge consultes o Dr. Arnold e repouses por alguns dias. Estás dispensado de trabalhar até ulterior deliberação.
Vai ao consultório.
Obedeci-lhe dirigindo-me ao mencionado médico de bordo, um digno sexagenário, cujos distintivos morais eram: franqueza e rectidão de carácter.
No instante em que me auscultava o tórax, bateram à porta com precipitação.
Era Peterhoff que, mostrando-se aflito, requeria-lhe os cuidados profissionais para a filha.
—Tranquilizai-vos — disse o Dr. Arnold —, irei ver a doente daqui a alguns segundos.
Peterhoff olhou-me com indiferença e retirou-se apressadamente.
O médico, depois de minucioso exame, entregou-me uma receita, fez diversas prescrições relativas à enfermidade, cuja gravidade não me ocultou.
—Estou cardíaco — disse-lhe com frieza.
—Está agitado o coração, como um oceano proceloso; as sístoles e diástoles acham-se anarquizadas. És inteligente, Pierre; evita emoções violentas!
—Obrigado, doutor, por vosso bondoso interesse.
Alegra-me saber que estou prestes a ser liberto...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:49 pm

—Liberto? De quem és prisioneiro?
—De um pesar que, há muito, me acabrunha e há-de em breve me levar ao túmulo...
—Tentarei realizar a cura, sondando primeiramente a alma. Depois conversaremos. Vou atender ao chamado que o russo me fez.
Segui-o, e, ansioso, detive-me junto ao beliche em que entrou. Ouvi a demente pronunciar meu nome e o de André, em tom doloroso.
Repentinamente, foi aberta a porta na qual assomou o Dr. Arnold. Ao verme, ordenou que fosse ao seu gabinete buscar um estojo que havia esquecido na secretária.
—Volta com presteza e vem auxiliar-me a segurar os braços da enferma.
Seu pai está incapacitado de o fazer, tal o seu estado de agitação e cólera...
Parece que houve uma das cenas desagradáveis, que já presenciámos ...
Há um mistério a desvendar — é o que colijo — na vida desses dois seres, que suponho vítima e algoz...
Cumpri as determinações do médico, quase automaticamente. Quando entrei no beliche, sobraçando um estojo cirúrgico, observei um quadro que novamente me comoveu: Sónia, trajando alvo roupão, ampliado no corpo devido à sua excessiva magreza, recostada a uma espreguiçadeira de lona, agitava os esqueléticos braços seminus, onde se notavam nódoas violáceas. A certa distância, achava-se uma senhora que, depois, soube, era sua governante, oferecendo os seus préstimos ao médico. Era natural de Moscou, mas expressava-se regularmente em francês.
Perguntou-lhe o Dr. Arnold porque a doente se mostrava apavorada. Ela fixou, temerosa, Peterhoff e formulou resposta evasiva. O doutor percebeu ter-se passado algo de anormal e, como era sagaz e inteligente, resolveu proceder com prudência e táctica.
—Pierre — impôs ele —, segura-lhe o braço esquerdo. Mlle. Stephanie, fazei o mesmo ao direito.
Trémulo, aproximei-me de Sónia e, ao sentir o contacto do seu braço lívido e descarnado, fui tomado de ligeiro delíquio, que me fez cambalear e cair-lhe aos pés... Ela não cessava de gritar e relancear olhares desvairados pelos circunstantes.
O doutor amparou-me, exclamando:
—Esqueci-me de que também te achas enfermo, Pierre!
Fez-me aspirar sais e sorver um copo d’água...
Achei-me em condições de auxiliá-lo no que desejava.
Intempestivamente, Peterhoff interrogou-me, penetrando-me com o seu olhar de falcão:
— Como te chamas? Já estiveste na Rússia?
Foi o médico quem lhe respondeu com ironia:
— Causa-me admiração fazerdes pesquisas desnecessárias agora, não vos mostrando apreensivo pelo estado melindroso de vossa filha... que se encontra no limite da existência!
Ele enrubesceu mais, tornou-se quase apopléctico e disse:
—Ignorais porque lhe faço essas perguntas, senhor! Sou um pai ferido no íntimo do coração... Procuro, há muito, o assassino de meu filho adorado, sei que ele está refugiado num navio francês e, como este marujo se chama — Pierre — recordou-me o nome do bandido... Pedro Ivanovitch! Anseio por encontrá-lo para fazer justiça por minhas próprias mãos!
—Esquecei-vos, senhor, de que vos achais no transatlântico de uma nação livre e não em vossos domínios. Estais equivocado. Este marinheiro é de modelar procedimento e é marselhês. Deixai-o em paz. A hora é imprópria para polémicas. Confiai-me vossa filha por alguns minutos e retirai-vos, até que termine meus serviços profissionais. Depois, irei ter convosco e prestar-vos-ei a máxima atenção...
Peterhoff retirou-se arrebatadamente, encolerizado ao extremo, tendo antes olhado significativamente para a governante, como a lhe transmitir secreta ordem, que só ela compreendeu...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:50 pm

VI
Todos se sentiram aliviados com a retirada do repulsivo Peterhoff e do sobrinho.
Roguei ao médico humildemente:
—Deixai-me ficar, doutor: já estou reanimado...
—É uma imprudência que cometes, mas, consinto fiques, porque necessito da tua presença.
Voltando-se para a aia, inquiriu:
—Porque Mlle. Sónia está assim agitada?
—Imagina que todos a detestam...
—E quem lhe incutiu no cérebro essa ideia maldosa?
—Perdoai-me, doutor, não vos posso relatar o que se passa com esta infeliz...
—Não é preciso que me digais: compreendo que a maltrataram cruelmente! Se não sois cúmplice dos que a mortificam, transmiti-lhe este pensamento: “estais perto de amigos, que se compadecem de nossos sofrimentos!”
Estefânia foi leal na interpretação das palavras do médico.
A fisionomia de Sónia tornou-se serena, deixou de pervagar o olhar receoso pelos que a cercavam; brusca tristeza transpareceu-lhe no rosto alabastrino, dando-lhe uma aparência de mártir santificada, cuja expressão de dor comove e edifica, forçando o crente a ficar genuflexo diante do altar em que se acha, ao mesmo tempo que murmurou uma prece veemente, que transpõe os paramos azulados...
Os olhos não tinham mais a mobilidade e o brilho dos alucinados, mas o fulgor de lágrimas que os tornavam resplandecentes quase...
—Como devia ter sido bela esta desventurada! — exclamou o médico impressionado pela metamorfose que se operara, desde que se convenceu serem amistosos os intuitos dos que a cercavam. Voluntariamente, apresentou o braço para a incisão, que o médico desejava fazer. Ao observá-lo, porém, o doutor mostrou-se indignado:
—Vejam quantas equimoses provenientes de sevícias! — disse ele. Não posso fazer sangrar um braço quase putrefacto! Perversidade inqualificável!
A aia empalideceu, murmurando confusa:
—Às vezes, doutor, é mister empregar-se alguma violência para segurá-la, a fim de que não se precipite das janelas ao solo, porque tem a mania do suicídio...
—Confessais, então, que a torturais fisicamente?
—Eu? Deus me fulmine se pratiquei tal crime! Tenho tanto dó da pobre louca... É o pai quem a segura ...
—Espanca-a, certamente, e é por isso que a sua presença lhe causa indescritível pavor...
Vou receitar um sedativo para que ela adormeça; ficarei vigilante até desembarcarmos em Nova York, onde talvez leve ao conhecimento das autoridades o procedimento inqualificável desse pai desnaturado...
Sónia estava quase adormecida e, contemplando-a em silêncio, eu evocava o passado, a nossa infância, respirando o mesmo ar, sentindo um pelo outro estreita coesão de almas que se adoravam em segredo... Não pude conter o pranto e meu anelo era, ajoelhado a seus pés, suplicar-lhe perdão, protestando que nunca deixara de a idolatrar...
Foi o médico quem me chamou à realidade, dizendo-me em inglês:
—Quanto desejo interrogar directamente a enferma! Parece-me que está em momento de perfeita lucidez...
—Transmiti vossos pensamentos à aia, para que esta seja a intérprete do que almejais dizer-lhe.
—Tenho receio de ser ludibriado. Prefiro interrogar a governante.
Voltando-se para Mlle. Estefânia, perguntou-lhe:
—Porque o pai e o primo de Mlle. Sónia a acompanham sempre, quando esse encargo vos compete?
—É que ela se refere a fatos íntimos e eles temem alguma indiscrição...
—Receiam divulgue algum plano criminoso, não é assim?
A aia calou-se, cabisbaixa.
—Pois bem — tornou o médico, resolvido a cumprir o que prometera —, se não quiserdes que vos denuncie como conivente dos dois celerados, velai por ela solicitamente!
—Eu só aguardo chegarmos a Nova York para lhes apresentar minhas despedidas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:50 pm

