LUZ ESPÍRITA
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:20 pm

CAPITULO II
A saúde da dedicada consorte de Donato continuava fortemente alterada, obstando a que ele efectuasse a projectada partida para a Grécia.
Por vezes, a doente delirava e reproduzia, ao vivo, as peripécias da fatídica excursão, em que todos os que amava iam perecendo.. .
Clotilde, sempre carinhosa, não cessava de lhe dar provas de afecto.
Um dia, ao aproximar-se do leito de sua adorada genitora, esta, que se achava em um período de calma, falou-lhe com ternura, como o fazia em horas_ ditosas:
- Clotilde, minha amada filha, o meu sofrimento físico só terá limite com a morte... que já me espreita, para que colher a vida...
Meu coração desequilibrou-se irremediavelmente ao ver-te desfalecida, prestes a ser tragada pelo mar enfurecido...
Desde aqueles momentos, senti, por secreta advertência, que a minha saúde ia ser destruída, e que algo de aterrador nos ameaça, devido ao encontro funesto... com aquele Romano que nos abrigou na Imperial...
Não sei o que se apoderou de mim ao observar aquele hediondo e arrogante déspota!
Parece-me, Clotilde, que o seu olhar tem chamas infernais, que me penetraram no coração, intoxicando-o, gangrenando-o!
Percebo, por uma intuição - que a têm sempre os que se abeiram do túmulo - que Numa Tarquínio nos salvou de uma imensa desgraça, para... nos causar outra maior!...
Sei que, dentro em pouco, surgirão desgostos que hão de infortunar sempre e sempre o nosso lar!
Flávio deixar-se-á arrastar e dominar por aquele homem fatal... e Luciano... jamais conseguirá realizar as suas aspirações...
- Porque assim me desiludis, mãe querida? - interrogou a jovem, aflita e lacrimosa.
- Porque... muito me custa desgostar-te, filha amada! Veio, porém, uma falange de duendes (5) rodeando-me, à noite; e são eles que às vezes me fazem quase enlouquecer, e proferem coisas, que eu repito, e que os que me escutam, julgam incoerentes ... Eles me falam coisas pavorosas em altos brados...
Não os ouves? Clotilde!
Não? Escuta-os agora:
estão motejando de nossos receios, e de nossas prováveis desditas, dançando vertiginosamente, agitando os braços esqueléticos, nos ares, tentando outros arrancar-me do leito, para me arrastarem a uma voragem, no que são impedidos por Génios tutelares, escudos de luz inquebrantável!
Que mal lhes fiz eu? Filha minha!
Nunca os tinha visto; no entanto, eles me afirmam que outrora nós os torturámos muito, quando éramos tiranos perversos, não sei em que país!
Quem está com a verdade, eu ou eles?
Não o posso dizer ao certo...
Talvez, tenhamos mais de uma existência, sofrendo, em uma, as consequências do que fizemos em outra.
Não será isso o que nos sucede?
Como apareceram aqui esses .adversários das eras transcorridas na opulência é na maldade?
Apareceram como por efeito de algum sortilégio de Numa Tarquínio, que - assim o dizem todos - já foi nosso aliado, o executor de ordens arbitrárias e funestas...
Que passeio deplorável o daquele dia, minha Clotilde!
Pobres entes queridos!
Findou-se a nossa ventura...
Chama teu pai, minha filha!
Quero repetir-lhe tudo o que, te disse... antes que não possa mais fazê-lo...
A jovem, com os olhos marejados de lágrimas, beijou-lhe a mão, emocionada, esforçando-se por tranquilizá-la, e disse:
- Acalmai-vos, mãe querida!
Assim que melhorardes, iremos para muito longe da Rocha Negra, e nos livraremos do infausto Romano!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:20 pm

- É tarde, minha filha!
Só o meu Espírito poderá partir convosco...
É a fatalidade do Destino, que pesa sobre nós: temos que resgatar, penosamente, os crimes de eras... longínquas!
Donato, chamado pela contristada filha, abeirou-se do leito da esposa, que, ao vê-lo, lhe disse:
- Meu velho amigo e companheiro de existência, sempre concordaste comigo...
Vais açora fazer-me a derradeira vontade:
livra a nossa adorada Clotilde das garras daquele falcão maldito!
Desejo que ela despose Luciano Naldi, que, há muito, considero um outro filho bem-amado, e não a ele!
- Teu desejo será cumprido, Júnia querida - estejas na Terra ou no Céu! - respondeu-lhe o consorte, ajoelhando-se, soluçando, à cabeceira do leito mortuário.
Subitamente, Júnia dilatou os olhos, em que fulgia o clarão de uma outra vida, fixou-os em um ponto invisível para os circunstantes e gritou, com dolorosa entonação:
- Vejo luto e sangue... que parece cair do Infinito!
Coragem, Donato, nossa ventura... consumou-se... neste mundo!
E inteiriçou-se sobre o leito, com os olhos sempre fixos em um ponto desconhecido, com os braços elevados, e que, bruscamente, penderam sobre a coberta, com violência.
A respiração da agonizante tornou-se estertorosa e, dentro em poucos momentos, algo de precioso se lhe esvaiu
do escrínio carnal, que se imobilizou por toda a eternidade. . .

(5) Duende, entidade mitológica, ou Espirito, que se supunha fazer diabruras, de noite, dentro das casas.
Actualmente é designado pelo nome de Espirito zombeteiro, que se compraz em se divertir com a mortificação alheia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:20 pm

CAPITULO III
Por um deslumbrante alvorecer, enquanto o Oriente cascateava ouro e nácar lucificados, os corações dos habitantes do solar da Rocha Negra cobriram-se de crepe com o passamento da boníssima Júnia.
Uma tristeza indómita desde então errou pelo alcáçar, onde todos os olhos tinham vestígios de lágrimas...
Ainda não se achavam atenuados os pesares decorrentes do luto recente, quando um brigue desconhecido aportou pouco distante do castelo da Rocha Negra, e dezenas de Romanos, armados como para uma peleja bélica, se dirigiram ao consternado Donato Moréti, entregando-lhe uma desoladora mensagem, firmada por um alto dignatário de Júlio César, chamando às armas todos os homens válidos de dezoito a quarenta anos, domiciliados no solar, para embarcarem no brigue, no prazo máximo de cinco horas, sendo aplicadas penas severas aos que se insurgissem contra as determinações do General supremo.
Donato, trémulo de indignação e de pesar, por não poder repelir a afronta inesperada, pois os invasores, chegando ao solar, haviam pedido ingresso, dando sinal de amigos, chamou à sua presença o denodado Pedro Naldi.
Este, porem, já tinha sido feito prisioneiro por alguns centuriões, e não pôde mais atender às suas ordens.
Apresentaram-se-lhe apenas os dois rapazes - Luciano e Flávio - para dele se despedirem.
O primeiro estava lívido de emoção, o segundo, sorridente.
Uma angústia estrangulante oprimiu a alma do infortunado ancião, ao observar o incontido contentamento do filho bem-amado, em instantes tão dolorosos quanto aqueles que estavam passando os habitantes do castelo...
- Flávio! - repreendeu ele com os olhos inundados de pranto - como podes sorrir em momento tão aflitivo?
Regozijas-te, acaso, ao deixar para sempre teu velho pai, entregue ao mais profundo dos pesares?
- Não, querido pai, pois sabeis que muito vos prezo.
Mas é que anseio por uma vida de actividades e de glórias!
Aqui reina o pessimismo.
Eu quero conquistar louros que vos causarão orgulho e alegria, fazendo-vos esquecer as amarguras desta hora, das quais compartilho!
- Meu filho, sei que os teus intentos são louváveis; mas, desgosta-me este excesso de ambição e de vanglorias pelos sangrentos triunfos guerreiros, prevendo eu que, em vez deles, conseguirás dissabores e decepções inconcebíveis,..
Com a tua fatal desobediência e avidez de façanhas, foste o causador irreflectido de todos os dissabores que ora nos afligem, e que vão cavar o meu túmulo, pois que não resistirei a tantos ultrajes e sofrimentos!
- Querido pai; - disse o mancebo, comovido - não me acuseis pelos sucessos que fazem parte de nosso destino!
Não afirmais sempre que tudo quanto nos acontece os Fados o deliberam, previamente?
- Não chegaremos nunca a um acordo, meu filho, pois os nossos sentimentos são quase todos antagónicos...
Não sei esclarecer o porquê dos fatos, mas minha alma vaticina
desgostos irreparáveis!
Considero sinistras as relações com Numa Tarquínio, que me afronta com o seu poderio, em nome de César, e retira do alcáçar os nossos soldados para poder agir, livremente, desfechando contra nós outros golpes insidiosos...
- Que dizeis ? Pai querido!
Acusais aquele que nos salvou a vida, e nos acolheu principescamente na Imperial?!
Nesse momento q diálogo foi interrompido por um velho servo, que, pedindo licença a Donato, comunicou que Pedro Naldi necessitava falar a Luciano, sem a menor detença.
O ancião pediu que voltasse, pois também carecia transmitir-lhe, a sós, alguns conselhos.
Flávio, ao ver retirar-se o companheiro de infância, disse ao consternado progenitor:
- Ainda não compreendestes, pai, que o plano de Numa Tarquínio, desguarnecendo o solar da Rocha Negra, de garantias bélicas, é ficar em campo livre, e não encontrar obstáculos para desposar minha irmã?
- E tu aprovas esse indigno proceder daquele falso amigo?!
Flávio! Ignoras que Clotilde já é noiva de Luciano?
Queres matar-me de desgosto, aliando-te ao verdugo de nossa felicidade ?!
- Numa Tarquínio, e não Luciano, poderá fazer ditosa e célebre a querida Clotilde, pai!
- Assim o dizes, porque julgas os homens pelas regalias sociais que possuem, muitas vezes usurpadas torpemente aos vencidos, e não pelos predicados morais e pelas virtudes que existem em suas almas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:21 pm

