LUZ ESPÍRITA
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 5 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:04 pm

LIVRO V - O homem astral

CAPÍTULO I


"Até hoje, vivi exilado da minha verdadeira pátria;
volto para ela; não me choreis;
recupero a morada celeste para onde cada um de nós seguirá por sua vez: lá está Deus."

HERMES

Eis-me de novo no Espaço, no pélago do éter e das constelações, de regresso de uma das mais penosas existências, em que minh'alma executou em surdina a sinfonia da dor e do pranto ignorados.

Logo que se quebraram as fêveras fluídicas que me retinham o Espírito preso aos tecidos corporais, ligeira perturbação me obumbrou as potências anímicas.

Em branda letargia imergiram todas as minhas faculdades intelectuais.
Esse estado, entretanto, não se podia comparar com o aniquilamento, com o torpor e a inquietação que me sobrevieram quando findou a vida planetária de Paulo Devarnier.

Desta última vez, parecia-me estar sob o império de um grato anestésico.
Embora um pouco aturdido, percebi que era transportado carinhosamente nos braços intangíveis de um ser que, conquanto vagamente, dava-me a impressão de não pertencer mais ao mundo cujos umbrais misteriosos acabava de transpor.

Umbrais misteriosos, digo bem, porque quer se trate de entrar na vida terrena, quer se trate de sair dela pela morte sempre os transpomos adormecidos, empolgados por um sonho aprazível ou doloroso.

Tive, depois, a sensação de estar cindindo os ares, ascendendo velozmente para uma região ignota.
Apesar de não me achar na posse plena das minhas faculdades, julgava-me venturoso e aguardava serenamente o julgamento de todos os actos que praticara durante a existência em que estive privado da vista, por sentença emanada do supremo tribunal divino.

Inigualável bonança, eflúvios de alegria e de paz me invadiram docemente o ser.
Não tinha a toldar-me a tranquilidade da consciência a mais ténue sombra de remorso pela transgressão dos deveres humanos e espirituais.

Regozijava--me por me haver submetido aos decretos do Omnipotente, por não haver conspurcado meus lábios com alguma blasfémia;
por ter cumprido, quase austeramente, a minha pungentíssima missão terrena.

Era, pois, tranquilo que me recordava de quase todos os episódios da última encarnação, não tendo a vergastar-me a consciência o látego do remorso, parecendo-me que superara os óbices, nos momentos das lutas morais.
Tudo isso me passou pela mente, enquanto ia sendo conduzido por uma entidade protectora, como pelos tutelares braços maternos um infante adormecido, sem descerrar as pálpebras.

Estranha força me obrigava a conservá-las fechadas, como se ainda estivesse cego.
Depois, senti que me depositavam docemente sobre um solo relvado, macio, como que feito de pelúcia ou arminho.

Um estremecimento me agitou todo o ser.
Logo, pude erguer-me e abrir os olhos.
Amigo! Há impressões que jamais poderemos traduzir, por serem inexpressivos os vocábulos.

Falta-lhes o colorido sem o qual não logramos exprimir os sentimentos que nos tumultuam dentro d'alma, nas horas de emoções intensas!
Fácil, porém, vos é compreender o que comigo se passou!

Oh! poder, enfim, após quase quatro lustros em que tive os olhos sempre enlutados, contemplar a Natureza, num desabrochar radioso de manhã primaveril, em zona equatorial; poder mergulhar a vista na amplidão sidérea, pincelada de ouro e nácar diluídos nas fráguas do Criador do cosmos!

Depois da treva, da sombra, da penumbra, do eclipse, um arrebol! a Terra em flor, a luz volateando em jorros pelo Infinito, numa profusão digna do Senhor do Universo!
Cessara a cegueira que me obscurecia até a própria alma, porquanto esta, constrangida na tétrica prisão carnal, raras vezes vislumbrava efémeras alvoradas, rápidos crepúsculos, fugazes meteoros que passavam, deixando-a ofuscada e caliginosa.

Saber que terminara, afinal, a acerba prova com que a Providência aferira a minha resignação e a minha humildade; recobrar um dos mais belos atributos espirituais - o da penetração visual;
poder admirar a Natureza, as maravilhas que a embelezam, os astros irisados que fulgem no firmamento, formando uma gama portentosa de colorações, de cambiantes, que deslumbram as faculdades enfraquecidas daquele que apenas acordou do sono tormentoso que se chama vida terrena, oh! que ventura!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:04 pm

Considerai tudo isso e compreendereis, bom amigo, o júbilo que de mim se apoderou.
As horas decorriam com assombrosa rapidez e não me fatigava de fitar o que me circundava, de embriagar-me na contemplação das flores silvestres, dos vegetais, da amplidão azul, zimbório cinzelado num só bloco de turquês.

Pus-me a sondar tudo quanto a vista alcançava, desejando orientar-me a respeito do local a que me haviam levado.

Em que região do globo terrestre estava eu?
Sabia apenas que me encontrava no cimo de uma cordilheira gigantesca.
Era alvo condor feito de brumas e pousado no dorso de descomunal megatério, que os séculos petrificaram.

Apesar das névoas que a embuçavam, semelhantes a um cendal de gaze tenuíssima, de brancura açucenal, minha visão, decuplicada, varava uma extensão incomensurável.
Ao longe, descortinava um oceano undoso; singravam-no inúmeras embarcações, com as suas velas desfraldadas, banhadas de sol.

Assemelhavam-se a um bando de alcíones, brancos, aninhados nas vagas com as asas longamente espalmadas para o Além.
O nevoeiro que me cercava no cume da serrania, atravessado por farpas luminosas arremetidas do levante, se desfez aos poucos, desvendando o horizonte róseo, de um matiz incomparável de flores de macieira ou de eloendros desmaiados.

Apolo49 inflamou, então, com espadanas douradas, toda a Natureza, que cintilou por entre fulgurações de diamantes em combustão, liquefeitos, ainda coruscantes.
Admirava-me de conservar latentes na memoria todos os conhecimentos e toda a nomenclatura das coisas, todo o acervo de recordações de passadas eras, em que não ignorava as formas, nem cores de quanto a Terra contém.

Surpreendia-me o verificar que subitamente se reavivaram todas essas percepções, como que ao mando de um condão mágico.
O tempo deslizava celeremente e eu não me saciava de admirar a Criação, que é amar o Arquitecto do Universo, é tributar-lhe uma homenagem sincera, tácita, inexprimível; é erguer-lhe, do dédalo do nosso ser, uma prece silenciosa que escala o Espaço, evolando-se do nosso imo, como das corolas fragrantes se desprende o aroma que transpõe os ares em ondas de delicioso perfume, até atingir o próprio céu.

Começou a anoitecer lentamente.
O Ocidente, numa apoteose crepuscular, parecia incendiado por um Nero50 que, montando alado Pégaso,51 galopasse pelo Infinito, numa ânsia louca de Arte suprema.

Depois, como se potentes duchas invisíveis jorrassem sobre as rubras e áureas labaredas, ateadas havia poucos instantes, o fulgor do ocaso foi empalidecendo, desmaiando, até se extinguir de todo, tornando-se cinéreo, figurando colossal forja apagada.

Qual cortina que oculta um cenário infindo, as sombras velaram então, por alguns momentos, os píncaros da cordilheira em que me achava sem outro pensamento que o de explorar o que me rodeava.

Morosamente o céu principiou a porejar sóis, primeiramente isolados, depois em profusão maravilhosa.
Eram exércitos lúcidos mobilizados no firmamento, em marcha cerrada e vitoriosa para uma conflagração de nuvens, brandindo baionetas coruscantes.

Do mesmo passo que iam surgindo, o solo também fiava salpicado de luz, porque os lampejos esvoaçavam sobre os vegetais como minúsculas e aladas estrelas de esmeralda, caídas do domo sideral, ensaiando graciosos volteios aéreos.

As constelações me fascinavam:
eram punhados de ouropéis disseminados copiosamente pela amplidão etérea, mais nalguns pontos do que noutros, e as argênteas nebulosas me davam a impressão de que miríades de astros haviam sido triturados numa ciclópica mó, reduzidos a poeira que, em seguida, um harmatão desenfreado espargira pela cúpula celeste, formando a via-láctea, que a cinge de um pólo a outro, qual Arco de Triunfo posto sobre a Terra, por onde as almas sonham ascender, supondo-o a estrada do ideado Paraíso.

Mirando os primores divinos, em minha mente irromperam ideais retrospectivas, de uma romaria prodigiosa através do empíreo.

Aos poucos, todas as recordações se aviventaram, todas as cenas de meu último avatar se desnudaram.
Então pensei longamente em meu pai, que ficara muito além, a carpir decerto a minha ausência.

Enterneci-me e as lágrimas gotejaram de meus olhos.
Se algum habitante planetário me ouvisse agora, talvez sorrisse. indagando desdenhosamente.
- Quê! Como pode existir a lágrima, quando os órgãos estão verminados no âmago do sepulcro?

Ai! é que esse ente ignora ainda que o sentimento não medra da matéria, que o pranto não se gera nos vasos lacrimais, que ele nasce na alma, que o expele gota a gota, quando emocionada ou entristecida.

O sentimento a acompanha, espaço em fora, porque ela é a sua sede.
Podemos assim chorar mais copiosamente depois de desmaterializados do que com o espírito encerrado no ataúde carnal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:04 pm

As lágrimas são átomos da nossa própria alma, quando a dilacera a dor.

Comovido, pois, com a recordação do mísero paralítico, empolgado pela magnificência do firmamento, ajoelhei-me e, por muitas horas, na calada da noite, meus pensamentos se elevaram até ao sólio do Sempiterno, estabelecendo-se uma misteriosa comunhão entre eles e a vastidão cerúlea, como se um hífen os ligasse, ou como se galgassem um a um os degraus de luminosa escada.

49 Deus grego e romano dos oráculos , da medicina, das Artes, dos rebanhos, do dia e do Sol. Filho de Zeus.

50 Imperador romano de 54 a 68, a quem se atribui o incêndio de Roma, a que assistiu, declamando versos que compusera.

51 Cavalo alado que nasceu do sangue de Medusa.
É o símbolo da inspiração poética; supõe-se que leva os poetas pelo Espaço.
Montar o Pégaso ou cavalgar no Pégaso significa fazer versos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:05 pm

CAPÍTULO II

Após longas horas de meditação, no silêncio majestoso da noite, sob o esplendor da abóbada estrelada, foi--me surgindo nitidamente, no cenário da imaginação, o conhecimento exacto de toda a minha última existência.

Recordei meus raros contentamentos, meus grandes pesares, o pranto que vertera em momentos de amargura, os afagos de Jeanne, as lamentações e o sofrimento do nosso progenitor;
meus arroubos musicais, os aplausos que obtivera em instantes de sublime inspiração.

Sentia-me venturoso, intimamente banhado de incomparável tranquilidade.
Verdadeiramente reconhecido ao Altíssimo, tornei a agradecer-lhe a magnanimidade de que usara para comigo, o auxílio espiritual que nunca me fora negado nos dias aflitivos.

Se tivesse ao meu alcance um instrumento sonoro, uma harpa, um violino, um piano, comporia ali uma sinfonia consagrada ao Sumo Artista, tributando-lhe assim, em ondas musicais, toda a gratidão que de mim transbordava pelos benefícios que dele recebera.

Ao conceber essa ideia, logo se me tornou visível um ente formosíssimo, de alvíssimas roupagens, postado à minha frente.
Reconheci nele, por um rápido despertar de reminiscências, o meu amado Guia, o meu Inspirador divino.
Certamente a ideia que acabara de corporificar-se na minha mente fora por ele sugerida.

Sua presença iluminava o local em que me achava.
Prosternei-me a seus pés, como o cristão ante um altar sagrado, sentindo-me vibrar de intenso reconhecimento.
Ele, porém, me ergueu suavemente, roçando-me a fronte com a sua destra radiosa, e logo, dadas as mãos e fitando o céu constelado, que começava a desmaiar aos primeiros albores do Oriente, fizemos juntos uma prece ao Incriado.

Em seguida ele disse, com um timbre de voz que me era familiar e infinitamente melodioso:
- Não foram inúteis, felizmente, os meus esforços por te suster a alma, que pendia para o vórtice do erro e do ateísmo, por alçá-la aos páramos sidéreos!

Atendeste fielmente às minhas inspirações, superaste intrepidamente os escolhos das árduas provas;
nunca imprecaste contra as vicissitudes da sorte, nem contra o destino traçado por aquele a quem aprouve dar-te a luz da vida sem a das pupilas, de ti ocultando toda a Criação, como se a envolvera em lúrida cerração, a fim de que dentro do teu ser se patenteasse um mundo, que desconhecias, o mundo subjectivo.

"Soubeste lenir com o bálsamo da resignação todas as dores - físicas e morais - que te não faltaram, foste humilde e paciente nas horas das ríspidas mas profícuas lapidações psíquicas;
amparaste e confortaste aquele que era o teu progenitor adorado e no qual não reconheceste o primo crudelíssimo, o adversário execrado em muitas encarnações e que, na penúltima, te assassinou impiedosamente, naquela em que foste Paulo Devarnier.