O Dr. Arnold acreditou na sua sinceridade e disse-lhe:
—Não vos comprometerei, se quiserdes prestar-me alguns esclarecimentos e transmitir à louca algumas ideias minhas.
—Do melhor agrado, senhor.
—Dizei-lhe que estamos aqui para defendê-la e não consentiremos, jamais, que lhe magoem os braços.
Ela reproduziu lealmente o que o médico ditara. Sónia descerrou as pálpebras, fitou-o serenamente, falando com tristeza:
—Quanto tenho sofrido, quanto, desde que André morreu! Porque a Morte demora tanto a me levar? Sois médico? Dai-me um veneno para terminar meu suplício!
—Porque desejais tanto a morte? — redarguiu ele, dialogando com a enferma, por intermédio de Estefânia.
—Pois não é verdade que Pedro já não existe? — disse ela lacrimosa.
O Dr. Arnold perguntou directamente à aia:
—Porque lhe fizeram crer que não vive mais quem ela amava? Por crueldade, exclusivamente?
—Não, doutor, para que resolva esposar o primo que a acompanha...
—Que dizeis? Pois esta infeliz tuberculosa e alienada ainda tem pretendentes à sua mão?
—Vou falar-vos a verdade, doutor, mas — pelo amor de Deus! — não me comprometais! Eles são capazes de me assassinar...
—Não sou delator de inocentes! Saberei ser discreto e proteger-vos, tanto quanto a Mlle. Sónia, que fica sob a minha guarda.
—É que ela é afilhada de opulento banqueiro, nosso patrício, que lhe legou avultada quantia, para lhe ser entregue Cinicamente após o consórcio, pois julgo se ter ele inimizado com o Sr. Peterhoff. Ela ignora essa disposição testamentária do padrinho, mas, apesar do desequilíbrio de suas faculdades mentais, persiste em se conservar solteira e fiel a quem ama... O pai e o primo levam-na à América a fim de que façam constar que lá recobrou a razão, e voluntariamente esposou o Sr. Alexandre, para que este e seu cúmplice entrem na posse da considerável fortuna... Eis a origem da desarmonia entre pai e filha...
Eu devia estar lívido ao ouvir o que Estefânia revelara...
—Para não vos comprometer — tornou o médico —, pois estou convicto de que falastes a verdade, não tomo as providências que o caso requer. Velai, porém, por esta infeliz e avisai-me algo de anormal que suceda. Estarei vigilante e tudo farei para melhorar a situação.
O médico, vendo Sónia tranquila, retirou-se. Acompanhei-o quase automaticamente.
Meu tormento íntimo era indefinível.
Encontramos os parentes de Sónia, aparentando intenso receio por sua saúde precária, mas percebemos que o que temiam era termos descoberto seus planos sinistros.
—Como deixastes a pobrezinha, doutor? — disse Peterhoff, hipocritamente, acercando-se do médico.
—Acha-se calma, quase adormecida.
—Não lhe deste a sangria?
—Não.
—Porquê? — interrogou, acovardando-se, o impiedoso pai.
—Porque a debilidade é extrema e, sobretudo, porque os braços estão repletos de equimoses...
Depois de uma pausa, para observá-los e vendo-os empalidecer, prosseguiu intencionalmente:
—Já preveni a governante que evite, a todo o transe, magoá-la, pois de outro modo eu a responsabilizarei por qualquer ato de brutal coacção...
Peterhoff, desde as primeiras palavras do médico, perdeu a cor. Disse, depois, fingindo não haver atinado que a ameaça era a ele dirigida, e não à aia, para atenuar culpabilidade, com estudada entonação de tristeza:
—Ah! doutor, não calculais quanto trabalho e quanta inquietação nos tem causado a desventurada demente!
—Porque não a deixastes morrer em vossa pátria e estais levando um cadáver para a América?
—Compreendeis, doutor, se sois pai, quanto me aflige vê-la sofrer: não tenho mais esposa nem filho — e é a minha única esperança na vida! Quero, pois, mostrá-la às sumidades da União Americana, a fim de que a submetam a um tratamento rigoroso...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 11, 2023 7:52 pm

—Despertastes tarde... Perdido trabalho o vosso, pois além de louca, vossa filha se acha com afecção bacilar, quase no último período... O que deveis fazer é interná-la num sanatório e eu me encarrego de vos indicar um que é modelar no género...
Os cúmplices se entreolharam significativamente: Compreendemo-los:
queriam dizer um ao outro:
—E são, assim, baldados todos os nossos esforços para lograrmos alcançar um tesouro que Sónia insanamente rejeita?
O médico prosseguiu, com energia, de modo a que eles percebessem a resolução inabalável:
—Vou tomar o máximo cuidado para com a vossa infortunada filha e tudo farei para lhe melhorar a saúde fortemente abalada! Desejo medicá-la convenientemente e tê-la sob minha responsabilidade.
—Obrigado! Obrigado, doutor! — falou Peterhoff com fementido{45} reconhecimento.
Quis apertar a mão do médico, mas este que sabia ser a antevisão do provento pecuniário, e não o amor paterno que o compelia a fazê-lo, cruzou os braços e disse com altivez:
—Nada me agradeçais antes do serviço realizado!
—Dar-vos-ei uma fortuna se conseguirdes a cura de Sónia!
—Obrigado! Vou iniciar, hoje, o seu tratamento; mas não quero remuneração alguma; a pobre enferma inspira-me compaixão e interesse paternal!
Foi assim que o Dr. Amold começou a velar por Sónia Peterhoff e evitou tocar a mão do seu genitor, que lhe causava asco.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:26 pm

VII
“Decorreram alguns dias, sobre o que acabo de vos expor, sem que houvesse a bordo do Devoir qualquer sucesso digno de registro.
Já nos avizinhávamos das costas da América do Norte quando uma tarde, imerso em meditação, num momento de lazer, vi surgir no tombadilho do vapor a aia de Sónia, amparando-a com um dos braços vigorosos e se encaminhando ambas para o local em que me achava. Desde a intervenção do médico, sempre atento, a enferma melhorara senão física, ao menos moralmente. Estava extremamente emagrecida, com a palidez característica dos que padecem do cérebro ou dos pulmões, e, de vez em quando, olhava para trás, temendo, certo, a presença de um dos algozes. A governante fê-la sentar-se numa chaise-longue e falava-lhe de diversos assuntos para distraí-la; no entanto, ela se conservava em silêncio, divagando o olhar pelo céu ou pelo mar. Subitamente, seu olhar cruzou com o meu — talvez atraído pelo ímã secreto das almas amantes, que os faz reconhecerem-se através das vestes carnais — fitou-me e sorriu.
Aproximei-me, fascinado. Enternecido, interrogue! Estefânia Andrelowna:
—Como passa Mlle. Sónia?
—Mais calma, compreendendo que há quem a proteja e se desvele por ela; mas tem tido muita dispneia... É por isso que a trouxe a respirar este ar puro e livre...
—Permiti, senhora, que lhe faça uma pergunta?
—Sim.
—Sónia continuava a observar-me e inquiriu à aia:
—Quem é ? Parece-me que já ouvi esta voz...
—Um marinheiro enfermo. Não o conheceis. É um piedoso francês.
—Que deseja ele?
—Saber como estais passando de saúde.
Ela sorriu com doçura — o sorriso da outra Sónia, a que eu conhecera em nossa pátria, idealmente bela — e murmurou:
—Quase boa...
E apontou o céu azul, com o índex muito branco e descarnado.
Compreendia-a, mal contendo os soluços. Para afastar a governante, falei-lhe:
—A viração está fresca em demasia: ide buscar a mantilha de lã de Mlle.
Sónia, eu ficarei velando por ela até ao vosso regresso.
Estefânia achou razoável o alvitre.
Apressadamente foi buscar um agasalho para envolver a ama, fazendo-me recomendações a seu respeito.
Ficámos quase isolados. Apenas alguns viajantes, que temiam a moléstia de Sónia, nos fitavam de longe.
Bruscamente disse-lhe em língua eslava:
—É verdade que amáveis muito a Pedro Ivanovitch?
—Como o sabeis? Se não sois um traidor, um comparsa deles, falai-me de Pedro, se sabeis alguma coisa!... Mas se eles aparecerem, calai-vos! Prometeram bater-me se pronunciasse mais o seu nome...
—Não trairei o vosso segredo, juro-vos, senhora! Disseram-vos que Pedro morreu?
—Sim, na cadeia...
—Ele morreu, sim, mas não no cárcere. Conheci-o. Trabalhámos juntos, no Havre. Era meu companheiro inseparável e muitas vezes o ouvi falar a vosso respeito e chorar por vossa causa. Amava-vos muito, senhora! Ele me encarregou de vos dizer, já na agonia, que, se fosse algum dia à Rússia, vos pedisse perdão em seu nome, por tudo quanto vos tem feito sofrer... Foi Deus quem me fez encontrar-vos. Dizei-me, em nome do Criador, se o perdoais...
Olhava-a, intensamente comovido. Ela me fitou surpresa, interrogando:
—Eras, então, amigo de Pedro? Não me estás iludindo?
—Juro-vos que estou falando a verdade! Dizei-me, por Deus, se perdoais de coração o crime de Pedro!
—Ele não foi culpado do que se passou... Era bom e honesto. Nunca o julguei criminoso, mas uma vítima como eu mesma, de criaturas desumanas.
Mas porque falas como Pedro? Tens a sua voz.. .
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:27 pm