Vês os corpos ajaezados de púrpura e ouro, e não os espíritos vestidos de luz, Flávio!
- Ninguém disseca os corpos para descobrir as virtudes, meu pai, que são abstractas...
Valem mais, pois, os corpos cobertos de púrpura do que as almas resplandecentes - que ninguém enxerga - repletas de ignoradas qualidades morais...
E' com ouro, e não com virtudes, que se adquirem palácios e considerações sociais!
- Tu te iludes, meu Flávio!
Quando os corpos verminados baixam ao túmulo, onde se desfazem em putrefacção e pó, unicamente resta a alma que, se estiver trajada com as galas da virtude, conquistará os palácios divinos, os que os nossos olhos vêem, à noite, também vestidos de luz!
Não devemos querer somente adquirir o que é da Terra - tudo efémero e transitório - e que nela tem que ficar, mas o que é do Céu, - eterno e infinito!
- E quem me poderá afirmar, categoricamente, que não estais iludido?
Querido pai!
Os visionários, os filósofos ou os utopistas forjam essas fantasias, que os entes simples e ilógicos aceitam, tal qual as crianças, os contos de Fadas, que julgam ter existência real...
Que valem virtudes ignoradas, como as de Luciano, recluso neste rochedo?
Não têm maior valor, perante todos os povos, os cabedais e a situação de realce do invejável Numa Tarquínio?
- Eu te desconheço, Flávio!
Não parece que foste criado em um lar onde se faz, constantemente, a apologia da Honra e do Dever, mas no de um sicário.
Tu me arrancas lágrimas de indignação, e cravas, no meu coração, um punhal de dor inaudita, talvez nos últimos instantes em que podemos transmitir, mutuamente, os nossos pensamentos!
Só o que imploro aos deuses imortais é que não caias em alguma cilada infamante do bandido que acaba de me roubar o filho e os melhores amigos, para poder roubar também o derradeiro tesouro deste solar:
- Clotilde!
- Quem vos afiança que é ele um sicário?!
Senão algum invejoso da brilhante situação de Numa Tarquínio, meu pai!
- Quem mo afiança, Flávio?
Queres interrogar ao povo Romano em sua totalidade para ficares sabendo quem é o monstro, de que falamos?
Queres saber o que relatou uma de suas vítimas - um de seus servos - de cujos haveres, honra e família ele se apoderou lançando-a à miséria e à prostituição, e supliciando o seu chefe com o cativeiro, e as mais ultrajantes humilhações?
- Tudo isso deve ser falso e irrisório, meu pai! Não me julgueis, porém, um coração empedernido e inflado de cobiça...
Não! Juro-vos, pai querido, que se eu tiver a confirmação do que ora me relatais, saberei desenvencilhar-me do celerado!
- Se ainda for tempo, Flávio...
Vais ter acesso ao palácio maldito de Numa Tarquínio, que era paupérrimo e de família obscura, mas se enriqueceu com pilhagens infamérrimas; e, todos o asseveram, nos ergástulos de sua principesca habitação, gemem e são supliciados incontáveis desditosos...
E como são sufocados seus gritos de revolta? Com a vergasta, com o punhal, com a morte excruciante, em cubículos sem ar, sem luz, sem pão, sem água, exalando podridão pestífera!
Eis o homem que escolheste para amigo, e para esposo de Clotilde, meu filho!
Eis quem acaba de desfechar-me golpe mortal no coração amargurado pelo luto da viuvez, roubando-me o único filho e os verdadeiros amigos, forjando uma ordem insultuosa de César, sob o pretexto de que é danoso à Pátria e à tranquilidade romana alguém manter homens aguerridos, dificultando a inclusão dos mesmos nas hostes cesarianas, como se eu não fora fiel ao nosso soberano, e quisesse apenas defender-me contra bandidos do mar...
- Pois bem, pai querido, eu vou partir para Roma, e, dentro em poucos dias, tudo será desvendado, e de tudo vos darei ciência...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:21 pm

Enviar-vos-ei um mensageiro, que vos entregará um pergaminho branco ou tarjado de preto; no primeiro caso, é porque são falsas as acusações contra Numa Tarquínio, no segundo, verídicas...
Se todas as incriminações forem reais... irei ao próprio Júlio César, que muito vos considera, e revelar-lhe-ei o que ora nos sucede, a fim de que, imediatamente, vos defenda, e aos que nos são caros, de outras prováveis ciladas do mesmo de quem suspeitamos que sejam as atuais.
- Se o conseguires, Flávio! sem sacrifício da própria vida!
Não percebes, meu filho, que o infame desguarnece o alcáçar para melhor saciar os seus intuitos sinistros?
Por momentos, com o rosto esmaecido de emoção, Flávio ficou absorvido pelos pensamentos que lhe tumultuavam na mente; e, como se monologasse consigo mesmo, disse:
- Será crível o que propalam a respeito de quem nos prestou um inolvidável auxílio, em hora tormentosa?!
Deveremos retribuir com a perfídia o que nos fez ele em instante, trágico e inesquecível?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:26 pm

CAPITULO IV
Naquele instante voltou Luciano ao gabinete de Donato Moréti.
Mostrava-se ele desolado com os mais recentes acontecimentos, tendo-lhe sido vedado, pelo chefe dos centuriões, o despedir-se de seu estremecido genitor, que não lhe pôde fazer nenhum recomendação.
- Estamos prisioneiros, domine! - disse ele, angustiado, ao ancião, quase desfalecido - vai ficar sem defesa o alcáçar, entregue, unicamente, às crianças, às mulheres e aos inválidos...
Vós e meu pobre pai, já não podeis lutar - abatidos pelo bronze do tempo, da desventura e da traição!
Depois, voltando-se para Flávio, que, sensibilizado, via soluçando o alquebrado varão, falou-lhe:
- E se tentássemos reagir agora, às súbitas, contra os invasores?
Odeio os louros guerreiros, mas não temo imolar a vida em defesa dos que mais adoro sobre a Terra!
Flávio olhou-o, surpreso; depois, abraçou-o, enternecido, ante essa prova de valor do companheiro inseparável desde o primeiro instante de existência, e respondeu:
- Meu amigo, perdoa-me as mágoas que eu te tenho causado, com um falso julgamento a teu respeito!
Compreendo, agora, que és digno da afeição de Clotilde, mas, tentar uma reacção, com os nossos soldados já prisioneiros e as armas sequestradas, seria uma loucura!
Os invasores esmagar-nos-iam; e, por certo, praticariam vilanias com os que restassem à hecatombe!
Vamos, porém, coligar-nos, doravante, tomando meu nobre pai por testemunha: se for uma realidade o que nos afirmam de Numa Tarquínio...
saberemos defender os que amamos!
Donato abraçou-os, comovido e em pranto, implorando aos deuses que os protegessem e os fizessem regressar ao infortunado solar, de onde, certamente, havia sido banida a ventura por todo o sempre!
Luciano, depois de haver correspondido à demonstração de afecto, que lhe haviam dado o ancião e seu estremecido filho, foi despedir-se de Clotilde, que se achava empolgada por um pesar indescritível.
Ele ia ser arrancado da Rocha Negra para cumprir as determinações de um sicário - cujo único intuito era afastá-lo de sua adorada e prometida esposa...
Compreendia essa lúcida verdade naqueles instantes supremos, prevendo que jamais regressaria àquela mansão bendita...
Compreendia, então, a origem da repulsa que sentira por Numa Tarquínio desde quando nele fixara pela primeira vez o seu olhar de visionário...
Onde já vira aquela cara sinistra?
Que fizera ele ao potentado crudelíssimo, que o olhara com ódio, ao apertar-lhe a mão, quando fora ao solar?
Arcanos do Destino, que ele, sob o guante de inexprimível dor, não tentava solucionar...
Urgia dizer as últimas palavras de despedida à estremecida noiva, oscular, pela derradeira vez, a mão generosa de Donato Moréti, e as de seu amargurado genitor.
Muitas vezes, desde quando percebera a excelsitude da afeição que consagrava a Clotilde, parecia-lhe que já lha dedicava desde que a viu no colo materno, quando lhe ouviu os primeiros balbucios, quando deu os primeiros passeios pelo parque, inquirindo-o sobre a vida das rosas, das borboletas e dos .pássaros...
Ali, naquele alpestre recanto da habitação, viu a sua existência transcorrer placidamente, cultuando os mesmos entes que a noiva querida, observando o mesmo céu, o mesmo horizonte, sob o mesmo tecto, permutando pensamentos como o fazem os astros com os seus raios lúcidos, aliando indissoluvelmente as suas almas harmónicas...
Ainda crianças, acompanhados por fâmulos fiéis, ora erravam pela penedia, ora pelo parque, verdadeiro oásis de verdura e flores, ideado por Júnia Moréti, que o fizera executar pelos artífices de seu esposo, os quais haviam perfurado as pedras, e, nas cavidades produzidas pelos alviões, posto terra transportada da Hespéria(6), em um brigue veleiro...
Tornara-se um local aprazível, onde árvores soberbas, e palmeiras esguias alongavam, para o firmamento azul, as colunas vivas dos caules, e as plumas verdejantes das frondes...
Havia no horto três árvores simbólicas, com expressivas inscrições nos troncos, contendo a data natalícia dos irmãos - Flávio, Cláudio e Clotilde, descendentes de Donato Moréti.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:26 pm