"Ainda te assustas, meu irmão?
Tremes, ao sondar o báratro do passado?
Serás capaz de adiá-lo novamente?
Não reconheceu o teu espírito, um momento sequer, nessa finda existência, o antigo e implacável inimigo que te causou tantos desgostos e cujo coração também feriste com incomparáveis ultrajes?

"Não imaginaste nunca que Carlos Koeler era o Delavigne, que tantas vezes osculaste?
Não, eis o que dizes e é o que eu esperava de ti.
"Compreendes agora por que no período mais agudo da enfermidade de Delavigne, ele parecia detestar-te e à tua irmã, quando íeis visitá-lo ao hospital onde jazia, vítima de heróico altruísmo?
Lembras-te de como o teu coração se confrangia de terror ao ouvires dele palavras de maldição?

É que seu cérebro, incandescido pela febre, semelhante ao vulcão que, quando em actividade, arremessa longe as lavas mais profundas - arrojava de seus abismos interiores, dos verdadeiros subterrâneos do espírito, todas as reminiscências, as escórias de um passado de abominações, que ressurgia qual espectro pavoroso a erguer-se de um ossário funéreo.

"Sentes, no recôndito de tua mente, algum átomo de aversão contra ele?
- Não! - é o que me respondes na tua consciência íntegra e translúcida de ser evoluído, vejo que votas sacrossanta ternura àquele desditoso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:05 pm

"Ao recordar o teu nobre espírito onde predominam os sentimentos generosos, todos os extremos que recebeste de quem, tendo-te ceifado a vida numa existência, te deu o ser em outra;
ao te lembrares da afeição lídima e inextinguível daquele a quem chamaste - Pai! - e que trabalhou para a tua manutenção, quando eras desventurada criança cega;
ao pensares no teu companheiro de lutas e infortúnios, que aumentaram e solidificaram o amor que lhe tinhas;
ao te recordares de quem suportou a teu lado os mesmos golpes que te feriram o coração;
daquele a quem consolaste nos momentos de amarguras inauditas;
daquele a cujo espírito - torturado pelo cepticismo e pelo desalento - deste o refrigério da fé e da esperança;
daquele a quem prometeste lenir as mágoas, cicatrizar as chagas que em seu coração abriu o punhal da dor, assim transpusesses o limiar do mundo em que já te encontras e ao qual regressamos finda cada uma das nossas missões terrenas, tu choraste, François!

"Bendito pranto o teu! Choras ainda!

Ah! como são diversas as tuas lágrimas de hoje das que vertias quando ainda eras réprobo, quando tinhas a alma açoitada no abençoado pelourinho do remorso, que leva o delinquente a investigar os seus próprios crimes, a sentir horror das vilanias praticadas e o encaminha para o bem e para a virtude!

Essas gotas, que destilam de teus olhos, são aljofres de enternecimento e de saudade e não mais chispas de compunção, de desespero, de ódio e de dor!
"Meu irmão, eis-te com o espírito depurado pelo sofrimento, desbravado pelas provas ásperas mas benéficas, preparado, enfim, para os grandes surtos, os sublimes tirocínios de mensageiro divino, para os mais nobres cometimentos!

"Não tens mais a enegrecê-lo nenhum lodaçal de crimes, nenhum labéu de ódio, de perjúrio, de ateísmo, de traição, de vingança.
Está níveo e subtil.
Ele se enrijou, como aço, na forja da dor, adquirindo uma têmpera inquebrantável; não é mais idêntico ao que já foi;
de diamante tosco e informe se tornou luminoso, semelhante a uma cintila de estrela, graças às torturas da lapidação.

Acha-se actualmente mais alvo e diáfano que um floco de bruma aureolando uma cordilheira, à hora do alvorecer, e já principia a inundar-se de um luar inextinguível.

"Conheces, agora, a omnisciência do Altíssimo;
sabes quanto ele é compassivo, magnânimo, paternal para com os transviados, concedendo-lhes guias e instrutores dedicadíssimos, que os arranquem do sorvedouro do erro e os elevem às estâncias de luz.

Já não ignoras por que modo ele põe termo ao rancor dos adversários:
soldando-lhes os Espíritos pelo mais excelso amor, acorrentando-os para sempre com os vínculos dos mais dignos e nobres sentimentos!
"Pela afeição filial estás ligado àquele que viste padecer, Delavigne, cuja fronte marmorizada pela insónia e pela desventura beijaste muitas vezes, cuja mão estreitaste carinhosamente em horas tormentosas de acerbos reveses.

Já não mais podes esquecer e abandonar o infeliz que deixaste na França, sonhando com a felicidade de contemplar - finda a sua espinhosa jornada - os dois seres que, há muito, são por ele amados quanto foram, outrora, odiados;
que lhe dulcificaram as amarguras da vida e aos quais ainda chama queridos filhos, completamente esquecido do tenebroso passado.

"Eis como se patenteiam a necessidade e a conveniência do esquecimento de todos os episódios de suas transcorridas existências para a criatura que se acha enclausurada no aljube carnal.
Só assim se opera, por alquimia divina, uma assombrosa metamorfose no escrínio da alma:
do ódio, larva repulsiva, que corrói todas as alegrias, todos os mais generosos sentimentos, todos os impulsos para o bem e para o perdão, despontam - após as expiações longas e flageladoras - as asas gráceis da borboleta gentil que é o amor, seja este filial, conjugal, paterno ou fraternal, capaz dos menos concebíveis sacrifícios remissores.

"Explicam-se deste modo as tuas mais pungitivas provas, mormente a da cegueira e a da perda de entes estremecidos.

Aquela foi para que te humilhasses;
para que melhor domasses os teus ímpetos de rebelião contra o destino, para que pudesses avaliar o poder do Criador, a quem não sabias venerar;
para que te compenetrasses de que unicamente dele derivam todos os bens que desfrutamos, todos os nossos sentidos corpóreos, dos quais a falta de um só nos faz imperfeitos, desditosos, mutilados.

A outra, a da separação dos entes dilectos, serviu para que aprendesses a avaliar a dor que farpeia os corações, quando os ferimos com a deslealdade, com o menosprezo pela honra alheia;
para que avaliasses a extensão e a pureza de teus próprios sentimentos.

Não é absolutamente justo que os seres a quem infelicitamos outrora não possam concorrer para a nossa ventura senão depois que lhes consagramos afeições extremas e imorredouras?
"Remiste, porém, pelo amor impoluto, pelo desvelo, pelo labor, pelo respeito às leis celestiais, todas as máculas do passado, da época em que levavas aos lares castos o vitupério, o luto, a lágrima, ficando impunes os teus delitos.

"Quando a justiça humana se mostra impotente e falha para reprimir os erros danosos e prejudiciais à colectividade ou a um de seus membros, a Témis Divina52 lavra irrevogável sentença, que tem de ser cumprida inflexivelmente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:05 pm

"Assim se opera a reabilitação decretada pelo Céu.
E do esforço próprio do antigo precito depende acelerar ele a sua redenção, obter o alvará da liberdade, depois de cumprida a pena, que sempre equivale à falta praticada.
"Na tua última encarnação conseguiste, com esponja embebida na lixívia das lágrimas, limpar as páginas em que se achavam exaradas todas as tuas transgressões, todos os flagícios que havias cometido.

Tens agora, no espírito acendrado pelas duras provas, a diafaneidade das gazes liriais, a alvura e a pureza da neve e o aroma delicado dos jasmins".

* * *
- Com relação a Jeanne, quero ainda perguntar-te:
Não reconheceste na irmã adorada a tua amante de outrora, ou a tua noiva dilecta, a encantadora Elisabet, por quem tanto sofreste?

- Não - dizes tu.
Entretanto, as recordações do que já foste começam a abrolhar no teu intelecto, que ficou obumbrado pela matéria e só readquirirá toda a sua lucidez quando se dissipar o último laivo de perturbação.

"Quando amaste mais a essa criatura - como noiva ou como irmã?
Como irmã certamente, pois que Jeanne consubstanciava, para o teu espírito, todos os afectos humanos, sem o menor ressaibo de impureza.
Sentias por ela ternura, afeição fraternal, veneração, sem que, uma vez sequer, pudesses contemplar o seu perfil angélico.

Tu o trazias, porém, encarcerado no hostiário de tua alma, como a fragrância das violetas ocultas sob as folhas, que parecem verdes corações aconchegados, velando pelas flébeis florzinhas para que não as devassem profanos olhares, tal qual fazemos com os nossos mais cândidos sentimentos.

"Vais, enfim, após decénios de amarguras, que ressarciram as ignomínias de outras eras, poder unir-te perpetuamente àquela que foi a origem de tuas mais graves iniquidades, mas que também concorreu depois, eficazmente, para que te elevasses moral e intelectualmente, transformando em culto o afecto que lhe dedicas.

Sim, não é mais o amor humano que te alia à alma açucenal de Jeanne, mas a imorredoura afeição fraterna, a que sempre prevalece sobre todos os sentimentos afectivos, a única indestrutível, a que entrelaça os seres, redimidos pela dor, os nivela na mesma hierarquia espiritual, os agrilhoa eternamente, tornando-os irmãos que reciprocamente se buscam, que se congregam em esferas fulgidas, juntos executando missões nobilíssimas.

"A fraternidade é o penúltimo elo da quase infinita cadeia das mais dignificadoras afeições;
somente ela faz que se confundam e incorporem, numa única, duas ou muitas almas afins, que se tornam gémeas pelo mesmo grau de elevação moral, pela harmonia dos pensamentos, capazes desde então de executar sublimes cometimentos.

Acima do amor fraterno só há um outro, indefinível, forjado de luz, de aromas, de melodias:
é o amor dos amores, o amor supremo -o que consagramos ao Criador do Universo!

"Já tens, meu irmão, essas duas fagulhas deificas para te iluminarem o espírito e foram elas que te fizeram o coração invulnerável aos golpes do venábulo das paixões criminosas, das imperfeições de carácter, dos erros ignóbeis.
Saíste ileso das derradeiras pugnas morais em que entraste e por isso conquistaste o troféu, a que aspiras há mais de um século - a tua união com o ente adorável que, ultimamente conheceste com o nome de Jeanne.

"Previno-te, porém, de que não está finda a tua tarefa e jamais o estará.
Deixaste na Terra aquele que, em existências infrutíferas, como foram muitas das tuas, poluiu as mãos em crimes hediondos - homicídio e suicídio -, arrastado ao turbilhão das iniquidades por tua causa.

Já iniciaste a sua reabilitação e tens que erguer às paragens radiosas aquele Espírito, ao qual estás preso por liames indissolúveis, urdidos de carícias, de acatamento, de sacrifícios, de amizade recíproca, que se denominam amor paterno e filial.

"Não está, pois, consumada a tua missão no planeta a que te achas ainda ligado por compromissos sagrados e inalienáveis.
Vais repousar por algum tempo, numa das mansões venturosas da Criação, refazer a têmpera da tua alma, após os torneios arriscados do sofrimento, recordar o que já foste, receber imprescindíveis instruções.

Em seguida, aqui voltarás custodiado por mim, que te norteio há séculos, com um desvelo que não podes pôr em dúvida, empenhado pela tua definitiva regeneração.

"Lembra-te, sobretudo, de que prometeste mitigar os infortúnios, a acerba saudade de quem expia excruciantemente os seus desvios, supondo-se abandonado nos instantes de indizíveis tormentos íntimos!"

52 Justiça Divina.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:06 pm

CAPÍTULO III

Dito pelo meu querido Instrutor o que vos acabo de repetir, começamos, por um brando impulso na nossa volição, a fender os ares em demanda do Infinito, onde se engastam as jóias faiscantes do Omnipotente - os astros e as nebulosas.

A Terra que, no princípio da nossa ascensão, vista do alto, tinha proporções titânicas, foi decrescendo, diminuindo de volume, até se tornar um fruto gigantesco, depois uma pequenina e escura noz, desaparecendo por fim, qual microscópico protozoário.
Chorei novamente, enternecido e saudoso ao rememorar o insulamento, a desventura do paralítico que ficara ainda no orbe das lágrimas, no tétrico esquife terrestre, inumado em profundas trevas, carpindo por mim, talvez abraçado aos estilhaços do dilecto violino, como um náufrago aferrado aos destroços da galera esfacelada, tendo a enflorar-lhe o coração a derradeira esperança de avistar um recanto da terra patrícia.

Compreendi, então, à proporção que aumentava a nossa separação e se tornava incomensurável a distância existente entre nós, que nossas almas se achavam perenemente ligadas uma à outra.

Afigurava-se-me ver delgadíssimo fio tirado de um novelo de luz, atando-as perpetuamente.
Mas, por que chorava eu, quando ia ser feliz?
Feliz quem o é em todo o Universo?
Onde existe a ventura se jaça, em toda a sua plenitude, meu amigo?

Sempre a alegria e a dor, a fazerem entre si a partilha do nosso coração ou da nossa alma, unidas como a sombra ao Sol, a escuridão à claridade, a noite ao crepúsculo.
A dor é como a áspide que se oculta na fronde dos jasmineiros em flor, à espreita dos ninhos dos rouxinóis, ou que rasteja pelas verdes hastes, tentando magnetizar e deter, para devorá-los, os que passam voando, a sonhar venturas.