Fitei-a, estupefacto; suas palavras não eram as de uma alienada — eram as da vítima da tirania dos Peterhoff... Quem proferia aquelas expressões revelava critério e pleno conhecimento dos factos passados e presentes...
Estaria Sónia num de seus momentos de maior lucidez? Seria possível ainda ser curada pelo Dr. Arnold, se a arrancassem do jugo de seus cérberos?
Ai! não era possível me enganar a respeito: estava duplamente sentenciada à morte; espreitavam-na, ao mesmo tempo, dois verdugos — a loucura, que apenas lhe dava momentâneas tréguas, e a tuberculose...
Estava, pois, Sónia, quase a esfacelar para sempre as algemas paternas. A morte, enviada por Deus, seria a sua redentora.
Com os olhos semicerrados ela me dizia, como se monologasse em sonhos:
—Onde já ouvi tua voz? Parece-me que a ouvi outrora... É igual à de Pedro...
Antes que pudesse dizer-lhe algumas palavras consoladoras, vi-a abrir desmesuradamente os olhos, seu semblante tomar uma expressão de pavor, ao mesmo tempo que um tremor convulsivo lhe agitava os membros: acabava de ver surgir o pai e o primo, visivelmente contrariados...
Estavam em companhia de Estefânia, que os seguiu cabisbaixa, com a fisionomia entristecida, sobraçando longa mantilha escura, com a qual envolveu a enferma.
Os dois coniventes me fitaram suspeitosos e um deles, Peterhoff, teve um olhar terrível para mim e para a filha:
Falou, depois, ao companheiro, em idioma patrício:
—Este marinheiro começa a incomodar-me... Parece que tenta descobrir alguma coisa, por conta própria ou do Dr. Arnold, de quem tenho sérias desconfianças, e, se o conseguir, sei o que tenho a fazer...
O moço interveio, para tranquilizá-lo:
—Tenho bastante vigor e ele parece estar doente...
—E se ele nos estivesse compreendendo?
—O médico disse-nos que é francês.. .
—E se estivesse representando uma farsa? Não sei definir o que sinto quando o vejo!... Suponho estar na presença do execrando assassino de André...
Sónia olhava-os com angústia.
Ele, embora de cenho contraído, quis mostrar-se solícito para com a filha, perante os passageiros ou para predispô-la a lhe obedecer às injunções e, por isso, falou com entonação carinhosa, para que todos o compreendessem:
—Estás melhor, hoje, minha filha?
Ela se conservou muda e apenas fez um leve movimento afirmativo com a cabeça.
Peterhoff aproximou-se. Era já outra a expressão fisionómica.
Disse-lhe rapidamente, fixando-me o olhar, com a inflexão de voz completamente diversa da que usara momentos antes, cheia de aspereza e desafio:
—Estavas a conversar com alguém ?
O mesmo silêncio da enferma.
—Porque vives a me contrariar, desgraçada?
Uma agitação a sacudiu toda, soltou um grito como se houvesse sido apunhalada, e falou:
—Deixai-me! Estava tão bem aqui!
Eles ficaram lívidos e ferozes, Peterhoff ameaçou-a, cerrando os dentes:
—Se gritares mais, nós te levaremos à força, daqui para o camarote, onde te prenderemos qual fera, até...
Ia prosseguir, proferindo uma palavra cruel, quando o Dr. Arnold, que os seguira, disse ao desnaturado pai:
—Senhor, esta infeliz piora, quando a contrariam... Assim, serão baldados meus esforços para curá-la. Porque não a deixais apenas com a aia?
—Acaso pensais que vivemos a atormentá-la, doutor? — interrogou Peterhoff com arrogância.
—Há vestígios nos seus braços das violências que lhe fazem; há contusões pelo corpo que atestam um crime. Quereis levar-me ao extremo de fazer uma denúncia à polícia?
Ambos ficaram pálidos de gesso.
Peterhoff perdeu de todo a calma; esqueceu-se de que o médico prometera esforçar-se para melhorar o estado da filha.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:27 pm

Mostrou-se, sem disfarces, o cruel déspota que eu bem conhecia:
—Sabeis com quem estais falando, ousado doutor?
O médico apenas sorriu e soergueu os ombros.
O pai de Sónia fitou-o com rancor:
—Sou um fidalgo russo e, se estivésseis no meu país, dar-vos-ia a resposta condigna ao que dissestes!
—Felizmente estamos a bordo de um navio francês, e, tanto eu como o senhor, temos de respeitar as leis de uma nação em que impera a justiça.
Defenderei, baseado nos códigos franceses e nos deveres de humanidade, a infeliz que é vossa filha! Não é bastante o que já lhe tendes feito sofrer?
—Como o sabeis? — rugiu.
—É mister não ter nenhum vislumbre de inteligência — tornou serenamente Arnold, apontando a fronte ampla — para deixar de compreender que vossa filha tem sido torturada física e moralmente por inquisidores implacáveis, por motivo que se ignora...
—Se assim fosse, estaríamos exercendo uma íntegra justiça, pois esta maluca que estais vendo aqui, sendo de estirpe nobre, se enamorara de um infame mujique que assassinou meu único e adorado filho!
A exasperação em que se achava Peterhoff fê-lo divulgar, sem o querer, um segredo que, até então, guardara avaramente.
—Não desejo entrar nos meandros da vossa vida privada, senhor; o que vos posso afirmar, porém, o que me diz a consciência clamorosamente, revoltando-a, é que ali jaz quase um cadáver, e acho humanitário não vos vingueis num cadáver!
Será possível que o vosso coração de pai não se comova com a desdita desta indefesa louca e tuberculosa, ou que não possais aguardar, sem impaciência, o seu próximo fim, pois que a morte vai livrar-vos da sua presença importuna?
Estas palavras chamaram à realidade os dois comparsas, que se entreolharam significativamente. Foi ainda Peterhoff quem falou, manifestando mais apreensão por ver frustrados os seus planos ambiciosos, do que zelo paternal:
—Tendes absoluta certeza do que dissestes?
—Absoluta! Sou médico há mais de trinta anos e não me faltam recursos na ciência e na prática profissional para basear minha afirmativa de há pouco.
Deveis interná-la num sanatório, assim que chegardes a Nova York, para que Mlle. Sónia possa morrer tranquila...
As últimas palavras do médico foram intencionais, mas Peterhoff quase não as ouviu, tão preocupado estava com o provável fracasso de seus projectos, e disse ao sobrinho, no seu idioma:
—Fizemos tarde demais esta viagem...
No semblante do moço transpareceu o descontentamento.
Naqueles instantes, compreendendo, melhor que todos, o drama daquelas vidas tenebrosas, toda a intensidade da infâmia que urdiam contra Sónia, a par de todos os segredos dos dois vilões tão próximos de mim que podia roçá-los com os ombros e perdendo-me ao mesmo tempo, ou, então, num supremo esforço, arrojar-me sobre Peterhoff e atirá-lo ao mar, como lastro inútil ao navio, mas pesado à Humanidade... Não o fiz, porque algo de extraordinário me compelia a sofrer ainda mais o meu suplício, em silêncio, no recôndito de minh´alma.
Decorreram mais alguns dias, sem que houvesse algo mais de anormal a bordo do Devoir.
O Dr. Arnold Dudevant cumpriu o prometido relativamente à Sónia, pois esteve sempre alerta, prestou-lhe carinhosas atenções e cuidou-lhe seriamente da saúde.
Aportámos, enfim, em Nova York, e, devido às providências tomadas pelo médico, Sónia foi internada em magnífico sanatório. Vi-a, senhor, pela derradeira vez, apoiada aos braços de Estefânia Andrelowna, com o andar trôpego, até que tomaram um veículo que as conduziria ao lugar designado pelo Dr. Arnold, que as acompanhou. Nesse dia, não pude aproximar-me de Sónia, senão no extremo instante.
Ela me reconheceu, estendeu-me a destra gelada e ainda me parece ouvi-la murmurar com a voz já afónica, quase imperceptível:
—Está quase findo o meu martírio! Adeus... amigo de Pedro!
Tinha os olhos húmidos de lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:28 pm

Uma emoção indizível me constringiu o peito. Cambaleei, prestes a cair ao solo, quando o Dr. Dudevant me amparou, falando-me:
—Nada de imprudências, Pierre! Não sabes que tens o coração em mau estado?
Quis dizer-lhe: — Dizei que o tenho em frangalhos, doutor! — mas perdera a faculdade de articular sequer um vocábulo...
Peterhoff, que nos seguia, aproximou-se do sobrinho e disse-lhe:
—Este marinheiro é suspeito... Cada vez se confirmam mais as minhas suposições. Porque se comove tanto com a presença de Sónia, este maldito cão?
O sobrinho aparteou:
—Dar-se-á o caso de que se tenha enamorado de minha prima?
—Não é possível! Ela está cadavérica, não tem mais nenhum atractivo feminino... Parece-me é que ele já a conhecia... Se não fora a idade que aparecia, diria que é o bandido que ando há muito procurando...
Vê como Sónia manifesta aflição por sua causa! Que lhe teria dito quando se despediram?
—Interrogai a aia.
—Estou suspeitando que essa mulher foi subornada pelo Dr. Arnold, que ainda me pagará com juros a sua ousadia...
Amparado por um companheiro de lides marítimas, regressei ao vapor, quase desfalecido, sentindo a constrição, como de um trismo, flagelar-me dolorosamente o tórax, onde agonizava o coração angustiado...