O segundo, mal chegara à Terra, logo foi arrebatado às regiões siderais - andorinha celeste que mal roçara as cândidas asas pelos marnéis deste planeta...
Um dia, em hora de forte temporal, caíra um corisco na palmeira consagrada ao ser que se alara ao Empíreo (7), lascando-a e fazendo a fronde tombar sobre a segunda, que representava o nascimento de Clotilde.
Apenas ligada ao cerne por um dos lados, não feneceu a linda planta.
Certa vez, Luciano, contemplando-a, disse à Clotilde:
- Eu era quase da idade de teu irmãozinho Cláudio, que partiu para o Além, e muitas vezes disse que aquela palmeira, agora ferida pelo raio, me representava.. .
Quem sabe, Clotilde, se uma desdita irreparável há de golpear-me o coração qual o corisco o fez àquele vegetal?
Nossas almas, Clotilde, são semelhantes a essas palmeiras, que cresceram juntas, entrelaçaram as suas frondes, aninharam os mesmos pássaros... dos mais belos sonhos, das mais formosas ilusões!
Mas, porque sempre me parece que aquele tronco, quase decepado, ao lado dos outros, erectos e cheios de vida, é um prenúncio nefasto para mim?
Quem sabe se os nossos corações, também golpeados pelos coriscos da desventura, hão de ser pungidos de infortúnios inconsoláveis ?
- Não cogitemos de desditas porvindouras, Luciano, para não as atrair ao presente! - respondeu-lhe a jovem, co-participando, no entanto, dos receios de seu afeiçoado - confiemos nos deuses, que já nos concederam tantas venturas até este momento!
- Mas que podem terminar, bruscamente, como caiu aquela palmeira, ao golpe certeiro de uma faísca do céu - retrucou Luciano.
Olharam-se longamente, inebriados pela mesma aspiração - a de se unirem eternamente - mas, sem que pudessem decifrar os enigmas dos corações, ambos tinham os olhos lucificados de lágrimas...
Passearam ao lado um do outro, silenciosos, percebendo, entretanto, que seus pensamentos vibravam em uníssono.
Nunca um pesar, por mais ténue que fosse, lhes ensombrara as almas tão límpidas, quanto o cristal das fontes mais puras.
A súbita aparição de Numa Tarquínio, surtiu o efeito de um relâmpago que flamejasse em céu sem nuvens, tornando-os apreensivos, entristecidos, angustiados...
A enfermidade de Júnia agravara-lhes os dissabores; e, então, o golpe certeiro que fora vibrado sobre eles aturdira-os, lançando-os em um pego de mágoas e de dores inenarráveis...
As preocupações motivadas pela doença de Júnia, e, após, a reclusão pelo luto recente, haviam afastado um pouco os noivos que se aproximaram novamente à hora da desventura, nos instantes amargurados que antecederam a partida de Luciano, Flávio e outros jovens habitantes da Rocha Negra.
Justamente quando Naldi antevia a realização de seu mais caro sonho, o seu consórcio com a meiga e gentil Clotilde, é que o Destino ia afastá-lo da noiva estremecida, talvez por tempo infindo...
Era ao entardecer.
As tonalidades mais suaves esbatiam-se no Ocaso - do róseo ao cinza - prenúncio de sombras nocturnas...
Um revérbero dourado e purpurino incidia sobre as ondas trémulas e sobre o solar, dando-lhes uma aparência extraterrena, de apoteose mágica...
Silêncio funéreo empolgava toda a habitação, enquanto Luciano ia em busca da noiva adorada, para lhe dar o adeus... que talvez fosse o derradeiro!
Luciano caminhava sentindo que no seu íntimo havia a hecatombe de seus sonhos floridos, um cataclismo que lhe devastara o coração, deixando nele apenas escombros da idealizada felicidade...
Clotilde aguardava-o em um dos alpendres, que ficava em frente às palmeiras simbólicas.
Ao encontrarem-se, seus olhares confundiram-se no cristal das lágrimas, a que o crepúsculo punha cintilações de astro em plena fulguração.
- Clotilde!
- Luciano!
Quedaram-se os dois sobre q mesmo banco alpestre, de mãos entrelaçadas, soluçantes.
A jovem, trajada de luto, tinha a alvura do jaspe com nuanças de flores de macieira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:27 pm

As madeixas longas, veludosas e encaracoladas, tremulavam-lhe sobre as espáduas e o colo arquejante...
- Como poderemos resistir à crueldade de um afastamento ilimitado, Clotilde? - interpelou ele, com amargura inaudita.
- Não sei dizer-to, Luciano! - respondeu a donzela com voz suave e trémula - parece-me que enlouquecerei, após tantas desditas a um só tempo!
- São os Fados que as tramam... por um motivo ainda ignorado pela humanidade, noiva querida!
Talvez estejam de acordo com as nossas iniquidades, com os nossos desvios, ou com nossas virtudes...
Estas são experimentadas, oferecendo-se-lhes oportunidades dolorosas...
Devem ser os nossos crimes de passadas existências, Clotilde, que nos causam os dissabores do presente... do futuro!
Se estivéssemos padecendo sem causa, se tivéssemos só uma existência limitada, não teríamos direito a uma eternidade porvindoura, e mais valera que neste momento nos arrojássemos deste rochedo às ondas, sempre famulentas de navios e cadáveres, como as hienas de carnagem...
Vamos, porém, firmar o pensamento na crença em que fomos criados e educados!
Enfrentemos, com ânimo sereno e confiança absoluta nos deuses, invisíveis mas protectores, tudo quanto nos suceder!
Vamos apartar-nos - talvez para todo o resto de nossa vida presente - mas, quem poderá separar nossas almas, que devem estar ligadas desde há séculos, e o hão-de estar por toda a eternidade?
Não foram os próprios deuses que as fizeram gémeas pelos sentimentos afins?
Tudo nos falta nestes instantes angustiosos - menos a Esperança, que é o lenitivo dos desventurados...
Esperar que se realize nosso mais caro almejo... é verter uma gota de refrigério em nossos corações infelizes...
Esperemos, pois, querida de minha alma, que uma era menos infausta nos reúna por toda a consumação dos séculos; mas, se eu não puder regressar jamais, se meu corpo tombar inerte no campo de batalha, meu Espírito virá onde estiveres, sempre teu, sempre adorando-te!
Então, querida, não te sacrifiques por minha causa!
Tens a liberdade de escolher um companheiro digno de ti, tens o direito de ser feliz ainda, Clotilde!
- E que felicidade poderei desfrutar, na Terra, longe de ti, sabendo que já baixaste ao túmulo? - protestou a donzela.
Vais sofrer menos do que eu - porque verás novas regiões, horizontes desconhecidos, ao passo que eu continuarei a viver, tendo em tudo uma recordação de ti e dos outros entes amados, cujas imagens não se afastarão de meu coração flagelado de saudades!
Se não voltares mais, Luciano, jamais despirei o luto que imperfeitamente interpretará o meu pesar infinito!
E, se é verdade, segundo aprendemos, que a alma sobrevive à matéria - aqui me encontrarás todas as tardes, como se estivesse a teu lado sem que te visse, como se a cegueira pusesse trevas nos meus olhos e no meu íntimo!
- Querida noiva, quanto me confortam as tuas palavras!
Creio em ti, com a mesma fé com que creio nas coisas divinas:
jamais duvidarei da tua lealdade!
Mas, se fores de outro (com que angústia o digo), é porque... um grave motivo assim te obrigou a proceder...
No entanto, nossas almas continuarão aliadas, perpetuamente irmanadas pelos mesmos sentimentos, que (tenho a impressão dessa verdade) já foram unidas no passado, e sê-lo-ão, também, por todo o decorrer dos milénios!
A afeição que te consagro... jamais terá limites!
És minha irmã e minha noiva.
Meu afecto é tão veemente que não terminará com esta existência terrena; ultrapassará o tempo actual, o futuro ilimitado!
Pois bem, noiva querida, façamos um pacto, tomando os deuses por testemunhas:
unidos os nossos espíritos desde o berço, sê-lo-ão, doravante, perenemente! Só conseguirão, como agora o fazem, separar os nossos corpos... mas não os nossos corações, ou antes as nossas almas!
Confiemos em um Ente Supremo que há de abençoar a nossa união por toda a vastidão dos tempos porvindouros!
- Sim, Luciano, só a fatalidade do Destino poderá fazer-nos quebrar um juramento que é a mais ardente aspiração de nossos ser!
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:27 pm

Partirás... ficando tua imagem em meu coração; minha alma seguir-te-á como a sombra de teu coração despedaçado... igual ao meu!
- E a minha ficará onde estiveres, Clotilde!
Eis o que é a saudade, noiva querida: é a permuta de duas almas amantes, dois corpos que continuam vivos com os Espíritos ausentes, mas que ela unifica, prende com um grilhão de luz igual aos raios surgidos de duas estrelas que, apesar de muito distantes, se confundem em um eterno ósculo!
Apertaram-se as mãos e permutaram as almas em um olhar que, dir-se-ia, desceu até os mais íntimos refolhos do ser.
Depois, com os corações vinculados por um mútuo e perpétuo pacto de fidelidade, dirigiram-se ao local onde se achavam seus amargurados genitores...

(6) Hespéria, nome que os antigos gregos davam à Itália e que os romanos deram à Hispânia ou Espanha.
(7) Habitação dos deuses.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:27 pm