Sim, eu ia unir-me à adorada Jeanne, prender na minha a sua mão tutelar, oscular-lhe a fronte pura e, no entanto, tinha a tristeza a mesclar de azeviche o meu júbilo, lembrando-me de que subia para o repouso, para a paz, e deixava petrificado, acorrentado ainda ao sofrimento, o meu companheiro de suplícios.

Ai a ventura integral não existe na Terra nem no Céu.
Deus, porém, o artista inimitável, bem sabe por que não a criou.
Foi pela mesma razão por que não criou a rosa sem a lagarta, a luminosidade sem a penumbra, porque a felicidade completa arrastaria o Espírito à beatitude, à inércia;
ao passo que a dor o estimula, fá-lo conceber aspirações excelsas, é, enfim, imprescindível à natureza humana, porque espiritualiza e sublima os seres.

O riso, que desabrocha nuns lábios que se descerram, dá muita vez lugar à sátira, à irrisão, ao passo que a lágrima a deslizar de pálpebras violáceas inspira uma epopeia, uma sinfonia majestosa!

Bendita, pois, a melancolia que me acompanhava ao empíreo, como o satélite a um astro, pois era ela quem me infundia n'alma sentimentos bons, generosos e puros!

* * *
Sempre a voar celeremente como outrora quando era Paulo Devarnier, com as ideias desanuviadas pelo meu nobre Mentor, todo o meu passado se me patenteou.

Contemplei-o desde o instante mais remoto até os que estavam transcorrendo.
Vi todos os quadros das minhas várias existências, desde a época em que era um simples lapúrdio, animalizado, boçal, atuado por instintos grosseiros, um quase antropóide, pertencente à Humanidade primitiva do globo terráqueo.

Acompanhei meu desenvolvimento físico através de múltiplas encarnações.
Observei-me a delinquir muitas vezes, transviado da virtude em muitas vidas improfícuas, até que me arpoou o espírito o remorso.
Então, compungido, meus sentimentos se foram aprimorando e me tornei afinal um homem culto, um artista dominado por elevados ideais.

Ora me via como algoz, ora como vítima, expiando os meus desvios abomináveis.
Reconhecia, um a um, os seres que me são caros, salientando-se sempre Jeanne e o meu longânimo Protector.
Pude avaliar todos os seus sacrifícios ignorados, todos os actos de heroísmo que praticou para me erguer do paul do vício, em que me chafurdara, às paragens luminosas da perfeição psíquica.

Agradeci-lhe comovido toda a sua dedicação, mas, modestamente, ele me impôs silêncio e pediu que observasse a série de quadros em que eu aparecia sempre como protagonista de algum drama familiar, quadros em que, como bólides sulcando o céu enegrecido, a cólera, o arrependimento, a vindicta e o amor riscavam o cenário das minhas existências.

Tantos pensamentos tumultuavam e se entrechocavam na minha mente, que me sentia torturado e julgava estar delirando ante o desfilar ininterrupto daqueles painéis movimentados, até que, afinal, lhes entrevi o termo:
vi-me cego, desvalido, lutando penosamente para obter meios de subsistência, ao lado de duas criaturas amadas - Jeanne e meu pai - que foram outrora Elisabet e Carlos.

Apreciei os meus triunfos artísticos, a enfermidade de minha irmã, a filantropia de Duchemont e de Margot, minha moléstia incurável e minha morte.
Chegara, enfim, ao presente e logo em mim se produziu uma brusca estagnação de ideias, um vácuo impreenchível e insondável se abriu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:06 pm

Invadiu-me a sensação de um silêncio incomparável - qual só deve reinar na profundeza dos mares e dos sepulcros; tive a impressão de que ia desmaiar e só então adormecer eternamente.

Paralisaram-se-me todas as potencialidades psíquicas.
Não era eu mais do que leve pluma insensível e inanimada à mercê de uma força poderosa que me não foi possível definir.

Pouco durou, porém, o meu entorpecimento intelectual.
Qual planeta que, transpondo espessa penumbra, mostrasse de novo a face iluminada pelo Sol, despertei daquele esvaimento, da letargia espiritual que me empolgava e aturdia, e assombrado percebi o desabrochar de todas as minhas faculdades mentais.

Uma luminosidade astral me penetrou, um fulgor de constelação se produziu dentro do céu de minh'alma, que ficou suavemente iluminada por flavo e deslumbrante crepúsculo.

* * *
Atingimos finalmente o alvo da nossa jornada:
abeiramo-nos de uma estrela esplendidamente verde, semelhante, pela coloração e fosforescência, a um pirilampo, e, ao cabo de breve tempo, pairamos à pequena distância do seu solo.

Deliciosa sensação experimentei ao lhe penetrar na fotosfera esmeraldina, que aformoseava incomparavelmente o meu donairoso Instrutor, realçando-lhe as vestes alvinitentes, matizando-as de delicadas tonalidades.

Parecia-me haver ao mesmo tempo uma irradiação a envolver-me o corpo anímico e outra a borbotar de dentro de mim.
Ora supunha que meus pensamentos iam sofrer nova paralisação, travados por um poder incontrastável;
ora os sentia impregnados de intensa radiosidade, a me brotarem da mente com tanta violência e fecundidade que, se pudesse grafá-los, ocupariam toda a extensão da fila alvíssima da via-láctea.

Aproximamo-nos do núcleo resplandecente do orbe esmeraldino, voejando horizontalmente e cerce ao solo.

Logo se nos foram ostentando paisagens encantadoras, de aspectos indescritíveis: serranias que pareciam moles gigantescas de turmalinas, com todas as nuanças do verde;
solares de estilo bizantino, esculturados em jaspe transiu tudo, com extensos hortos em que medravam vegetais esguios, com formosíssimas flores intangíveis para os que ainda perlustram os planetas inferiores, parecendo lavo radas em pedras preciosas, de todas as cambiantes, recendendo essências ameníssimas.

Inefável melodia se desprendia de todos os castelo fulgurantes, como se em todos eles estivessem celebrando pomposos festivais.

Esvaíram-se-me, lentamente, toda as recordações dolorosas da Terra;
dominou-me uma bonança, uma calma que desejara jamais se extinguisse.
Subitamente, porém, meu amigo, meu galhardo Guia parou e em seguida principiou a descer.

Pousou num dos de graus da escadaria, em forma de voluta, de um deslumbram alcáçar, como que talhado em topázio rútilo, e penetramos subtilmente, de mãos unidas, num salão em que a luz jorrava do próprio tecto de cristal coruscante, de envolta com as fragrâncias dulcíssimas de flores imarcescíveis e com os arpejo de uma orquestra que executava magistral sinfonia.

No recinto se apinhava selecta sociedade, constituída de seres todos jovens, trajando singelamente, mas com suma elegância, túnicas de escumilha argêntea, luminosa.
Lembrei-me então do tempo em que ia tocar à noite nos palácios de Paris e apreciei o contraste que havia entre uma e outra multidão.

Na terrestre, imperavam quase que exclusivamente o egoísmo, a vaidade, a ostentação, a hipocrisia.
Na sideral reinava unicamente o amor, em todas as suas nobilitantes modalidades.
Das frontes de todos aqueles seres, aureolados por um halo radioso, transpareciam pensamentos de pureza extrema.

Todas aquelas entidades translúcidas se achavam animadas por ideais elevados, por sentimentos fraternais, a borbulharem de seus corações radiosos, que eu via pulsar através das suas roupagens de neve.

A realidade, porém, me absorvia a atenção.

Entramos naquele reduto luminoso, onde se achavam congregados centenas de seres pulcros e o meu tutelar companheiro, cheio de solicitude, mos apontou, murmurando:
- Eis-nos chegados, meu irmão, a um dos inúmeros ateneus do Universo, onde os Espíritos libertos das últimas imperfeições, acendrados pelos sofrimentos, remidos pelo escrupuloso cumprimento de deveres sociais e divinos, vêm retemperar as forças combalidas por prolongadas liças morais - em que os corações combatem e, às vezes, saem dilacerados - recobrar novo alento para prosseguirem na senda de austeras virtudes, pensar as úlceras que se lhes abriram na alma durante as árduas pugnas contra o mal e a adversidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:06 pm

É aqui, finalmente, que eles iniciam o estágio para o desempenho de graves e meritórias missões - as de mensageiros celestiais.
"Rejubila, meu irmão, porque alcançaste um esplêndido triunfo na tua última encarnação, ao lado daquela a quem amaste santamente.

Tu e Sidérea já estais classificados na mesma categoria espiritual, julgados, no areópago divino, dignos de permanecerem num orbe de paz, de alegrias imateriais, sãs, imáculas, e também de aprendizagens imprescindíveis ao excelso mister de agentes siderais.

"Vais receber o baptismo espiritual, deixar de ser designado por um nome terreno e tomar outro, imutável, escolhido por mim - o de Astral.

Eis, doravante, como te chamarás.
Esse nome assinala a tua iniciação no sacerdócio dos mais dignificadores encargos".

Ao terminar essa breve alocução, a um gracioso gesto de Alfen - nome do meu brilhante Protector, que mo revelou pela primeira vez -, de nós se acercaram todos aqueles entes airosos - semelhantes a joviais e chilreantes andorinhas esvoejando celeremente às primeiras vibrações do campanário do templo onde pairavam - e, dentre todos, um se destacou, que me fitava com insistência desde que ali chegáramos.

Reconheci nele a mesma grácil aparição que, ao executar eu a sonata "As núpcias das rolas", empunhava uma lira de flores.
Sentindo-lhe o olhar que se embrenhava até ao mais recôndito escaninho de minh'alma, como que a me imantar, a atrair o meu ao seu Espírito, prendendo-o com um atilho de sol, subitamente compreendi que aquela entidade unificava diversas criaturas, as últimas das quais foram - Elisabet e Jeanne.

Ela representava a fusão de dois amores inextinguíveis, o amálgama de duas eternas e inefáveis afeições, já abençoadas pelo Criador.
Ali estavam numa só individualidade a noiva e a irmã idolatrada, cujos traços fisionómicos a minha retentiva sempre conservara e o meu coração evocara sempre.

Tinha diante de mim Bet e Jeanne, meu amigo!
Ventura indefinível, inaudita!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2013 9:07 pm

CAPÍTULO IV

Imaginai, meu amigo, o transporte de felicidade do meu espírito, no magno instante em que me aproximei daquele ser secularmente amado.

Por momentos se me imobilizaram todas as ideias, concentradas no presente, naquela incomparável realidade, da qual não mais poderia duvidar:
- a minha perene união com o ente a quem idolatrara em várias existências!
Pouco a pouco, entretanto, minha mente se dealbou, permitindo-me aquilatar melhor a minha dita.

Estava a meu alcance a síntese de todos os meus sentimentos afectivos, a concretização de duas entidades - Elisabet e Jeanne - fundidas numa outra, que as substituíra com vantagem - Sidérea -arcanjo puríssimo, alvo, radiante, cujos pensamentos luminosos lhe nimbavam a fronte nobilíssima.

Estava perto de mim aquela por quem tanto sofrera e fora, ultimamente, a consócia de minhas amarguras, partícipe de todos os meus pesares, único raio estelífero que me iluminara a infância e suavizara as tristezas da minha mocidade fanada pela cegueira, que me norteara a alma para o Omnipotente, lançando-a, num impulso fortíssimo, do pélago terreno às paragens cerúleas, pois que para ligar ao seu o meu destino foi que logrei esquecer as ofensas que me fizera um desumano adversário, foi que aprendi a abominar o mal, a acrisolar os meus pensamentos, a trilhar a senda do bem.

Vê-la quanto me aprouvesse, poder transmitir-lhe as minhas aspirações, os meus pensamentos mais secretos, narrar-lhe todos os meus passados infortúnios, as minhas inquietações quando dela me apartava;
saber que a nossa vida, por todo o sempre, seria idêntica, que estavam findas as nossas rudes provas, que a nossa aliança, eterna e indissolúvel, fora abençoada pelo Incriado!

Avaliai, por tudo isso, meu amigo, a extensão da minha alegria!
Como me sentia compensado de todas as angústias, naqueles segundos de ideal felicidade!
Em um só instante, de lídimo contentamento, olvidei séculos de dor e de lágrimas!

No entanto, turvava o meu regozijo uma recordação de prístinas eras.
Seria possível que aquela criatura, objecto ali do meu enlevo, cândida e vestalina, fosse a mesma por quem já nutrira pecaminosa paixão, quando a fizera minha amante, roubando-a a um lar honesto, compelindo-a a abandonar um pequenino ser, que, sem os seus cuidados maternais, perecera?

Cruel inimigo me execrara.
Reconheci, então, que bastante razão tivera ele para me odiar.
Apavorava-me a lembrança de ter sido um miserável roubador da honra e da ventura alheias.
E a evocação dos meus crimes começou a marcar a satisfação que me inebriava naquele momento soleníssimo da minha existência astral.

Como pudera o Sempiterno olvidar os nossos delitos?
Estariam completamente purificadas as minhas mãos que se purpurearam no sangue de um irmão afrontado na sua dignidade de esposo?
Como nos punira o Criador e pusera termo aos nossos mútuos rancores?

Impondo-nos rigorosa mas imparcial e íntegra sentença, ligando os nossos destinos em várias encarnações, fazendo que nos amasse-mos santamente, unindo as nossas almas por elos imateriais, por afectos inextinguíveis.

