LUZ ESPÍRITA
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:36 pm

Não achais que, somente vós, sois os beneficiados, e que o vosso débito aumentou, e fostes os recompensados e não eu? - rugiu Numa Tarquínio.
- Assim seria, senhor, se aqui viésseis com intuitos pacíficos, esperando um ensejo mais propício à vossa pretensão; se não nos ofendêsseis com o vosso poderio, e não nos lançásseis em rosto a vossa generosidade...
Não precisamos fugir, porque nenhum crime cometemos!
Ninguém aqui pensa em esponsais, mas em carpir o desaparecimento dos entes queridos... dos defensores de nossa dignidade ultrajada com a vossa prepotência!
- E' que não estou habituado a ser desatendido! - bradou Numa Tarquínio, deixando transparecer pela catadura os mais nefastos sentimentos de sua alma de tigre ferido.
Dir-se-ia que, às súbitas, se lhe desligara da face a máscara da polidez, e nela fora afivelada outra, trágica e satânica...
- Senhor, disse-lhe Donato com a altivez, não lidais com vilões, mas com um patrício romano e sua filha, tão livres como o sois!
- Acho-me, porém, em situação superior à vossa; e, portanto, garantido pelas prerrogativas que me outorgam as leis; não vos oponhais aos meus desejos, que muito vos honram!
- Representais as leis ou o despotismo? - interpelou o nobre ancião, quase desfalecido de indignação.
- Que vos importa sabê-lo?!
Obedecei-me! - respondeu-lhe Numa, com voz estentórica; e, após, voltando-se para Clotilde, esmaecida e consternada:
- Cumpri as minhas determinações, ou vereis esta habitação transformada em túmulo desse que é vosso pai, e muito tem afrontado a minha dignidade, esquecendo-se, ambos, de que contraístes para comigo um débito de honra...
Se ainda sois casta e virgem, se não fostes a amante
de Luciano Naldi, e, para ocultar uma falta irreparável, representais esta farsa de fidelidade eterna, consenti em ser minha esposa...
Se já não fordes pura... caro pagareis a vossa hipocrisia!
A felicidade ou a morte! escolhei uma destas propostas.
Clotilde olhou o progenitor, com o olhar desvairado, quando o ouviu murmurar com augusta nobreza:
- Amada filha - sejamos dignos de nossos heróicos antepassados: entre a desonra e a morte... - escolhamos esta, que nos livra das mais acerbas humilhações!
E' preferível o túmulo a uma aliança odiosa.
Que fazem os deuses, que se conservam indiferentes à nossa desdita, e nos desamparam, nestes momentos atrozes, às mãos de um impiedoso algoz?
Entreguemo-nos à morte, Clotilde!
A vida tornou-se intolerável desde que sucumbiram os que amámos, e podiam desafrontar a nossa honra ultrajada!
Que vale a vida com os corações golpeados, e as faces purpureadas de pejo?!
Que importa o ouro e o poderio, com as alma3 enlodadas pela covardia?!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:36 pm

CAPITULO III
Lívido de cólera, Numa Tarquínio adiantou-se, e bradou, com fúria:
- Escolhestes a morte?
Quereis libertar-vos de mim, por esse meio?
Ah! Ah! Ah! Ainda não conheceis a minha perspicácia.
Até há poucos momentos aqui se achava o amigo, o enamorado de Clotilde.
Agora contai com a minha justa vindicta!
Quereis morrer, domine?
Sim, sucumbireis lentamente tendo, antes, presenciado a desonra de vossa filha, que vai ser entregue, neste momento, ao mais ínfimo de meus escravos!
Quereis a morte, bela Clotilde?
Pois bem, ides tê-la depois do que acabo de expor a vosso ilustre genitor, que vai perecer de inanição, sem alimentos, e, ambos, em horas de martírio moral e físico, que vos parecerão séculos, haveis de lamentar o vosso orgulho e a vossa rebeldia!
- Pai! Pai! murmurou debilmente a jovem, contorcendo-se em espasmos de angústia, como nos fere a desgraça!
- Filha adorada! não te posso defender porque um dos meus braços jaz em um sepulcro... e o outro, com o corpo, já pende para a sepultura...
Subitamente, com o olhar de alucinada, Clotilde dirigiu-se a seu verdugo e interpelou-o com angústia:
- Senhor, escutai-me: se eu consentir em ser vossa... esposa, poupareis a vida a meu desventurado progenitor?
Tratá-lo-eis como o merece pelo seu passado de glórias e de virtudes?
O crudelíssimo procônsul, com um sorriso de triunfo, exclamou com arrogância:
- Sim! Dou-vos minha palavra de cavalheiro: vós e ele... tereis o tratamento da consorte e do sogro de Numa Tarquínio!
Não permitiu o tirano que Clotilde se afastasse um momento do local onde se achavam - tal o receio de que a presa cobiçada ainda pudesse escapar à sua prepotência, pondo termo a vida.
Ela se achegou ao pai, que, na hiperestesia nervosa em que se achava, parecia não mais perceber os acontecimentos.
Os circunstantes olhavam, alternadamente, ora o hediondo ex-procônsul, ora a sua cândida vítima.
Dir-se-ia que se achava naquele salão um impiedoso Satã, que conseguira aprisionar um arcanjo celeste; ele sorria, vitorioso; ela fitava os olhos cintilantes de pranto, no adorado ancião que lhe dera o ser.
Parecia que a vida orgânica abandonava o corpo vestalino da jovem, pois se tornara nívea qual o Carrara dos túmulos.
Transformara-se em neve dos Apeninos o corpo que parecia modelado por um Praxiteles divino...
- Clotilde Moréti - disse-lhe Numa Tarquínio, inclinando-se diante da esmaecida donzela - apressemos o nosso enlace .
Tudo está preparado para que se efectue agora...
E estendeu-lhe a destra, sorrindo.
Ao contacto de sua mão, Clotilde estremeceu visivelmente, qual se fora ligada a uma bateria magnética, ou pungida por uma áspide (2) mortífera, sentindo que, não o seu corpo, mas a sua alma se convulsionara dentro do estojo carnal, qual se fosse tangida por um açoite de chamas, ou arrebatada por um violento aquilão (3) dos desertos africanos...
Odiava-o, e ia unir-se a ele, que lhe causara acerbos e inconsoláveis desgostos, ao seu algoz, e de todos os seres que mais amava sobre a Terra...
Execrava-o com toda a pujança de sua alma ultrajada, vilipendiada, infamada pelas ofensas que por ele lhe foram assacadas, e a quantos prezava mais que à própria vida.
Ela, até então compassiva e altruística, rebelava-se contra o destino e os deuses, que a haviam abandonado à sanha de um desprezível sicário.
Sentia-se capaz de lhe lacerar o coração com um punhal intoxicado; de lhe cuspir no rosto depois de o ver inanimado; de tripudiar sobre o seu cadáver pestilento!
E, no entanto, ia aliar o seu destino ao dele!...
Onde se teriam fundido as algemas que iam uni-la ao execrado tigeenas, certamente, forjadas por Satã e seus odiava a humanidade! - ela, até então um arcanjorano?
Nas geenas, certamente, forjadas por Satã e seus asseclas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:37 pm

Como odiava a humanidade! - ela, até então um arcanjo consolador dos desditosos!
Que covardes julgara aqueles homens que a rodeavam, vilões que viam um carrasco infamar uma donzela e um ancião indefesos, conservando-se impassíveis espectadores das suas desventuras, quando todos, de um só impulso, se quisessem, poderiam trucidar a Hidra de Lerna,(4) que se apoderara da honra e da liberdade de duas inocentes vítimas.
Míseros escravos, sem dignidade e pundonor eram eles!
Não teriam, todos, pais e irmãs?
Não compreenderiam os tormentos inauditos, o asco que ela votava ao repugnante verdugo, que ia ser seu esposo?
Para onde lhes fugia o brio e a heroicidade?
Que seria que os dominava senão o receio de perderem a vida e a situação vilmente adquirida, como sé estas valessem mais que a honra e a virtude?
Parecia-lhe que o seu próprio coração, depois de tantas refregas morais, de ter sido fustigado pelo látego flamejante da dor, se ia pulverizando, calcinando, transformando-se em um punhado de cinza...
Já não era o mesmo da donzela confiante no porvir, bafejada pela fortuna, florida pela ternura dos progenitores e do noivo adorado; envelhecera bruscamente; tornara-se decrépito, sentindo suas aspirações fagueiras, seu futuro de sonhadas venturas, precipitados em um sorvedouro infindo, restando-lhe apenas o desejo de acompanhar o amado velhinho que lhe dera o ser, prestes a resvalar para um jazigo, e a vontade de represália do pejo incomensurável de se ver unida ao asqueroso sicário que julgava o ouro acima da dignidade, a fizera sua esposa para se apoderar do seu corpo, sabendo que a sua alma seria eternamente de outro...
Ele a quisera para tornar mais invejável sua posição social, para ostentar uma opulência nababesca e uma consorte mais formosa que a própria Helena, cujos primores físicos seriam cobiçados e celebrizados na Roma tão corrupta quanto sua própria alma... Não a amava com o amor de Luciano, puro, respeitoso e casto; não; dominava-o a vanglória de ligar o seu destino ao da mais formosa jovem que seus olhos deslumbrados haviam contemplado!
Pareceu-lhe ouvir o fragor de rochedo estilhaçado por um camartelo de Golias (5), fantástico, cujos blocos fossem atroadoramente resvalando em um abismo incomensurável...
Esse rochedo era o seu próprio futuro e o seu passado, que ela teve a sensação de haver sido pulverizado pela Fatalidade, restando-lhe apenas o presente odioso...
Julgou-se envolvida em um nevoeiro intérmino, onde não havia um ténue raio de luz, e sim a gelidez mortuária de uma necrópole (6) abandonada durante séculos...
Quando o sacerdote terminou a cerimónia nupcial, os covardes assistentes prorromperam em um brado uníssono de aplausos...
Com o olhar alucinado ela notou que, somente um deles, aparentando quarenta anos de idade, tez morena, olhos expressivos e melancólicos, se conservou imóvel e lhe fixou o olhar, onde havia cintilações de lágrimas...
Essa fisionomia, desde então, fotografou-se nitidamente em seu cérebro.
Não a esqueceria jamais, mesmo que decorresse um milénio sem a rever.