FIM DO LIVRO II
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:28 pm

Livro III - No Rochedo das Lágrimas

I

Na viagem que acabo de descrever, o Devoir foi além do México, escalando em diversos pontos da América Central, e, de retorno a Nova York, pela primeira vez solicitei permissão ao comandante para me ausentar do navio por algumas horas.
Sabia, por intermédio do Dr. Arnold Dudevant, do paradeiro de Sónia Peterhoff, e fui, cautelosamente, saber notícias suas. Informaram-me, no sanatório em que fora internada, que, há dois dias, rendera a alma ao Criador... Ao ter ciência do infausto sucesso fiquei aturdido, prestes a desmaiar.
Achava-me no saguão do prédio e roguei ao informante que deixasse permanecer alguns momentos no banco em que me achava, supondo jamais dele me pudesse erguer, tal o esmorecimento que me dominava, sentindo os membros paralisados, como que travados por grilhões de gelo...
Estive assim aniquilado por algum tempo. Depois, a custo, desci ao parque em frente ao edifício, e novamente me senti à borda de um canteiro, sorvendo as auras matinais, que eram insuficientes para me saciar os pulmões opressos...
Estive, assim, muito tempo acabrunhado, sem uma lágrima, sentindo, entretanto, que uma aluvião delas estava represada no meu imo.
Quando me dispunha a partir, por um desses acasos que não podem deixar de ser uma intervenção da Providência, deparei com Estefânia Andrelowna, que saía do Sanatório conduzindo uma pequena mala de viagem.
Foi ela quem, reconhecendo-me, prestamente se acercou de mim. Havia sido brutalmente despedida por Peterhoff, que a acusara de estar subornada pelo Dr. Dudevant, sendo ambos causadores do malogro de todos os seus planos.
Narrou-me cenas que eu ignorava a respeito de Sónia, e por fim falou dos seus derradeiros instantes:
“— Estava tranquila, a enferma — disse —, num momento de perfeita lucidez, após uma noite em que pudera adormecer profundamente, quando viu o pai se abeirar do leito e dizer-lhe que, naquele dia, lhe ordenava declarasse ao director do Sanatório que desejava retirar-se voluntariamente e que, uma vez instalada em habitação confortável, que alugara, realizaria o seu consórcio com o primo, pois tudo já estava preparado para isso... Ela, ao ouvi-lo, empalideceu até à lividez e respondeu com indizível amargura:
— Deixai-me morrer, meu pai, sem me torturar mais! Falta tão pouco! Não se casa um cadáver.
Peterhoff exasperou-se logo e exclamou:
—Continuas a ser uma filha ingrata e sem consciência! Nunca me fizeste uma única vontade e só vives para me causar desgostos e transtornos! Não és louca, bem o sei; mas, para não satisfazeres a vontade que nutro de te unir ao Alexandre — um digno e nobre rapaz, que não mereces — tens, hipocritamente, representado esta desprezível farsa de alucinada! És uma filha maldita!
—Piedade, meu pai! Faltam talvez horas para que esta desgraçada, que sou, não vos cause mais nenhum dissabor!
—Não hás-de poder morrer sem aceder ao meu desejo, maldita! — vociferou o carrasco, brandindo os punhos cerrados. Vou retirar-te, à força, do Sanatório, ainda que tenha de te arrastar pelos cabelos!
A infeliz, que se achava alojada num aposento do terceiro andar, não tinha ninguém para defendê-la contra qualquer agressão do monstro, senão eu, que, dominada por indescritível pavor, me sentia presa ao soalho e prestes a desmaiar de angústia... Infelizmente, nenhuma enfermeira o acompanhara, pois o desalmado pai rogara ao director do estabelecimento permissão para ver a enferma, prometendo-lhe demorar-se alguns segundos apenas, pois tinha necessidade de estar a sós com a filha.
Amedrontada ante as ameaças do celerado, Sónia afastou-se do leito, de encontro à parede, tentando esquivar-se ao contacto de suas mãos brutais, tão pálida como um cadáver, com o peito arquejante, estertorando, de olhos esgazeados, e, numa aflição indizível, procurando rasgar as vestes do lado esquerdo, soltou um grito estridente e bradou:
—Pedro! Vamos! Deixa o mar... e segue-me!
Caiu inerte, para trás, batendo com a nuca no espaldar do leito.
Precipitei-me no intuito de ampará-la, mas encontrei-a inteiriçada, boca entreaberta, golfando sangue em jactos incessantes...
Tive, então, forças para correr e bradar socorro. Vieram duas enfermeiras em meu auxílio, mas, abeirando-se do leito de Sónia, compreenderam que havia soado para ela o extremo instante e, efectivamente, em poucos minutos, a desditosa era cadáver...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 3 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:28 pm

Uma das enfermeiras, reparando na fisionomia do Sr. Peterhoff, alterada por sentimentos que a tomavam hedionda, julgou-o excruciado de dor e disse-lhe:
—Resignai-vos, senhor, com a vontade do Criador: vossa filha deixou de sofrer!
O algoz saiu do aposento cambaleante, não sei- se pela ebriez do ódio ou do remorso, e, então, eu e as enfermeiras fomos tratar dos aprestos fúnebres de que carecia Sónia. Enquanto o fazíamos, Sr. Pierre, sentia-me quase ditosa; é que me lembrei de que Deus, a piedade suprema, libertara a criatura angélica de um jugo satânico, e eu não podia lamentar a liberdade concedida àquela mártir, pois ninguém poderá, melhor do que eu, aquilatar-lhe o sofrimento, a longa e inenarrável agonia moral em que vivia...”
Estefânia calou-se, tendo os olhos fulgurantes de lágrimas.
—Não estivestes ainda com o Dr. Dudevant para lhe narrar tudo quanto me acabais de revelar ? — pude falar-lhe, então, sentindo o coração trémulo de dor.
—Não, e não o poderia pôr ao corrente da verdade, porque o monstro que conhecemos ameaçou-me de morte se eu o denunciasse à polícia, e igual sentença pesa sobre o Dr. Arnold, se descobrir a verdade...
—Uma vez sob o guante da polícia americana, que vos poderá fazer o bandido?
—Se for preso, disse-me ele, vingá-lo-á o sobrinho, que se acha em lugar ignorado... Que vale mais ser ele preso e condenado, Sr. Pierre, se a infeliz Sónia já repousa numa cova? Deixemo-lo entregue à Justiça Divina...
—Como eu estou! — murmurei em surdina, baixando a fronte.
—Quer ir comigo ao cemitério ver onde descansa a pobre Sónia, em sua humilde campa?
Ia lá, neste momento, orar por alma daquela mártir... Vou guardar a mala no saguão do Sanatório e logo virei buscá-la.
—Sim, mas iremos de carro, porque mal me posso suster em pé: tenho as pernas entorpecidas...
—Continuais enfermo?
—Não tarda a soar a hora da minha libertação e eu a aguardo com ânsia...
Mas, não falemos de mim. Ides ficar em Nova York ou regressareis à Rússia?
—Já obtive colocação aqui, numa casa pia, e, voluntariamente, jamais voltarei à pátria. Isto é uma terra admirável, Sr. Pierre, de verdadeira independência individual! Pobre estrangeira que sou, gozo de mais regalias aqui do que na Rússia, mesmo que fosse milionária... Sinto-me bem nesta terra.
Estefânia Andrelowna deu-me o seu apoio para que me acomodasse num modesto veículo de praça, o qual, em limitado tempo, transportou-nos à Necrópole onde Sónia fora sepultada. Apeámo-nos e começámos a andar silenciosos, depois das últimas palavras pronunciadas por aquela que assistira ao desfecho do drama pungentíssimo e integrante da minha própria existência.
Apesar de aparentar calma, ela estava sensibilizada, muito pálida, e tinha os olhos ainda marejados de pranto.
Abeirámo-nos de jazigos sumptuosos, que revelam o esplendor dos yankees, e, por fim, de um sepulcro recém-fechado, que por distintivo não tinha, encimando-o, mais que um rectângulo de ferro numerado...
Ajoelhei-me comovido no solo ainda abaulado — pois a terra que o coveiro retira da cavidade, onde encerra os despojos humanos, parece crescer, revolvida, e só depois de alguns dias é abatida, como a vaidade mundana após as decepções terrenas — deixei a cabeça pender ao peito, no qual sentia soluçar, rugir de dor o coração...
Repentinamente, meus pensamentos, como absorvidos por voragem de que me não poderia livrar se tentasse fazê-lo, tomaram novo curso, volvendo ao passado; todos os meus sofrimentos e os de Sónia foram reavivados em cenário íntimo, e, por alguns instantes, estive alheado do local em que me achava prosternado. Minh´alma divagava pela Rússia, em pleno inverno, nas estepes infindas por onde passara como fantasma enlouquecido, na noite do assassínio de André, supondo-me arrastado pelos cabelos, erguido do solo nas garras de um abutre colossal e raivoso, que crocitava clangorosamente de contínuo aos meus ouvidos, qual estrídula gargalhada de sarcasmo...
Não era a primeira vez que meu Espírito fora vergastado por aquele riso diabólico: ele reaparecia sempre nas minhas horas de amargura infinda!
Depois, pouco a pouco, voltou-me a noção da realidade, pude pensar fixamente no presente: Morrera Sónia! Finalizara o seu suplício, ao passo que o meu se tornara mais tenebroso, recrudescera imensamente... Cessara de padecer aquela flagelada: Deus se apiedara dela antes de mim, um précito indigno da sua compaixão...
Era a Justiça Divina que assim se manifestara em toda a sua plenitude.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:28 pm

Devia curvar-me, sem murmurar, ante a sentença exarada pelo Supremo Magistrado do Universo, que eu devia cumprir sem tergiversações, austeramente. Eu, que tornara Sónia desventurada, é que não podia alcançar mais um momento de repouso nesta existência, nem talvez na outra. Nem uma atenuante, sequer, se apresentara para amainar a tormenta que me convulsionava a alma, naqueles momentos de agonia.
Porque desobedecera, outrora, ao santo abade que me educara? Porque não fugira ao abismo quando ainda a tempo de evitar as desditas de que fora causador?
Porque não repelira o egoísmo de me fazer insinuar no coração daquela formosa e meiga criatura, que, por compaixão somente, me defendia da crueldade dos seus?
Porque não trespassara com um punhal o próprio coração, em vez de o fazer ao de André Peterhoff?
—Maldito! Maldito! — eis o vocábulo que, repentinamente, julguei ouvir pronunciado por voz estentórica, como saída de um precipício insondável, do âmago do globo ou dos dédalos infernais, fazendo-me estremecer e eriçar no crânio os cabelos, pelo excesso de pavor, depois de rojar a fronte sobre o túmulo de que me achava à beira e no qual desejara desaparecer para sempre, corroído pelos mesmos vermes que devorassem o corpo amado de Sónia...
—Misericórdia! — murmurei então, com humildade e voz trémula de emoção, supondo que aquelas palavras proviessem do Infinito ou dos abismos das Geenas...
Perdão! Tende piedade de mim, Senhor! Compadecei-vos da minha intérmina desventura!
—A quem implorais perdão! — interrogou aterrorizada a ex-aia de Sónia.
Quase não lhe percebera as palavras. Ficaram elas sem resposta e continuei a prantear e a implorar misericórdia ao Criador e à morta querida, abalado pelos soluços. Já me não atemorizava o saber que alguém me observava, que o meu procedimento poderia suscitar suspeitas na mente de Estefânia: a dor me desvairava! Desapareceram, para mim, as convenções sociais. Morrera Sónia!
Eis tudo o que sabia, não podendo mais dissimular meus sentimentos, até então constringidos pelas conveniências mundanas.
Quando despertei, a boa senhora havia fugido: supôs, certamente, que eu houvesse enlouquecido como Sónia, e, para evitar qualquer depoimento ou inquérito policial, achou prudente abandonar-me...
Não me causou estranheza o seu proceder, pois também julguei que estivesse louco; e que seria lícito, para resgatar in totum o meu delito, ser ferido por pena de talião, sofrer do mesmo mal que aquela cuja luz da razão fora eu o culpado de que se extinguisse, vibrando-lhe no coração sensível o venábulo intoxicado de dores inconsoláveis! Receberia, assim, justa punição: como se a demência de Sónia, errante como um nóctulo sobre o seu sepulcro, se aferrasse à minha mente, desequilibrando suas faculdades até então normais e íntegras...
Somente mais tarde percebi a desaparição de Estefânia. Naqueles momentos, porém, estava empolgado ao mesmo tempo pelo fantástico e por uma pungentíssima realidade. Pertencia a dois mundos: um espiritual, onde minh´alma contemplava todos os episódios transcorridos de minha existência; outro, material, onde se patenteava em plena nudez o meu presente sombrio, que era aquele túmulo, onde estavam encerrados despojos queridos, parecendo-me que meu Espírito subdividido em diversos fragmentos retalhados por uma tesoura vingativa — como as raízes de uma árvore secular — entranhara-se pelo solo em profundidade incomensurável, possuindo, porém, cada uma de suas fracções, sensibilidade extrema e apurada visão, enxergando no seu ataúde o corpo de Sónia, hediondo, verminado, putrefacto...
Compreendeis o meu suplício dantesco, senhor? Ah! dizei que sim, e eu protesto: não, não o compreendeis! Não o pode avaliar um ser cuja vida não foi acidentada quanto a minha per esses lances angustiosos, enlouquecedores, que parecem pertencer à fantasia de poeta ébrio, ou alucinado!
— Perdoai-me, Senhor! — continuava a gemer.
Inopinadamente, serenou a crise que me empolgara por minutos que pareceram séculos, tão torturantes foram...
Através das lágrimas ou da alma enevoada, lobriguei, próximo do local em que me achava, à cabeceira do sepulcro de que beijara a terra ainda revolta, um vulto do qual distingui as feições, para mim inconfundíveis — as do abade Francisco, aureolado de um fulgor de estrelas, que o tornava todo radioso, fazendo com que aquela humilde cova fosse a mais bela da Necrópole, porque as outras possuíam frios arcanjos de mármore e alabastro, cinzelados com arte, mas impassíveis; ao passo que aquela fora aformoseada por uma entidade imaterial mais vivida, cuja contextura de neblina e sol, cuja beleza harmónica e perfeita era inigualável na Terra!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:28 pm