CAPITULO V
Aproximava-se o momento decisivo para aqueles noivos idealistas, atingidos em pleno coração pelo punhal da crueldade de um déspota enamorado.
Donato More ti, aparentando toda a serenidade de ânimo, que contrastava com a palidez do rosto ebúrneo, dirigiu a palavra aos que iam partir, talvez para não regressar jamais:
- Meus amigos e meus filhos - disse com voz trémula, traindo a emoção que lhe abalava o íntimo - como sempre vos considerei, nunca, nas pelejas mais encarniçadas, sejais destituídos de piedade por vossos míseros contendores.
Nunca ensanguenteis as mãos e as consciências, com os crimes que os homens aplaudem, mas os deuses punem severamente; não usurpeis aos vencidos suas maiores preciosidades: a honra de suas famílias e os seus haveres, em pilhagens apavorantes!
Conservai sempre, a despeito de tudo, a nobreza de vossos caracteres.
Se quiserdes imitar os mais afamados Romanos, entre Sila (8) e Sertório, (9) não trepideis em imitar o segundo!
Quando eu era da vossa idade, com a alma repleta de anelos de glória, de almejos de ventura, também cumpri o meu dever de cidadão da Terra, mas nunca olvidei os meus encargos de futuro cidadão do Céu, ou o de vassalo do Soberano do Universo, do qual os deuses são dignitários e arautos...
Combati na Hespéria sob as ordens do intrépido Sertório, do qual hauri belos exemplos cívicos.
Lá, naquela região encantadora, encontrei a minha adorada companheira de existência, descendente de nobres Celtiberos, a qual teve a felicidade de baixar ao túmulo antes de seu velho consorte, agora morrendo lentamente, mas que, acima das suas agonias morais, sempre encontra um lenitivo celeste - a paz de consciência!
Dando a César e à Pátria o único filho que o Céu me concedeu, sinto que dois refrigérios divinos mitigam as amarguras de minha alma:
realizaram-se os ideais de Flávio e cumpri o meu dever cívico com um supremo sacrifício!
Tu, Luciano, outro filho espiritual que o Destino fez nascer sob o mesmo tecto que o meu, cujo genitor tem sido o meu melhor amigo desde a juventude, meu inseparável companheiro desde os primeiros anos de mocidade, não poderás realizar os teus planos senão depois que voltares, definitivamente, às plagas natais...
Compreendeis todos vós, meus mais delicados amigos, como nos custará suportar as saudades dos que vão partir... tendo incerto o regresso...
Ficarei insulado neste solar, que se tornará sombrio, entregue às mais penosas e incessantes cogitações, tendo soldada, para sempre talvez, a límpida e rósea cor do céu de minha existência...
onde já corvejam os abutres da dor e das decepções esfacelantes!
A ti, Luciano, e a Flávio, confio uma fraterna mensagem a um dos nossos parentes, domiciliado na Hespéria, em cujo tecto, quiçá, possais repousar das refregas mortíferas...
Assim dizendo, o ancião entregou a cada um dos dois mancebos pequeno pergaminho onde havia escrito apenas algumas palavras, cujo sentido só quem as lesse com imensa atenção, ou quem soubesse interpretar enigmas, poderia compreender.
Luciano e Flávio, comovidos até às lágrimas, abraçaram-no, osculando-lhe, com ternura, a única mão que lhe restava...
- Que os deuses vos abençoem e protejam nas pelejas mais renhidas, filhos meus!
Pôde dizer-lhes Donato; e, tornando a altear a voz, dirigiu-se aos que iam partir:
- Sede, todos vós, fiéis servidores do invicto César!
Segui-lhe os nobres exemplos e nunca maculeis as vossas almas com a pilhagem e a vindicta - preferindo as riquezas da Terra... para perder as do Céu!
Um estrídulo vibrar de clarim marcial deu por finda a alocução do venerável Moréti, que empalideceu intensamente.
Todos os circunstantes, inclusive os recém-vindos, se inclinaram diante do ancião, e marcharam, descendo a escaleira do solar...

(8) Sila, ditador romano, nasceu em 136 a. J.C.; praticou muitas atrocidades.
(9) Sertório, ilustre general romano, tinha ilibado carácter.
Foi assassinado por seus oficiais 121 a. J.C.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:27 pm

CAPITULO VI
A brusca partida de tantas pessoas, que residiam no castelo da Rocha Negra, deixou-o envolto em desolação, repleto de silêncio sepulcral...
Os dois dignos e infortunados progenitores de Flávio e Luciano, estavam consternados.
- Queria que me tirassem a vida e não a honra! exclamou Pedro Naldi, em dolorosa palestra com o velho amigo.
A afronta que recebi... não terá conforto - vai levar-me ao túmulo.
Não posso resistir à dor de me haverem usurpado o único filho e cortado o direito de defender o solar, que me foi confiado por meu mais desvelado amigo...
- Eu não te acuso, porém, Pedro! - respondeu-lhe Moréti, enternecido.
Sei que foste manietado para não poderes agir como devias... no caso de um assalto dos piratas que infestam o Mediterrâneo...
Apanharam-nos de surpresa, pois os julgávamos amigos, pelos sinais que nos deram para se aproximar do castelo...
Foram verdadeiramente traidores e capciosos - dignos emissários de um monstro...
Numa Tarquínio! A tua inacção involuntária... salvou a vida a muitos entes queridos.
Sei que és corajoso, e tão fiel quanto as sentinelas que se deixam matar em seu posto de honra, como foram fulminadas todas as de Pompeia, que não fugiram à hora mais trágica de suas existências!
Fomos vencidos pela fatalidade... representada na figura sinistra de Tarquínio!
É ele quem arremessa contra os nossos corações combalidos as setas mortíferas das desventuras mais acerbas!. . .
Clotilde, dominada por um pesar inominável, tentava escondê-lo aos olhos turvos de lágrimas dos dois velhinhos adorados, reanimando-os em horas de desalento e saudades absorventes .
- Como é doloroso o crepúsculo de nossas existências! - dizia Pedro Naldi, olhando o senhor da Rocha Negra, tão alquebrado, que, só a custo, movia as pernas trôpegas.
- É que já se aproxima a noite da Eternidade, meu amigo, a qual, talvez, para nós, que tanto temos sofrido, se transforme em alvorada sem fim...
- E onde encontraremos a ventura, Moréti, sem os fragmentos de nossa própria alma - os nossos filhos bem-amados?
- É verdade, meu amigo!
Mas, se temos por futuro a eternidade, havemos de reavê-los, havemos de reconstituir toda a nossa transcorrida felicidade, interrompida na Terra, mas reconstituída no Céu!
Iam-se escoando os dias, morosamente, sem um incidente digno de reparo.
Certa vez, porém, inesperadamente, aproximou-se da Rocha Negra pequena caravela, de onde fizeram sinal de que havia uma mensagem a ser recebida por seus habitantes.
O emissário, que desembarcou apenas por momentos, partira de Roma comissionado por Luciano e Flávio para levar notícias, e recebê-las dos que lhes carpiam a ausência.
Já haviam ambos sido armados legionários; e, quando o mensageiro chegasse ao castelo, teriam partido para a Hespéria, ao encontro dos gauleses.
Haviam sido recebidos no palácio de Numa Tarquínio, o primeiro com grandes demonstrações de agrado, o segundo, com fria reserva...
Não haviam ainda conseguido apurar a verdade quanto ao proceder do ex-procônsul, mas notavam que era ele temido pelos Romanos, que evitavam até pronunciar-lhe o nome...
Solicitaram notícias circunstanciadas de todos os entes amados, mas convinha não fazerem confidências comprometedoras .. .
Não sabiam ao certo quando poderiam enviar-lhes outras mensagens, mas fá-lo-iam na primeira oportunidade, por intermédio de emissário que lhes inspirasse plena confiança.
Novamente pesou sobre a Rocha Negra uma atmosfera de inquietação, de saudade, de tormentos intraduzíveis, como se estivessem ameaçados os seus habitantes de um perigo iminente.
Sobre suas cabeças havia uma verdadeira espada de Dâmocles(10), invisível para os olhos materiais, mas pressentida pela visão psíquica dos seres evolvidos...
Seis meses decorreram entre apreensões e tristezas, sem que lhes chegasse às mãos a anunciada carta, que aguardavam com ansiedade indescritível...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:27 pm

Chegara o Inverno, com uma intensidade assustadora.
As árvores do parque despiram-se das folhas, e os galhos, crestados pelo frio, tinham a aparência de braços dissecados, cujas carnes fossem momentaneamente retiradas, e a que apenas restassem os nervos abalados pelos vendavais, recobertos depois por músculos de neve...
Todas as janelas e portas do solar foram cerradas; mas, tal era a inclemência dos tufões enregelados, que estremeciam nos gonzos, parecendo sacudidas insistentemente, por pulsos férreos, com a fúria de assaltantes que nele quisessem penetrar com violência...
Mergulhado em silêncio, o castelo da Rocha Negra parecia desabitado.
Transidos de frio, e com as mentes repletas de recordações penosas, certa noite, achavam-se Donato Moréti e Pedro Naldi em uma das salas da habitação, aquecendo-se ao fogo de uma lareira.
Estavam emudecidos, com os olhos semi-cerrados, as frontes resguardadas por um gorro de veludo negro, em cuja base se viam alvas madeixas de cabelos, revelando quão violentos haviam sido os embates de seus espíritos, que tornaram a cor das noites polares em neves alpinas de que se cobriram as suas cabeças...
Quem os visse naqueles momentos, diria que já eram seres de um outro planeta; que não pertenciam mais ao rol dos habitantes terrestres; que eram fantasmas materializados...
por um poder supra-terreno...
Subitamente, Pedro Naldi, como desperto de intenso torpor, ou de sono milenário absorvente, olhou o velho amigo, e viu, à luz da lareira, em suas faces, fulgurarem gotas de pranto, certamente geradas ao influxo de pensamentos dolorosos.
Para cortar o fio tenebroso de tais cogitações, disse-lhe em tom de profunda tristeza:
- Como está áspero o Inverno deste ano, domine!
Não me lembro de haver assistido a outro semelhante!
- Quem sabe se não será o último que passamos sobre a Terra, meu amigo?
Quem sabe se não é nosso coração desalentado, que observa o Inverno sob outro aspecto, Pedro?
- Antes o fosse, domine!
Sei que ele me enregela a alma dorida...
Escutai o uivo do vendaval...
Não vos parece um carpido doloroso de lobos famintos, prenunciando novas desditas?
- Já eu o havia pensado, Pedro...
- Se o Inverno enregela o coração ou a alma, não o sei mais distinguir...
O que vos afirmo, porém, com segurança, domine, é que tenho uma montanha de neve aqui, dentro do peito; e, entretanto, como custa a esmagar-me o coração!
- É que o coração não deseja ir para o túmulo, antes de enxergar o Sol de uma vida que ora lhe falta, Pedro!
Ambos se olharam, enxugando lágrimas...
Foi Naldi quem prosseguiu o diálogo, interrompido pela emoção que se havia apoderado dos dois desalentados varões.
- É bem verdade o que dissestes, meu amigo...
É maior, porém, a minha dor do que a vossa... porque tendes a vosso lado uma estrela a cintilar em vossa alma - Clotilde, ao passo que a minha jaz em trevas, que julgo eternas.
- Não vedes que também ela, como nós, está com o coração nevado pelo inverno da Saudade?
- Sim, domine... mas o meu e o vosso são mais tenebrosos que o dela, porque, em um coração juvenil, por muito acerbo que lhe seja o infortúnio, sempre há uma dourada macieira em flor, o canto em surdina de um rouxinol, vibrando a canção imorredoura da Esperança... mas, no dos velhos... há apenas a gelidez dos sepulcros, o silêncio dos desertos, as sombras nocturnas sem vislumbres de alvoradas...
Repito que a minha desdita é maior do que a vossa, pois que tendes ainda no lar uma roseira em flor; eu, além das agruras da saudade do meu único filho, tenho o receio de que seja ele vítima de ciladas de Numa Tarquínio; tenho crestados os louros do passado pela humilhação e pela desonra que me infligiu aquele sicário!
Tanto tempo esperamos um assalto dos corsários que infestam o Mediterrâneo, e nunca nenhum deles nos veio molestar:
entretanto, domine, mal sabíamos que, no derradeiro capítulo de nossa vida, para nos amargurar e apressar a descida para a cova, seríamos vencidos pelo corsário da nossa ventura, das nossas glórias, da nossa honra...
Numa Tarquínio!