(2) Áspide, víbora.
(3) Aquilão, vento do norte da Africa.
(4) Hidra de Lerna, monstro fabuloso, que diziam haver surgido em Lerna, lago da Grécia, com sete cabeças que renasciam, à medida que eram decepadas.
Foi morta pelo heróico Hércules.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:37 pm

CAPITULO IV
Consumada a cerimónia esponsalícia, Clotilde, sentindo na alma um vácuo de cratera, abraçou-se ao pai, e ambos não choraram...
Dir-se-ia que eram dois espectros, que, após uma expiação tremenda, desejassem enlaçar-se por toda a consumação dos séculos.
Numa Tarquínio, sorridente, disse-lhe:
- Espera-nos a Imperial.
Podeis trazer os servos que desejardes...
Grave e trémulo, o genitor de Clotilde ordenou a um dos seus mais conceituados servidores que fizesse comparecer à sua presença todos os seus escravos, fâmulos e habitantes da Rocha Negra, os quais, pouco depois, se reuniram no pátio lateral, à esquerda da habitação.
Falou-lhes então, com amargura indescritível:
- Meus fiéis servidores, e meus amigos, quis reunir-vos para vos dar o derradeiro adeus; sei que pela última vez ouvis a minha voz.
É provável que eu e minha filha aqui não mais tornemos.
Se a morte, desejada ardentemente, nos arrebatar a vida, continuai assim unidos, em harmonia, como se aguardásseis a nossa volta...
Amintas, o meu honrado mordomo, continuará a velar pelos interesses deste alcáçar, que, então, será de todos vós.
Cada um terá o seu quinhão, no final de um ano.
Os poucos escravos que possuo estão livres, e co-participação dos haveres comuns.
Os que se rebelarem contra o bondoso e probo Amintas, serão excluídos de Rocha Negra...
Se aqui não voltarmos jamais... tudo isto vos ficará pertencendo...
Lacrimosos e soluçantes, todos aqueles seres se prosternaram diante do magnânimo ancião, osculando-lhe muitos a destra alva e trémula.
Alguns servos, não se conformando com a partida do seu amo ou senhor, ainda ajoelhados, disseram-lhe:
- Senhor, consenti que vos acompanhemos, e à vossa piedosa filha, a Roma.
Queremos servir-vos até o derradeiro instante... das vossas, ou das nossas existências!
Donato, com um gesto, assentiu ao que desejavam seus abnegados fâmulos, que preferiram a afeição à liberdade...
Dentro em poucos momentos rumores e passos apressados se fizeram ouvir pelas câmaras e corredores, arrastando, com precipitação, as arcas dos que iam partir por tempo indeterminado. ..
Quando Donato e Clotilde desceram a escaleira da imponente habitação - onde tão ditosos tempos outrora haviam decorrido - acompanhados pela multidão que os circulava, fez-se um silêncio mortuário no interior do solar.
Dir-se-ia que ambos estavam petrificados como a rocha em que edificaram o alcáçar; eram a síntese da dor e do desalento, a concretização do desespero mudo, que lhes transparecia nas nobres feições!
- Parece que tenho o coração carbonizado! - pensou, com tristeza infinita, a jovem.
Sentiu, por uma emoção indefinível, o silêncio tumular da vivenda senhoril, onde nascera, e na qual ficaria prisioneira a sua alma, por indeléveis recordações de um passado florido de róseas fantasias...
Pareceu-lhe que um cataclismo a aprofundara no solo, não lhe sendo mais possível rever a luz solar; percebeu que se cavara em seu âmago um vácuo intérmino, impreenchível, onde seriam sepultadas todas as suas esperanças e todas as suas ilusões destruídas, e compreendeu que, no mundo sublunar, todas as suas quimeras estavam derrocadas, não lhe restando sequer um átomo de felicidade terrena...
Só lhe ficava um afecto, uma ternura, uma centelha divina - o amor que consagrava a seu infortunado progenitor, o nobre velhinho que, emudecido de dor e revolta impotente, se curvara em poucas horas e cujo frémito do coração ela percebia ao descer a marmórea escada do solar, do qual o ciclone invencível do infortúnio ia arrebatando-os para sempre.. .
Só ele lhe dera ânimo de viver mais, talvez, alguns dias, até que baixasse ao túmulo...
Se ele morresse em breve - sentia-o bem - seria a derradeira chama de um círio que se extinguiria dentro de sua alma desolada, como se por ela passasse um simum (7) africano...
Estilhaçara-se, no recesso de seu ser, algo que o fazia sentir amortecido o próprio coração, onde se rasgara um sorvedouro infindo, e nele resvalaram todos os seus almejos mais fagueiros.
Para ela a Terra perdera a força de atracção, e sua alma flutuava no Espaço, mas ainda acorrentada ao solo, qual se fora águia real, em pleno Infinito - o Infinito do sofrimento em que se achava asfixiada - e as penas fulgurantes a cair, e ela receasse, apavorada, rolar a um caos onde imperassem as trevas absolutas.. .

(5) Golias, gigante filisteu, morto por David.
(6) Necrópole, cemitério.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:37 pm

CAPITULO V
Instalaram-se todos na Imperial, festivamente empavesada, a contrastar com os corações amargurados dos que haviam partido da Rocha Negra.
Havia em seu bojo uma promíscua multidão de servos, de cavaleiros e de escravos; alguns de rostos melancólicos, outros risonhos, conjecturando os festins em homenagem aos esponsais de Numa Tarquínio, no auge do júbilo...
Donato deixara-se cair em um camarote que lhe haviam preparado.
Sentiu-se aniquilado, sem forças físicas, sem lágrimas para carpir sua desdita, a qual se lhe apresentava maior que a própria amplidão sidérea!
Porque não lhe tirara a vida o infame que o escravizara e à filha bem-amada?
Porque foram ambos açoitados pelo látego da humilhação e da desgraça em tão limitado tempo, eles que eram bons, justos, probos?
Porque fizeram os deuses impiedosos vitorioso um carrasco?
Todos os acontecimentos se precipitaram como que tangidos por um vendaval destruidor, desde o fatídico encontro dos excursionistas da Conquistadora com o tirano da Imperial...
A imprudência de Flávio produziu todos os fatais sucessos que ele ora deplorava, já sem forças para reagir contra a Fatalidade...
Como pressentira inauditas desventuras o nobre Luciano Naldi!
Como se iludira, em seus arroubos de glória, o seu adorado Flávio, sonhando conquistar triunfos imorredouros; e, no entanto, fora imolado pelo bandido que ele julgara amigo e protector! Como se metamorfoseou a sua existência, calma e feliz, em um abismo de sofrimentos indescritíveis...
Morrem-lhe a esposa, o filho, os amigos; piores, porém, do que todos esses infortúnios, foram as humilhações e as afrontas que lhes infligira, a ele e a Clotilde, o dissoluto ex-procônsul...
Sua alma estava contundida, maculada pela desonra...
Porque lhe faltaram as forças para esbofetear o ignominioso verdugo, que se apoderou de seu maior tesouro - a filha estremecida?
Porque não empunhara o punhal, com a única mão que lhe restava, e se tornara ágil em substituição à outra, e não trespassara com a lâmina o coração do torpe Numa Tarquínio?
Como se sentia acovardado, envilecido, conspurcado em sua dignidade de homem austero e probo!
Ele, altivo e generoso, que sempre aconselhara aos filhos a prática da virtude, certamente, se ainda lhe restasse algum valor da mocidade, se transformaria em homicida - para vingar as afrontas que o vilão lhe assacara, menosprezando suas cãs, e a pureza da filha adorada...
Não chorava; não podia sentir o lenitivo das lágrimas; um tremor contínuo, porém, lhe agitava os membros e o coração, que estuava de angústia...
Tentou levantar-se do leito, mas não o conseguiu.
Quis chamar os camareiros, que, sentinelas devotadas, velavam por ele, condoídos de suas amarguras, mas só a custo conseguiu articular um único vocábulo:
- Chamem...
- Que desejais, domine.
Longa pausa.
Depois de um esforço sobre-humano, completou a frase:
- Chamem... a... Clotil... de!
- Impossível obedecer-vos, domine...
Numa Tarquínio preveniu a todos de que, a quem a chamasse, antes que ele o consentisse... arrancaria a vida, a punhal!
Um gemido doloroso se lhe escapou do seio opresso; sentiu-se, então, mais ínfimo e infortunado que os próprios servos. ..
Chorou, por alguns instantes, alheio à presença dos criados, que, de frontes inclinadas, deixavam, também, fluir pelas faces, descoradas, lágrimas ardentes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:37 pm

Naqueles momentos, que ele compreendeu serem os supremos de sua existência, restava-lhe o consolo inigualável de haver sido justo e compassivo para os fracos, e cumprido, austeramente, todos os seus deveres terrenos:
tinha a consciência tao .imaculada quanto a neve dos píncaros do Himalaia! Esse refrigério, porém, não o confortava integralmente, pois se avolumara em seu coração a mágoa de haver, honesto e clemente embora, perdido a derradeira batalha da vida, saindo vencedor o sicário que lhe usurpou os mais preciosos de seus tesouros: os filhos e os amigos!
O consórcio de Clotilde com o infame que lhes roubara todas as venturas era a suma afronta à sua dignidade de patrício e homem impoluto!
Não podia conceber a união de uma Vestal com um Dragão asqueroso:
o eclipse de um astro pela sombra de um crocodilo; a aliança de uma alvorada do Estio com as trevas de um Inverno polar; acorrentar a Virtude mais ilibada ao vício mais degradante - Aspásia e Sardanápalo (8); conspurcar a neve mais pulcra com o lodo infecto dos pauis pestilenciais; macular a virgindade com a hediondez da prostituição; esfacelar um lírio com as garras de um tigre...
Não era concebível resistir a tanta dor e humilhação!
Parecia-lhe que, vendo a filha querida consorciada com um corrupto, havia consentido que ela - cândida e nívea donzela - se apresentasse em uma saturnal, em uma orgia sodomita. .. (9)
Não podia sobreviver a essa ignomínia, à catástrofe de todas as venturas, de sua dignidade de homem incorrupto, que criara entes nobres, destinados a desempenhar, na sociedade de qualquer país, um papel relevante, digno dos descendentes dos afamados Gracos (10).
No seu íntimo houve como que a violenta erupção de um Strômboli(11), crestando-lhe todas as mais nobres aspirações, devastando seu coração, carbonizando-o, transformando-o em cinza e lava incandescentes, que ainda o faziam padecer inominavelmente...
Parecia-lhe que fora arrojado a uma cratera insondável, ou encerrado entre muralhas inabaláveis; sentia-se perdido por todo o sempre, sem um raio de esperança que o pudesse iluminar!
Rolara do glorioso Capitólio (12) aos abismos da Rocha Tarpeia...(13)
dor do vexame era-lhe inconsolável.
Não desejava que a alvorada de um novo dia penetrasse no beliche em que estava inerte, impotente para a luta, incapaz de desafrontar sua dignidade fundamente ferida...
Não queria que a luz solar lhe iluminasse a face, descorada pelo vilipêndio, e de vencido nos prélios da adversidade, ignorando que aquela batalha perdida era a suprema no plano terreno, tornando-o herói para Deus, para ingressar nos mundos siderais!
Com a voz débil, despediu-se dos fiéis servidores e fez-lhes recomendações para que fossem transmitidas à filha adorada.
Eles, prosternados, ouviam-no, soluçando.
Depois pediu um pergaminho para escrever algumas palavras a Clotilde, mas já não pôde fazê-lo; a mão direita já estava meio álgida, inactiva, e um frémito o abalou da fronte aos pés.
O infortúnio ferira-o mortalmente; a desventura fulminara-o.
Sentiu, por uma sensação que não lhe parecera inédita, as forças físicas abandonarem-lhe o organismo debilitado pela idade, pela doença grave que havia pouco o levara ao leito e, sobretudo, pelo excesso de dissabores por que estava passando; - toda a tortura moral que o flagelava, desde os agravos que lhe foram infligidos pelo bárbaro que o escravizara, e à filha querida - suprema ignomínia assacada a seus brios de homem culto e livre, até então!
Quis, com um esforço inaudito, articular mais alguns vocábulos dirigidos à filha, mas não conseguiu terminar.
Começou a dizer aos camareiros:
- Dizei a Clotilde que minha alma se liberta deste infame cativeiro, para implorar justiça aos deuses...
Mas um súbito esmorecimento chumbou-o ao leito, e ele percebeu que um grave fenómeno psíquico ia passar-se no seu âmago.
Uma repentina convulsão abalou-lhe o corpo; e, sem mais se poder dominar, começou a inteiriçar-se, sentindo os liames que, até então, lhe aprisionavam ao organismo físico a fagulha divina - a Alma - romperem-se bruscamente, e invadir-lhe os membros invencível paralisia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:37 pm

Uma cor marmórea substituiu a ténue coloração das faces, e seus olhos, abertos, e fixos por momentos no tecto, fecharam-se logo depois, perenemente.
Sua mão crispou-se, qual uma garra de condor, sobre o tórax, do lado esquerdo, como a querer aperceber-se do derradeiro pulsar do coração, ou deste arrancar um punhal de dor inominável que nele se introduzira; mas logo, num espasmo geral, todos os membros se distenderam e se imobilizaram para sempre.
Estava consumada aquela etapa terrena do que fora abnegado senhor da Rocha Negra.
Descera o velário do Destino sobre a cena final do drama pungente de sua existência, levando ele na alma o amargor de uma decepção inconsolável!. ..