Tinha no semblante nobilíssimo a mesma expressão de outrora, de compaixão e afecto; errava-lhe nos lábios um sorriso bondoso e conservava elevado para a abóbada celeste o braço direito, que parecia asa alvinitente de algum cisne do Paraíso...
Compreendi o que sugeria: uma prece ao Sempiterno... As lágrimas cessaram de correr; o coração pulsou mais compassado, meus lábios se moveram brandamente, proferindo uma imprecação fervorosa, ditada por ele, tão breve e tão profunda, que jamais hei-de olvidá-la:
“— Pai, que estais nos céus, eis ao vosso dispor o mísero Pedro Ivanovitch!
“É tempo, Senhor, de vos prestar estreitas contas de todas as minhas existências eivadas de erros, desvios, iniquidades! Exercei sobre mim a vossa justiça severa, mas remissora, porque anseio por vosso perdão, quero reparar todos os meus crimes, ressarcir todos os meus delitos, alcançar a paz da consciência que tenho vergastada de remorsos e dores inomináveis!”
Já não chorava; estava quase tranquilo; era a alma que, certamente, absorvendo todas as lágrimas, se arrojara ao Firmamento para rogar clemência e perdão ao Eterno. Ao mesmo tempo, para lhe fazer a confissão dos seus delitos, das suas amarguras, entregando-se à sua Justiça recta e infalível...
Pareceu-me, então, que a fúlgida entidade se aproximou, tentando elevar-me do solo; senti nos ombros um contacto de névoas e ouvi, nitidamente, com uma suavidade cariciosa, qual se fora um cicio de brisa dentro do cérebro, estas palavras:
— Está quase finda a tua odisseia, Pedro Ivanovitch! Prepara-te para a derradeira batalha, que será a mais tremenda de todas as de tua existência!
Esforça-te por saíres vencedor desse prélio angustioso, no qual, se triunfares, receberás a redenção divina. Não lamentes a liberdade de Sónia e luta por obter a tua!
Ela reparou uma dolorosa dívida do passado, de quando era uma impiedosa, que fazia enlouquecer de dor e de tortura os seus desventurados vassalos; e agora é ditosa, fruindo a serenidade peculiar aos redimidos pela virtude e pelas árduas provas! Deixa-a em paz, meu filho, parte! Cumpre austeramente os teus deveres, sofre com resignação as tuas penas.
Velo por ti e auxiliar-te-ei, como outrora, com os meus desvelos paternais e as minhas orações!
Estaria sob o domínio de um sonho? Poderia iludir-me com a linguagem do abade?
Quis levantar-me para estreitá-lo nos braços, mas, bruscamente, tudo se volatizou como bruma e achei-me só, como se fora o único habitante da vasta Necrópole...
Fitei, para me certificar da realidade e convencer-me de que não enlouquecera, a terra convolvida, a placa do sepulcro, que, desde então, me ficou pirogravada na mente...
Ergui-me quase oscilante e só naquele momento percebi a ausência de Estefânia Andrelowna... Que terríveis conjecturas teria a minha atitude feito germinar no seu cérebro? Não me importava sabê-lo, naqueles amargurados instantes. Estava indiferente a tudo.
Dir-se-ia que estava sem alma, que esta ficara sepultada com os despojos de Sónia; que me transformara em fantasma de carne, foragido de uma tumba, conservando tangível o invólucro material para sofrer, errante e indestrutível, invulnerável à morte, eternamente, por toda a consumação dos milénios...
Tive a impressão de que, ao transpor o portão do cemitério, seria detido pela polícia yankee; veria Peterhoff, fulo de raiva, entregar-me ao tribunal humano, ou me estrangular.
Caminhava devagar, cabisbaixo, sentindo-me invadido por desânimo invencível...
Fiquei imóvel, observando se alguém estava à minha espera... Passavam transeuntes indiferentes à minha presença, com passos apressados. Ao passar por mim um veículo desocupado, acenei ao condutor para que me levasse ao local desejado — o ancoradouro do Devoir.
Quando desci do carro estive, longo tempo, na praia, fitando o mar, com o pensamento errado, à feição das ondas, parecendo-me estar atraído por uma voragem indómita...
Quando mais tétricas eram as minhas ideias, surgiu-me à frente uma jovem senhora conduzindo pela mão uma louca e encantadora criança, da mesma idade da minha filhinha.
Uma ternura infinita me transbordou d´alma; tive ímpetos de alçar a criança nos braços e oscular-lhe a fronte puríssima, buscando nessas lídimas carícias conforto para o meu dolorido coração... Tive, então, um pensamento que me encorajou a buscar de novo o transatlântico, a volver à luta: era mister viver para a Sónia da Terra, já que a outra fora chamada ao Céu, liberta dos seus verdugos, desfrutando, nalgum remanso de paz, a ventura a que fazem jus os obscuros, crucificados pela crueldade humana!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:29 pm

II
Passaram-se meses...
Eu tinha vivido, senhor, desde o passamento de Sónia Peterhoff, uma existência de inenarrável agonia moral...
Havia regressado à França, envelhecido, quase com aspecto cadavérico, causando minha enfermidade inquietação à cara esposa, que custou a reconhecer-me, quando ingressei em nosso lar. Tinham encanecido, quase completamente, meus belos cabelos castanhos: achava-me taciturno, alquebrado, absorvido por ideias pungentíssimas.
Catarina não queria consentir que voltasse para o Devoir, aconselhou-me a solicitar do comandante uma licença prolongada, mas, o receio de que a minha permanência no Havre, inactivo, nos acarretasse dispêndios extraordinários ou desequilibrasse nossas finanças, fez-me teimar em partir novamente. O navio, quando voltara da América, necessitava de reparos urgentes e, por isso, enquanto os fazia, repousei no lar durante quase um mês, em que vivi tranquilo; e essa serenidade espiritual, de que carecia, foi suficiente para reanimar as forças e dar-me novo alento. Durante esse tempo precioso que permaneci em casa, as carícias e cuidados de dois entes queridos refrigeraram grandemente as minhas mágoas. Parecia-me haver convalescido de grave enfermidade, ou antes, ressuscitado como Lázaro, depois de já ter estado sepulto na terra ou nas trevas...
A hora da partida, porém, foi, para mim, assaz perturbadora.
Abracei-me aos dois entes idolatrados, sem ter ânimo de me apartar deles, augurando lutuosos acontecimentos, e quase esmoreci de intensa emoção, ao tocar os lábios nos dourados cabelos da encantadora Sónia, porque me assaltaram dois pensamentos torturantes: um, que não a veria jamais; outro, que ela era a ressurreição da outra — a que estava sendo carcomida pelos vibriões — em plena infância, com todos os atractivos da saúde e da tenra idade, como um verdadeiro lírio humano, rociado pelo orvalho divino da inocência, da candura e da beleza! E, no entanto, em vez de ficar para adorá-la, para cercá-la de incessantes carinhos, era-me forçoso partir, abandonar a Sónia amada, que o próprio Omnipotente me concedera!
Podeis compreender, pois, quanto me foi doloroso desvencilhar-me de seus nédios e cetinosos bracinhos — que acorrentavam mais meu coração ao seu do que se fossem elos de bronze — mormente, quando a ouvi murmurar, soluçando:
—Fica, meu paizinho, com a tua Soniazinha! Não te vás embora outra vez!
A mamãe vai ficar muito triste e a tua Sónia também...
Beijei-a longamente, sentindo-me sem forças para deixá-la.
Repentinamente, porém, como se fora desperto pelo dever imperioso de trabalhar para que a dilecta criaturinha nada viesse a sofrer, cobrei novo alento, depu-la no regaço da esposa lacrimosa e saí a correr, sem coragem de volver para contemplá-la mais uma vez, e, até longe, ainda ouvia o choro de Sónia, a sua voz entrecortada de soluços, repetindo:
—Volta breve, meu paizinho!
Voltar? Ai! que presságio atroz me assediou naqueles momentos, senhor!
Tive a clara antevisão do futuro que se vai realizando pouco a pouco — jamais verei os dois entes estremecidos, os dois anjos do meu lar desfeito para sempre!
Naqueles dias passados no Havre, mais tempo do que costumava ficar com a família, habituara-me à vida plácida de um ménage ditoso e casto, e, por isso, nunca me fora tão penoso ausentar-me dele. Apertaram-se-me, desse modo, grilhões afectivos fortíssimos, para que se me tornasse mais doloroso o seu dilacerar...
É que, senhor, sou um précito que não fez jus à felicidade humana; sou uma alma em ríspidas provas para resgatar um passado tenebroso, de crimes horripilantes!
Regressei ao Devoir, contristado, mas desejoso de laborar pelos que ficaram carpindo a minha ausência.
Aguardava-me nesse dia uma desagradável surpresa: à tarde, ao atravessar o tombadilho do vapor, em busca do comandante para lhe transmitir um aviso necessário, deparei com Peterhoff e seu sequaz, mais hediondo que nunca, de cenhos contraídos, catadura irada, hipocritamente trajado de luto — luto por sua vítima, luto pela liberdade da desventurada Sónia! Fiquei revoltado, mas soube conter-me, dominando os meus sentimentos.
Vendo-os, tive um angustioso pressentimento e julguei ouvir a mesma voz misteriosa que me soara aos ouvidos, à beira do túmulo de minha infortunada companheira de infância:
“— Prepara-te para a derradeira batalha, que será a mais tremenda de todas as de tua dolorosa existência!”
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:29 pm