(10) Dâmocles, cortezão de Dionísio, o Tirano, que o convidou para um banquete, tendo suspensa sobre a cabeça uma espada, presa apenas por uma crina de cavalo.
Símbolo de um perigo iminente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:28 pm

CAPITULO VII
Decorriam os dias penosamente, lentamente, para os moradores do solar da Rocha Negra.
Diminuíra a intensidade dos furacões. Havia no firmamento mais azul e mais radiosidade, prenunciando a primavera, que já se fazia anunciar por súbito declínio da invernia desoladora.
Por uma formosa manhã, os raros e velhos habitantes do alcáçar foram avisar a Donato e a Pedro Naldi de que se aproximara uma importante galera, que já dera o sinal do desembarque de seus tripulantes amigos.
Dentro em poucos instantes, houve no quieto solar um movimento desusado, um renascer de actividades, extintas desde alguns meses, desde a visita da milícia romana.
Grande foi o espanto dos pacíficos moradores do castelo, vendo surgir uma multidão de servos e marinheiros em direcção ao pórtico, muitos deles conduzindo preciosidades, vasos de fino Carrara e de jaspe, lavrados artisticamente na Etrúria (11), cofres contendo jóias valiosas, invólucros onde se divisavam vestes e adornos da mais pura seda da Pérsia.
Recebidos cortesmente por Pedro Naldi, eles lhe disseram que aquelas modestas prendas eram destinadas a Donato Moréti e à sua digna filha, enviadas por Numa Tarquínio, que, no período de poucos instantes, viria apresentar-lhes as suas saudações.
Quando o arguto ancião, pai de Luciano, transmitiu a Donato a mensagem dos recém-vindos, prenunciou graves acontecimentos para os habitantes da Rocha Negra.
O senhor do solar, compartilhando dos justos temores do velho amigo, aparentando uma placidez espiritual, que era desmentida pela palidez do semblante, apurou a indumentária, e mandou abrir o salão, onde foram introduzidos Numa Tarquínio e seus sequazes .
- Como? domine! - disse Donato, tentando sorrir com amabilidade - além de nos salvar a vida, em vez de serdes galardoado generosamente, quanto o mereceis, ainda nos cumulais de ofertas régias, que só um Salomão poderia retribuir condignamente?
- Muito mais mereceis, domine, murmurou o ex-procônsul, curvando-se com afectação e simulada humildade.
Tudo o que vos ofertei, e à vossa adorável filha, não significa um só átomo da minha admiração por ambos, nem do júbilo que sinto por ter tido o ensejo de vos prestar um insignificante auxílio...
- Aumentastes, desse modo, domine, indefinidamente, o nosso débito de reconhecimento...
Haveis de permitir que eu vo-lo retribua, embora imperfeitamente...
Numa Tarquínio, sem dar resposta, a um gesto significativo de sua mão direita, fez que sua comitiva se retirasse com a rapidez dos efeitos de magia.
Voltando-se, depois, para Donato, falou-lhe, enrubescendo:
- Se tendes, realmente, o desejo de me ser grato, podeis exceder o pouco que já vos tributei...
Eu é que contrairei convosco uma dívida eterna.
- Como? Senhor!
Que tesouro possuo, sem o saber, com que vos possa recompensar sobejamente?
- Oh! pois desconheceis o tesouro inapreciável que tendes em vosso lar?...
Vossa incomparável filha?
- Oh! senhor, humildes somos para aspirar a tão elevada honra! - exclamou Moréti tornando-se lívido.
- Eu serei o honrado com a concessão que desejo obter, ardentemente, desde que ela me seja outorgada por ambos - disse-lhe Numa com falaz humildade.
Donato reflectiu, por momentos, na gravidade da situação, e respondeu-lhe:
- A honra de vossa rogativa é tão ilimitada... que me acho aturdido!
Não tendo nunca pensado em tão grande ventura para minha filha Clotilde, que é comedida em suas aspirações, seu consórcio está ajustado com um jovem ainda no início de sua carreira militar...
Chegou a vez de Numa Tarquínio se tornar pálido, da brancura de um bloco de Carrara.
Reclinando-se no coxim, em que se instalara, interpelou, com sorriso mefistofélico, aparentando calma:
- Quem é o feliz mortal que soube conquistar o nobre coração de vossa formosa filha? Domine!
- Aquele que connosco priva, desde os primeiros instantes de vida, o filho de meu dedicado amigo e companheiro de armas, o jovem Luciano Naldi, ora sob o comando do invicto Júlio César...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:28 pm

- Já o suspeitava, domine! - respondeu-lhe o tirano, tornando-se rubro pela violência da comoção que lhe abalou o ser.
- Senhor, não julgueis que neste instante eu não me sinta desolado por vos haver recusado uma proposta que, para todos nós, seria uma honra inconcebível - a aliança de nossas famílias - pelo consórcio de dois de seus mais nobres membros...
É meu desejo, pois, retribuir as ofertas que trouxestes, qual um soberano, patenteando-vos desse modo nosso reconhecimento infinito!
- Obrigado, domine! - disse-lhe Numa Tarquínio secamente, e com um gesto de menosprezo.
Não aceitarei nenhuma oferta vossa; pois não tenho por hábito receber retribuição às dádivas que concedo aos amigos...
A única preciosidade que eu aceitaria de bom grado...
Ia ele prosseguir, quando, sem deixar que fossem pressentidos seus leves passos, surgiu no salão, bela e melancólica, a filha de Donato Moréti.
Tarquínio ergueu-se impetuosamente, e foi ao seu encontro, fazendo acentuada curvatura.

(11) Etrúria, antiga região da Itália, entre o Tibre, os Apeninos, o Mar Tirreno e o rio Macro. Hoje é a Toscana. Célebre pelos trabalhos de escultura.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:28 pm

CAPITULO VIII
- Por quem vestis luto? - interrogou-a Numa, extasiado, desejoso de lhe prodigalizar gentilezas.
- Pela mais extremosa das mães, domine! - respondeu Clotilde, desvencilhando-se da mão de múmia que premia a sua, quase com violência.
- Vede, formosa donzela, como, neste momento, se irmana o nosso destino: vós, trazeis luto nas vestes... e eu, no coração! E, o meu, será perpétuo...
- Muito o lamento, domine, mas, porque será infindo o vosso?
Perdestes, acaso, vossa adorada companheira de existência?
- Nunca a tive, jovem; e, agora, que pretendia unir o meu destino ao da mais sedutora donzela que conheço... sei que vai pertencer ao mais feliz dos mortais...
Compreendeis como é grande a minha desventura?
- Sim, domine; mas podeis ainda encontrar outra mais formosa, e que tenha livre o coração... para vos poder dedicar ilimitada afeição! - disse-lhe Clotilde, empalidecendo, pois percebera o alcance das palavras que ouvira.
- Nunca! nunca! - respondeu-lhe Numa, com arrebatamento - não existe, na Terra, alguém que suplante Clotilde Moréti...
- Como? senhor! Pois vós éreis meu pretendente?! Não sabíeis que... que já tenho os meus esponsais contratados com Luciano Naldi, meu companheiro de infância?
- Acabo de o saber, agora, e é isso o que me causa o mais acerbo dos pesares... Nunca tive um outro semelhante a este!
- Perdoai-me, domine, o desgosto involuntário que vo3 causei, pois eu e a minha família muito vos prezamos...
Luciano é o noivo designado pelos deuses; pois, quando abri à luz da vida os meus olhos... já o encontrei junto de meu berço...
- Mas devíeis considerá-lo irmão, e não futuro esposo...
- O coração não reflecte, domine, quando se consagra a primeira e maior afeição a alguém, que no-lo saiba cativar!
- Bem o dissestes, donzela; pois nessa situação me encontro eu, para minha desventura!
Caiu um pesado silêncio no vasto salão, como se ele se tornasse, às súbitas, uma câmara mortuária.
Bruscamente, Numa Tarquínio fixou o olhar chamejante na meiga Clotilde, interpelando-a, intensionalmente:
- E se não se realizar o vosso casamento com ele?
Aceitar-me-eis por esposo?
Clotilde apavorou-se, pressagiando algum projecto sinistro do déspota para alcançar o seu objectivo.
Compreendeu que as suas palavras seriam uma sentença funesta lavrada contra seu noivo adorado.
Subitamente, como que inspirada por seus amigos invisíveis, ela lhe respondeu com nobreza, afectando serenidade de ânimo:
- Senhor; se Luciano me trair, ou morrer, não suportarei tão grande golpe, e, certamente, baixarei ao túmulo!
- Iludis-vos, formosa jovem, ninguém morre de desgostos ... senão estaríeis na presença de um cadáver!
Não morremos quando o desejamos... mas quando Átropos(12) o determina!
Ela calou-se, sentindo-se apreensiva, e sem atinar com uma resposta decisiva.
Depois, lívida de terror, sabendo que ia proferir uma sentença de suma gravidade para si mesma, deu-lhe uma imprevista decisão:
- Senhor, vossa insistência muito me honra. Vede, porém, que não mereço a vossa preferência, por não poder retribuir vossa afeição, como o mereceis.
A resposta que desejais, só vo-la poderei conceder... depois do fracasso do meu noivado. .. se ainda me encontrardes com vida!
- Aguardarei o futuro, confiante nos deuses, que velam por nosso Destino! - disse ele, sorrindo enigmaticamente, e curvando-se.
Daí por diante o diálogo dos dois perdeu a intensidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:28 pm

Conversaram friamente sobre assuntos vários, até se consumar o sacrifício de prestar homenagens ao disfarçado adversário, que só desejava apoderar-se da encantadora presa, não poupando, para a possuir, qualquer ardil infamante.
Donato e sua filha cumularam-no de amabilidades, tendo a extravasar-lhes da alma uma repulsa indizível.
Quando ele se retirou do solar, Moréti conferenciou com Pedro Naldi; e, ao alvorecer do dia seguinte ao da visita de Numa Tarquínio, fez partir um parlamentário de ilimitada confiança no encalço de Luciano e Flávio, que já se achavam na Farsália, sob o comando de Júlio César.
"Eu é que desejava ir a teu encontro, caro filho - escreveu Pedro Naldi - mas, já me vão faltando as forças físicas, e o coração pulsa desordenadamente, enfermo de saudades e de dissabores, e temo não chegar ao fim da viagem terrena, ficando tu na ignorância do perigo que te ameaça e à querida Clotilde, que já considero filha também..."
Dava-lhe paternais conselhos e ensinava-lhe o modo de evitar qualquer traição de Numa Tarquínio, precatando-se contra todos os que de si se acercassem.