Compreendi então que fora levado a rememorar o passado para poder ajuizar a extensão da generosidade e a rectidão da Justiça Divina.
Senti que nunca o meu Espírito se elevara tanto ao Omnisciente como após o confronto de meus erros com a sua longanimidade e a inteireza das suas infalíveis leis.

Daí resultou a minha perpétua submissão ao censor celeste!
Do abismo das reminiscências em que me engolfara, o meu prezado Guia me tirou, tomando-me uma das mãos e levando-me até onde se achava o ente adorado que eu embevecido fitava.

Aí chegando, falou assim:
- Irmãos, eis aqui mais um Espírito valoroso que triunfa, mais um ser evoluído que vem iniciar-se no tirocínio elevadíssimo de mensageiro celestial, mais um liberto da carne, do erro, das imperfeições morais, que se reúne às nossas fileiras, enchendo de alegria todas as mansões deste orbe, onde se soleniza a chegada de mais um prosélito do bem, de um irmão em Deus!

Todos se acercaram de mim, saudando-me graciosamente, depondo-me na fronte o beijo fraternal, que eu retribuía.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:28 pm

Depois, voltando-se para mim, continuou o Guia:
- Eis aqui a tua noiva e a tua irmã, Astral!
Chegou, aqui o instante de se efectuar o consórcio que, há muito decénios, desejaste realizar, através de obstáculos intransponíveis.
Desde que o amor fraterno vos algemou, jamais (substituirá outro sentimento da natureza dos que imperam nos seres ainda sob o guante do sensualismo.)

O afecto imáculo que, há muito, consorcia as vossas almas, como as de todos os entes que aqui se congregam e as dos que habita todas as estâncias radiosas esparsas pelo firmamento, é por um outro é superado - pelo amor que nos vincula a Criador do Universo!

"Poderíeis, há meio século, estar fruindo a ventura desta comunhão espiritual, tão sofregamente almejada, mas não o lograstes porque muitas vezes delinquistes.

Não desejo recordar os vossos desvios, para não obscurecer a rósea felicidade de que hoje vossas almas exultam.
Dir-vos-ei apenas que, afinal, soubestes conquistar o galardão dos vencedores, dos fortes, cumprindo rectamente a pena que vos fora imposta.

Para que reparásseis as vossas transgressões, precisastes de várias existências plenas de lutas mortificantes.
Suportando penosos labores, padecimentos ignorados, espezinhações, ofensas, ficastes purificados, espiritualizados.
"Cumpristes todos os deveres sem tergiversações, praticastes actos de altruísmo, fostes carinhosos e compassivos para com o vosso último progenitor, tementes e observadores das leis sacras.

Não enlodastes os lábios com palavras de escárnio, de cepticismo, de blasfémias, de perjúrio, de hipocrisia, antes os purificastes com as de perdão, consolo e piedade.
Enobrecestes as mãos - outrora manchadas pelo homicídio e pela aniquilação da própria vida - por meio de lides honrosíssimas.

"Estais reabilitados, dilectos irmãos!
"Abençoai agora as rajadas da adversidade, muitas das vezes desencadeadas sobre os vossos lares, abençoai as vossas humilhações, as vossas dores, pois que foram elas que vos emanciparam das imperfeições.

Eu, que vos oriento há mais de um milénio, cobrindo-vos incessantemente com a minha solicitude, participo da vossa alegria.
Ela repercute no meu íntimo, como no de um pai extremoso repercutem a glória, o valor de seus filhos, as honras que se lhes tributam!

Galgastes heroicamente um degrau da escada infinita da evolução e do progresso psíquicos; podeis, em consequência, permanecer neste orbe - uma das primeiras paragens a que aportam os regenerados - o tempo que seja necessário ao vosso repouso.

"São em número incalculável as esferas rutilantes, mais louçãs do que esta, que ireis escalando aos poucos, à medida que vos fordes elevando na espiral sem-fim da perfeição espiritual.
"Ides encetar a aprendizagem nobilíssima da missão de protectores da Humanidade sofredora, ides aprender a insuflar nas almas combalidas pela dor sentimentos dignificadores, elevadas ideias, novas energias, eflúvios de esperança e de concórdia, a enchê-las de tenacidade, de perseverança sem desfalecimentos.

E todo triunfo psíquico, que algum ser infeliz alcançar por vosso intermédio, vos fará também subir um grau na hierarquia espiritual.

"Recreai-vos, porém, durante algum tempo;
desfrutai a bonança que impera nesta mansão venturosa, ao lado destes irmãos, nossos ternos aliados;
reconfortai vosso Espírito ainda aturdido e ulcerado por longas e macerantes provas.

Depois, quando houverdes de partir, sabereis quais as criaturas que tereis de custodiar no áspero trâmite da virtude, que termina no Céu, no Infinito, no seio do próprio Arquitecto do Cosmos.
"Antes, porém, de iniciardes a tua magna tarefa, Astral, vais compor uma marcha triunfal, cujo tema te proporciono neste título que lhe dou - Epitalamio sideral.

"Até hoje produziste composições inspiradas por transcendentes menestréis;
agora te vai ser outorgada a faculdade criadora das Artes, que é um dos atributos dos que, evoluídos, cursam as academias do Universo.

Vais dedilhar um instrumento desconhecido na Terra, um instrumento que a tua alma emotiva fantasiava para dar expansão ao teu estro musical por achar imperfeitos o violino e o piano, incapazes de exprimirem o que ouviras em êxtase.

Chama-se harpa eólia -pela sua analogia com a de Éolo,53 que era tangida por bardos imateriais, invisíveis, e não exclusivamente pela viração.
Essa harpa é o magnífico conjunto de várias orquestras, produz uma sonoridade encantadora, que desce em ondulações, até ao cérebro dos artistas planetários, fazendo-os julgar-se em delírio ou em sonho, como te sucedeu muitas vezes".

Assim dizendo, tomou-nos a mim e à minha irmã pelas mãos e nos levou para junto de um titânico e rutilante instrumento - que me pareceu esculpido em topázio e possuir cordas urdidas de sol.

Cada uma tinha o som de um aprimorado instrumento e nenhuma cessara de vibrar, de desferir acordes suavíssimos, enquanto o meu magnânimo Mentor nos falava.
Colocando Jeanne à minha direita (como outrora, em Paris, quando compus a primeira melodia), me fez, deslumbrado, tanger a formosa harpa e se conservou, com o seu aspecto majestoso, a pouca distância de nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:28 pm

Depois, elevou os braços em atitude de prece, para receber do Alto eflúvios que certamente provinham do delubro onde se refugia o Sumo Inspirador, para de lá dirigir todo o Universo.

Estabeleceu-se entre ele e o céu uma verdadeira fusão, pois que fúlgida cascata fendeu o Espaço em direcção às suas mãos alvinitentes.
Impôs-me, então, sobre a cabeça, brandamente, os esguios, diáfanos e resplandecentes dedos, e logo senti que na minha mente desabrochara, por influxo divino, nova potência.

Pude, logo, por mim mesmo, numa ebriez de ventura inefável, compor uma portentosa marcha esponsalícia, que haveis de ouvir, meu amigo, quando findar a minha primeira missão espiritual, pois ireis comigo ao mundo esmeraldino onde encontrei a felicidade vãmente ideada no globo terrestre.

Conheceis a sublimidade da música em pleno Infinito:
é inexprimível em qualquer idioma planetário.

Só ela interpreta todas as gamas das emoções da alma quintessenciada, é a sua linguagem maviosa e, como na Terra as toutinegras que se comunicam e compreendem por meio de melífluos gorjeios, assim os seres astrais se transmitem uns aos outros a alegria, a esperança, a fé, a saudade, improvisando trinados nos arrabis e nas cítaras mágicas, maquinadas por artífices divinos.

As ondulações melodiosas, que se evolavam de sob os meus dedos, sobrepujavam às da própria harpa de Éolo, que rapsodos intangíveis dedilhavam quando por suas fibras perpassavam os zéfiros, excediam às daquele, cujos místicos salmos se inspiravam nas Leis eternas - Davi,5 exilado do céu, que, em momentos de transporte, lembrando-se certamente do que deixara no Além, nalguma coruscante esfera, compunha cânticos suavíssimos que deleitavam o rabino Saul, serenando-lhe a exaltação do espírito.

Aquelas modulações não traduziam a sanha nem os sentimentos fortes e bárbaros.
Eram antes como que pipilos de aves, trilados de passarinhos despertados numa selva secular, recendendo aromas, engalanada de orquídeas, como a das regiões equatoriais.

Pareciam, outras vezes, blandiciosos lamentos, balbucios de crianças, quérulas reminiscências de lágrimas vertidas outrora, de dores sofridas e que afloram à alma sem mais a magoarem, graças à unção do tempo, que balsamiza todos os pesares.
Concluí a majestosa marcha, na incomparável harpa, por um crescendo triunfal, expressão do regozijo de duas almas afins que se encontram após séculos de separação e sofrimentos, e que juntas ascendem ao empíreo, para jamais se separarem.

Todas as entidades gráceis que, sorridentes, nos rodeavam - na partilha fraternal do contentamento e dos desgostos - espargiam sobre mim e Sidérea fragrantes flores, cujas pétalas tinham a aparência do rubi, da safira e da opala eterizadas e se desfaziam mal tocavam o solo.

Percebi então que meu Espírito se iluminara para todo o sempre, que minha fronte se nimbara com o halo da inspiração, que esta, em catarata refulgente, descia suavemente do alto, desde que meu seráfico Protector invocara o Omnisciente.

Seguiu-se um curto silêncio.

Ergui-me docemente, impulsionado por meu Mestre, e este, passando a ocupar o meu lugar, improvisou um cântico magistral, que recebeu a denominação de "Hino Fraternal" - e logo foi entoado pelas vozes cristalinas e melífluas de centenas de seres de beleza apolínea.
Terminou o maravilhoso festival, depois de serem tratados vários temas de moral, de ciências e de artes, por outro hino, mais formoso do que aquele, ressumbrando reconhecimento, veneração, sentimentos puros e inefáveis, que arrebatavam as almas dos que o escutavam aos paramos divinos.

Era consagrado ao Omnipotente.

53 Deus grego dos ventos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:29 pm

CAPÍTULO V

Passei algum tempo nesse Éden maravilhoso, identificado aos seres que o povoam por inquebrantáveis elos afectivos, ouvindo as odisseias de suas transcorridas existências, conselhos benéficos que só a experiência de milénios de provas soube ditar, engenhando obras de arte, assistindo às encantadoras festividades que lá se realizavam constantemente, escutando prelecções científicas e morais, tendo sempre a meu lado a irmã querida.

Lembrávamo-nos, ela e eu, sem amargura, de todos os episódios de nossas últimas encarnações, mormente dos daquela em que malogrou o nosso noivado, quando éramos Paulo e Elisabet.
Descrevi-lhe, com vivas cores, quanto sofri ao voltar pela última vez a Berlim, sem a trazer comigo para a França, deixando-a ainda entregue a seus algozes, onde a via sempre lacrimosa, aos pés de sua mãe desfalecida.

Recordamos todo o martírio inominável dos últimos meses que se seguiram ao nosso encontro e o nosso trágico fim.
Rememoramos a nossa existência recente, e em que vivemos sob o mesmo tecto, e ela me confidenciou que, antes de ser Jeanne, tivera outra curta e miserável vida, em que fora uma pobre criança deformada, linfática, quase cega, filha de criaturas rudes e cruéis que premeditavam explorar-lhe a desventura, fazendo-a esmolar.

Perecera num incêndio, cuja evocação ainda lhe torturava o espírito.
Dei-lhe a conhecer o pesar que me exulcerara o coração por não a poder contemplar, em consequência da minha cegueira;
o saber quanto a mortificava, sempre que me acompanhava aos saraus, a obrigação de ficar, quando tantos jovens sorridentes se divertiam, trajados com requintado aparato, nos saguões, ao lado de fâmulos e lacaios, a esperar-me, trémula de angústia para me guiar ao nosso pardieiro.

Lembramo-nos dos dias de adversidade, em que nos faltara o pão, do desvelo de Margot, da generosidade de Duchemont, do sofrimento do paralítico, que ainda se achava aprisionado no leito de suplícios, e desejamos partir em demanda do planeta da lágrima, para segui-lo na sua via crucis moral, para lhe ungir a alma com o bálsamo da nossa dedicação.

Essas mútuas confidências ainda enlearam mais os nossos Espíritos na trama do amor fraterno, solidificando para sempre a nossa indestrutível afeição, tornando eterno o nosso consórcio.
Fruímos assim, durante algum tempo, inaudita felicidade, considerando uma ventura até a reminiscência das nossas passadas amarguras, que então nos apareciam atenuadas, esbatidas como paisagens lobrigadas ao longe, através da cerração ou entrevistas em sonho.

Nossos irmãos compartilhavam do nosso regozijo e em muitos deles, reconhecemos amigos e parentes de outras existências, e que mais do que nunca o são agora, pela afinidade de ideais, pela identidade de condições, pela comunhão de sentimentos.