Concebi o plano de me esquivar, o mais que me fosse possível, dos olhares inquisitoriais dos temíveis adversários, pois não podia iludir-me quanto às suas intenções a meu respeito: era a vingança o único móvel de sua viagem no mesmo paquete em que se achava Pierre Doufour, em cuja pista andavam como galgos ferozes, farejando o rastro de uma lebre cobiçada!
Também eu me via assaltado pelos mesmos sentimentos funestos de represália contra eles: sempre que os via, de longe, um ódio indómito fazia acelerar as pulsações do enfermo coração, e desejava atirar-me a Peterhoff como um tigre açulado pela fome, fazendo-o pagar caro os tormentos que infligira a Sónia! Sabia, porém, refrear meus impulsos, manifestar-me por meio de um esforço hercúleo contra mim mesmo; mas não podia evitar acerbas evocações: supunha ainda estar vendo, ao lado dos sicários, a pobre enferma tal qual saíra do Devoir — com um traje escuro, que mais lhe realçava o jaspe do rosto, esquelética, amparada por Estefânia, quase arrastada entre alas de viajantes que, penalizados do seu estado, ou temerosos da sua moléstia, se detinham para que pudesse ela andar sem empecilho... A presença dos seus algozes me fazia sofrer imensamente: desejaria vingá-la se me fosse possível, mas, infelizmente, sentia-me de novo pusilânime, impotente para o prélio que teria de sustentar, a fim de triunfar de dois adversários poderosos!
À noite, num intervalo dos meus afazeres, fechado no beliche, ajoelhei-me e fiz longas implorações ao abade Francisco, rogando-lhe me inspirasse como deveria agir naquela aflitiva situação.
Mais plácido depois da prece, pude adormecer algumas horas, havendo tido, porém, sonhos terrificantes, em que me sentia no mar, dilacerado por crustáceos e peixes monstruosos. Amanhecera. O paquete já começara a se afastar das costas ocidentais da França, destino à Inglaterra, pois ia a Dublin receber viajantes, e, só depois, se dirigira à América, escalando ainda em portos espanhóis e lusitanos.
Durante o dia, havia-me esquivado de encontrar os meus terríveis conterrâneos, mas, observei que eles estavam a espionar-me.
Anoiteceu. Não podendo conciliar o sono, abalado por inquietações espirituais, ergui-me do leito em que me atirara para repousar das fadigas diurnas, e fui expor-me às brisas marinhas que eu sorvia com sofreguidão.
A noite estava amena, mas o nevoeiro era compacto. Da abóbada sideral, que certamente estava estrelada, fluía branda claridade que parecia incendiar suavemente a neblina que unia o céu ao oceano — alva e ténue como um véu nupcial.
Mal me debrucei na amurada, distingui dois vultos negros, pouco distantes do local em que me achava, conversando em voz soturna e pronunciando vocábulos ininteligíveis .
Estavam, certamente, a maquinar algum projecto sinistro e, por isso, para o executarem, dialogavam com animação. Não me viram quando cheguei.
Esgueirei-me sutilmente e ocultei-me o mais que pude, por trás de uma das chaminés do navio.
Com a fronte descoberta, deixei que a aragem agitasse meus cabelos, que se revoltaram no crânio enfebrecido como a própria alma que se rebelava em meu íntimo.
Invencível melancolia invadiu-me todo o ser: tinha ímpetos de genuflectir no tombadilho, orar longamente, eternamente, envolto naquela luminosidade astral que jorrava do Espaço, como polvilho de prata lúcida...
Lembrei-me de que ela já devia estar lá, ruflando as níveas asas nos páramos celestiais, e, às vezes, parecia-me estar sendo acariciado por diáfanas plumas que me roçassem sutilmente a fronte... Um bem-estar incomparável, uma calma inigualável me dominaram por completo, deixando perceber que se estabelecera um diálogo de minh´alma com uma outra — a de um bondoso Invisível, incitando-me a ser corajoso, a ter resignação nos momentos de ásperas provas planetárias. Falava-me de uma outra vida, incomparavelmente melhor que a terrena, para os que sofrem, pugnam sem tréguas, suportam humilhações, duras expiações...
—Mas, sou um criminoso! — murmurei a medo, secretamente.
—As lágrimas redimem todos os delitos, irmão! Vou exemplificar o que te assevero: o mal que praticámos impregna-se nos refolhos do Espírito, onde fica alojado, às vezes por séculos, tornando-o tenebroso, impuro; quando sofremos, porém, e pranteamos com dor indizível, vai sendo ele fluidificado e, pouco a pouco, instilado pelos olhos, gota a gota, e, como nas estalactites, desagrega-se do Espírito e esvaece nos ares... elas depuram e angelizam a alma... Nunca as verteste, irmão?
—Ai! quantas vezes, bom amigo! Não me viste prantear? Nunca tive infância, que não a tem o órfão em lar estranho e inóspito, sem carícias paternas, e o único afecto imáculo que me consagrava um lindo ser, por lhe haver correspondido santamente, tive de purpurear as mãos em sangue humano...
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 3 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:29 pm

Parece-me ter já chorado tanto, que, se reunisse todas as minhas lágrimas, formariam um arroio incessante ... Devo, pois, não perder a esperança de ver minorado o meu sofrer, quando deixar de existir?
—Sim, irmão. Mas, tu existirás eternamente! Somos imortais. Deus, o Legislador Supremo, saberá galardoar-te se não transgredires mais suas leis rectas e remissoras. Não queiras, pois, interceptar a vida orgânica, voluntariamente. Apega-te a ela, qual náufrago a um despojo de nave, mesmo que te seja ela sombria, eriçada de acúleos ferinos! O suicídio, no qual tens pensado muitas vezes, entrava o progresso do Espírito por tempo ilimitado, torna-o passível das punições do Alto! Não tentes mais, pois, fugir da luta e da vida por meio de um crime! Adeus! Sempre te inspirarei o Bem.
Estaria mergulhado em sonho ou me tornando visionário? Não vos sei explicar, senhor.
Sei apenas dizer-vos que, subitamente, supus ter sido despertado por uma força estranha, como por efeito de um choque magnético.
Atentei no que me circulava.
Ouvi o soluçar do Oceano em eterno lamento, talvez por não poder atingir o céu, para o qual ergue as vagas impotentes — tentáculos líquidos de um polvo inconsolável, às vezes enfurecido, outras, quérulo e sereno — como nossa alma, que em momento de angústia deseja alar-se ao Firmamento, mas sente-se anquilosada à Terra, acorrentada ao sofrimento e às misérias humanas...
Concentrei toda a atenção na animada palestra dos dois vultos negros.
Manifestavam seus desígnios na língua natal. Pus-me a escutá-los com sumo interesse.
Dizia o mais idoso:
—Desconfiei da permanência do bandido num paquete francês, desde que tive conhecimento da carta misteriosa que li, após a morte do abade...
Conjecturei logo que houvesse mudado de nacionalidade. . .
—Mas, a carta está expressa em bom francês, revela cultivo intelectual que Pedro Ivanovitch não pode possuir, porque não é admissível tenha cursado alguma academia, depois que abandonou a Rússia.
—Ele não era destituído de inteligência e quem sabe se o próprio abade, clandestinamente, não lhe ministrava ensinos superiores, depois de haver simulado tê-lo expulsado do colégio? Não te lembras que há nela um tópico, no qual alude aos sábios ensinamentos que lhe foram ministrados pelo Mestre?
De quem os recebeu em nossa aldeia, constituída de rústicos?
—Quem sabe se essa carta foi escrita por um ex-discípulo do abade, antes de residir no lugar em que faleceu?
—Impossível! Ele era frade, desde jovem vivia num claustro, até que obteve licença para sair e morar no presbitério de nossa aldeia, desgostoso da vida monástica. Antes disso, nunca leccionou.
Ele próprio me disse, várias vezes. O assassino de André era seu discípulo favorito e sempre teve pelo indigno uma escandalosa predilecção, em detrimento até do meu André, seu afilhado...
—Neste caso, meu caro tio, esse Pedro não era um boçal, como eu o imaginava e pesa-me dizer-vos que, assim, não me admira haja minha prima Sónia dele se enamorado: era belo e inteligente!
—Fazem-me mal as tuas palavras, Sacha!{46}
—Deixemos o passado que vos mortifica e vamos deliberar o que temos a fazer no presente, que constitui a nossa única preocupação. Nada vos adianta a exaltação em que vos achais!
—A chaga aberta em meu coração ainda sangra, qual se me houvessem produzido agora!
—Bem o sei, meu tio, mas, é forçoso ter calma.
Planejemos o que importa. Que é que vos levou a crer na possibilidade de ser o marujo Pierre Doufour o vosso antigo servo?
—A sua atitude suspeita, quando se achava na presença de Sónia, e os olhares dela para o infame, protegidos ambos de Estefânia Andrelowna, que eu devia ter punido convenientemente, antes de regressarmos da América!
—No entanto, a idade que actualmente deve ter o criminoso, 33 anos no máximo, pois o homicídio de André deu-se há três lustros, não é a mesma de Pierre, que parece haver ultrapassado os 40...
—É o remorso que o envelheceu precocemente, Sacha... Não posso estar equivocado; ele foge de nós, desde que nos pressentiu a bordo deste paquete, e as derradeiras palavras de Sónia revelaram-me que ela também o havia reconhecido, e, por isso, resistiu até às ameaças que lhe fiz, não consentindo em desposar-te...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:29 pm