(12) Átropos, segundo a Mitologia, aquela das três Parcas que cortava o nó da vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:29 pm

CAPITULO IX
Desde a partida dos jovens guerreiros e do passamento da virtuosa Júlia, no castelo de Moréti pairava uma ameaça de novos infortúnios, inevitáveis e acabrunhadores.
Os dias fluíam, lentamente, entre suspiros, apreensões, curtos diálogos, que revelavam todos os pensamentos e inquietações que angustiavam os habitantes de Rocha Negra.
A adversidade cria liames muito mais indissolúveis que a ventura.
Os venerandos progenitores dos legionários, que se haviam ausentado daquele remanso de paz e harmonia, confabulavam no alpendre do alcáçar, confundindo suas torturas morais, seus receios, suas penosas cogitações...
Quase sempre, qual arcanjo de consolação, aparecia Clotilde, e expendia ideias que patenteavam todo o senso de que era dotada; e, assim, irmanados todos pelo sofrimento - o grande nivelador da humanidade - solidificavam elos afectivos e atenuavam-se, mutuamente, as agruras pungitivas dos ausentes bem-amados.
Às vezes, a airosa donzela mandava algum fâmulo transportar sua harpa até o local em que se reuniam os dois inconsoláveis anciãos, e, das áureas cordas do instrumento, evolavam melancólicas vibrações que se diriam preces sonoras, queixumes da alma saudosa, temores e esperanças de muitos corações angustiados, arrancando lágrimas de enternecimento de todos que as ouviam, desejosos de as escutar indefinidamente ...
Dois meses se escoaram de penosas expectativas.
O emissário expedido da Rocha Negra não voltara ainda, e nenhuma noticia havia dos que de lá haviam partido para o cumprimento do seu dever cívico.
Uma tarde, já no início da Primavera, em que o crepúsculo maravilhoso dominava o horizonte e punha cintilações de rubis esfacelados nas ondas movediças, os habitantes do solar perceberam a aproximação da majestosa Imperial.
Aguardando, alvoroçados de alegria, notícias dos ausentes queridos, foram ao encontro dos marujos, quando estes desembarcaram, com imensa curiosidade.
Dentre eles se destacou um parlamentário de Numa Tarquínio, dizendo estar de posse de uma importante mensagem para o senhor do alcáçar Este e Pedro Naldi receberam-no com fria polidez.
- Venho, domine - disse o mensageiro, a Donato da parte do glorioso Numa Tarquínio, que se encontra na Imperial, patentear-vos os seus mais veementes sentimentos de profundo pesar... pelo golpe que o Destino cruel acaba de desferir em vosso coração sensível...
Os dois anciãos ergueram-se num só impulso, e foi Naldi quem o interpelou:
- Que desgraça vindes anunciar-nos?
Dizei-o!
. - Arriscaram a vida, heroicamente, os bravos jovens Flávio Moreti e Luciano...
Não terminou a frase, pois Pedro Naldi, tornando-se lívido, tombou sobre o solo, sem proferir uma palavra, levando apenas a destra à região torácica, como a mostrar que o seu coração explodira de dor, ao golpe tremendo que lhe fora desfechado pelo perverso procônsul; e, de seus lábios, entreabertos, começou a fluir um filete rubro de sangue
_ Clotilde precipitou-se para ele, desejando ampará-lo; mas não o conseguiu, pois, quando o Espírito abandona o seu involucro material, parece que este se torna de bronze, manifestando-se logo em toda a plenitude a força centrípeta, que atrai para o solo, para a voracidade dos vibriões, para o laboratório da Natureza que aos poucos transforma os tecidos, em líquidos, em fluidos, em corpúsculos...
Donato Moréti contemplou o amigo que tombara qual cedro do Líbano (13) ao furor dos tufões asiáticos, e, com um olhar vago, de quem perdeu a noção da realidade, tal o traumatismo moral que o atingira em pleno coração, não proferiu sequer uma palavra.
Clotilde, percebendo a morte daquele que considerava um outro pai extremoso, quase enlouquecida de dor, abraçou-se a Donato, o qual, à vibração de tanto sofrimento, dir-se-ia, despertou às súbitas, e prorrompeu em soluços...
Aproximaram-se os demais emissários de Numa Tarquínio para apresentar a ambos condolências e despedidas.
O nobre castelão, sofreando a consternação que se apoderara de sua alma varonil, disse-lhes, com cortesia:
- Dizei a Numa Tarquínio que nós lhe agradecemos as atenções, e que, quando voltar à Rocha Negra, talvez esta já esteja transformada em...
Necrópole, unicamente!
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:29 pm

Eles se inclinaram, e partiram.
Quando os parlamentários saíram, houve maior explosão de sentimentos do ancião e de sua filha.
Rudemente abalado por tantos pesares e por tantas desditas, Donato baixou ao leito, indiferente à vida, ansioso por abandonar a Terra, na qual se considerava em demasia, seguindo no encalço dos estremecidos entes, que dentro de tão limitado tempo haviam partido para o Além - enigmático para ele e para todos quantos desconhecem as Leis psíquicas.
Deliberara apenas não se alimentar mais, para definhar aos poucos e abreviar o desfecho almejado.
Nenhuma palavra pronunciara durante três dias.
Uma noite - espectro da dor e da desolação - Clotilde tomou-lhe a destra gelada, e, soluçante, disse-lhe:
- Pai querido, concentrai todas a vossas forças físicas e morais, implorando aos deuses o seu auxílio para vos concederem ânimo de lutar e sofrer, lembrando-vos de que, se baixardes ao túmulo, não podereis ficar tranquilo, deixando-me à mercê desse maldito destruidor de toda a nossa ventura, que quer tornar-me mais desgraçada ainda, apoderando-se de meu corpo... porque a minh’alma já desposou aquele que foi, e será sempre, o meu único amor sobre a Terra.
Nunca o trairei!
Continuarei a considerá-lo meu noivo adorado... de quem me julgo viúva...
Despertai, meu querido pai!
Não quero duvidar de vossa afeição; sois meu único protector, e eu me entrego em vossas mãos tutelares!
Só quero viver a vosso lado!
Vos actualmente resumis, para mim, todos os amores terreais!
- Como?! - respondeu-lhe o ancião, com voz cavernosa, como se falasse de dentro de um sepulcro profundo, parecendo desperto de um sono cataléptico - desejas ainda viver, para prolongar o teu martírio, filha minha?!
Que esperas ainda da vida?!
Tudo está consumado, Clotilde?
- Oh! meu desditoso pai, único amigo que me resta neste mundo vil; se morrerdes, voluntariamente, acarretareis a minha desgraça; não subsistirei a tão grande pesar, e... arrojar-me-ei, do cimo deste rochedo, ao mar!
- Oh! minha adorada Clotilde!
Acaso não tenho o direito de esperar que termine o meu suplício?!
- E o vosso superará o meu? amado pai!
Vistes acaso, em plena mocidade, fracassarem todos os vossos sonhos de felicidade?
Quereis perder a vossa alma e a minha?
Não sabeis que o suicídio é o supremo agravo assacado contra a Potestade divina?
- Tens razão, minha filha: não pareço um velho soldado que mandou decepar, com estoicismo, um de seus braços, em hora trágica da vida! Não tenho o direito de te arrastar na queda fatal...
É mister que eu viva, e siga os teus passos para te defender contra esse monstro cruel!
- Sim, meu pai!
É mister viver, mormente para que seja descoberta a verdade.
Para sabermos se os queridos mortos, que choramos, terminaram a existência gloriosamente, ou sob o punhal dos asseclas do infame que nos transmitiu a notícia...
- E que faremos, adorada Clotilde, se descobrirmos a prova concludente de que foram eles assassinados ao mando de Numa Tarquínio?
- Terei a precisa coragem de o denunciar a Júlio César, e implorar-lhe justiça...
- E cuidas, filha amada, que Júlio César te fará justiça. .. indo contra um indispensável cabo de guerra, notável por seus actos de perversa bravura?
Clotilde: infelizmente, na Terra, não imperam as virtudes e o Direito dos povos, mas as ambições e o poderio dos déspotas; conquistado por qualquer meio, lícito ou ilícito, pouco lhes importa, contanto que dominem e obtenham posição culminante; tiranos que as turbas detestam, mas a quem prestam homenagens com os lábios e demonstrações ruidosas, tendo, às vezes, no íntimo, o desejo reprimido de os apunhalar!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:29 pm