(7) Simum, vento abrasador do Saara, Africa.
(8) Sardanápalo, rei da Assíria, devasso e covarde.
(9) Sodomita, de Sodoma, cidade da Palestina, destruída pelo fogo celeste, por causa da devassidão que lá existia, segundo a História Sagrada.
(10) Gracos, Tibério e Caio, filhos de Cornélia, célebres por seu proceder correto, que se impôs à admiração dos romanos.
(11) Strômboli, vulcão impetuoso, situado numa das ilhas Lipária, pertencentes à Itália, ao norte da Sicília.
(12) Capitólio, templo onde eram coroados os heróis romanos.
(13) Bocha Tarpeia, perto do Capitólio, donde eram precipitados os traidores da Pátria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:38 pm

CAPITULO VI
Correu, célere, a bordo, a consternadora notícia do desfecho da existência terrena de Donato Moréti.
Todos suspeitavam da causa comovedora que lhe ocasionara a morte, e sentiam-se, no íntimo, revoltados contra o déspota que fora responsável por aquele desenlace funéreo.
Clotilde, ao inteirar-se do ocorrido, alma como as efígies de Carrara, ajoelhou-se perante os despojos sagrados, sem uma lágrima a tremeluzir-lhe os olhos merencórios.
Dir-se-ia que o pranto, a jorrar-lhe da alma enlutada, se extinguira de todo às chamas das desventuras que lhe devoravam o coração.
Sentia-se inerte, incapaz de pelejar contra o absolutismo do Destino.
Parecia-lhe ter o corpo animado por uma vida fantástica, e que sua alma, premida pelo guante da desdita, o abandonara, sendo substituída por outra, de trevas, que o transformara em penumbra eterna...
Sentia-o amortecido por apatia invencível; triturado por um camartelo descomunal; vergastado, cruelmente, por todos os ciclones do Universo; crucificado, aviltado, misérrimo!
Ajoelhada, tendo a seu lado, vitorioso e impassível o indigno esposo, julgava-se a mais infortunada de todas as criaturas . ..
Não lamentava o passamento do adorado genitor; invejava-lhe o final de seus padecimentos! Implorou-lhe ao nobre Espírito o término de seus pesares, ou de seus martírios inomináveis.
Percebia que a sua juventude florida fora transformada em intenso inverno siberiano, transportara-se do ápice de uma cordilheira ao pântano infecto; sentira suas asas - que todos as têm ao desabrochar das esperanças e das róseas fantasias! - cortadas cerce, ou desfeitas como as de Ícaro, (14) ao desejar cindir o firmamento das venturas terrenas.. .
Considerava-se humilhada e infamada por se haver unido ao seu verdugo.
Desejava que um inesperado cataclismo abalasse o mundo, soterrando todos os abrigos humanos, convulsionando as águas em um maremoto mundial, atraindo tudo para um turbilhão profundo...
Era a maldição dos deuses que pesava sobre ela - só, irremediavelmente só, após a hecatombe de todos os entes queridos, fustigada pelo açoite da desgraça, ligada a um ser desprezível; só, para sentir o abandono atroz em que se achava então!
Que fizera, porém, para tanto merecer?
Que delito moral cometera?
Que dever transgredira, para lhe serem arrebatadas todas as felicidades dignamente conquistadas, para ser punida com veemência por algozes insaciáveis?
Qual o poder da crença sublime em que fora criada - se nenhuma entidade celeste possuía um átomo de comiseração para lhe sustar um único infortúnio, mas, antes, deixavam que sobre ela se desencadeassem todos os vendavais da desventura?
Rompera-se o último grilhão terreno - o amor que consagrava ao bom e venerável ancião que lhe dera o ser; findara-se para ela o derradeiro apego à vida. . .
Era mister abreviar o epílogo sombrio de sua existência.
Odiava, execrava, aquele com quem se consorciara em momento fatal, para evitar o último dissabor ao adorado velhinho.. .
Numa Tarquínio, para ela, concretizava todas as perversidades humanas, de vez que, para conseguir apoderar-se de seu corpo, não trepidara em juncar de cadáveres sua existência, em transformar o seu porvir em um manancial de lágrimas eternas!
Cada vez mais se lhe arraigara no íntimo o desejo de se vingar do monstro a que fora jungida pela fatalidade.
Viveria para a vindicta.
Queria vê-lo sofrer quanto ela estava padecendo; queria vê-lo ultrajado quanto o fora seu nobre genitor.
Seu aspecto era o da efígie da Dor, a velar pelos despojos sagrados do extinto querido.
Um momento houve em que, estando ausente o cruel Numa Tarquínio, alguns servos de Donato Moréti, os que lhe assistiram aos derradeiros instantes de vida planetária, ajoelhando-se perto dela, entre lágrimas, lhe narraram as últimas palavras de seu digno pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:38 pm

Ela os olhava, imóvel, angustiada, sem uma expressão de sofrimento ou revolta, ouvindo a reprodução das palavras do que sucumbira às ríspidas vergastadas de um sofrer inominável.
No seu cérebro, porém, os pensamentos fervilhavam.
Agradeceu aos serviçais a sua dedicação, e prometeu gratificá-los .
- Querido e desventurado pai! - pensava ela - viverei para a desforra.
Auxiliai-me a vencer, a esmagar a cabeça da Hidra infamante que se apoderou de todas as nossas venturas, para as destruir.
Se a alma é imortal, como me afirmastes tantas vezes, não me abandoneis! Sede o farol bendito de minha vida!
A apoteose matinal já se extinguira.
As águas marítimas, que pareciam uma infinda jazida de ouro e rubis liquefeitos, trémulos e luminosos, transformaram-se, às súbitas, em serenas ondulações esmeraldinas.
Já se avizinhava a Imperial do porto de Óstia, quando Numa Tarquínio, abeirando-se da esposa, lhe disse que havia tomado uma grave resolução que precisava expor-lhe sem demora, Clotilde tinha uma aparência marmórea, e, no entanto, ao contacto da destra do tirano, que lhe tocara um dos ombros, estremeceu qual se fosse pungida por uma serpente.
Ele a impulsionou, para que não continuasse abraçada ao cadáver paterno, parecendo participar de sua rigidez e de sua frialdade funérea; como se houvesse contaminado seu corpo em plena juventude a insensibilidade mortuária.
Só então percebeu Numa Tarquínio que Clotilde havia perdido os sentidos.
Foi chamado o mesmo cirurgião ou herbanário, que, no dia da fatídica excursão em que se encontrara com o cruel Romano, a socorrera, com inteligência.
Transportada a um coxim, neste esteve insensível por algum tempo.
Quando, porém, após algumas horas decorridas, findou o seu entorpecimento, o seu olhar divagou pelo aposento ornamentado com aparato régio, incidindo sobre o rosto patibular de Numa Tarquínio, e o seu corpo convulsionou-se de pavor.
Ele despediu os circunstantes, e disse-lhe com afectação e orgulho:
- É mister que te mostres digna de ser a esposa de um procônsul romano.

(14) Ícaro, filho de Dédalo, com quem fugiu do labirinto da Ilha de Creta, por meio de asas, pegadas com cera.
Tendo-se aproximado do Sol, a cera derreteu-se, as asas caíram e ele foi precipitado ao mar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 06, 2022 6:38 pm

CAPITULO VII
Um frémito de indignação purpureou o descorado rosto de Clotilde, mas tão profundo era o asco que lhe inspirava o cruel Romano, que ela novamente cerrou as pálpebras.
- Quero, prosseguiu ele com impiedade, sorrindo sarcasticamente, que não lamentes excessivamente o sucedido.
Teus servos olham-me como se eu fora um bandido, por causa de teu aspecto doloroso e trágico...
Se quiseres evitar prováveis desforços, muda de atitude...
Já dei todas as providências, a respeito de Donato Moréti.
Seu corpo, com as honras cabíveis a um veterano, foi atirado ao mar...
Não ficaria airoso que amanhã, ao chegarmos a Roma, onde nos aguardam festejos sumptuosos, houvesse funerais, em vez de manifestações de regozijo por nossos esponsais...
Ela soergueu-se no leito de um só impulso, exclamando, com desespero e revolta:
- Matai-me, por Júpiter!
Tirai-me a vida que odeio ou deixai-me livre para me atirar ao Mediterrâneo, que sepultou meu derradeiro amigo sobre a Terra!
Ele sorriu com superioridade, e, vedando-lhe a saída do beliche, respondeu-lhe com simulada calma:
- Creio que não me casei com uma escandalosa mundana, e sim com a filha de um homem virtuoso, ao menos na aparência...
Evita estas cenas dramáticas, aliás, ridículas ao extremo...
Acalma-te, e mostra-te digna da situação de realce que ocupas...
- Será crível que vos apodereis até de minha própria vida? Haverá escrava mais ínfima do que eu?
Porque vos comprazeis em me matar lentamente, e não de uma só vez?!...
- Porque? - tornou o algoz, com aspereza - para que sofras o mesmo suplício que se apoderou de meu coração, desde que te conheci, contrariando-me nos meus desejos.
Eu que sou obedecido até pelo olhar... que digo?
Até pelo pensamento!
És a única criatura que se insurgiu contra as minhas pretensões!
Ouviste bem o que te disse?!
- Se me julgais criminosa, ou rebelde, porque me poupais a vida?
Matai-me e arrojai-me ao túmulo de meu nobre pai! A vida é-me intolerável!
- Porquê?! Tornas a interpelar-me?
Porque quero que sofras, como eu.
Quero que vivas porque és muito jovem e bela.
Quero que os homens... invejem a minha...
fortuna!
- Como podeis ser feliz, fazendo-me desgraçada?
- Não me insultes, Clotilde, que eu sou terrível em meus desforços!
- Que mais podeis fazer-me ?. ..
Senão matar-me, após tantas humilhações, que me tendes infligido?
Nestes momentos, em que meu coração sangra, pela morte do mais digno dos pais, se vos tivésseis condoído do meu padecimento... talvez ainda fosse possível uma reconciliação...
Agora, tudo será baldado!
Cavou-se entre nós um sorvedouro infindo que, jamais, será transposto!
Nunca mais haveis de inspirar-me outros sentimentos... senão o de temor e ódio!
Nossas almas estão separadas por toda a eternidade!
- A mim, que me importa - disse ele, com sarcasmo e frieza - que as nossas almas (cuja existência real ponho entre as minhas dúvidas) estejam separadas eternamente...
se me pertences, segundo as leis terrenas, és minha esposa, és linda, e todos os homens cobiçarão a minha sorte?
Clotilde, ouvindo-lhe as expressões cruéis, recaiu sobre o leito, convulsionada por espasmos nervosos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:14 pm