Também eles nos relataram as suas lutas, as aprendizagens dolorosas por que passaram, para alijar de suas almas de réprobos as máculas e conquistar a perfeição psíquica.
Cada um daqueles seres louçãos tinha mágoas a narrar, reconhecendo, porém, a justiça e a longanimidade do Criador, que sentencia de acordo com os erros cometidos e sabe galardoar os esforçados.

Por fim o nosso querido Guia nos tirou do embevecimento em que nos comprazíamos, dizendo-me:
- Urge partas, Astral, a desempenhar a tua piedosa missão.
Se a cumprires denodadamente, poderei deixar-te entregue para sempre ao teu livre-arbítrio.

Espero que jamais cometas a menor infracção às leis do Omnipotente, porque a nossa responsabilidade se avoluma à medida que avançamos na escala hierárquica da perfeição, e qualquer insignificante desvio do dever - desculpável num ser inferior, imperfeito, ainda animalizado - é punido severamente nos que tenham já desenvolvidas todas as suas potências espirituais.

"Não mais deves claudicar, meu irmão.
Já trazes um longo tirocínio feito na escola das provações e da dor, onde purificaste os teus sentimentos.

Confio, pois, em ti; sei que serás um rígido cumpridor de todos os encargos que te forem confiados, solícito para com aquele de quem vais amenizar os infortúnios, incutindo coragem e esperança numa alma que, em breve, deixará de permanecer no ergástulo da matéria - cárcere putrescível da chispa divina que, quando liberta, se libra no firmamento constelado.

"Sidérea vai ter idêntica incumbência junto de uma criatura que já foi estremecida por vós ambos.
"Trata-se daquele que, na sua penúltima encarnação, foi um dos vossos ancestrais, um dos vossos avós, daquele que obstou à realização do enlace matrimonial a que aspiráveis, porque se agastou convosco.

Ele tinha o coração saturado de excessivo amor cívico e de orgulho, mas sofreu por vossa causa e não pôde resistir, na avançada idade em que se achava, à separação daquele a quem chamava, com escárnio, o Francês, e a quem entretanto adorava.

"Actualmente reside na Áustria, tendo nascido na Irlanda, de onde se expatriou ainda criança.
Órfão e extremamente pobre, um piedoso vienense o levou para a sua terra natal.
Padece hoje opressões, luta com a falta de recursos pecuniários, em país estrangeiro, mas já está regenerado pelas dores que tem sofrido, sabe amar os filhos de qualquer nação.

Contudo, ainda não se convenceu da integridade da Justiça Suprema, julga que sofre arbitrariamente o que não fez a outrem, pois desconhece a lei da pluralidade das existências, sem o que a Justiça Divina deixaria de ter o cunho da perfeição.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 5 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:30 pm

"Sidérea vai, portanto, auxiliar o Protector de um ser evoluído, com a alma completamente mondada das silvas das imperfeições, apta a receber a semente de grandiosos ensinamentos.
"Ela concorrerá para a suavização das agruras de uma vida de exilado, incutindo-lhe confiança nos desígnios da Providência Celestial, infundindo-lhe amor ao ser que, no infinito, circulado de estrelas, preside aos nossos destinos.

Apontar-lhe-á, nas horas de nostalgia, a pátria eterna o Universo, fazendo-lhe saber que a criatura humana não possui uma única terra natal;
que deve considerar todas as nações como partes integrantes de um todo indivisível -o orbe terráqueo - e que lhe cumpre amar, como irmãos, todos os povos.

"Fará que em seu espírito floresçam as grandes e opimas verdades promanadas do Criador, convencendo-o de que a alma não tem pátria determinada;
é qual ave nómada que urde o ninho onde quer que pouse, em qualquer fronde víride que se balouça às lufadas dos favónios ou do siroco.

"Ele pressentirá o seu carinhoso auxílio como alguém que, mergulhado em profunda meditação, adivinha a aproximação do ente querido que, por detrás, lhe vendou os olhos com as mãos adoradas, as quais, nos momentos de gracejo ou de inocente carícia, têm sempre a maciez da pelúcia.

"É mister que tu, Astral, regresses à Terra primeiro que Sidérea.
Poderás, porém, aqui voltar quando te aprouver, ao simples impulso da tua vontade, para fortaleceres o teu espírito com a serenidade que deflui desta esfera, como quem, sequioso e febril, procura uma fonte hialina para se dessedentar.

Ouvirás então os mais formosos salmos e hinos, as mais arrebatadoras músicas, sinfonias inebriantes, que te hão-de sugerir excelsos pensamentos.
"Poderás também compor algumas, quando a inspiração, como filetes de estrelas, jorrar de tua fronte, que se irá cada vez mais enluarando, até que fique eternamente iluminada com o halo dos mensageiros de Deus.

A tua perene felicidade depende do exacto cumprimento da missão que vais exercer - a de velar por aquele que, na Terra, ainda sofre as consequências de seus erros, anseia pela tua presença, se sente abandonado nos momentos de dor infinita, sepultado no seu próprio corpo, que se tornou pétreo.

"Vai, Astral, infundir, numa alma alanceada de saudade, pensamentos de resignação, de olvido do passado, de veneração ao Altíssimo, de submissão às leis sacras, de esperança no porvir.

Serás, doravante, um dos seus invictos guias e desempenha o teu cargo com a mesma dedicação que lhe tiveste quando, sob o mesmo tecto, lhe chamavas - pai!
"Vais coadjuvar, na sua meritória empresa, um de nossos leais irmãos, o Mentor de Delavigne, que, desde era remota, tem sido infatigável, fazendo ingentes esforços para que ele mudasse de rumo, sempre que suas ideias o inclinavam para o torvelinho do ateísmo e do crime.

O teu auxílio actualmente lhe é imprescindível, porque o teu espírito exerce sobre o dele salutar e poderosa influência.
Foi graças a essa influência que, quando estavas a seu lado, conseguiste erguê-lo moralmente, encaminhando-o ao bem e à virtude, que lograste amanhar, enfim, sua alma para a sementeira das verdades transcendentes.

"Juntos agora, colaborando para atingir o mesmo objectivo, conseguireis mais rapidamente realizar o vosso desiderato, devido ao benéfico predomínio que sobre ele exerces, desde que se te afeiçoou profundamente, desde que se apertaram as guirlandas de ouro desse sentimento estreme, que hoje prende os vossos espíritos.

As dolorosas provas, as adversidades estoicamente suportadas em comum, operaram a substituição do ódio que os repelia, como pólos magnéticos isónomos, por forças heterónomas, que os atraem unindo-os um ao outro por todo o sempre, porque essas forças magnéticas incontrastáveis e eternas se chamam perdão, ternura, amor.

"Que é o que o amor não consegue realizar - seja ele paterno, filial, fraterno ou conjugal?
Sê, pois, dedicado àquele que anseia por ti, Astral, e, ao terminares a tua ingente e gloriosa tarefa, poderás aqui repousar por mais longo tempo.
Depois, ser-te-ão confiadas outras incumbências, que irão aumentando a tua responsabilidade, à proporção que fores galgando os degraus da escada da perfeição anímica.

Todas estas entidades venturosas que vês são verdadeiras andorinhas migradoras: partem exultantes deste orbe - que tanto te maravilha e que é um dos sanatórios do Espaço, onde se tonificam as almas - para cumprirem suas primeiras e arriscadas missões espirituais.

Mas aqui regressam constantemente, para receberem instruções e, sobretudo, para avigorarem a coragem esmorecida por longos e porfiados prélios morais, pois que algumas os sustentam renhidíssimos e sofrem indescritivelmente quando, já de posse dos atributos inerentes à nobreza de carácter e designados para velar pelos entes que lhes são caros, estes repelem seus salutares conselhos, praticam actos revoltantes, que ofendem a pureza dos sentimentos elevados.

"Este é, pois, querido Astral, um dos inúmeros sanatórios do Infinito e ao mesmo tempo uma das suas universidades, para os neófitos ou aprendizes da perfeição espiritual.

Não queres conhecer outros mundos ainda mais primorosos?
Adoptivo de grande contentamento encontram todos os que aqui vêm pousar - ditosos pássaros erradios que se libertaram dessas invernias polares que se chamam provas planetárias - quando algum irmão se acolhe ou passa a outro orbe mais perfeito.

"lá tens assistido aos deslumbrantes festivais com que solenizam esse jubiloso acontecimento, pois que aqui não mais reina o egoísmo, nem o receio de separação eterna.
O que parte em cumprimento do dever sacrossanto, ou para conhecer novos domínios siderais, volta a estas paragens, saudoso dos amados companheiros que deixou momentaneamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:30 pm

"Este é um dos impérios da imortal esperança.
Por isso em todo ele predomina a cor verde que a simboliza no planeta de onde vieste e para o qual vais regressar.
Nele, a ideia da separação perpétua não flagela mais a nenhum dos seres com os quais acabas de te relacionar para sempre.

"Não te sentes ainda com ânimo bastante para a elevadíssima tarefa moral que te confia a Providência:
proteger quem sofre por ti e por Sidérea, dois satélites da sua alma torturada?".
- Como me hei-de escusar, querido Mestre, de cumprir a ordem que me derdes, recebendo-a da omnipotência divina, se vos devo a dita e a serenidade que desfruto?

Executarei, sem tergiversações ou desfalecimentos, com a maior submissão, todas as determinações que venham de um Espírito preclaro como sois, porque vos venero, admiro e desejo retribuir, como perene gratidão, a solicitude paternal que me tendes dispensado!

Constitui agora ardente aspiração minha permanecer ao lado daquele quem dei o sacrossanto nome de pai, desejando fazer o que lhe prometi sempre, até nos meus últimos instantes da vida terrena.
"Vós, ó amado Mestre, que me arrancastes ao turbilhão dos delitos, que almejais o meu aprimoramento anímico, não ledes meus pensamentos através da minha fronte translúcida, que se assemelha à campânula de cristal cobrindo uma lâmpada acesa?

"Posso recusar-me a me desvelar por aquele a quem consagro imperecível afeição?

Todo o nosso trágico e doloroso passado se extinguiu.
Não há mais vestígio, no âmbito de minh'alma, do que fomos um para o outro, em remotas eras, e, como dissestes, o amor filial que lhe voto, qual saneadora esponja, apagou de uma vez por todas os atros caracteres que o ódio gravara no recesso de nossos espíritos e que, quando nos abominávamos, pareciam indeléveis.

"Apressemo-nos!
Deixo novamente a ventura pela dor, mas não me molesto, pois convencido estou de que os conquistadores da felicidade superna são o sofrimento, o sacrifício, o dever.

"Estancar uma lágrima é sentir a alma venturosa;
cumprir um dever sagrado e austero é banhá-la numa caudal de luz, que jamais se extinguirá."

Ditas estas palavras, ele me estendeu a mão de névoa radiosa e apertou a minha com efusão, murmurando cheio de emoção e enternecimento:
- Não foram infrutíferos os meus esforços, pois consegui que te reabilitasses, que te tornasses um espírito recto e nobilíssimo!

Senhor! Abençoai este irmão que já é digno de ser um dos vossos emissários!
Ao proferir esta veemente súplica, ao som de um hino dulcíssimo, todos os irmãos que nos cercavam se concentraram em profunda meditação, formulando fervorosa prece numa real comunhão de ideias.

Observei, pela primeira vez, um maravilhoso fenómeno:
vi cair do Alto uma chuva de prata pulverizada.
Era como se sobre todas aquelas frontes ilibadas, erguidas para o Além, numa atitude de prece, joeirasse suavíssimo luar.

Senti que meu ser imergia num oceano de paz, de inefável serenidade, flutuando sobre ondas de luminosa suavidade.
Logo que todos cessaram de orar por mim, congregamo-nos ao redor da harpa eólia e, ladeado pelo meu insigne Mestre e por Sidérea, executei uma sonata que estudava em minha mente, como se a houveram transformado num oceano de harmonias.

Ao terminar, consagrei-a ao piedoso amigo que me norteou para o bem e para a felicidade que fruem os redimidos.

Entoamos depois, em coro, um cântico ao Incomparável, expressando-lhe tudo quanto transbordava do meu íntimo:
- reconhecimento imperecível pelos benefícios dispensados a todas as criaturas;
tristeza, por ter de me afastar, embora momentaneamente, daquele remanso;
ansiedade pelo regresso;
anelo por cumprir estritamente a incumbência que me era dada;
desejo ardente de não vacilar nem fraquejar e de ser auxiliado com a bênção divina - áureo broquel que nos torna imunes, invulneráveis aos assaltos do mal, eterna mente invencíveis.

Sidérea compôs também umas estrofes líricas, que foram cantadas por ela e outros irmãos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:30 pm

Lembro-me ainda das quadras seguintes, que se descoloram quando vertidas para um idioma inexpressivo e imperfeito, tão diverso do original:
Criador! Nos supremos instantes,
Em que os vossos fiéis paladinos
Vão partir para os prélios gigantes
Do dever, vos imploram, em hino:

- Enflorai nossas frontes de Esperança...
Dai-nos bênção fagueira, impoluta:
Esta é luz, é consolo, é bonança...
Tendo-a alguém, vencerá toda a luta!


Momentos após, deixamos, eu e o meu ínclito Mentor, o orbe esmeraldino e começamos, em vertiginoso voo descendente, a demandar o planeta terrestre.