A Virtude vive na penumbra; ninguém a vê senão o olhar arguto de Deus, para o qual não há sombras nem eclipses!
A perversidade, sempre ousada, e a riqueza ostentam-se à luz solar; ninguém lhes enxerga os aleijões morais e tributam-lhes, todos, as mais pomposas e hipócritas honrarias...
Que faço eu, na Terra? Filha minha!
Exausto de lutar contra a adversidade, que, por alguns anos, parecia haver-se esquecido de mim, fiz-me bom, honrado, indulgente, justiceiro, e, agora, que contava morrer tranquilo, quando meus cabelos são de neve, e gelado o meu coração, roubaram-me o filho e os amigos, e já não posso reagir: acovardei-me, vencido por um celerado!
Falta-me um braço, a mocidade varonil, o estímulo para vencer os obstáculos, como outrora, quando via tudo sob outro aspecto!
- Tendes razão, pai querido!
Eu compartilho das vossas desditas; mas não penseis somente na vossa situação, mas na minha também...
Não compreendeis que serei a mais desgraçada das mulheres, se tiver que pertencer ao infame que matou os nossos defensores, para se apoderar de mim, pai?
Lutai mais um pouco, entrai na derradeira batalha da vida, com denodo moral, e, talvez, possais obter um triunfo definitivo.. .
Se perderdes a batalha, Deus não saberá fazer justiça ao herói da Honra e do Dever?
Pois o Criador do Universo, que semeou de sóis todo o Cosmos, forjando a luz em profusão... há de fazer vencedores a treva, o erro, a maldade... sendo Ele a Justiça Suprema e a Luz do Universo?
- É preciso viver ainda? Clotilde! - bradou o enfermo, como possuído de novas energias.
- Sim? Pois saberei erguer-me do leito ou do túmulo, e defender, como leão ferido, a sua prole bem-amada!
Dá-me a roupa mais negra que eu tiver, a que melhor interprete q luto de minha alma!
Quero levantar-me, para te defender, filha adorada!
Clotilde abraçou-o em pranto, confundindo-se as lágrimas que lhes deslizavam pelas nobres faces.
Quando a donzela observou que o amado progenitor havia triunfado do desalento, que dele se apoderara por muitos dias, retirou-se para sua câmara, depois de haver determinado que um fiel servidor fosse ajudá-lo a vestir-se e a erguer-se do leito.

(13) Li ((imo, cordilheira da Turquia asiática (Síria), famosa pelos seus magníficos cedros.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 05, 2022 7:29 pm

CAPITULO X
Avizinhava-se a hora do crepúsculo. Já as primeiras pinceladas de rubi luminoso aformoseavam o Ocaso, o túmulo aparente do monarca fúlgido, do arauto divino, montado em corcel radioso quanto ele próprio - o Sol - qual se um Apeles sideral começasse a esboçar uma tela prodigiosa, que ninguém reproduz fielmente!
- Como contrasta o fulgor do Céu com as sombras do meu coração!
Seu olhar, baixando ao solo, divisou as palmeiras simbólicas que assinalavam o seu nascimento, e o dos irmãos, todos já extintos, a segunda das quais Luciano dissera, um dia, que representava o seu destino, e estava fendida por um corisco...
- Oh! meu pobre Luciano, pensou ela, quão certeiro foi o teu doloroso prenúncio sobre o porvir que nos aguardava; a nossa felicidade, tão intensa e profunda, jaz fulminada, igual a essa palmeira, tal se o tivesse sido por efeito de um corisco infernal!
Como foi real o augúrio que fizeste antes de se efectuar a excursão fatídica; adivinhaste que de nós ia aproximar-se um ciclone funesto, para destruir nossos ideais, nossos planos de ventura, deixando-me, em pleno desabrochar da existência, indiferente à vida, submersa em um caos de infortúnios inconcebíveis!
Sinto que meu coração morreu para o mundo e que o meu corpo, vestido de luto, até o
extremo instante, rastejará penosamente qual se houvesse saído de um túmulo, animado por estranha e fictícia vida, aspirando a voltar para, todo o sempre à sua sepultura, para que a alma, liberta dos:
liames materiais, pudesse cindir a amplidão constelada, em busca dos seres queridos que partiram para o Além!
Apego-me ainda à vida, por compaixão ao infortunado; velhinho que me deu o ser...
É a piedade filial que me aprisiona à Terra, que eu odeio...
Como poderei, porém, viver doravante?
Sem o vislumbrei de uma esperança no futuro?
Viver sem esperança alguma no coração é sentirmo-nos náufragos, sem um fragmento de navio para nos salvar, pois este foi destruído, violentamente, de encontro a um rochedo invencível - o Destino - e submergiu-se nas ondas, eternamente, talvez...
Que é que me prende, mais, à vida?
Nada, além da afeição a meu desventurado pai, e o desejo indómito de desvendar a verdade a respeito dos que morreram longe... criminosamente, como eu conjecturo... : inspirada pelos Numes celestes!!
Uma infinita amargura lhe constringiu o seio, e gotas cálidas de pranto lhe fluíram do íntimo.
 sua frente, as três palmeiras simbólicas balouçavam docemente, as folhas emplumadas, parecendo vivificadas, braços que se agitassem para o Alto, em atitude de preces, ou que desejassem abraçá-la, carinhosamente, compartilhando de sua inconsolável tristeza.
Bruscamente, a do centro, a que havia sido golpeada por uma faísca eléctrica, desprendeu, com rumor, a fronde decepada, e caiu ao solo...
- Tudo está terminado! murmurou Clotilde, trémula de emoção.
Eu compreendo a mensagem que acabo de receber... enviada pelos entes adorados, já intangíveis...
Vou dar-lhes a resposta que esperam...
Clotilde retirou-se do local em que estivera, e, chamando alguns servos, ordenou-lhes que cortassem as duas palmeiras restantes.
O velho jardineiro olhou-a petrificado, pois fora ele quem as plantara, e não ignorava o que representavam.
- Isso vai causar-vos dissabores! - exclamou ele, apavorado .
- Que maiores dissabores poderá a sina adversa reservar-me, do que aqueles que estou suportando?
- Não vo-lo sei dizer... mas, às vezes, há outros maia pungentes ainda...
Não corteis a palmeira que representa o vosso nascimento... pois isso vos trará novos infortúnios...
Clotilde, surda às advertências do zeloso e experiente cultor do parque, assistiu à execução de suas ordens.
Dentro em poucos momentos os formosos vegetais ruíram por terra, e as três frondes reuniram-se, pela derradeira vez, quais cabeças de três guilhotinados, que rolassem, do mesmo impulso, de um cadafalso invisível...
- Eis o nosso Destino, pensou ela, soluçando; mas, haja o que houver, as nossas almas serão reunidas no seio da Morte, como já o foram em vida, e jamais se apartarão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:35 pm

Luciano, eu e Flávio fomos palmeiras humanas inseparáveis por toda a consumação dos séculos!
As folhas das palmeiras ainda se moviam pelo perpassar da viração, como se estivessem possuídas de uma vitalidade extra-terrena, ou fossem ressuscitadas ao influxo de um condão celeste.
As sombras nocturnas, desfeito o esplendor fascinante do crepúsculo, invadiram a Natureza.
Há, sempre, algo de triste e funéreo no agonizar do dia; morre a luz para dar expansão às trevas, até que, na abóbada celeste, sejam acesas as lâmpadas divinas que a aformoseiam com as suas radiosidades surpreendentes.
Aos poucos, as rochas, as árvores e a casa foram desaparecendo aos olhos lacrimosos de Clotilde.
Nenhum bulício das frondes se fez ouvir.
A súbita calmaria, que sucedeu à aragem do entardecer, prenunciava mudança de tempo, brusca metamorfose meteorológica.
Clotilde tentou divisar o Mediterrâneo, ao longe, onde vira desaparecer o brigue veleiro que conduzira os legionários queridos, à morte...
Tudo estava indistintivo e caliginoso.
Por instantes meditou ela sobre todos os sonhos fagueiros, já destruídos, pulverizados pela mó da Fatalidade, qual se, repentinamente, da vastidão cerúlea houvesse baixado uma descomunal avalancha sobre todas as suas mais ridentes aspirações, todas as mais douradas esperanças de sua idade em flor, sentindo que também sua alma fora esmagada, triturada, tornadas pó impalpável todas as ilusões da sua juventude...
Via-se só, prestes a perder o último amigo, cercada de trevas permanentes...
- Eis o emblema de meu futuro, meditou ela, eis o que me aguarda na Terra: um mar intérmino de trevas!

FIM DO LIVRO II
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:35 pm

LIVRO III - CLARÕES E PENUMBRAS
CAPITULO I
Amanhecera um dia sombrio e merencório, trazendo prenúncios de temporal, que já se avizinhava.
Havia uma quietude absoluta na Natureza, uma imobilidade de eterna nebulosa naquela região insular, onde estava edificado o solar da Rocha Negra.
Donato achava-se convalescente.
Clotilde, amparando-o pelo braço direito, passeava com ele pelo parque, tentando diluir as ideias depressivas que o faziam sofrer - o tormento incessante da saudade e do desalento...
Dir-se-ia que a sua fronte, outrora altiva, se abatera de súbito; seu corpo se curvara; cabelos de neve emolduravam-lhe o rosto pálido e descarnado.
Envolto em uma toga de cor escura, com o andar ainda vacilante pela debilidade, que, por mais de um mês, o tinha prendido ao leito de sofrimentos, parecia ter atingido mais de um século de existência...
Relanceava, às vezes, o olhar pelas frondes das árvores, até que um dia, lembrando-se das três palmeiras do parque, inquiriu a filha sobre o que lhes havia sucedido para serem decepadas...
- Mandei-as cortar, pai querido...
- Pois tiveste ânimo de o fazer?
Clotilde! - interrogou ele com a voz alterada pela surpresa.
- Sim, meu pai, porque não representavam elas mais a vida de três criaturas bem-amadas, mas a sua morte...
Elas, vivas, não podiam simbolizar o desaparecimento eterno dos que adoramos com veemência, pois partiram, para jamais voltar a estas paragens...
- Mas tu te esqueces, filha, de que uma das palmeiras te representava, e tu ainda estás viva, és o meu único arrimo e consolo na Terra!
Porque a sacrificaste...
antes do tempo?
- Vós é que estais iludido, amado pai, pois a palmeira que representava o meu nascimento não devia permanecer entre as duas restantes, porque elas estão livres, bem mais ditosas do que eu, em mansões felizes, e eu... é que morri para a ventura, para a alegria, para o mundo!
- És muito jovem, filha amada, e quem sabe se as tuas amarguras não serão desvanecidas ainda, como névoa ao surgir do Sol?
Quem sabe se ainda não serás ditosa quanto o mereces? Clotilde!
- Ditosa, eu?! Pai querido!
Só se substituírem o meu coração por outro... que não pulse por um noivo adorado, por uma extremosa mãe, por um irmão estremecido!...
Quem me arrancará dele as mais santas afeições, a saudade e as recordações excruciantes?
Tenho a impressão de que um raio se precipitou, das nuvens, sobre meu coração, golpeando-o como o fez à segunda palmeira, em hora de temporal... fulminando os meus mais áureos sonhos, destruindo todas as minhas esperanças, pulverizando todas as minhas aspirações.
Parece-me que o futuro não existe mais para mim, e, sim, o passado, que atinge a vastidão dos oceanos...
- Eu é que devo assim falar, filha querida.
Tu és alvorada, eu, noite procelosa...
- Há alvoradas que se confundem com as trevas... em horas de temporal, e noites que mostram todo o esplendor da Natureza... ou antes, do Criador do Universo!
Julgo, pai querido, que o meu corpo está com uma vida fictícia, enclausurando uma alma em funeral, prestes a desfazer-se em pó...
- E ainda queres que eu viva, Clotilde, para ouvir o que me disseste, sentindo eu já o ruído da campa encerrando o meu alquebrado e mísero corpo?
- Porque sois a derradeira esperança de minha existência, pai!
Sois para mim, actualmente, a síntese de todos os meus afectos, a razão única de conservar a minha vida, tudo quanto há de mais sagrado e precioso no mundo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:35 pm