Soluços incoercíveis abalaram-lhe o tórax, com intensidade.
Numa Tarquínio, insensível àquela dor inenarrável, disse-lhe, pausadamente:
- Não sei porque te consideras desditosa em minha companhia, se todas as Romanas disponíveis desejavam esta insigne honra...
Podia fazer-te minha escrava ou minha amante, e, no entanto, procedi com a máxima nobreza - fiz-te minha consorte...
Aguardam-te palácios e festins principescos.
Não quero, pois - ouviste bem? - que me repitas que és desgraçada, nem exageres as demonstrações de pesar pela morte de Donato, que já era demais neste mundo...
Vou deixar-te por alguns instantes, para readquirires compostura e serenidade, a fim de que as servas te preparem para a chegada a Óstia, onde me esperam amigos. Não consinto que, insensatamente, perturbes os festejos nupciais!
Indiferente ao tormento daquela alma agoniada, fechou o beliche e retirou-se com arrogância.
Uma hora depois deste diálogo, Tarquínio abriu o camarote de um só impulso.
A desventurada Clotilde jazia sobre o leito, novamente inerte, marmorizada, com aparência cadavérica.
Ele, com ímpeto brusco, sacudiu-a.
Ela não deu acordo de si.
Apavorado, auscultou-lhe o tórax, percebendo as pulsações, mas estas eram tão fracas que pareciam prestes a finalizar. ..
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:15 pm

CAPITULO VIII
Numa Tarquínio, percebendo a gravidade do estado de Clotilde, reclamou a presença do que já a havia socorrido por duas vezes, mas foi com sérias dificuldades que este conseguiu fazê-la voltar à vida.
à algidez sepulcral sucedeu elevada temperatura, febre escaldante, delírio.
O rosto carminado e os olhos lúcidos - tornaram-na de uma beleza supra-terreno.
Nunca se apresentara aos olhos de Tarquínio tão formosa assim: suas faces pareciam pinceladas com o rubro fulgor dos arrebóis tropicais; os olhos rutilavam como que incendidos pelo esplendor dos astros; os cabelos, ondulados e opulentos, desprendidos em madeixas castanho-áureas, davam-lhe um indizível encanto.
Ora soerguia o busto, como que impelida por mãos invisíveis, mas possantes; ora imobilizava-se nas almofadas purpurinas, qual se já estivesse em estado de coma.
Dir-se-ia que seu Espírito se lucificara, e lhe transparecia no semblante, com a tonalidade dos crepúsculos estivais; irradiava-se dela uma surpreendente beleza qual se um Fídias (15) celeste houvesse conseguido esculpir a sua inimitável obra prima...
Numa Tarquínio contemplava-a embevecido, temeroso de a perder para sempre.
Sua irritabilidade atingira proporções inverosímeis.
Sem motivo justificável ordenava que vergastassem os escravos, mormente os que haviam pertencido a Donato Moréti, os quais acocorados, em prantos, aguardavam, com a humildade dos desgraçados indefesos, notícias da adorada senhora enferma.
O porão da faustosa galera' já se achava apinhado de infelizes que nem ao menos tinham o direito de suplicar misericórdia, compaixão, ou de chorar sua desdita, e cujo único crime fora o de não se levantarem com precipitação à passagem inesperada do déspota, agitado por indómitos sentimentos. ..
Os ex-escravos de Naldi e Donato eram sobre todos os mais atormentados.
Múrfius, com quem Luciano confidenciara pesares e temores, sem se descuidar de seus deveres, tudo observava, e por vezes, seus olhos chispavam de ódio e revolta contra as atrocidades do tirano que os infelicitava; acumulando em seu cérebro pensamentos de vingança irreprimível...
Havia em todos os corações uma angústia indizível, uma ansiedade incontida em todos os semblantes, e muitos daqueles infortunados imploravam aos deuses a volta da saúde da desditosa Clotilde, não só compadecidos de seus sofrimentos físicos e morais, mas porque compreendiam ser o receio de a perder para sempre, a causa da ferocidade de seu algoz.
Uma atmosfera de terror pairava naquele reduto marítimo onde se aglomeravam seres acovardados pelo desalento, pelo temor de novos e inomináveis suplícios; parecia-lhes que no formoso bergantim se alojaram todos os tormentos e todos os receios do Universo, arrastando-os através do Mediterrâneo azul, faiscante de lúcidas lantejoulas, dragão límpido e belo, indiferente às angústias dos que se abrigavam acima de suas escamas cintilantes!
Hora houve, ao dealbar de um dia encantador, em que todos foram dominados de intraduzível desolação:
constou-lhes que Clotilde estava agonizando...
- Eu me arrojarei ao mar! gemeu em surdina um dos infelizes, no auge do desânimo.
- Eu concitarei todos os presentes a trucidar o nosso carrasco! pensava Múrfius Selan, em cujo coração se aninhara a tarântula da vingança.
Tantas vidas preciosas valem bem mais do que a de um indigno sanguinário!
Penetremos, pela visão psíquica e retrospectiva, no local onde se achava a enferma
Ao período ígneo, ou de excitação violenta, sucedera o de algidez agónica.
Uma lividez de alabastro afivelara-lhe ao rosto a máscara ideal dos deuses do Capitólio, parecendo que uma daquelas obras primas fora transportada ao leito, sob um dossel de veludo escarlate, contrastando com a sua alvura de neve alpina.
Nenhum movimento lhe animava já a plástica helénica.
Uma transpiração abundante, provocada pelos reagentes febrífugos, aljofrava-lhe a epiderme.
No seu íntimo, Clotilde sentia o esvaimento da essência divina - a Alma - prestes a ingressar na Pátria celeste.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:15 pm

Perdeu a consciência do local em que permanecia o corpo tangível e, suavemente, percebera que o seu Espírito se exteriorizara, e fora
transportado a uma paragem de beleza indefinível; assemelhava-se a um ninho de neblina azul, onde divisava seres lucificados, de formosura indescritível.
Havia uma vibração dulcíssima naquele mar eterizado, que lhe penetrava a alma, dando-lhe uma sensação deliciosa de calma e conforto.
Todas aquelas entidades passavam em grupos graciosos, não atentando em sua presença.
Uma, porém, estava a seu lado: ela a pressentia sem a ver, por intuição extra-terrena.
Subitamente, ouviu uma voz maviosa que assim lhe falou:
- "Clotilde, filha bem-amada do Criador do Universo, teu Espírito, burilado pela dor, já se acha quase escoimado de todas as máculas que o enegreceram em passadas e delituosas existências.
Acabas de passar por árduas mas remissoras tribulações; mas ai de ti!
Ainda não se acham consumadas...
E' mister que retomes o peso esmagador do fardo das expiações, e caminhes ainda alguns passos, no carreiro sombrio e eriçado de espinhos da existência terrena!
E' mister que vivas ainda sob o jugo do perverso, que execras, para se finalizarem débitos tremendos, e para que aqueles que te cercam, e gemem e sofrem martírios indizíveis, tenham lenitivo.. .
Para que termines o ciclo das reencarnações planetárias, faz-se mister o fecho de ouro:
a abnegação, o sacrifício, a renúncia, a piedade.
Esquece, filha amada, teus tormentos morais - terremotos da alma que transformam em escombros áureos as venturas e as ilusões encantadoras!
Perdoa a quem tas destruiu; olvida o passado caliginoso por onde perpassam os espectros amados... dos que podiam e podem ainda fazer-te ditosa!
Não os perdeste, dilecta irmã; apenas desconhecerás por algum tempo as suas pegadas, mas de todos poderás aproximar-te por meio de preces vibrantes, aromas celestes, que exalam as almas puras, e ascendem para o Firmamento constelado, para as moradas dos redimidos!
Todos eles estão a teu lado, estendem-te as mãos tutelares, para que não caias no abismo do suicídio - ofensa máxima assacada ao mais carinhoso de todos os Pais: Deus!
Porque desejas renunciar à vida?
Porque não és venturosa?
Mas, que é ser feliz, Clotilde?
Possuir opulência igual à de Creso?
Ser formosa qual Vénus?
Habitar palácios?
Ser aliada ao que amas ainda? Não.
Tudo isto é transitório.
Tudo isso o túmulo e o tempo .consomem.
A única ventura real que existe na Terra, Clotilde, a felicidade incorruptível que os bandidos não usurpam, e Deus valoriza, que o tempo não destrói, e os vermes não corroem... tu a tens, filha querida; - é a PUREZA DA CONSCIÊNCIA, é a satisfação íntima por não haveres transgredido nenhum dos teus deveres morais, sociais e espirituais!
És bem ditosa, pois, Clotilde...
Nesta existência tens sido irrepreensível; e, não fossem os delitos de transcorridas etapas terrenas, querida minha, seria ocasião propícia para partires para as regiões serenas do Cosmos.
Já sabes, pelo conhecimento dos ensinos pitagóricos, que as nossas existências planetárias, os nossos crimes e as nossas virtudes são correlacionadas, e não insuladas; somos responsáveis em uma peregrinação terrena pelo que praticámos em outra; e, portanto, o Bem ou o Mal que realizamos terá uma consequência inevitável no futuro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:15 pm