Transcorridas muitas horas, divisamo-lo circundado de espessa atmosfera.
Depois dos prodígios que contemplara, experimentei um vago temor, um frémito de desagrado, pois que a Terra me pareceu uma esfera carbonizada, envolta em gaze caliginosa, verdadeira guarida do pranto, das atras expiações, do sofrimento.

Mas, para lenir todas as minhas flébeis emoções, ficara-me a lembrança de haver passado algum tempo num radioso paraíso.
Onde quer que me achasse, cuidava ouvir, acompanhando-me Espaço em fora, como se um rouxinol, perdido no firmamento, estivesse a cantá-lo, o hino mavioso de Sidérea, entoado à hora em que nos separamos.

Fora mais um elo que prendera perenemente sua alma saudosa à minha, onde, assim, dois atilhos de luz havia - um vinculando-me à Terra, outro ao Céu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:30 pm

CAPÍTULO VI

Só então, ao atravessar o Espaço em demanda do globo terráqueo, me compenetrei da maravilhosa realidade desfrutada em um mundo fascinador.

Enquanto lá estive, achei-me sob o império de um sonho fantástico!
Não seria de facto pura fantasia permanecer eu numa região formosíssima, como aquela, povoada de seres cultos, laboriosos, belos, artistas exímios, associados para cooperarem nas grandiosas empresas do bem?

Não fora ilusão o ter-me relacionado com os infatigáveis agentes siderais, que descem aos planetas de depuração espiritual para suster as almas à beira do pego das iniquidades, aonde as arrasta o simum das imperfeições e dos vícios, e prepará-las para a ascensão aos orbes isentos de injustiça, de guerra, de impureza, de hipocrisia, enfim, de todo o acervo de males e defeitos morais que hão flagelado as colectividades de todas as eras? Não.

Naquela esfera resplandecente passei horas amenas, conheci as Artes no seu máximo requinte.
Tudo, entretanto, deixara para cumprir um dever.
Daí o trazer tranquila a consciência, embora uma certa melancolia me dominasse.

Não tive um instante sequer de desfalecimento, porque, como bem sabeis, no espírito esclarecido e avigorado pelas refregas morais, pujante é a tenacidade, hercúlea a força que o impulsiona para o bem, para a execução das mais arriscadas missões, por penosas que sejam.

Nele impera a aspiração de servir fielmente ao Criador, de lhe testemunhar imorredoura gratidão, de merecer a sua preciosa bênção - que lhe acende no íntimo focos de luz pura e lhe dá livre ingresso nos mundos modelares, onde já se encontra a felicidade quase em toda a sua plenitude, onde os que se amam com efusão e imaterialmente não mais receiam os aliciantes apartamentos - a mais pungente das provações!

Quando nos aproximamos do globo terrestre - que me pareceu tisnado, enegrecido, umbroso, isolado, em confronto com as rútilas esferas por que passáramos e diante das quais nos detivéramos um momento para melhor as contemplarmos, experimentei um brusco despertar.

Compreendendo a emoção que de mim se apoderara, meu querido Mentor renovou os seus conselhos, que me sensibilizaram até as lágrimas.

Lágrimas! Que são as lágrimas?
Fagulhas que se desligam silenciosamente do nosso próprio ser, perdendo-se no éter e deixando nele muitas vezes um sulco luminoso que nos segue pelo Espaço além, semelhante ao dos aerólitos que, como penas desprendidas desses condores chamejantes - as estrelas cadentes - que voam pelo infinito, são vistos da Terra quais lágrimas de luz, serenas e velozes, que levam as crianças a perguntar "se as estrelas também choram".

Reiterou as instruções que me dera relativamente ao desempenho da minha missão espiritual, traçando a rota que teria de seguir no cumprimento dos meus deveres.

Suas palavras, mal eram pronunciadas, se impregnavam nos refolhos de minh'alma.
- Meu irmão - disse-me ele - já sabes o que tens a fazer, amenizar as últimas aflições de um ente amado, que, em breve, ao exalar o extremo alento, será levado ao orbe que já conheces e que é ao mesmo tempo um tribunal e uma academia para os iniciados nas missões transcendentes.

Sê digno do encargo que te foi confiado e poderás mais longamente gozar do convívio de irmãos lapidados por século de sofrimento.
Nunca, porém, queiras ficar inactivo, porque o trabalho é o propulsor dos Espíritos para o Omnipotente, quem deixou de ser criatura rastejante e banal deve saber abençoá-lo.

Todas as entidades que viste, ávidas de progresso, se esmeram cada vez mais no desempenho de tarefa que lhes dão direito a acessos, a promoções na hierarquia espiritual, feitas de acordo com o mérito real, obedecendo à mais íntegra justiça.

Só as conseguem os lídimos heróis os mais abnegados, impávidos, laboriosos.
"Vou deixar-te em breve, Astral, saudoso mas exultante, porque te vejo trilhando o áspero carreiro da virtude e sei que jamais desmerecerás do meu conceito.

"Virei aconselhar-te com frequência;
continuarei vigilante, mesmo separado de ti, pois sabes que há uma algema radiosa ligando todos os entes remidos - o amor -, centelha divina transfundida em nossas almas, sentimento-luz, como o ódio é o sentimento-treva.

"Poderás dulcificar os teus labores quando te aprouver, passando algumas horas ledas no mundo que te encanta, onde comporás harmoniosas obras.
"Terás ensejo de encontrar os que te foram antigos, companheiros, parentes, em passadas existências, e que estão a terminar suas provas planetárias.

Não deixarei de velar por ti, paternal e devotadamente, mas não me verás por algum tempo.
Ficarei qual corpo celeste que, sombreado por total eclipse, não pode da Terra ser visto, mas continua a exercer sobre ela a mesma influência."
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:31 pm

* * *
- Eis-nos, Astral, chegados à metade da nossa jornada.
Estamos na França, que foi tua pátria em mais de duas encarnações, país onde sofreste dores lancinantes, onde delinquiste muitas vezes e terminaste há pouco urna das tuas vidas mais cheias de pungentes e salutares reparações.

"É sempre proveitoso ao nosso espírito percorrer os sítios que lhe são familiares, recordar o que já fez de nocivo e o que aí padeceu.
Acompanhar-te-ei a todos eles, porque todos foram por mim também perlustrados.
"Aproximamo-nos agora de Paris.

Eis a chamada cidade-luz, tão bela, tão imponente para os que a observam ainda com os órgãos visuais materializados, poetizada por um passado memorável.
Aqui se hão desenrolado dramas estúpidos, monstruosos e sinistros.
Este tem sido igualmente o cenário de abnegações, de heroísmos, de tragédias, de martírios inomináveis.

Contempla-a, Astral, com o mesmo recolhimento com que penetramos num Campo Santo, onde jazem os farrapos humanos, as rotas vestes da alma.
"Com a aprendizagem que já fizeste em mundos deslumbrantes, bem vês quanto são inferiores às do Espaço a maravilhas da Terra."

Vi-me de súbito como que despertado de um longo sonho venturoso, numa povoada região, com o seu incessante perpassar de transeuntes - ondas humanas que se sucede: ininterruptamente -, com seus esplêndidos palácios, seus famosos monumentos, que causam assombro aos turistas que, no entanto, são de extrema mesquinhez comparado aos dos orbes fulgentes, onde as Artes se tornaram quintessenciadas, inimitáveis, onde a magnificência das construções, de impecável arquitectura, enleia os que as contemplam pela primeira vez.

É que nelas predomina a luminosidade;
a matéria de que são feitas é quase imponderável, tem a translucidez e a rutilância dos topázios, dos diamantes, das esmeraldas incendiadas.

Foi com indescritível emoção que comecei a rever aqueles familiares e amados sítios.
Verifiquei, então, quão exacta era a ideia que trazia de tudo que me cercava, quando cego na minha retentiva - espelho mágico em que se reflectem a imagens de tudo o que observamos em anteriores existências - se gravaram todos os fenómenos presenciados em diversas encarnações, tudo como que encerrado numa urna encantada, que abro quando me apraz.

Fui ter, ainda orientado pelo Protector, à mesquinha mansarda onde por último desencarnara ao termo de espinhosa vida que hoje bendigo, porque colho flores que jamais fenecerão e que, para desabrochar, precisaram ter as hastes borrifadas de lágrimas.

Apesar de nunca a haver visto, não me iludira na ideia que dela sempre formara.
Outros modestos móveis substituíram os nossos;
outra família paupérrima, constituída por criaturas pálidas e melancólicas, habitava a humilde mansarda.

Espectadores invisíveis, percorremos livremente os poucos e acanhados compartimentos de que se compunha, detive-me no pequeno aposento onde eu e minha irmã exaláramos o último alento e onde nosso pobre pai tantas súplicas nos dirigira.

Que fora feito do paralítico?

Lendo-me os pensamentos, o tutelar Companheiro me informou:
- Jaz num hospital.
A pensão que recebe do irmão, ele a dá aos cegos.
A bondosa Margot se acolheu à casa do teu leal amigo Duchemont.

Infinita ternura me empolgara todo o ser.
Dominava-me o desejo veemente de ver o querido entrevado, cujas feições desconhecia, mas imaginava denunciadoras de austera nobreza.

Quanto ao que ali sofrera, já não me magoava mais.
Minha impressão era a de quem, tendo adormecido num lôbrego pardieiro, despertara em sumptuoso solar, surgido da terra ao contacto de uma vara mágica.

Não foi realmente o que me sucedeu?
Não adormeci, após infortúnios inconcebíveis, em sombrio tugúrio para acordar num mundo rutilante, de ideal beleza?
- Lembra-te sempre, Astral, com gratidão, das pessoas que habitaram esta desconfortável morada - disse-me ainda o extremoso Guia - e a cada uma delas faze carinhosa visita.

Hás-de ir também ao lar de Duchemont, auxilia -lo em seus trabalhos musicais, dar-lhe a compreender que o não esqueces e que jamais se romperão os vínculos que ligam tua alma à dele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:31 pm

Percorre sem vexame esta mansarda.
São lúgubres, sim, as suas paredes, como eram as que muravam o teu espírito, mas foi aqui que tua alma começou a vestir-se de luz, a contrastar com as trevas de teus olhos.

"Recordar o que fomos, o que sofremos, folhear as páginas de passadas vidas, escritas com pranto, é nos proveitoso, serve para que nem um só átomo de orgulho se aferre ao nosso íntimo, para que melhor possamos avaliar os nossos esforços, a metamorfose operada em nosso ego...

"Reavivar o passado é sondar um pego imensurável com o escafandro da realidade, levando à mão uma lanterna de rádio, a cuja luz podemos perquirir, investigar serenamente - como o cientista isolado no seu laboratório - o que já praticamos.

Descobriremos, então, no pélago da alma, dragões horripilantes - os nossos desvarios - e as róseas pérolas de afeições sinceras, de carícias inolvidáveis, de abnegações sublimes, de sacrifícios redentores.
"Sondemos, pois, constantemente o passado, esse grande, esse ilimitado oceano que se contém em nossa alma e que se avoluma, cresce de segundo a segundo, mas do qual jamais transborda uma só gota.

"Que valeria o prazer desfrutado numa esfera cintilante, se olvidássemos todos os infortúnios que nos laceraram o coração, enquanto peregrinávamos na Terra?
Para que a felicidade seja plena e intensa, é mister que tenha havido o sofrimento; que ela represente o troféu de porfiada luta.
"Quem nunca padeceu frui inconscientemente uma ventura, que tornará, por fim, insípida, tediosa, nula, devoradora de si mesma, como Saturno o era dos próprios filhos.

Quem ignora o que seja o labor não sabe apreciar as horas de lazer; quem nunca verteu uma lágrima de dor desconhece a esperança que enflora os corações nos instantes de amargura, fazendo-os sonhar dias calmos e ledos.

"A ventura não se alimenta desde que nada mais haja a desejar, a saciar, a empreender.
Uma criatura feliz, a que nada mais aspire, vive inerte, e a inércia é corrosiva, como a oxidação, que destrói o próprio aço.
"O vegetal para se tornar virente, viçoso, para se laurear de flores, precisa ser rociado todas as noites, regado todas as manhãs, receber os ósculos do Sol, respirar a aragem fagueira.

Pois bem, a felicidade é planta ainda mais melindrosa, requer cuidados extremos, incessantes, para que não definhe, resseque e pereça.
"Aquele que, desde criança, só se alimentasse de um néctar delicioso, não lhe poderia achar o sabor que nele descobriria quem, habituado a frugal alimentação, o sorvesse uma só vez na vida.

A repetição da ventura fá-la banal.
Para que a logremos duradoura, constante, cumpre tenhamos sempre obstáculos a vencer.

Nos instantes de repouso, precisamos ter, para evocar, passadas refregas, a fim de jamais cairmos na beatitude.
Eis por que o trabalho é progresso, é uma das leis eternas e universais, é pedra de Sísifo, 56 em perpétuo movimento."

* * *
- Apressemo-nos, agora, Astral, para que dês início à tua missão espiritual.

"Vais, enfim, contemplar as feições daquele a quem estás ligado para todo o sempre.
Onde se forjaram os grilhões que vos uniram para a consumação dos séculos?
Em dois leitos de dor, dos quais só resta um.
Vem vê-lo, meu irmão."