- Pobre e amada filha!
És qual a hera viçosa, que se enrosca em um tronco de árvore morta, já alvejada pela mão certeira do lenhador...
Por alguns momentos, sentados em um rústico e pétreo banco, ambos confundiam seus queixumes e suas lágrimas -a formosa filha reclinada ao ombro direito do desolado ancião...
À tarde, inesperadamente, um dos velhos servidores de Donato avistou a galera de Numa Tarquínio, aproximando-se da Rocha Negra, e foi, prestamente, comunicar-lhe o ocorrido.
- Que deseja ainda o miserável? - pensou o genitor de Clotilde - que intuitos sinistros o trazem a meu infortunado lar?
Quer, acaso, escarnecer de nossa dor infinita?
Poucos momentos após, recebendo ordem de desembarque, expedida do solar, neste surgiram Numa Tarquínio, seus inúmeros servos, ou escravos, e centuriões (1).
Donato Moréti recebeu-os com fria polidez.
Poucos instantes de banal conversação, e o senhor do desguarnecido alcáçar interrogou ao ex-procônsul:
- A vossa presença, domine, envolve um motivo grave.
Posso inteirar-me do que desejais neste desditoso solar?
- Que desejo eu, domine?
Não vos lembrais do pedido que, há precisamente oito meses, tive o ensejo de vos dirigir?
- Senhor, acaso não vedes que a era actual não é de esponsais, mas que eu e minha infortunada filha trajamos luto por quatro entes queridos?
- Oh! bem sei que, aqui, reina grande pesar pelos sucessos lamentáveis que não convém avivar...
Pensando em vo-los suavizar, concorrendo para dissipar os vossos dissabores, oferecendo-vos a minha habitação e os meus préstimos, é que voltei à Rocha Negra!
- São nobres vossos intuitos, domine, pelos quais nos consideramos perenemente reconhecidos; mas, sendo nosso luto muito recente... alvitro que deveis adiar os vossos projectos para os realizar no percurso do ano vindouro...
Nesse ínterim, apareceu Clotilde; alabastro vivo, desfeitas as rosas das faces pelo sofrimento e pelas vigílias; emagrecida, embora sem perder a regularidade harmoniosa do corpo.
Seus olhos pareciam aumentados, como que fendidas as bordas das pálpebras pelas lágrimas, notando-se neles um fulgor permanente de febre ou de prantos.
Numa Tarquínio cumprimentou-a com profunda reverência, e disse-lhe, com afectada gentileza:
- Sabei que os vossos pesares tanto me preocuparam que me apressei em tentar desvanecer-vo-los.
- Obrigada, domine; mas, quem os poderá desvanecer?!
Só Átropos, a consoladora de todos os desventurados...
- Enganais-vos, formosa donzela; a mudança de região, os prazeres sociais, o tempo que consome todos os dissabores, são potências invencíveis para debelar todas as mágoas, por mais arraigadas que estejam em nossos corações!
- Mas, eu, domine, não desejo procurar lenitivo aos meus infortúnios; senão conservar-me neste local, e, rememorando as horas transcorridas, aguardar a consumação de todas as dores, ou, antes, a Morte, como dádiva celeste...
Tarquínio contorceu os lábios, numa expressão trágica de visível contrariedade, enrubesceu, e, logo depois, esmaeceu, mas, de súbito, com firmeza e revelando toda a energia de que era dotado, disse:
- Escutai, Resolvi levar-vos e a vosso pai, deste degredo para Roma - onde vos aguardam régios festins!
Por vossa causa, meu palácio está engalanado e florido.
Todas as pessoas de realce na incomparável cidade, onde impera Júlio César, esperam-vos jubilosas!
Reflecti em minhas palavras:
não me façais cometer um desvario, negando-me o que vos proponho em paz e respeitosamente...
- Porque não consultastes o nosso desejo, previamente, domine? - interpelou Clotilde, com os olhos brilhantes de emoção.
- Porque estais livre, e eu já vos considero noiva e esposa, e, como tal, é que desejo levar-vos para Roma!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:35 pm

Apegando-se a uma derradeira esperança, que pudesse tirá-la da situação desesperadora em que se achava, disse-lhe ela, com entonação dolorosa e semblante lívido:
- Senhor, talvez ignoreis que eu e meu inesquecível noivo, antes de nos separarmos para sempre, firmámos um pacto
indissolúvel - de fidelidade eterna - e aquele que quebrasse a jura sagrada... seria maldito pelos deuses!
Senhor, é inabalável esse pacto para mim, e, jamais, me tornarei perjura!
- Perdão, mas vós não o traireis - ele morreu, e, portanto, está desfeito esse conchavo ilógico...
- Mas, nós não o fizemos só para a vida, domine, e, sim, também para a morte! Se ele morreu, sua alma é imortal, há de ter conhecimento do que se passa na Terra; e eu não desejo que ele me considere perjura.
Julgo-me viúva - até o extremo final desta malfadada existência!
Numa Tarquínio que, até então, representava a farsa de uma polidez apurada, sorriu sarcasticamente.
Esse sorriso tinha algo de sinistro e de terrível.
Dir-se-ia que seus lábios se contraíram subitamente, num rictus macabro, dando-lhe um aspecto fúnebre e hediondo.

(1) Centurião, chefe de cem homens, ou de uma centúria, na milícia romana.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:36 pm

CAPITULO II
E, adiantando-se, assim falou com ironia:
- Formosa donzela, vós que me fascinastes; não insistais em argumentos inúteis, que não convencerão a minha indómita vontade de vos tornar minha consorte.
Não queirais fazer a minha e a vossa desgraça...
Vede o luzido séquito que nos circunda, e sabei que todos os presentes
vêm assistir aos nossos esponsais.
Vossa recusa de me receber por esposo é uma grave ofensa que me fazeis; e, agora, vos declaro: voluntária ou involuntariamente sereis minha esposa; no primeiro caso; amante, no segundo...
•- Senhor, respondeu-lhe ela com emocionante nobreza, como pode um ex-procônsul romano, um rei temporário, insultar assim uma indefesa donzela?
Não vos condoeis dos meus dissabores e dos de meu infortunado progenitor?
Quereis matá-lo de desgostos?
Quereis abater com a vossa prepotência o último membro de uma nobre família?
- Podeis imaginar o que quiserdes; minha vontade é irrevogável...
Todos o sabem, menos vós, gentil donzela...
Se recusardes a proposta que já vos foi patenteada com lealdade, este alcáçar, dentro em poucos instantes, vai converter-se em mar de sangue!
Se sois compassiva e prezais os que convosco privam - evitai desgraças irreparáveis.
Tenho dito o meu ultimato.
Um grito dilacerante fez-se ouvir, repercutindo tragicamente pelas abóbadas do solar, proferido pela desditosa Clotilde que se ajoelhou, soluçando, aos pés de seu progenitor estarrecido e prestes a esmorecer, dizendo-lhe:
- Amado pai, que teremos feito aos deuses para que estes nos dilacerem impiedosamente os corações?
O ancião, sem uma palavra de revolta, como se houvesse emudecido por efeito de tantas desventuras, acariciou-lhe a fronte com as mãos crispadas.
Lívido e colérico, Numa Tarquínio adiantou-se até ambos, e, com arrogância, interrogou a donzela:
- Porque vos julgais desgraçada com o desejo de unir o meu destino ao vosso, insigne honra que muitas mulheres têm disputado?
Seria um ato indigno o de vossa aliança com um dos mais gloriosos patrícios romanos?
Donato Moréti ergueu a filha e, com voz trémula e cavernosa, respondeu-lhe:
- Sei que muito nos honra o vosso pedido, domine, mas o que nos causa revolta é o não quererdes respeitar o nosso luto e a nossa dor!
Agis connosco como se fôssemos escravos, e não membros da família de dois legionários que acabam de imolar a vida à Pátria, e como se eu não houvesse também pago o meu tributo de sangue a Roma!
Porque não adiais a execução dos vossos projectos?
Não compreendeis que as nossas almas estão dilaceradas por sucessivos infortúnios?
- Mas, o meu interesse não é o de suavizar as vossas desditas ?
- Como? domine!
Se viestes a nosso lar com intuito de submeter à vossa a nossa vontade?
Como insistis em casar-vos com a minha filha, se esta jurou fidelidade eterna a seu noivo, vivo ou morto?!...
- Quer isso dizer que me insinuais que adie os meus projectos... para vos eclipsardes de meus olhos...
Compreendo os vossos planos amistosos...
Quereis o tempo suficiente para vos ausentar daqui, para região ignorada...
É assim que resgatais a dívida de gratidão que contraístes para comigo quando vos salvei a vida?!
- Seria preferível que nos deixásseis morrer, domine, para não nos exigir tão violentamente o pagamento! - murmurou Donato com infinita amargura.
- Como?! Que dizeis?!
Pois então excede ao débito a indemnização - propondo-vos uma aliança lícita com a vossa família?
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