Eis porque ainda foste submetida a provas ríspidas, as derradeiras de tuas existências planetárias, com as quais fecharás o ciclo de todas, fulgidamente, se não fracassares na provação máxima...
Perdoa-me se ofendo os teus mais secretos sentimentos de revolta contra o que te derrocou os castelos róseos das venturas arquitectadas no período áureo da vida...
Infeliz de quem, amando-te até à loucura, sonhando um quinhão de felicidade terrena, apenas conseguiu ensanguentar a consciência, enegrecer mais o próprio Espírito, roubar o que a criatura tem de mais precioso, o tesouro celeste que nos pertence, aqui ou no Infinito: a serenidade da alma, desfrutada pelos bons, pelos justos, ou pelos redimidos!
E esta é a felicidade que possuis, em grau superlativo, Clotilde!
Tua alma é bem mais pura e alva do que o teu corpo jaspelino, e, quanto mais sofreres... mais translúcida e linda será ela!
Esquece, pois, o momento presente, pela eternidade porvindoura nas mansões afortunadas onde se congregam os que triunfam do Mal.
Olvida que és jovem e formosa, e que nutrias o almejo de usufruir delícias no festim da existência, para te lembrares de que te cercam desgraçados cujas carnes são ulceradas pelos açoites dos carníceiros.
Protege-os. Ampara-os.
Enxuga-lhes os prantos ardentes com palavras de comiseração e conforto.
Estende-lhes a mão de fada, qual âncora aos náufragos, qual o orvalho que cai do céu sobre flores desabrochadas, em um Saara de desventuras!
Compra a tua ventura perpétua, infinita, inigualável, por mais alguns instantes de martírio...
E' a conquista de um Éden por alguns ceitis de suplício moral, suavizado pelo Bem que praticares - refrigério divino!
Compreendo a repulsa que te causa o mundo terráqueo, com as suas vilezas e os seus delitos; percebo a amargura que está denegrindo o teu nobre coração, afeito à virtude e à justiça; mas não te revoltes por se te avivar na memória adormecida pelo perpassar dos séculos a triste realidade de outrora:
já foste solidária com o desditoso que ora te domina - inflado de orgulho, vaidade e zelo, como se jamais houvesse de ser chamado ao tribunal do Magistrado Supremo para julgamento e sentença!
Apavorada, retrocedeste no carreiro dos delitos tenebrosos, e entraste, definitivamente, no dos deveres impolutos...
Ele prossegue no caminho maldito...
Agora, enquanto tua alma ascende para o Céu, a dele está descendo vertiginosamente, para um báratro de padecimentos indescritíveis...
Ai! do que, galgando imerecidamente situação de realce, pode saciar todos os seus caprichos condenáveis, e não vacila em imolar direitos alheios, e sentimentos louváveis, satisfazendo desejos imoderados e indignos, calcando aos pés a virtude e a honra de seus semelhantes!...
Filha dilecta, ainda alguns séculos se escoarão nesse orbe sem que verdade mais lúcida impere nesse abismo de trevas...
Afirmo-te, porém, não tarda o Semeador da Luz eterna a descer ao cárcere de Sombras...
Não tarda, pois, que alvorada mais formosa doure o horizonte da Humanidade, para que ela possa triunfar do erro e do pecado...
Ele - o disseminador do Verbo Divino, feito humilde servo do Senhor Supremo, com as mãos cheias de estrelas para as semear na Terra, nas almas denegridas pelos crimes nefandos que têm infortunado os povos, desde as eras primitivas - virá com fulgor de astro cujo brilho foi eclipsado momentaneamente; mas seu poder será reconhecido por toda a consumação dos milénios!
As verdades diamantinas, emanadas do Criador do Universo, ofuscadas pelos dogmas e pelas convenções humanas, abrolharão lentamente em todos os Espíritos, abertas em rosas de luz, em plena Primavera!
Filha querida, teu corpo físico tem apenas 18 anos de idade, mas o teu Espírito já venceu muitos séculos, veio de longínquas paragens, com um acervo de desenganos, de crimes, de abnegações, de virtudes, e ainda não finalizou as provas amargurantes, ainda não resgatou todos os débitos contraídos para com o Sumo Árbitro universal...
Não fraquejes, nunca, nos instantes de refregas morais, quando a alma tem ensejo de lutar com denodo e remir os seus erros, cobrindo-se com os louros da vitória.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:15 pm

Sê forte e virtuosa.
Perdoa e consola os desditosos que te cercam, pois basta uma palavra, áspera ou meiga, pronunciada por teus lábios, para que teu consorte e algoz (que te ama até à insânia!) os lance em calabouços mortíferos, ou lhes conceda liberdade integral!
Cada triunfo que obtiveres, em teu Espírito desabrochará uma radiosidade estelar...
És uma lâmpada celeste, acesa na masmorra tormentosa de padecimentos indizíveis existentes nos subterrâneos sombrios de um palácio, que não tardarás a conhecer...
Sê boa e compassiva.
Esquece a felicidade da Terra, mitigando dores, estancando lágrimas.
Fazer o Bem é a ventura dos justos e dos
santificados, pelo martírio das provas seculares!
Dentro em pouco tempo, filha amada, baixará à Terra o Núncio deífico, Pegureiro da Luz, que norteará as ovelhas desse vasto aprisco - o mundo das Sombras perenes - aos prados fúlgidos e azuis do Infinito.. .
A Humanidade tem vivido submersa no charco dos vícios, no paul das iniquidades, no dédalo dos crimes e das paixões nefandas... porque desconhece o alvo a culminar, a conquista da ventura perpetua por meio do cinzelamento do próprio espírito.
Até agora - com raras excepções - só a atrai a matéria, a formosura das plásticas venusinas, o ouro com todas as suas regalias; e, por isso, para muitos corruptos, a heróica mãe dos Gracos vale menos do que Hetaira (16).
Tempo virá, porém, filha querida, em que o amor espiritual, fraterno, puro, germinado na alma impoluta, qual lírio branco em vergel vicejante, encadeará todos os seres, irmanando-os com o escopro da Dor, para neles gravar virtudes excelsas...
Tu, filha amada, já estás ascendendo para o verdadeiro Soberano do Universo, cujo templo Ele próprio edificou, arquitectando uma cúpula de estrelas com os fulgores eternos: a abóbada celeste!
Esses deuses transitórios, que ornamentam os templos pagãos, que fascinam os olhares, pelo esplendor das roupagens, dentro de limitado tempo baquearão.
Já se vislumbra além, nas estâncias siderais, o clarão de uma Nova Era - um desconhecido, mas maravilhoso rosicler...
Ele somente ditará às almas, ávidas de conhecimentos transcendentes, o Código lucífero e eterno, que todos os povos conhecerão, qual roteiro estelífero arrojado do Infinito às cerradas selvas da corrupção, e dos delitos tenebrosos...
No percurso dos milénios, e por seu intermédio, Ele aqui tem vindo sondar os espíritos cheios de trevas:
Rama, Krishna, Hermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras, Platão...
fundir-se-ão em uma só entidade luminosa, pois todos eles terão por finalidade o Emissário divino, o Zagal de todas as criaturas humanas, para arrebanhá-las e conduzi-las ao Aprisco Celeste.
Foram eles os precursores do Mestre dos Mestre, os alabardeiros reais, os arautos deíficos, que vieram prenunciar o advento do Rei de todos os Soberanos terrenos, na humildade e nas virtudes peregrinas!
Suas palavras formarão o Código de Luz perpétuo deste Orbe; seus conselhos salutares e inspirados nas Verdades siderais, serão o bálsamo e o conforto dos aflitos e dos desventurados; seus ensinamentos,
com a magia de penetrar as almas - por mais trevosas que sejam elas - no decorrer dos evos, tornar-se-ão em lúcida realidade na Terra, redimindo todos os delinquentes.
Arauto divino, Alma evolvida e acendrada por todas as provas e abnegações excelsas, virá pregar as Leis da fraternidade, doçura e perdão aos desesperançados e desditosos.
No entanto, filha amada, também Ele padecerá as mais inomináveis atrocidades...
Muitas vezes sua fronte puríssima, nimbada de fulgores aurorais, penderá de amarguras; também Ele padecerá as injustiças e os apodos humanos, estoicamente...
Quem, pois, se isentará da Dor no planeta das Lágrimas, se é ela que nos eleva das Trevas para a Luz eterna?
Porque não se resigna a criatura humana com alguns instantes de intensa angústia, se é ela, a Dor, que faceta a alma, qual o buril ao diamante; se é ela o Mago que descerra os pórticos da ventura ilimitada que só os redimidos
soem fruir nas regiões siderais?
Saber sofrer é a ciência do justo.
Padece, pois, querida, e não desesperes, nem blasfemes, nem pratiques um dos delitos mais graves perante o Juiz universal - o suicídio - a rebeldia contra os decretos do Alto, cometida pelos que não se conformam em padecer com paciência as adversidades, os dissabores e as iniquidades terrenas que, como tocadas por uma varinha mágica, se metamorfosearão em flores de alegria, em gozos puros e imateriais, infindos, em mansões de gratos labores e de felicidade intérmina...

(15) Fídias, o mais Ilustre escultor ateniense da antiguidade.
(16) Hetaira, famosa cortesã grega.
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CAPITULO IX
"Bem sei, Clotilde, que és uma alma possuidora de rara nobreza; compenetro-me de teus tormentos morais, de tuas revoltas contra o tirano, e das espezinhações por que tens passado; e, dar-te-ia razão, se ainda não conhecesse os sábios desígnios divinos!
Ouve-me, pois:
não te rebeles contra as saraivadas de padecimentos remissores, nos instantes de ríspidas tormentas morais; olvida os próprios martírios, e esforça-te por viver sendo útil a nossos irmãos - os infortunados que te rodeiam - para aqueles a quem podes mitigar as amarguras, os vexames, os suplícios...
Compreendo as tuas agonias; mas, se as suportares com heróica resignação e com a humildade dos justos, terás a tua pulcra fronte aureolada com lúcido diadema, mais valioso que o do maior potentado da Terra: - o dos redimidos pela Dor; o dos triunfantes nos prélios planetários; o do conquistador das regiões celestes, e da felicidade imorredoura...
Vais, com o coração apunhalado de recordações dolorosíssimas, ingressar na dissoluta quão formosa Roma, onde a Arte triunfa e a Virtude periclita...
Já tens a alma acendrada pelos deveres morais, abroquelada no heroísmo e na honestidade, vitoriosa nos prélios angustiantes mas redentores.
Prepara-te, pois, para a extrema batalha...
que culminará o sacrifício, atingirá proporções descomunais, e será mais dolorosa do que já o foi até o presente...
Filha querida, não temas, porém, a batalha definitiva:
teus amigos invisíveis estão a teu lado, vigilantes e carinhosos. Sentirás suas mãos de névoas ampararem-te, guiarem-te os passos, tutelarmente, até que resgates o derradeiro débito para com o Excelso Soberano do Universo... e, assim, finalizarás a dor suprema!
Vais penetrar na cidade, que, por muito tempo ainda, terá supremacia sobre todas as metrópoles deste planeta.
Vais ser invejada pelas mulheres e cobiçada pelos homens; pois todos verão em ti apenas a brilhante situação que ocupas e a plástica primorosa que possuis... e ninguém suspeitará das tuas amarguras nem das tuas lágrimas...
Tu, porém, filha amada, conservarás intacta a açucena de tua alma; nunca transgridas os teus deveres sagrados, isso para adquirires novos méritos.
Cerra ouvidos às lisonjas dos que te cercam, que, como setas de fogo, penetram nos corações, crestando-lhe os lírios da virtude, neles já desabrochados...
Vais enfrentar o Orgulho - o câncer que contamina todos os espíritos vaidosos.
A ociosidade é a virtude do século.
É mais honroso, para muitas mulheres, o meretrício do que o labor doméstico.
Há maior mérito, para muitos indivíduos, na pilhagem e no assassínio de nossos irmãos, do que no trabalho honesto da lavoura e das indústrias.
A guerra, - homicídio colectivo, acobertado pelas leis civis e militares - é o mister mais rendoso das sociedades hodiernas.
Vale mais quem maiores conquistas bélicas fizer, quem mais vidas arrancar, mais infortúnios disseminar, mais banditismos praticar, mais desonras ocasionar, mais famílias desvirtuar, mais homens escravizar!
O ouro e o despotismo são dois soberanos mundiais.
Perante eles quase todos os joelhos se dobram, quase todas as almas se corrompem, quase todos os entes se tornam venais.
As mãos dos que assim procedem rivalizam com o veludo mais suave, e as suas consciências com os esterquilínios mais asquerosos.
Os palácios mais imponentes elevam-se do solo, parecendo gigantescas flores de mármore rendilhado; e os que os edificam - míseros escravos ou proletários - morrem, as vezes, nas cruzes e nos patíbulos, nivelados a malfeitores, considerados entes desprezíveis, sem honra, sem pátria, mercenários, cobertos de andrajos que mal lhes encobrem as chagas dos corpos, açoitados nos pelourinhos pelas vergastas dos seus algozes empedernidos!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:16 pm

