LUZ ESPÍRITA
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Página 8 de 16 Anterior  1 ... 5 ... 7, 8, 9 ... 12 ... 16  Seguinte

Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 12, 2022 7:02 pm

CAPITULO X
- Se eu te dissesse, amacia irmã, o que ia suceder, seria desvalorizada, em parte, a tua acerba prova; não seria tão intensa a dor suprema que te feriu o sensível coração; e, assim, teria decrescido o mérito da recompensa!
Cumprir o dever estoicamente, sem desfalecimentos, crendo, sempre, na Justiça e na integridade do Direito celeste; sofrer todos os martírios morais ou físicos, sem revoltas, sem blasfémias, sem atentar contra a própria vida; ter, enfim, absoluta confiança no Altíssimo - a Entidade sublime que forja as almas, os mundos, as estrelas, as flores e todos os portentos do Universo; crer no Ente incomparável que nos fez imortais para que fossem eternas as recompensas após nossa redenção espiritual; eis a rota a seguir por todos aqueles que se acham neste vasto sanatório, que o é o planeta em que ainda habitas...
Quase sempre, no remate das existências trágicas, depois de quedas tremendas e de abnegações excelsas, Ele nos confia penosas e arriscadas missões, para, se sairmos delas triunfantes, galardoar-nos com munificência...
Norma, irmã querida, não julgues falha a Justiça suprema; nenhum defeito ou nenhuma virtude lhe passa despercebida.
Na tua passada existência, em que foste consorte de um tirano, já. possuías todos os nobres predicados de alma aprimorada nos embates da adversidade...
Já estavam aplainados todos os óbices, suprimidos todos os tormentos por que estás passando; mas, faliste, não chegando ao termo de tua expiação, decepando o fio vital, o que importa em uma prova de rebeldia, muito condenável, contra a Majestade absoluta de toda a Criação; em deserção do exército dos invencíveis, dos que caminham, gloriosamente, lutando contra as tribulações planetárias, exército destinado a acampar nas regiões consteladas ... onde se acolhem os vitoriosos do Mal!
Fugiste à derradeira batalha da vida, infortunada irmã! Se a tivesses vencido, a liberdade a que tens aspirado, em vão, há séculos, estaria consumada. ..
Agora, tens que vencer novas pelejas e novos obstáculos, para que se torne plena realidade um dos teus mais caros anelos! Sofres as tremendas consequências de muitas vidas ociosas, de abastança e realce social, nas quais praticaste delitos revoltantes de perfídias, de perseguição, de falta de cumprimento de deveres, de opressão para com os teus subalternos.
Tens que reparar, penosamente, tudo isso, dolorosamente, para conquista da ventura que desejas, de há muito - a união com um ente adorado, por quem já tens cometido faltas apavorantes...
Foste ainda a causa de ser ele imolado_ à sanha do malvado que te dominava, e bem assim do sacrifício de outras vidas preciosas, de seres que te amavam, inclusive do que é precisamente teu conforto, tua consócia nas provas por que passas, dando-te o exemplo sublime de uma resignação e coragem inexcedíveis - Dulcina!
Tens ainda que padecer acerbamente, para que consigas a felicidade que idealizas...
Um desvio, o mais leve delito, e, irremediavelmente, resvalarás na voragem de outras severas expiações...
Porquê? perguntarás por certo?
Porque já tens o Espírito facetado pela dor, arroteado para o Bem, apto para todas as virtudes, iluminado pelo clarão divino da inteligência e das percepções que distinguem, iniludivelmente, o Bem e o Mal!
Não tens mais o direito de falir.
Estás em um remate de existência terrena, cujo ciclo já se teria encerrado na anterior a esta, se houvesses vencido as derradeiras pelejas...
Foi-te confiada excelsa missão - que se soubesses consumar, triunfando de todas as dores, de todos os contratempos, de todos os infortúnios; se saísses vitoriosa, já terias desprendido tua alma deste cárcere de trevas!
Já estarias aliada perpetuamente ao Espírito de Esténio - que retornou ao plano material, somente pelo muito amor que te consagra, para te auxiliar a venceres as tuas mais rudes provas...
Ele, pelos louros espirituais conquistados, já podia ter alçado o Espírito às regiões felizes do Universo, mas quis voltar à arena de sofrimentos - para suavizar tuas amarguras, dar-te a mão varonil, nos momentos propícios, ajudar-te, enfim; a subir as escarpas da existência...
Não duvides, pois, da lídima afeição que soubeste despertar em sua alma generosa.
Nunca te abandonaremos, irmã querida, a menos que resvales novamente, ao abismo pavoroso do suicídio. ..
Nova missão, dolorosa e difícil, o Senhor dos Mundos houve por bem conceder-te, para que resgastes a falta gravíssima que praticaste, atentando contra a tua própria vida.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 12, 2022 7:02 pm