Calou-se o preclaro Mentor e fiquei a rememorar o passado, como se recordasse as cenas de um drama doloroso e fugitivo, do qual não pudesse me esquecer nunca, mas que não me causasse mais opressão.
Essas romarias, que empreendemos através das eras remotas, são como as derradeiras vagas que desfalecem em praia vastíssima, sem a impetuosidade das primeiras, das que se erguem do mais profundo abismo oceânico.

Chegava a duvidar, por momentos, de que aquele que eu tanto desejava ver, de quem me sentia saudoso, fosse o mesmo ente a quem já odiara com todas as veras do coração.

Deixamos a mansarda onde penetráramos e, presto, nos achamos em vasto edifício, onde entramos sutilmente.
Uma vez lá, compelido me vi por estranha força a me acercar de um dos leitos daquela extensa enfermaria.

Meu protector me deteve e, com voz imperceptível para os que víamos, mas para mim pausada e merencória, murmurou:
- Eis a antecâmara da morte, na habitação da dor!
Eis onde se fundem, numa só, todas as raças humanas, onde se abatem todos os iguais pelo sofrimento, irmãos sem lar, sem família, sem amigos, vivendo todos, no último quartel da existência, fraternalmente, de preconceitos.

Aqui, o artista, o filósofo, o herói, o calceteiro, o ébrio, o vagabundo, os desgraçados de todas as classes sociais se tornam filantropia e da compaixão alheias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2013 10:31 pm

Aqui terminam as vaidades, a soberba, a beleza física, o gozo material;
aqui só existe uma raça, uma só nacionalidade - a dos desditosos - venham eles da Sibéria, da Austrália, da América, do Congo;
aqui todos se tornam conterrâneos, pois a desventura não tem pátria, nivela todas as condições, como a natureza, nos sepulcros, faz com os corpos putrefactos.

Aqui se fala a linguagem mundial, um idioma conhecido de todos os povos - o do gemido, da agonia e do sofrimento.
O gemido, o soluço e a lágrima, como a dor, não têm pátrias diversas, são cosmopolitas e não se diferençam em nenhum país - quer o habite um povo culto, quer uma horda bárbara de silvícolas.

"Aproximemo-nos agora, meu irmão, pois aquele pelo qual vais zelar está ansioso pela tua vinda.
Contempla-o com piedade e carinho, como nunca o fizeste na tua última existência, porque teus olhos não tinham vida".

Acerquei-me de alvo leito onde jazia um enfermo com as pálpebras semicerradas.
Apesar de se achar extremamente descarnado e pálido, seus traços fisionómicos - esculturados com o escopro do martírio em longos anos de enfermidade e sofrimento - eram de pureza e correcção notáveis, semelhantes aos de uma imagem esculpida por estatuário insigne.

Pareciam entalhados em jaspe.
Seus cabelos, outrora louros, já tinham sido quase de todo invadidos pela canice - que é a neve da senectude ou da dor.

Ao inverso do que se dá com as estações do ano, em que a primavera sucede ao período hiemal, a flor ao gelo, aquela neve cresta e desagrega os fios de ouro das frontes juvenis, transmuda em prata os cabelos fulvos ou de azeviche e estiola nos corações as derradeiras rosas da ilusão.

Um sorriso de resignação lhe pairava nos lábios descorados;
estava imóvel, parecendo marmórea escultura humana, semivelada por níveo lençol.
Reconhecia-se não ser um cadáver porque, às vezes, descerrava as pálpebras, articulava sons, gemia.

Percebia-se, enfim, que sua alma se conservava prisioneira na sepultura carnal, quase inerte, qual falena que entreabrisse o casulo, ainda a ele presa por uma resistente fibra de seda.

Não era uma estátua, porque na cabeça se lhe concentrava toda a vida.
No rosto lia-se indizível expressão de mágoas e de saudade, que nenhum artista de génio lograra gravar num bloco de Paros, como, com o seu buril e com absoluta perfeição, o consegue a dor, que aos poucos aprimora a alma e a embeleza de tal sorte que a torna fúlgida através da matéria, luminosa dentro do organismo mais disforme.

Quando Leonardo da Vinci,57 num esto de inspiração, eternizou num painel o inconfundível sorriso da Gioconda, se houvera lembrado de imortalizar a angústia dos incompreendidos, dos torturados, legaria a seus coevos e à posteridade obra superior a todas as suas obras-primas.

Quem não se emocionaria ante uma tela onde visse estampada a dor muda do que perdeu um ente amado, do que foi traído, espezinhado, do que tem o coração a transbordar de lágrimas que, uma a uma, lhe vão deslizando pela face marmórea, silenciosamente?

57 Pintor italiano (1452-1519), cuja obra mais conhecida é a Gioconda (retrato de Mona Lisa).
Era também escultor, arquitecto, físico, engenheiro e escritor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2013 9:51 pm

CAPÍTULO VII

Nenhuma palavra, caro amigo, poderá exprimir a comoção que de mim se apossou ao encontrar-me, após alguns dias de separação, com o ente estremecido, a quem chamei pai.

Só então me foi dado olhá-lo e o fiz com uma ternura e uma compaixão, como iguais jamais sentira por outra criatura humana, a não ser por minha irmã.
E por que não vos hei-de expor todos os meus pensamentos, nesta sincera confissão, que está prestes a terminar?

Superava todos os meus sentimentos um misto de amargura e de remorso, por ter sido eu, quase, o causador dos padecimentos, da acerba provação daquele a quem ali via com os membros tolhidos, o corpo por assim dizer petrificado e o cérebro a escaldar, num borbulhar contínuo de ideias mortificantes, a pensar na sua inutilidade para a vida, na ausência dos adorados filhos, tendo a lhe avigorar as recordações que deles guardara o amor paterno intensificado por vivíssima saudade.

Alanceava-me o espírito essa mescla indefinível de sentimentos que se conflagravam no meu íntimo.
De súbito, porém, notei que o olhar puro, sereno e carinhoso do meu Protector baixava sobre mim, como bênção celestial e, percebendo nesse olhar tácita interpelação, prosternei--me à beira daquele leito de sofrimentos físicos e morais.

Para logo senti que ardentes lágrimas gotejavam de meus olhos ou de minha própria alma, como fagulhas desprendidas de uma frágua em combustão, revolvida por possante tridente.
Assim genuflexo, humilde, sem me atrever a olhar para o pobre enfermo, eu lhe suplicava que me perdoasse tudo quanto lhe fizera sofrer.

Ao mesmo tempo que formulava essa veemente súplica, meu espírito, sensibilizado, voou ao infinito, nas asas do pensamento, para implorar perdão ao Soberano do Universo. Imediatamente me senti contrito e inundado de luminosa paz de consciência.

Disse-me então meu Guia, sempre compassivo:
- Ergue-te, meu irmão.
O passado, que ainda permanece vívido na tua mente e que ainda te suplicia a alma regenerada e nobre, já o remiste no Jordão de lágrimas que verteste, suportando todas as provas sem revolta contra a Providência Divina, cumprindo rigorosamente os teus deveres, ungindo de suavíssimo bálsamo o coração daquele a quem acabas de implorar perdão, conseguindo erguer-lhe o espírito do caos da dúvida e do cepticismo aos paramos siderais, com que ele sempre sonha nos momentos de angústia.

"Esse perdão que suplicaste há pouco, demonstrando a pureza de tuas intenções e de teus sentimentos, já te foi concedido pelo Omnipotente e há muito o obtiveste deste que em breve se libertará da carne.
Agora o que te cumpre é, quando o pungirem penosas recordações, fazeres o possível por lhas desvanecer, a fim de que mais se estreitem os laços afectivos que vos prendem um ao outro.

"Podes dar começo ao desempenho da tua missão.
Contempla-o sem remorsos, com ternura fraternal, procura ler-lhe os pensamentos, que te esclarecerão sobre os seus sentimentos atuais".

Pude então placidamente observar o que se evolava daquele cérebro.
Os pensamentos são como fotografias nítidas e fugazes que incessantemente saem da fronte humana.
Cheio de emoção e compadecido dos seus pesares, verifiquei que pensava nos amados filhos.

Algumas gotas de pranto lhe deslizavam pelo rosto alabastrino, enquanto os lábios se moviam ligeiramente, rogando ao Omnipotente lhe permitisse reunir-se àqueles a quem adorava e que o precederam na misteriosa romagem da morte, a ceifadora eterna, a libertadora, quando corta os liames de uma vida isenta de máculas, santificada pela rectidão dos probos.

Quando dele me aproximei, vivo frémito lhe percorreu todo o organismo e o fez abrir desmesuradamente as pálpebras, como se quisesse ver bem alguma coisa extraordinária que divisara.

Seu olhar, porém, circunvagou a esmo, sem fixar nenhum ponto determinado, como que procurando o que o fizera estremecer.
Tivera a intuição da presença de um ser imaterial recém-chegado e, sem o saber, deteve o olhar justamente em direcção a mim.
Conforme as instruções do querido Mentor, estendi a mão sobre a sua fronte precocemente encanecida pelo inverno do infortúnio.

Dir-se-ia que as lágrimas de dor, represadas no crânio, extravasararn pelos poros e, cristalizadas ou congeladas subitamente, formaram os fios de neve que lhe argenteavam a cabeça.

E minha mão tocou uma outra, também imponderável, que ma cingiu fraternalmente.
Mostrou-se-me, nesse momento, um nobre mensageiro sideral, o protector de meu pai, e fez saber, falando o idioma do pensamento, que, dali por diante, os nossos esforços se uniriam, colimando o mesmo elevado objectivo - esclarecer o entrevado, suavizar-lhe as derradeiras amarguras.

Abrandada a inquietação que o agitava, pude ver, apiedado e enternecido, a minha própria imagem, como numa fotografia, desprender-se do seu cérebro, na atitude que me era habitual quando executava as minhas composições musicais.
O pranto, que corria incessantemente de seus olhos, foi diminuindo até estancar de todo e ele adormeceu serenamente, sempre a se recordar saudoso do filho dilecto e das melodias com que amenizava os tormentos de sua alma.

Como vos hei-de expressar o enternecimento que me empolgou ante aquela evocação do passado, da época em que os nossos espíritos se vincularam para sempre um ao outro?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2013 9:51 pm

Tive assim a certeza absoluta da afeição que me consagrava.
E mal sabia o pobre encarnado que aquele que a sua imaginação ressuscitava se achava ali ao alcance do seu braço, já estivera ajoelhado à sua cabeceira, também já chorara junto do seu leito, rogando-lhe o perdão indispensável à perfeita tranquilidade da sua consciência.

O sono é o símile da morte, da emancipação da alma acorrentada à matéria.
Tendo ele adormecido, seu espírito se desprendeu e me foi dado assim unir-me a ele por alguns instantes, segui-lo em suas divagações, nos seus esforços por se encontrar com os seres idolatrados que não conseguia ver, como desejava o seu coração premido de saudades.

Quando me aprouve, surgi à sua frente, segurei-lhe uma das mãos e a osculei carinhosamente.
Tão intenso foi o seu júbilo que, no leito, o corpo petrificado se agitou ligeiramente.
Despertou assustado, abriu desmedidamente os olhos, a querer certificar-se do local em que se achava, e logo uma notável transformação se lhe operou na fisionomia.

À expressão de dor e saudade que dela transparecia se juntou um fulgor de alegria.
Propagou-se pelo semblante, vindo da alma à face marmórea, um íntimo clarão, que o transfigurou, dando-lhe uma aparência de serenidade incomparável, uns laivos de felicidade.

Foi assim que, quando dele se aproximou a religiosa que o tratava com dedicação quase filial - uma jovem e graciosa criatura de olhos cerúleos, melancólicos e cismadores, reveladores de secreto e inconsolável pesar que lhe fizera renegar os efémeros gozos da vida e a levara a consagrar à Humanidade sofredora a sua mocidade em flor -, criatura a quem ele se afeiçoara imenso, porque lhe recordava o todo angelical de Jeanne, o mísero paralítico lhe disse quase alegremente:
- Irmã, acabo de despertar de um sonho venturoso, em que vi o meu François, o meu inolvidável filho, o artista inspirado que suavizava as agruras de minha existência ao som do seu violino encantado.

Que sonho fagueiro, irmã!
Hoje me sinto ditoso porque foi a primeira vez que sonhei com o morto querido:
pareceu-me que acabo de vê-lo, realmente!

Ele se acercou de mim, beijou-me a mão e tenho ainda a impressão de haver recebido essa carícia que me fez exultar.
Desejaria não acordar jamais, para senti-la sempre!
Rogai a Deus permita que essa ilusão se transforme em flórea realidade, irmã!
Quando gozarei a dita de me reunir aos amados filhos?

- Além - respondeu-lhe gravemente a religiosa, apontando para o Alto, com o alvo e esguio índex - e quando aprouver ao nosso Pai Celestial.
Não desejeis demasiado a morte, não a queirais antes que ao Senhor apraza vo-la enviar:
é mister nos conformemos com os desígnios divinos, não procurando abreviar os momentos de dor que merecemos.

- Bem o sei, irmã, e assim mo dizia sempre o meu François, mas já tenho padecido tanto que o Altíssimo bem podia lançar a sua misericórdia sobre mim.