Roma é bem um lago de safiras, onde se reflectem céu e estrelas coruscantes - os gozos mais requintados - e que, no fundo, contém podridões nauseantes, devassidões que corrompem e gangrenam os corpos apolíneos e as almas pusilânimes...
É, ali, mais meritório apunhalar um desventurado adversário, ou um servo, do que empunhar um alvião.
A púrpura do sangue humano, que enluva as mãos dos déspotas, tem mais valor do que a aspereza das mãos dos agricultores, dos que fazem abrolhar da terra lavrada os rosais, as vindimas, as searas que se cobrem de flores, dos aromas de dulçurosos frutos, de trigo nevado...
As orgias dos festins são mais apreciadas do que as fábricas e as lavouras.
O ouro dos vencidos embriaga os tiranos e as suas legiões venais, dá-lhes honras e regalias, mas conspurca os espíritos dos vencedores.
Estes são corvos que se banqueteiam nos sepulcros dos exterminados, que tripudiam sobre os cadáveres dos vencidos nos campos de batalha, e usurpam a um só tempo a honra, a vida e a liberdade com os tesouros dos conquistados!
A balança da Justiça - a Témis(17) divina - anda desequilibrada: numa das conchas, o absolutismo, a violência e o aparato forçam-na até os abismos do Espaço descendente; a outra, onde existiam a Honra, a Liberdade dos vencidos, dos escravizados honestos, ergue-se para o Infinito ascendente, qual se nela houvessem nascido asas angélicas que a arrojassem às alturas siderais, desejando exilar-se nos astros lúcidos, já que não encontram guarida na Terra!
Infelizmente, e por muitos séculos ainda, venerar-se-á mais a espada, que vara os corações, do que um instrumento agrícola, preparador das leivas para cultivo dos vegetais, de onde germinam as messes benditas.
Os Romanos aromatizam os corpos efémeros, que desejam belos, e corrompem as almas, denegridas de vilezas, descuidados de futuro eternal...
Eis, filha minha, a época em que vives.
Não será, porém, duradoura tua estada no grande empório europeu, onde inolvidáveis sucessos estão prestes a desenrolar-se; e tua alma será atingida por alguns dardos intoxicados - de recordação indelével!
Sê, porém, o orvalho lucífero para os espíritos ávidos de Justiça, cujos corpos vergam à passagem do déspota... que te escravizou também!
Mais tarde, liberta dos grilhões terrenos, compreenderás toda a génese de teus pesares, das humilhações por que passaste.
Tua actual existência é o reverso de outras, escoadas em festins régios, nos quais imperavas soberana da Beleza, do Mal e da corrupção...
Já fizeste sufocar brados de revolta; já espezinhaste criaturas honestas; escravizaste consciências íntegras; fizeste poluir donzelas por teus asseclas e amantes, em horas de desvario ou de vinganças atrozes.. .
As almas, à semelhança do aço, só se enrijam e se tornam inquebrantáveis, na forja ardente da Dor, do Dever e da Virtude!
Teus tormentos de hoje - antítese dos gozos de outrora - transformar-se-ão em alegrias novamente no porvir, se triunfares de todas as provas imprescindíveis ao aprimoramento de teu Espírito.
Suporta-as, pois, com resignação e humildade.
Teu corpo encantador pertence transitoriamente ao verdugo que dele se apoderou; mas tua alma - límpida e açucenal - será rociada pelos aljôfares do Céu, metamorfor-se-se-á ainda em águia divina, sacudirá da Terra o pó que ora a obscurece, e alçar-se-á a mundos radiosos onde não existem sofrimentos, nem injustiças.
Padece e cala.
Esquece teus próprios pesares, e lembra-te dos de nossos companheiros de degredo terreal.
Não te revoltes contra as expiações acerbas e supremas que te aguardam.
Confia e espera na equidade do Sumo Juiz do Universo, e serás, enfim, aliada àquele que amas, e ao qual juraste fidelidade perpétua.
Não transgridas, porém, teus deveres morais.
Sorve, até à derradeira gota, as amarguras das tribulações redentoras.
Não queiras fugir à vida pelo crime inominável do suicídio, tão fortemente implantado na sociedade hodierna.
Herói, não é o que aniquila a vida orgânica, e sim o que espera, até o derradeiro transe, a execução dos arestos divinos; o que enfrenta com verdadeiro denodo as adversidades e os padecimentos terráqueos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:16 pm

Assim como é sagrada a vida de nossos semelhantes, e quem lha usurpa é considerado homicida e condenado a penas severas, também o é aquele que se suicida!
Em alguns casos, mais assassino é o que arranca a própria vida, do que o que aniquila a do seu próximo; pois há homicidas por defesa, em momentos de desatino, de alucinação pelo ciúme, pela desonra, pelo desacato, pelo ódio, em que um contendor enfrenta o outro; ao passo que o suicida trai a confiança que inspirou ao Criador do Universo, que lhe entregou ao Espírito, um corpo indefeso, inerme, passivo; é, em suma, igual ao parricida aniquilando o ser àquele a quem deve a vida!
Suicídio e assassínio são delitos de consequências gravíssimas .
Às vezes, o homicídio é sequência de uma falta aviltante, é cometido em defesa da propriedade, da honra, de um ultraje, que, levando ao desespero e à irreflexão, faz um indivíduo, nesse momento de insânia, arremeter contra o ofensor, e (Caim perpetuado através dos séculos) arrancar-lhe a vida com a ponta de um punhal, ou com arremesso de um calhau, qual perverso fundibulário...
O agravo recebido é uma atenuante ao crime perpetrado. Felizes, porém, são os que não se deixam vencer pelos sentimentos malsãos e ultrizes, e correspondem ao insulto com uma prece, ignorada dos homens, que ascende às amplidões cerúleas, transformada em aroma e luz, e se transmuda em bênçãos para quem a desprendeu do coração compassivo...
O suicida é o adversário de si próprio.
É o que imola o tesouro divino, nivelando-se ao rapinante que frauda os cofres de seu próprio filho.
É o celerado que não vela pelo erário precioso que a Majestade Suprema lhe confiou.
É o salteador de sua própria fortuna celeste.
É a sentinela covarde, que assalta as preciosidades sagradas de um templo, em vez de as conservar intactas e incólumes, até delas fazer entrega a quem lhas confiou.
Relâmpago de desespero e revolta, esse auto-homicídio tem fulgurado em tua mente, ao desenrolar dos últimos episódios de tua existência...
Não lhe dês asilo em teu nobre espírito, Clotilde.
Depende da prova máxima - o resgate de todas as faltas ou débitos desta e de outras eras, porque, filha amada, o nosso estágio terreno é o conjunto de todas as experiências de vidas sucessivas; somos responsáveis em uma, pelos desatinos perpetrados em outras...
Mais tarde saberás o que foste e o que praticaste...
E' no arroio das lágrimas que as almas se redimem; é na força incandescente da Dor que os caracteres se retemperam e se tornam rijos qual o aço de Pórcida (18).
E, filha minha, quanto mais mérito um Espírito adquire, maiores são as provas finais. Sofreando-as, com resignação e denodo moral, mais valiosos serão os louros conquistados, perante os quais os dos jogos olímpicos se desvalorizam, perdem o seu prestígio...
O vencedor dos embates espirituais será engrinaldado, não de flores e folhas simbólicas, mas de pedrarias fúlgidas e indestrutíveis, que brotam da própria jazida da alma redimida e vitoriosa do Mal.
As derradeiras refregas morais são, por isso, as mais dolorosas e mais meritórias.
Eis, porque, filha minha, tantos tormentos foram desencadeados sobre o teu coração e sobre o dos entes nobres que te deram o ser...
Sofre-os, pois, com ânimo e confiança plena no Absoluto, que pontifica no Universo, em sólio constelado, porque Ele próprio é a Luz e a Alma que se impregnaram nos astros, dando-lhe um lume incessante, eterno, inextinguível!
Ele, que tudo fez abrolhar do caos, ainda está quase desconhecido na Terra - ínfimo reduto de misérias físicas e morais, cárcere de gemidos incessantes, foz de rios caudalosos, que parecem transbordados dos corações repletos de lágrimas...
Eis, filha minha, porque têm sido assim tuas últimas tribulações : o teu Espirito já se aproxima da finalidade planetária, ensaia o surto às regiões de paz que existem além, não habitadas por ociosos, mas por abnegados cultores do Bem, das Virtudes excelsas, dos deveres mais austeros!
Prepara-te, pois, para a derradeira batalha ascensional.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:16 pm

Esquece as vilezas de nossos infortunados irmãos, que se acham agrilhoados nas masmorras do pecado; lamenta-os, antes, pois o teu porvir transformará as tuas dores presentes em rosas de prazeres eternos, ao passo que aqueles ainda terão que resgatar com prantos acerbos os seus delitos, em séculos de padecimentos.
Conforma-te com os desígnios supremos e com a separação temporária dos entes nobilíssimos, que foram teus progenitores, e Pedro Naldi - Espíritos evolvidos, que ultimaram provas acérrimas, conseguindo sua promoção às mansões felizes do Universo. Árduos foram seus últimos embates morais, mas mantiveram-se sempre dignos e devotados ao Bem e à Justiça! Suas derradeiras pugnas não foram sangrentas, mas suas almas entraram na liça e foram rudemente feridas; em cada chaga aberta pelo gládio da Dor, desabrochou um foco de luz intensa!
Tiveram glorioso acesso aos mundos dos redimidos, deixaram de ser soldados romanos para se tornarem legionários do Bem, servindo às ordens do mais Excelso dos Generais - Deus!
Não lamentes mais, pois, os tormentos por que passaram, porque estes foram as possantes asas que os arrojaram às lúcidas Pátrias do Universo!
O mesmo há-de suceder-te.
A Témis divina, que tem pesado todos os teus méritos e deméritos de várias existências, já acusa em uma das conchas da balança poucos delitos, e, na outra, um acervo descomunal de heroísmo, de honestidade, de probidade, de cumprimento de deveres; e não tarda a manifestar-se o desequilíbrio que fará tua alma ser impulsionada deste sombrio ergástulo às regiões rutilantes...
Não fraquejes, nos momentos de provas, definitivas e remissoras!
Luta heroicamente... e serás vencedora!"