O transtorno que essa rebeldia nos causou, o sicário há de nos pagar com usura... Seja ou não o marinheiro de quem desconfio, o procurado criminoso, só aguardo nossa chegada a Dublin para denunciá-lo às competentes autoridades. Ele será detido, e, após rigoroso inquérito, havemos de elucidar o que desejamos. Promoverei todos os meios para a extradição do delinquente e, assim, possa ser julgado e condenado em nossa pátria. Lá é que sabem punir os larápios e mujiques!
Tenho convicção íntima de que o piloto e o assassino de André são a mesma pessoa. Quando me lembro que aquela desgraçada morreu, desautorando-me e pronunciando o nome execrando, tenho ânsias de encontrá-lo para lhe embeber no coração o mesmo gume com que golpeou o de André. Esse punhal, trago-o comigo há quinze anos, para quando soar a hora bendita do desagravo!
—Tranquilizai-vos, meu tio, estamos quase no momento do triunfo; para que precipitar os acontecimentos?
—Resignas-te, assim, facilmente, Sacha, sem te lembrares de que a esta hora podias estar quase milionário?
—E se tentássemos obter o que seria de Sónia, forçando o padrinho a redigir codicilo?{47}
Neste ponto da conversa o moço baixou a voz e os dois, quase abraçados, dirigiram-se ao camarote, sem me terem percebido.
Fiquei a sós. Sentia um desespero e uma revolta indomáveis me estrangularem o dolorido coração, e, a meus ouvidos que se habituaram de modo a receber transmissões misteriosas, chegaram estas palavras de sarcasmo, de revolta com o ruído das ondas:
—Vais ou não, ser denunciado? Foge agora à cadeia, assassino!
Estaria realmente só, no tombadilho? A passos trôpegos percorri-o todo, sondando qualquer esconderijo que se me apresentasse, no qual alguém pudesse ficar oculto. Ninguém! Estava completamente isolado. De quem seria, pois, aquela voz zombeteira e sibilante? Estaria tresvariando, ao reconhecer nela a de André? Tive pavor de estar só, de poder defrontar o seu espectro hediondo e ultriz...
Como fugir à sanha dos implacáveis adversários — os de além-túmulo e os do mundo material? Que me restava mais fazer, senão buscar a morte como solução única da minha desesperada situação?
Porque zombara da minha credulidade o Invisível, que, havia apenas poucos momentos, me alvitrara não desertar da fileira dos vivos, não fugir ao prélio que, então, se me apresentava insustentável, desigual, apavorante, não vislumbrando no futuro senão a desonra, o calabouço ou o punhal de Peterhoff?
Seria razoável conservasse a existência para que fosse depois arrancada pelo crudelíssimo déspota? Não era a morte o que me assustava — era o ceno que iria conspurcar meu lar, onde ficaram, a chorar por mim, dois entes puros e dignos de todas as ditas terrestres!
Estava irremissivelmente perdido; se não quisesse mais tingir as mãos em sangue humano, teria de aniquilar a própria vida... Chegaram ao ponto culminante os acontecimentos; não havia mais tempo para hesitações, não poderia mais sustá-los, não poderia conjurá-los de minha fronte, como não podemos sustar uma borrasca elevando às nuvens nossos braços frágeis e misérrimos, que não atingem sequer um metro de extensão, quando seria mister tivessem quilómetros de dimensão!
Impossível desembaraçar-me de tantos contendores terrenos, poderosos, que me assaltaram de todos os lados — saídos da Rússia e do túmulo — tangíveis e intangíveis!
Com as mãos comprimindo a cabeça, onde se eriçavam os cabelos, impotentes para a pugna que teria de sustentar, rangendo os dentes de ódio, desespero, horror ao opróbrio iminente sobre mim e minha família, sentindo-me esmagado pela adversidade, imprequei às sombras que me cercavam:
— Vede a deplorável emergência em que me encontro, todos vós que tendes vindo aconselhar-me em momentos de acerbo infortúnio! Se não é uma ilusão tudo o que tenho ouvido, nem o que me tendes falado incitando-me a enfrentar, de ânimo forte, a batalha da vida, dizei-me como devo agir...
É mister entregar-me à justiça humana, ou à divina? Urge matar Peterhoff, expor-me à sua vindicta, ou me suicidar... Que devo fazer? Orientai-me, este segundo, pois não há tempo a perder!
Proferia estas palavras, à meia voz, ressumbrando a agitação de minh´alma.
Ninguém mas respondera...
Celeremente, porém, como compelido por energia irresistível, tomei uma deliberação ainda não acorrida à minha mente, medrada como um relâmpago em negros nimbos... Era preciso pô-la em execução com a máxima presteza!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:30 pm

III
“Era noite alta. Reinava tumular silêncio a bordo; o vapor singrava a Mancha em demanda de um porto bretão.
Pensei, alguns segundos, em bater à porta de Peterhoff e, quando me abrisse, estrangulá-lo. Não ficaria, porém, outro adversário para me denunciar à polícia — seu sobrinho?
Estremeci, à só ideia de ser levado aos tribunais humanos, para ser julgado por duplo crime... Quanta vasa atiraria, por todo o sempre, sobre os entes queridos! Seria preferível o suicídio, pois, sepulto em Neptuno, não haveria perdigueiro, mais adestrado ainda que Peterhoff, que me seguisse as pegadas, que descesse onde vivem as algas, para arrastar um cadáver ao júri... Ficaria, porém, impune esse novo delito perpetrado contra mim mesmo? Não era eu o galé de Deus, entregue às suas leis incomparáveis e íntegras?
O que quer que fosse de insólito se passou repentinamente comigo, parecendo agir em meu âmago uma potência super-humana.
Estabeleceu-se relativa tranquilidade em meu Espírito. Recordei a esposa e a filhinha adoradas. Não queria manchar-lhes o nome que usavam — o meu — e que supunham fosse honrado. Era mister salvar-me sem lhes causar dissabor.
Que deliberação deveria tomar?
Tive ímpetos de ir ter com o comandante do Devoir, que manifestava afeição por mim, expor-lhe minhas aflitivas circunstâncias e implorar-lhe protecção.
Conhecia-o, porém: era austero em demasia, e, certamente, lhe repugnaria à consciência impoluta deixar impune um homicídio.
Volveu-me, então, com insistência à mente, uma resolução inabalável: fugir do Devoir!
Rapidamente fui ao local em que dormia, mudei de fato — este que aqui vedes e que usava sempre no Havre, nos intervalos de meus labores, para viver feliz e desconhecido por alguns dias, ao lado dos entes estremecidos.
Amarrei à cinta uma lata de conserva alimentícia, um frasco cheio de vinho, o meu último passaporte; escrevi ao comandante dizendo-lhe que tomara a resolução de pôr termo à existência, porque me sentia inválido para o trabalho.
Suplicava-lhe promovesse uma colecta entre os camaradas, e, juntando-a à quantia que encontrasse com a carta, fizesse o obséquio de entregá-la à minha mulher, da qual deixava o endereço. Deixava-lhe alguns documentos comprovando-lhe a minha identidade.
Despedia-me dele e dos companheiros com indizível pesar, rogando a todos me perdoassem alguma falta involuntária e orassem pelo desditoso Pierre Doufour.
Seria mais de meia-noite, quando a concluí. Andei cautelosamente pelo tombadilho; atei às axilas duas bóias e estive, por momentos, a fitar a cerração, a escutar o rumor das ondas que se quebravam de encontro ao casco do transatlântico...
Desejava chorar copiosamente, mas estava febril e as lágrimas refluíram-me dos olhos ao coração, intumescendo-o.
Lancei um derradeiro e amistoso olhar à nave, sentindo-me tiritar de superexcitação nervosa. Comecei, então, a agir sob influxo alheio à minha vontade.
Passei pelo mastro do navio — como se cinge uma gravata ao pescoço — um cabo de algumas dezenas de metros de comprimento, para que pudesse retirá-lo com facilidade quando me prouvesse, não deixando vestígios por onde me evadisse; segurei-o, assim dobrado, e fui resvalando por ele até ficar em contacto com o mar. Um empuxão que lhe dei foi o suficiente para arrojá-lo fora do paquete.
Deslizei ao lado esquerdo do mesmo, e o choque recebido, quando alcancei as ondas, foi formidável. Tive receio, por momentos, de ser arrastado para a quilha, devido à violenta deslocação das águas produzida por potentíssima hélice que aí funcionava ao impulso titânico dos motores, mas, em breve, verifiquei que o navio se afastara do lugar que me achava. Parecia-me que ia ser tragado por um sorvedouro, sem equilíbrio nas vagas ainda compelidas pela passagem do Devoir.
Terror indizível apoderou-se de mim.
Quis bradar por socorro, mas, mesmo naqueles angustiosos instantes em que predominava o instinto da conservação, imaginei que, sendo encontrado a fugir de Peterhoff, estaria irremediavelmente perdido...
— Estou à mercê de Deus e dos fados! — pensei, então, meio alucinado. Se Ele é Juiz, como suponho, lavre a sentença que mereço... Quero evitar a desonra e não destruir a vida que Ele me confiou!
Comecei a pelejar com as ondas, a esmo, sentindo repentina algidez tolher-me os membros entorpecidos por uma frialdade polar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:30 pm