- Ele sabe quando a mereceis, meu irmão! - replicou a flébil sacerdotisa da caridade, afastando-se do leito de Delavigne.
Irmãos - eis como se tratavam mutuamente aqueles dois seres que, para o mundo, já não possuíam mais os nomes recebidos na pia baptismal.

Numa das moradas do sofrimento - um hospital - amenizado pelo altruísmo da sociedade civilizada, que já se vai compadecendo da dor alheia, usavam da mesma designação que, no Espaço, os entes regenerados adoptam uns para com os outros.

Iniciavam assim, na Terra, o que depois fariam no empíreo.
Irmãos, sim, pois que a Humanidade, disseminada em miríades de mansões, se compõe de membros que, no decorrer dos séculos, se tornam iguais em condições e sentimentos, solidários uns com os outros.

A fraternidade é o sublime e rutilante elo que encadeia indissoluvelmente todas as almas, consubstanciando todos o sentimentos afectivos em um só - o amor recíproco - acima do qual, como o disse o meu querido Mestre, só existe o sentimento-luz, o sentimento que torna fúlgidos os Espíritos - o amor ao Omnipotente, que equilibra no vácuo e no éter os corpos ciclópicos dos astros, com a mesma facilidade com que uma criancinha atira para os ares um floco de neve; que forja as estrelas e as nebulosas, cujo lume maravilhoso vence os milénios, inalterável sempre, imperecível, inextinguível!

Vendo-as como letras de ouro luminoso, gravadas em páginas de veludo azul, contemplando o manto sideral, as almas sentem a atracção do infinito, desejam possuir asas para ir admirá-las de perto, prosternam-se extasiadas no solo a que ainda se acham presas, como se o fizessem diante de um altar, de um santuário ilimitado, admirando o poder e a omnisciência do Incriado!

Com a admiração dos portentos que o cosmos encerra, surge o amor ao Criador; os sentimentos se abrandam, acendram e apuram; a Humanidade passa a ser vista sob outro aspecto, deixa de ser considerada hostil ou indiferente e se torna uma só família estremecida;
todas as pátrias se fundem numa única - a Terra;
e a alma, cheia de amor, arroteada pelas tribulações e acrisolada pelas virtudes, se norteia para o Céu, ímã que a todas atrai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2013 9:51 pm

É o amor, pois, o ascensor dos espíritos para o firmamento.
Enquanto os ensombram os vícios, o ódio, a cizânia, o orgulho, a perfídia, a soberba, não admiram a Criação, detestam as colectividades, entrincheiram-se no egoísmo e no cepticismo, ficam adstritos às trevas, qual navio ancorado nas geleiras polares, onde quase não chegam os raios do Sol.

É quando a dor os tortura para aperfeiçoá-los, como o lapidário às gemas.
Sem lhes dar tréguas, ela dissolve os nevoeiros que não os deixavam vislumbrar a claridade que cascateia do infinito, que embeleza a Natureza e os faz enveredar pela alcantilada senda do bem, da probidade, da rectidão, tornando-os, por fim, alvos como os véus nupciais que cobrem as frontes das donzelas e aptos para desferir o grande voo, Espaço em fora.

* * *
Terminado o diálogo entre o enfermo e a religiosa, meu prezado Mentor me falou, com a gravidade e a ponderação que lhe são peculiares:
- Agora vou deixar-te, Astral.
Parto jubiloso porque sei que cumprirás meticulosamente todos os teus deveres espirituais.

Não ficarás nunca completamente só, pois bem sabes que cada alma encarnada é qual planeta rodeado de satélites.
Cercam-na constantemente os seus Protectores ou Génios familiares.
Em breve conhecerás todos os Delavigne, inclusive um que o é teu e dele ao mesmo tempo - o Espírito daquela que, ao dar-te o ser, na sua última existência planetária, perdeu a vida orgânica.

"Este luminoso irmão que te saudou é o desvelado Guia do teu progenitor.
Vais ser seu auxiliar.
Terás que o substituir, sempre que necessitar ausentar-se, no desempenho de sua missão ou para repousar um pouco no remanso de algum mundo superior.

Procederás invariavelmente de acordo com ele.
"Não me verás durante certo tempo, mas continuarei a velar por ti.
Em chegando o momento da desencarnação de Delavigne, eu, Sidérea e todos os entes a quem ele ama estaremos presentes, pois não ignoras que os leais amigos desencarnados não abandonam os leitos mortuários.

"Vou, enquanto aqui ficas laborando pelo teu progresso espiritual, fruir algumas horas de alegrias inefáveis, na companhia de beneméritos irmãos que aguardam minha volta a uma das mais belas estâncias de paz, de Ciência e de Arte transcendentes, donde me ausentei há séculos, por tua causa.

"Em longínquas eras, como já sabes, minha existência se achou ligada à tua;
tu te tornaste caro ao meu coração e, como te vi chafurdando no lodaçal dos erros e dos crimes, tomei a mim a tarefa de elevar tua alma ao Criador e afinal o consegui.

Triunfaste do mal, inspirei-te sempre o bem.
Ambos conquistamos um galardão eterno.
"Vou receber instruções dos nossos superiores hierárquicos, encetar novas missões, pois que nada podemos fazer sem o beneplácito deles, ministros do Pai Celestial.

"Até breve, amado irmão.
Sê, agora e sempre, digno do meu afecto e de meus esforços seculares.
Pertences ao formidável, infinito e invencível exército dos invisíveis, dos paladinos da perfeição, dos servos da virtude, dos que militam por tudo quanto é útil, elevado, generoso e bom.

Sê, no meio deles, um dos mais heróicos, tenazes e diligentes batalhadores!
Que a bênção do Altíssimo engrinalde de luz a tua fronte".

Nada vos direi, bom amigo, relativamente ao instante em que me separei, embora temporariamente, do meu magnânimo Mestre, infatigável atalaia que vem acompanhando meus passos ao longo dos evos;
fulgida ronda que me não abandonou um só momento em dezenas de séculos, escudando-me sempre com seus cuidados, com a sua solicitude;
companheiro leal e dedicado que há presenciado as minhas lutas, os meus desfalecimentos, os meus desvios, os meus esforços, as minhas dores, conseguindo que, após tenaz e porfiada campanha moral, meu espírito pudesse encontrar guarida num desses ninhos de luz que se balouçam na fronde azul do Infinito.

Conhecendo a afeição ilibada que nos liga e ligará por todo o sempre, bem deveis compreender que não me era possível assistir indiferente à sua partida, quando, mais do que nunca, me sentia ávido de lhe escutar os salutares conselhos, desejoso de beber todos os seus puros ensinamentos, como quem, percorrendo um vergel em sazão primaveril, almejasse colher todas as flores desabrochadas, para de todas aspirar os inebriantes aromas e deles impregnar os escrínios da alma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2013 9:51 pm

Suas benéficas instruções sempre foram, para mim, ideais e olorosas flores, que colho com proveito e aspiro com sumo aprazimento.
Ao vê-lo afastar-se, depois de lhe haver osculado a radiosa destra, passei por momentâneo esmorecimento, senti-me indefeso e intimidado, como a criança que pela primeira vez se distancia do olhar materno para desempenhar uma pequenina incumbência, que lhe parecia leve e fácil, mas que, então, assume proporções colossais para a sua inexperiente puerícia, que chega a supô-la inexequível.

Elevei, porém, o pensamento a Deus - fonte inesgotável de todas as consolações e energias - e senti que as potências de minh'alma se avigoraram.
Não era mister que vos desse a conhecer essas impressões, pois que, com um tirocínio espiritual mais longo do que o meu, já conheceis uma grande fracção do Espaço e não ignorais as leis imutáveis que regem os mundos e seus habitantes.

Mas, não hesitei em pormenorizar tudo quanto se tem passado comigo, desde que nos separamos em Bruxelas, onde nos relacionamos intimamente, porque só hoje vos faço a confissão integral das minhas jornadas terrestres, sabendo quanto vos interessais por mim, sentindo que doravante as algemas diamantinas do amor fraterno hão-de cingir os nossos pulsos perenemente.

E, pois que assim é, quero, quando vejo prestes a findar a minha primeira missão psíquica, fazer-vos um pedido.
Desejo, prezado amigo, que, em breve, ao vos sentirdes atraído pelo meu pensamento, vos deis pressa em vir ao meu encontro.
Será para que me acompanheis a uma das moradas da agonia - o hospital em que se acha o meu progenitor - a fim de que juntos assistamos os seus últimos instantes de vida terrena.

Venho de receber do meu preclaro Guia magnas lições e me vou separar de vós, até que de novo nos possamos reunir, no momento de ser arrancada a última pétala daquela existência fértil em dores, daquela rosa efémera, que parecia eterna e que, dentro em poucos dias, se desfolhará para sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2013 9:52 pm

CAPÍTULO VIII

Chegado o momento previsto, fui - pela corrente eléctrica que se estabelece de um espírito a outro, por meio do poderoso dínamo do pensamento - atraído para o local em que se achava o inolvidável amigo que, na Bélgica, conheci com o nome de Paulo Devarnier.

Saudamo-nos cordialmente e logo ele me disse com extrema emoção, transpondo os umbrais de um hospital:
- Vinde, caro amigo, ao lugar onde se encontra o meu querido progenitor.
Desejo que o conheçais agora que está quase a finalizar a tormentosa mas benéfica existência terrena em que conquistou a láurea dos vencedores.

"Vede-o, meu irmão, neste leito à direita.
Ei-lo, ao termo da prolongada enfermidade, que lhe constringe os músculos há quase um lustro, como manopla de aço que o imobiliza e lhe esmaga um dos braços.

Tem a aparência de uma estátua de pedra, dentro da qual uma alma estivesse condenada a permanecer ligada eternamente.

"Entretanto, essa pena pungentíssima, que lhe foi imposta, nada tem de arbitrária;
é uma aplicação do incomparável código divino.
Sendo Deus o mais extremoso dos pais, deve também sofrer quando tenha de lavrar tão severa sentença contra os míseros galés do mal.

"Só no cárcere da dor resgatamos os delitos hediondos que cometemos, porque o sofrimento é vulnerário, é saneador, é comburente.

Como a pedralipes, ele, queimado, cicatriza os carcinomas da alma.
"Oh! quão sábios são os desígnios da Providência, meu amigo!
Quando poderia este agonizante suspeitar que o seu dilecto François, cuja fronte tantas vezes recebeu seus beijos paternais, é o mesmo desventurado Paulo que abominou com a inclemência de um inquisidor?

Por que perdeu os braços, sendo-lhe um amputado e ficando o outro paralisado, se era probo e laborioso?
Ah! é que os tivera robustos e ágeis, em outras existências, e não os aplicou exclusivamente ao trabalho, deles se utilizou para empunhar armas homicidas, com as quais eliminou vidas preciosas, inclusive a sua própria, que lhe cumpria conservar, pois que lha dera o Omnipotente.

"Na encarnação que ora chega a termo, ele sofreu por não ser útil àqueles a quem amava e, mesmo que o quisesse, não poderia praticar o mal, porque há muito a paralisia o manietara.
Ganhou mérito incontestável, porque, com a inércia do corpo, muito sofreu o seu Espírito, que tanto mais activo se sentia quanto mais se acentuava a sua invalidez orgânica.

Foram-lhe proveitosas as torturas que padeceu por não poder proporcionar aos filhos adorados o conforto que lhes desejava dar.
Teve que os ver sem pão inúmeras vezes, assistir à derrocada do lar, que se tornou deserto, passar pelo suplício de perder todos os entes que santamente idolatrava.

É que aqueles a quem infelicitamos não podem fazer a nossa ventura senão depois de havermos reparado as nossas faltas anteriores.
"Eu, como sabeis, tenho sido o seu consócio de infortúnios, compartilhando de todos os seus transes amargurados.
Resgatamos juntos, ao lado um do outro, dívidas nefandas, pois que mutuamente nos ofendemos, ciliciamos e odiamos.

Agora que ele se acha no limiar de uma outra existência, pergunto a mim mesmo:
- Qual a expiação mais dolorosa - a minha ou a sua?
"Ah! difícil é a resposta, meu amigo.
Ambos temos sofrido muito;
ambos assistimos ao passamento de entes adorados;
ambos tivemos corpos mutilados, servindo de prisão a almas sensíveis, cheias de ideais irrealizáveis.

Fomos quase inúteis para a vida e para a sociedade;
mas, enquanto se debatiam nos seus ergástulos miseráveis, forcejando por lhes partir as resistentes grades, nossos espíritos se iam libertando dos seus aleijões, das suas deformidades morais, apuravam os sentimentos, se escoimavam das suas imperfeições, refundindo--se, lapidando-se, como hábeis estatuários que de escopro em punho, a modelar um bloco informe de carrara, lhe fossem desbastando as arestas, fazendo dele surgir estátuas de formas cada vez mais belas, mais graciosas.

"Ei-lo agora, no final da provação terrena, sem suspeitar que aquela, que outrora foi a causadora dos nossos transviamentos, se tornou uma entidade puríssima, igualmente adorada por nós ambos, mas por maneira que essa afeição jamais poderá atear em nossas almas a chama do ciúme e da vingança;
sem suspeitar que ela comigo o aguarda, para o conduzir à ventura dignamente conquistada, em anos de suplício dantesco.
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