(17) Témis, a deusa que representa a Justiça.
(18) PArcida, célebre pelo aço.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:16 pm

CAPITULO X
Calou-se a voz dulcíssima que vibrou nas fibras mais sensíveis do coração de Clotilde, qual cavatina harpejada, suavemente, em alaúde celeste.
A doente abriu as pálpebras violáceas que se destacavam da neve do rosto - duas pétalas de ametistas - e sentiu que, sob o influxo de poderosa entidade, lhe fora restituída a vitalidade, que ela percebia infiltrar-se-lhe no organismo, qual neblina inefável.
Gemido profundo foi exalado de um peito opresso, e dir-se-ia que se eternizaria na amplidão marítima...
Clotilde estremeceu, e pensou, ao certificar-se de que ainda se achava acorrentada à vida material:
- Porque não se alongou, perenemente, a confabulação do Amigo dedicadíssimo que aqui esteve?
Porque não me levou consigo?
Será possível que ainda se prolongue o meu suplício, já tão desditosa e torturada por penosas recordações, e ainda seguida por uma falange de desventurados?!...
- Graças sejam rendidas aos deuses, disse alguém junto ao leito da enferma, qual se houvesse respondido a seu secreto solilóquio.
Ela tornou a cerrar as pálpebras, parecendo não haver percebido a voz estranha que se lhe havia dirigido.
- Graças sejam rendidas aos deuses! repetiu a mesma voz dolente.
Ela abriu os olhos, e volveu-os para quem lhe falara.
- Senhora! - disse-lhe um homem de tez trigueira, barbas longas, trajando túnica branca - sou o encarregado de vossa cura; e, se não a conseguisse, eu e vossas enfermeiras seríamos atirados ao mar...
- E eu preferia a morte - respondeu com amargura - para mim, o viver é que é a morte...
- Calai-vos, senhora!
Podeis piorar, pensando em desventuras.
Aproxima-se o vosso esposo.
Numa Tarquínio, com os cabelos em desalinho, faces enrubescidas de emoção, acercou-se da consorte que, percebendo sua presença, menos com as faculdades físicas do que com as psíquicas, sentiu que a proximidade daquele ente detestado lhe causava uma impressão de acúleos penetrando-lhe a alma.
- Clotilde! - disse Numa, com expressão de carinho - estás melhor?
Ela, como se não o tivesse percebido, interpelou:
- Quem geme assim?
Foi para ouvir esses gemidos amargurados que não me deixaram sucumbir?
- Que hei-de fazer aos malditos que perturbam a tranquilidade de minha vida, atormentando com o receio de te perder para sempre?
- São eles os culpados do que tenho sofrido?!...
- Que hei-de fazer, para te ser agradável?
- Dai-lhes liberdade, e tratai-os com brandura, e sereis servido com dedicação.. .
- Eles não merecem a tua compaixão, querida!
- Minha alma percebe... e sofre muito com o que se passa a bordo...
Eu morrerei de pesar se alguém tornar a ser vergastado ou atirado ao Mediterrâneo...
Numa Tarquínio retirou-se, precipitadamente, do beliche; instantes após, sua voz áspera e autoritária ressoou na galera, ordenando que cessassem as punições crudelíssimas, e todos os prisioneiros fossem postos em liberdade.
Os desditosos, que gemiam lugubremente, foram conduzidos ao tombadilho do navio, e um aspecto desolador apresentou-se aos olhares da tripulação e dos legionários:
não pareciam seres humanos que se patentearam à luz solar, mas uma coorte de espectros apavorantes, ulcerados pelas chibatadas que haviam recebido; muitos com os membros atrofiados pelas aperturas dos grilhões, com os rostos equimosados, as vestes dilaceradas, os cabelos hirsutos!...
Quem eram aqueles desgraçados?
Homens reduzidos à escravidão, nas últimas conquistas bélicas de Numa Tarquínio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:16 pm

Ao menor queixume de pesar, à menor manifestação de descontentamento eram supliciados barbaramente; azorragados pelos erros que cometiam e pelos que não cometiam.
Levados à Imperial para mover os remos, quando as forças lhes faltavam, quando privados de alimento desfaleciam, eram arrastados ao porão da galera - antro sombrio e infecto, onde se retorciam, em espasmos de dor, outros infelizes já meio inconscientes, também considerados desidiosos no serviço, e cujas carnes doloridas estavam dilaceradas pelos açoites violentos!
Bastava que pronunciassem uma palavra de revolta, um rogo, uma súplica humilde, para que seus padecimentos fossem centuplicados.
Naqueles dias de amarguras, enquanto Clotilde parecia prestes a baixar ao túmulo, a irritabilidade do tirano atingiu ao inacreditável: aturdia-se maltratando os que o cercavam; mandava seviciar a míseros que submetia aos mais arbitrários castigos físicos; tentava asfixiar os bramidos da alma apunhalada de remorsos e os impulsos da paixão voraz que o embriagava, com os padecimentos de seus subordinados; e, por isso, nunca o látego fustigara com tanta veemência os desgraçados e indefesos vencidos em batalhas injustas e sangrentas!
A guarda luzidia dos centuriões que o seguia - temeroso ele, por toda parte, de ataques e revoltas, e de uma provável agressão dos servos de Donato - apavorava-se com os martírios infligidos imerecidamente aos desventurados cativos de diversos países.
Eram eles verdadeiros farrapos humanos, cujos corpos estavam sendo constantemente ulcerados, retalhados por açoites aviltantes: já haviam perdido o instinto de conservação, pois aspiravam à morte com avidez, para se livrarem de tantos vexames, e de tantas desditas!
Naquele dia, em que Clotilde apresentara súbita melhora de saúde, aos primeiros ósculos da luz solar, os castigos cessaram, por encanto ou influxo de um condão maravilhoso; as algemas foram abertas, as correntes esmagadoras caíram inertes ao solo. como férreas serpentes fundidas pelo corisco da Morte; todos os que se achavam a bordo da Imperial puderam respirar, a plenos pulmões, haustos vivificantes de aragem, desentorpecendo os membros às carícias do Sol, veros golos de luz, e dúlcida esperança que lhes confortavam os corações.
Dentro em poucas horas as úlceras foram pensadas; as sórdidas roupas substituídas por outras, modestas mas higiénicas.
As fisionomias serenaram e havia em quase todos os olhos o fulgor de lágrimas de reconhecimento à que jazia imóvel no beliche dourado.
Houve quem a visse e a comparasse a uma nívea estátua de jaspe, retirada de seu pedestal, por algum iconoclasta, mas animada por uma alma sensibilíssima, sentindo até a vibração da asa de um insecto, contraindo-se ao menor temporal, confrangendo-se com um gemido ou com qualquer manifestação do sofrimento alheio... menos do que proviesse do ser execrado que a usurpara do lar paterno e tivera a atrocidade de arrojar ao mar - qual fardo inútil - os despojos sagrados do venerando progenitor...
A própria veemência do ódio amorteceu por efeito dos seus padecimentos físicos: dir-se-ia que os mais violentos sentimentos estavam atenuados, restando-lhe apenas mágoa infinita por tudo que havia sucedido.
Após o vigor das erupções vulcânicas do ódio, cobrira-se-lhe a alma com a neve do Himalaia, qual ocorre com as crateras dos vulcões extintos. . .
Somente para Numa Tarquínio não se arrefeceria o seu rigor - ela o sentia bem, naqueles momentos inolvidáveis em que voltara à vida, tendo a sensação de já haver sido enterrada, e, após, retirada de um túmulo infindo...
As exortações do amigo invisível, que lhe impregnaram a alma - essência divina na. corola de uma açucena - pareceu-lhe tê-las ouvido já, no âmago de longínquo sepulcro, mas não se achava ainda com ânimo de pô-las em execução, totalmente.
Sofria ao reconhecer o local em que se encontrava; ao evocar os últimos sucessos de sua existência, conservava no íntimo a impressão de ter sido abalada, bruscamente, pelos vendavais da desventura...
O pesar superlativo não havia sido suavizado; via-se longe de todos os entes queridos, e perto do celerado, cuja voz e contacto lhe faziam trepidar a alma, cravando nela pontas aguçadas, símiles dos punhais calabreses...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:17 pm

CAPITULO XI
Clotilde preferia ser escrava a ser esposa de Numa Tarquínio.
Ser-lhe-ia menos penoso ficar acorrentada, algemada, crucificada do que viver intimamente com um ente abominável, infame, cruel, dissoluto, com as regalias ilusórias de rainha...
Para que voltara ela à vida?
Unicamente para que seres misérrimos tivessem algo de repouso ou fossem suavizados os seus martírios?
Nobilíssima era, decerto, a missão que lhe fora confiada por uma Entidade cuja sapiência e cuja justiça não deveria pôr em dúvida; mas sacrificar a sua liberdade e todas as suas mais caras aspirações, embora em prol de desventurados, era-lhe prova que superava as suas forças psíquicas...
Tinha receio de fracassar.
- Mas, não estás só na refrega... - ouviu ela alguém dizer-lhe, bem no recesso da alma, enquanto suas pálpebras se conservavam cerradas, temendo enxergar o seu algoz.
- Quem mais sofre, sem ser eu, semelhante suplício moral? - interrogou ela, no âmago de sua mente.
- Entidades redimidas, que já venceram acerbas mortificações!
- Não me desamparem, pois!
Venham auxiliar-me a triunfar do mais supliciante de todos os tormentos!
Numa Tarquínio, julgando-a adormecida, abeirou-se do leito e contemplou, com o olhar coruscante, o rosto empalidecido da esposa, qual se o fizesse a uma estátua de alabastro, plasmada por genial escultor; e, apesar das alterações que padecera com a sua grave enfermidade, nunca ele a achou tão formosa!
Por aquela mulher, jovem, bela e altiva, tão diversa das outras beldades que lhe ofereciam afeições plenas de interesse, permutando-as por jóias e preciosidades, ele seria capaz de arriscar a vida - por um meigo olhar ou por um sorriso sedutor.
Nunca ele havia amado alguma linda mulher com igual ternura.
Seu coração árido, desprovido de sonhos e de fantasias, afeito às contingências de uma existência agitada, tornou-se egoísta e impiedoso.
Nunca havia ele pensado em unir o seu destino ao de alguma donzela, supondo todas as beldades femininas frívolas e traidoras...
Subitamente, todas as suas mais secretas convicções ruíram, ao defrontar a filha de Donato, síntese de formosuras plásticas e morais!
Compreendeu, então, subitamente, que a amava até à loucura, e seria arrastado a um dédalo de torturas morais se não conseguisse cativar-lhe o coração, que ele sabia pertencer a outrem, e que o detestava profundamente...
A presença de Clotilde, desde o primeiro instante em que a conhecera, causara-lhe uma impressão indelével.
Tentou esquecê-la, e não o conseguiu.
Dir-se-ia que exerceu sobre ele uma fascinação de magia, um deslumbramento inexplicável.
Para possuir o seu amor não vacilaria em cometer os crimes mais abomináveis; e, com quanto mais indiferença e repulsa era tratado, mais recrudescia a sua paixão empolgante, dominadora, invencível!
Ao vê-la em estado gravíssimo, depois de todas as vilanias que praticara para possuí-la, apoderou-se de todo o seu ser uma revolta inominável, um desespero desconhecido e avassalador!
Amava-a, então, insanamente? Sim e não.
Desejava ardentemente que ela vivesse, para a apresentar vitoriosamente à altiva Roma, ou com a esperança de que ela correspondesse ao indómito sentimento que lhe inspirara; odiava-a, porém, pelo asco com que o tratava, pressentindo que ela o execrava; adorara-a quando a vira desfalecida, agonizante quase, percebendo que, com ela, seriam derrocados todos os planos, todos os seus almejos terrenos; e sentir-se-ia insulado no meio de uma completa multidão, que ele desejaria torturar, exterminar, para que todos os viventes compartilhassem de seu desespero, e dos seus sofrimentos inauditos!
Era o seu afecto semelhante à atracção que exerce um lírio nevado sobre lagarta viscosa e nauseante.
Era uma luz ofuscante que lhe havia penetrado na masmorra da alma, indiferente à dor alheia, aos brados de indignação, que ele asfixiava com as mais inconcebíveis torturas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:17 pm