Sei nadar regularmente, mas, após tantas emoções, com o organismo depauperado, havia muito, por pertinaz enfermidade, seria evidente que as forças me abandonariam...
O pavor de estar só na vastidão oceânica, quase ofuscado por espessa neblina, em porfiado duelo com as vagas que começavam a encrespar-se, fazia-me entrechocar as maxilas ruidosamente.
Já havia transcorrido mais de meia hora que deixara o Devoir, nenhum vestígio existia dele ou de qualquer embarcação onde me pudesse acolher, quando, no auge da fadiga e do sofrimento, comecei a bradar, não deprecando socorro à humanidade impiedosa, mas ao Eterno, ao abade Francisco, ao amigo sideral que comigo dialogara no início daquela noite tremenda e inolvidável....
Ninguém, contudo, correspondia aos aflitivos apelos... Estava já desalentado, resolvido a abandonar-me à voragem oceânica, quando ouvi distintamente uma voz imperiosa, como de comando, dentro do nevoeiro que me envolvia:
—Nada para a direita. Rumo de Este!
Comecei a nadar na direcção indicada, cobrando novo alento, mas, subitamente, julguei estar sendo perseguido por uma risada diabólica, estridente, ininterrupta. Seria falsa a ordem recebida? Estava, certamente, sendo vítima de um gracejo infernal, mas, pela segunda vez, com maior precisão, recebi a mesma orientação:
—Nade para a direita. Rumo de Leste! Avante!
Pareceu-me, então, recordar o timbre de voz amiga... a do abade...
Pus-me a palestrar, quase aos gritos, com o mestre querido, suplicando-lhe o auxílio na desesperadora conjuntura em que me encontrava... Senti-me subitamente invadido por brando letargo que me ia paralisando pouco a pouco os membros, dando-me a impressão de que iria adormecer para não despertar jamais... Seria a morte? Iria desfalecer apenas? Poderia desvencilhar-me daquele terrível entorpecimento? Se morresse, seria ou não considerado suicida, tendo atirando-me ao mar sem esperanças de me salvar? Porque me não entregara à justiça, a fim de resgatar meu crime, em vez de aumentar a culpa? Cometera falta grave fugindo à ignomínia para não macular o nome de dois seres boníssimos?
Pobres criaturas, que, no Havre, oravam por mim, esperando o meu regresso! Desventuradas criaturas que me julgavam probo, de sentimentos nobres e, no entanto, eu não passava de miserável trânsfuga, que evitara as leis humanas e estava transgredindo as divinas!
Comecei a perder os sentidos e a noção da realidade... A angústia vencera-me por completo. Julguei estar perecendo e tentei pensar em Deus ou no abade, mas as ideias estavam confusas, como se a cerração que me envolvia houvesse penetrado toda no meu cérebro, por uma fenda aberta pela desventura!
Amanhecia...
Descerrei as pálpebras que me pesavam como se fossem de bronze.
Certamente, já estivera desmaiado por algumas horas, em que flutuara sempre, vertiginosamente, compelido por uma força prodigiosa, que me deixara no íntimo a impressão de que voara como possante alcíone, ao nível das águas, e, desperto da síncope em que estivera, vendo-me ainda exposto às ondas, conservando-me à tona por intermédio das bóias que atara às axilas. Depois de haver esquecido por momentos o meu suplício, indizível amargura me transbordou da alma: estava ainda imerso num oceano que me ameaçava a vida e parecia conter um outro, mais volumoso, dentro do meu crânio; oceano feito de agonia, de dores, de desalento! Pensei em desatar as bóias para que terminasse o meu martírio, submerso para sempre, mas as mãos estavam inactivas, os dedos engelhados e inteiriçados, como que mortos... Estava irremediavelmente perdido, à mercê de Deus e das vagas, que começavam a crescer, e era mister sofresse até que Ele se amerceasse de mim... Por vezes, era sacudido por uma dor dilacerante, agudíssima em diversos pontos do corpo, como se estivesse sendo picado por acerado estilete, e só mais tarde compreendi que estava sendo picado por peixes ferozes, talvez cruéis moreias...
Quantas horas haviam passado depois que abandonara o Devoir?
Impossível sabê-lo ao certo. Parecia-me estar possuído do dom da ubiquidade, ligado ao navio, por laço fluídico que me subdividia a alma em duas, ficando um pedaço a sofrer sobre as ondas, outro arrastado ao Devoir para assistir ao alarme a bordo, dos ex-companheiros, ao verificarem a minha desaparição, o meu suicídio; presenciando a explosão de furor de Peterhoff que, certamente, revelaria a todos o segredo da minha vida, já que meu corpo escapara à sua vindicta...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 12:30 pm

Como se vingaria, o bandido, do mísero Pedro Ivanovitch? Estaria desperto realmente, ou sob o domínio de pavoroso pesadelo? Porque custava tanto a morrer este desgraçado Pedro Ivanovitch? Tinha, porém, absoluta certeza de que ainda estivesse vivo? Quem saberia dizer se já não havia passado os umbrais da existência terrena e meu Espírito é que teimava em não abandonar o corpo? Iria enlouquecer depois de morto? Repentinamente, fez-me volver à realidade o ruflo de asas que se aproximaram, e então vi algumas gaivotas passarem cerces à minha fronte...
Sentia-me enregelado e prestes a sucumbir de inanição e fadiga, quando pressenti algumas pedras por baixo dos pés, e, pouco distante de mim, um vulto granítico, que emergia das ondas, tisnando a alvura lirial das brumas oceânicas.
Cobrei novo alento e comecei a bracejar com algum vigor, vendo realmente um ilhéu que estava quase ao alcance das mãos, próximo de grande penedo, que, até então, não tinha avistado. Com um impulso violento, abeirei-me da ilhota, abracei-me a uma pedra pontiaguda que nela existe, e, por alguns momentos, conservei-me nessa posição, qual cristão unido ao símbolo da redenção humana — a cruz — sentindo-me seguido pelas vagas, como se fossem patrulhas de Deus, ao encalço do fugitivo, zelosas do prisioneiro que tentava evadir-se...
Após algum tempo, pude galgar uma elevação de terreno e estirar-me sobre seixos que me magoavam as carnes e, nesse leito de suplício, exausto da refrega, fui presa de súbita vertigem que, talvez, durasse horas... Quando dei acordo de mim, a nebline já se havia diluído e os últimos flocos bailavam nos píncaros de uma serrania, não longe do local em que me achava. O Sol, embora sem intensidade, aquecera-me, fazendo o sangue circular nas artérias. Uma sensação de cansaço e de fraqueza me advertiu de que precisava alimentar-me.
Recordei que trouxera à cinta alguns alimentos. A custo desprendi-a dos flancos e, depois de ingerida a conserva, sorvi, a tragos lentos, todo o conteúdo do frasco, um velho moscatel, um verdadeiro néctar auri-rubro. Senti-me reanimado. Comecei a conjecturar, a fim de sair daquela penosa situação. Ameaçava-me a fome e a sede, se ali permanecesse. A grande ilha com que defrontava, próxima àquela em que me via, era, certamente, uma das anglo-normandas e urgia atingi-la. Conhecia-a, pois já a tinha visto, numa de minhas viagens a portos ingleses ou irlandeses.
Atirei-me de novo às águas e, dentro de poucos minutos, transpus a distância que me separava da ilha, que me dissestes ser a de J...
Estirei-me no solo, à beira-mar, porque sentia o corpo contundido, como que chagado pela acção de um pelourinho cruel e incessante. Passaram-se horas.
Novamente me torturou a fome.
A fome, que coisa dolorosa e inexprimível! Quando alguém, no momento em que estamos saciados por suculentos acepipes, nos estende a mão descarnada solicitando socorro, com voz lamurienta, dizendo que, nesse dia, ainda se não alimentou, não queremos ouvir-lhe a exposição dos infortúnios e lhe atiramos, com indiferença, uma pequena moeda, para que siga seu caminho semeado de abrolhos.
Não compreendemos o que sofre o infeliz; não nos compenetramos da sua desdita, ao tormento por que está passando; achamo-lo enfadonho e exagerado; é mister ter ficado sem alimento por muitas horas a fio, por muitos dias, para saber o que é um organismo devorado por si mesmo, desde que lhe falta o combustível para se movimentar regularmente. Só então me pareceu que, pela primeira vez, senti a vitalidade de todas as células do meu corpo, como se fossem milhões de pequeninos seres formando todos os tecidos musculares, tentando desmembrar-se uns dos outros ou se triturarem; as vísceras conflagravam-se no estreito arcabouço do tronco, como se houvessem aumentado consideravelmente de volume, odiando-se como feras vorazes, espreitando-se mutuamente, eriçadas, saídas de seus esconderijos, prestes a atacar para se esfacelarem reciprocamente, e de todas elas a que mais rugia era o coração, torturado e túmido de lágrimas, que me não afluíram aos olhos...
A garganta estava abrasada, a língua saburrosa, sem saliva para a lubrificar... Mas eu fora aniquilado pela matéria unicamente; já não tentava reagir contra as dores que me mortificavam interna e externamente; julgava estar sendo azorragado dentro e fora do corpo, numa flagelação ininterrupta...
Se fechava os olhos, tentando adormecer, parecia-me estar sendo arrastado pelas pedras, por perverso ser invisível, que me despertava brutalmente, como quando criança, tal qual os repelões de André; e tinha a impressão de que alguém ia arrojar-me da rocha ao mar, impiedosamente. Acordava abalado por um calafrio que me fazia rilhar os dentes. Era a segunda noite que passava no rochedo. Apenas de orvalho humedecera a língua.
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