Ele, o terror dos próprios tiranos, o adversário crudelíssimo, o potentado que vencia pela força e pelo despotismo, era, então, dominado, subjugado pela formosura e pureza de uma jovem, cujo olhar, para ele, valia mais que todos os reinos terrestres e todas as constelações do Infinito?!...
Amava-a com violência, porque sabia que jamais seria por ela correspondido, e a paixão é tanto mais impetuosa quanto mais resistência e obstáculos encontra para ser saciada.
Vingara-se do seu desprezo, tornando-a desventurada.
Não sentira comiseração por seus padecimentos antes de a ver prostrada em um leito de agonias; queria, contudo, que ela vivesse a seu lado; que todos os homens lhe cobiçassem o triunfo; desejava patenteá-la aos olhares deslumbrados dos Romanos, qual se o fizesse a um tesouro dificilmente conquistado, ou a um trofeu incomparável aos que já havia conseguido, tendo-os disputado a dragões invencíveis até então mas afinal exterminados por ele, novo Hércules protegido 'pelos deuses imortais! Ao vê-la retornar à vida, depois de a supor perdida para sempre, uma emoção indefinível o dominou, uma irradiação desconhecida alvoreceu em sua alma, penetrando-lhe os mais secretos refolhos...
Cogitou, então, da possibilidade em que estivera de ficar só no vasto planeta terráqueo; flagelado por uma dor inominável, tenaz, que, aos poucos, lhe iria corroendo o próprio coração: a saudade de um Bem perdido, a desolação da viuvez em pleno noivado!
Compreendeu, enfim, que com os dissabores a ela infligidos podia tê-la levado à loucura ou ao túmulo, e todos os seus planos, desse modo, teriam sido frustrados...
Tudo, porém, conjecturava ele, dependia do proceder de Clotilde:
por uma prova de amor, tornar-se-ia bom e justiceiro; por um desprezo, transformar-se-ia no mais cruel dos bandidos!
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 3 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:17 pm

CAPITULO XII
A galera Imperial, que havia fundeado, por alguns dias, num porto da Córsega, até restabelecimento completo de Clotilde, prosseguiu sua rota; e, finalmente, aportou em Óstia.
Numa Tarquínio expediu logo um emissário a Roma, onde ele e todos os que compunham a sua comitiva foram recebidos com festivais e excepcionais homenagens.
Clotilde, já em plena convalescença, deixava transparecer no rosto escultural infinita tristeza, tornando-se silenciosa e incomunicável.
O esposo tentava penetrar-lhe os sentimentos, mas não o conseguia, pois ela escudava-se em um mutismo constante, e, apenas, por vezes, lhe falava com amargura:
- Minha alma ainda arrasta o meu corpo sobre a Terra, mas eu estou morta para o mundo, ao qual só a desdita acorrenta ...
Numa sentia a vibração destas palavras qual a de um látego no rosto, mas silenciava, não querendo desgostá-la.
Invencível repulsa sentia ela pelo consorte e pelo afamado empório das sete colinas - onde se concentravam os mais cultos e também os mais ignorantes, os mais probos e os mais dissolutos, os mais denodados e os mais covardes indivíduos humanos - misto de prazeres, de misérias, de dores, de heroísmo, de vilanias que se abrigavam em palácios portentosos, em asquerosos tugúrios.
Insensível às demonstrações de apreço e às coisas que a circundavam, Clotilde chegou à faustosa habitação, engalanada para a receber.
Pareceu-lhe haver penetrado em vivenda de Fadas, talhada em mármore-filigranado de Carrara, tendo maravilhosos altos-relevos que semelhavam espumas petrificadas.
Numa Tarquínio havia-se esmerado para recebê-la, soberanamente, solenizando, de modo inesquecível, os seus esponsais.
Atingiu ao fantástico a ornamentação das salas e do jardim, onde se congregaram as maiores notabilidades romanas: senadores, cônsules, militares, académicos, menestréis, damas belíssimas, que invejavam o esplendor das homenagens prestadas à filha de Donato Moréti.
Todos saudavam a eleita do temido procônsul e lhe prodigalizavam aplausos; ela, no entanto, merencória e pálida, sentia a dor indómita constringir-lhe o coração, prestes a desfazer-se em borbotões de lágrimas...
Parecia-lhe que um incêndio o havia crestado, transformando-o em cinza... e limitava-se a deixar-se arrastar pelo turbilhão do Destino, qual se fora uma pluma exposta a vendavais siberianos...
A lembrança do desmoronamento do lar paterno amargurava-lhe a alma, incessantemente; por isso, e por tudo que sofrera, não podia compartilhar das homenagens, que lhe tributavam; só o seu corpo neles figurava, pois o Espírito alava-se, a todos os instantes, ao solar da Rocha Negra. ..
Todos lhe notaram a tristeza invencível, mas Numa, para desfazer suspeitas odiosas dos convivas, dizia-lhes que a saúde da cara consorte fora profundamente abalada por uma febre maligna; entretanto, por mais sigilo que guardassem os seus subordinados, dentro em pouco tempo, Roma estava de posse da verdade: ele havia escravizado a filha de um patrício, de um herói da Farsália, mas ninguém ousava comentar o sucesso, salvo em surdina...
A habitação, em que residia o casal, ostentava-se no lugar da futura Praça dos Doges, e seu aspecto era deslumbrante.
Ornamentaram-na os mais famosos decoradores daquela época.
À frente, havia uma formosa escaleira de mármore róseo, dando acesso ao átrio, onde se perfilavam colunas do mais níveo Carrara, finamente lavoradas nos escultores gregos.
O interior era primoroso.
O átrio, o triclínio, as câmaras, os lavabos, tudo revelava opulência régia.
Flores artificiais, imitando as mais
belas da Natureza, pendiam das abóbadas de neve e ouro, magistralmente decoradas pelos mais egrégios pintores de antanho, representando cenas mitológicas e as principais batalhas em que Numa Tarquínio saíra vencedor.
Ninguém, ao contemplar tantas preciosidades, poderia conjecturar que sob os tectos da imponente habitação (primor incomparável de estatuária, orgulho dos mais célebres escultores mundiais) existisse um antro sombrio de torturas inauditas:
lôbrego e infecto porão, onde se contorciam, em espasmos de dor, ao látego vigoroso dos verdugos, desventurados prisioneiros, cujo delito único era o de terem sido vencidos por um déspota crudelíssimo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 07, 2022 7:17 pm

Quando Clotilde, aturdida pelo esplendor das homenagens que lhe foram tributadas, percebeu o que se passava no subsolo do palácio do consorte, heróica e bela, ordenou a duas servas que transmitissem a Tarquínio o seu pensamento:
- Ide à presença do senhor e dizei-lhe que, hoje, desejo ver as galerias subterrâneas desta habitação!
Ele, ao receber a estranha comunicação, percebeu o alcance de tais palavras e empalideceu subitamente.
Clotilde queria verificar se, às ocultas, ainda continuavam os suplícios aplicados a indefesos escravos ou prisioneiros de guerra - míseros vencidos, arrancados às Pátrias distantes, pungidos de nostalgia, saudosos de entes queridos, e a quem não se permitia manifestar revoltas nem queixumes.
Numa Tarquínio, sempre impiedoso e prepotente, apenas atenuara a ferocidade nos dias subsequentes a convalescença da esposa, não querendo magoá-la novamente para não lhe alterar a saúde.
Regressando ao lar, porém, ordenou outras prisões, e, nas sombrias masmorras da sua formosa vivenda, permaneciam entes humanos flagelados por indescritíveis torturas físicas e morais.
Não queria ele cavar mais profundo o abismo entre si e Clotilde, percebendo que ela, apenas tolerando sua presença com indizível sacrifício, votava-lhe secreto e invencível desprezo.
E - situação incompreensível para ele, até então - quanto maior era o asco da consorte, quanto mais insensível era ela às demonstrações de carinho, às homenagens públicas... mais intensa e viva era sua paixão indómita por ela! Dar-lhe-ia de bom grado a própria vida para que ela o acariciasse, lhe dirigisse o olhar triste e formoso, lhe retribuísse as manifestações de agrado e afecto...
A sua indiferença, o seu silêncio, a sua reserva, afrontavam-no mais do que látegos vibrados por vigorosos carrascos em pleno coração...
As vezes ele a odiava pelo descaso com que era tratado; revoltava-se contra sua ofensiva mudez; mas - sentia-o bem - seria incapaz de viver mais sem a sua presença, sem a certeza de que ela lhe pertenceria até à morte, e se abrigava sob o mesmo tecto, e ainda, porque, perante o público e amigos, ele era invejado com veemência por haver conquistado a mais bela e casta de todas as jovens conhecidas, maravilha humana, parecendo talhada em jaspe pelo mais egrégio de todos os escultores mundiais...
O seu olhar, principalmente, fascinava-o!
Ele o considerava um luar celeste oculto sob as pálpebras veladas por cílios longos e veludosos; e, quando o via erguido suavemente para algum interlocutor... tinha ímpetos de a arrebatar a todos os olhares, para que seu fosse, unicamente seu...
O que mais lhe doía na alma era, às vezes, observá-lo volvido para alguém; enquanto que, para ele, Numa Tarquínio, cujo olhar se tornava de flama ardente, só havia uma algidez polar, amortecia-se a luz daquelas pupilas estelares, como que recolhida em escrínio de gelo alpino...
Dar-lhe-ia tesouros fantásticos, tributar-lhe-ia aplausos reais, somente para conseguir que ela o olhasse sem repulsa, com ternura.
Naquela manhã, recebendo o inesperado aviso, ele bem o compreendeu: - desejava descobrir toda a extensão de seus crimes para melhor o desprezar e odiar.
E ele, que sempre se mostrara despótico e destemido, acovardou-se por momentos: - não queria que ela descobrisse a verdade em toda a sua hediondez, que ela percorresse aquele antro insalubre, sem ar e sem sol, onde quase todos os dias agonizava um desventurado escravo...
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