Depende do modo por que a desempenhes, o galardão... ou outras e mais profundas desditas!
Estás à borda de uma resvaladouro: se souberes manter um equilíbrio exacto, mãos piedosas, mãos potentes, mãos fulgurantes hão-de guindar-te do caos em que te achas às plagas siderais!
Ouve-me, pois: nunca mais profiras palavras ofensivas à Majestade Suprema, as quais só servem para agravar os teus infortúnios; não penses jamais em interceptar o fio sagrado da vida, por mais acerbas que sejam, as tuas desditas; não queiras solucionar, com um dos delitos máximos, tua aflitiva situação.
O suicídio é um crime que atinge directamente; a Lei soberana e universal - a da Vida.
É um dos débitos mais difíceis de remir.
É a covardia do soldado que, na hora da refrega, foge e se oculta em uma selva ou em um fosso, deixando que seus companheiros de luta sejam chacinados, ou abatidos por adversários cruéis...
Que general poderá premiar o covarde, ao invés de o punir severamente?
O homicida é um desventurado que sacrifica uma vida preciosa, e caro
tem de ressarcir a sua crueldade; mas, às vezes, tem atenuantes, conforme o agravo de seu contendor.
Muitas vezes fere para defender a própria honra ou a da prole amada.
O suicida é um auto-homicida de responsabilidade indiscutível; atenta contra o próprio corpo, confiado à guarda de um Espírito que traiu a confiança divina, que lho concedeu.
Seu crime raramente tem dirimente.
É semelhante ao do sicário, que apunhala indefesa criança em seu berço adormecida; igual ao de um soldado ferindo um adversário enfermo, que lhe entregasse as armas de defesa; ao do bandido que trucidasse um desditoso foragido, oculto em sombria caverna, ou manietado por algemas férreas.
Se não houvesses fracassado, irmã, já estarias ao lado de quem tanto prezas, vinculados ambos por afecto fraterno, venturosos, em paragens onde se desfrutam gozos imateriais.
Sempre odiaste aquele que te dominou, e te fez infortunada.
Se, porém, pudesses aprofundar as leis celestes, ter-te-ias livrado de seu influxo nefasto... que tem concorrido para redimires muitos delitos perpetrados no passado longínquo.
Ele tem agido sob o império de indomável paixão, ofuscado por amor violento não compartilhado, o que tem sido o seu flagelo máximo, o látego de fogo que lhe tem crestado os bons sentimentos, mas que o há-de levar à Redenção...
Jaz, ainda, no eterno arquivo de tua alma, a recordação de sua fisionomia inconfundível...
Viste-o, há pouco tempo, quando vieste de Roma e pernoitaste nas ruínas deste malfadado castelo...
Ele também te reconheceu, e - ai de ti! - novamente se reacendeu o facho da indómita paixão - qual se esta fora a erupção de um Strômboli violento que devasta todo o circuito em que se acha...
- Serei forçada a amar esse monstro? - interrogou Norma, agoniada.
Houve um interregno na lição do Mensageiro, invisível, mas cuja presença era assinalada por uma fulgurante luminosidade.
Depois, fez-se ouvir sua dulcíssima resposta:
- Sim, minha irmã, afirmo-to eu.
Há um amor sublime, que qualquer donzela, por mais cândida que seja, pode dedicar a um monstro de perversidade, sem macular sua pureza...
Tu já podias ter-lhe consagrado esse amor excelso - a Piedade - porventura o mais abnegado de todos os afectos sem ressaibos de materialidade, pleno de suavidade e candura, tecido de luz astral; que existe em alto grau, somente nas almas dos que já se aproximam do Senhor do Universo, ou nas dos que já ensaiam o eterno surto para o Infinito.
E nunca tu a sentiste, Norma, por maiores que fossem as demonstrações de afecto que ele te tributava...
A piedade, irmã, é rival da luz solar; pode estender seu manto fulgurante, quer sobre um jardim florido, quer sobre um paul pestilencial, negro, profundo, pútrido, sem se contaminar, saneando-lhe as impurezas, fazendo que os lírios mais cândidos e alvos desabrochem nele como estrelas de neve vegetal, e voltando ao Céu sem se ter corrompido, talvez mais bela, menos ardente, mais radiosa, mesclada de aromas inebriantes. . .
E' mister, pois, que abrolhes em teu coração esse nobilíssimo sentimento, porque já tens o espírito adestrado nos prélios da desventura, embranquecido nos caudais do sofrimento e das lágrimas redentoras...
A piedade é o sentir de uma águia rasgando a amplidão etérea, condoída dos seres que rastejam no solo - vermes e reptis asquerosos, não perdendo, por isso, o esplendor de sua beleza fascinante e invejável, antes, tendo-a aumentada pelas cintilações de um pensamento pleno de abnegações, sem o menor resquício de egoísmo...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 12, 2022 7:03 pm

Eh semelhante ao da açucena, alvinitente, compadecida do charco onde foi germinada, dessa podridão mortífera, que a gerou com a pureza virginal das gestais!
Como pode um lodaçal pestífero gerar, no mesmo seio, animais nauseantes e venenosos, e flores puríssimas e aromáticas?
Contrastes da Natureza. .. os mesmos que existem, às vezes, em nosso próprio âmago...
Não amorteças, porém, em teu íntimo, o desejo de liberdade com que sonhas há muito, tu e tua companheira de martírios morais.
Liberdade! Arcanjo de asas fúlgidas, feitas de plumas alvidouradas - és o ideal de todos os seres humanos, das almas, torvas ou luminosas!
Desde o primeiro vagido...
já a criatura racional concebe o almejo de a conquistar, ansiando ter livres os movimentos, rompendo os primeiros atilhos com que a constringem os cuidados maternos, aprisionando-a nas faixas infantis...
Depois, mal ensaia os primeiros passos, logo se manifesta o desejo de fugir aos desvelos carinhosos de seus pais, querendo fruir a autonomia de seus actos, cerceados no remanso dos lares, anelando correr e folgar, livremente!
Quando atinge a idade adulta, expande mais desassombradamente a vontade de emancipação, mas -- ai dos míseros entes humanos! - é justamente quando são mais pesados os esmagadores grilhões dos deveres sociais e morais, fazendo-os vergar os corpos para o solo, sob o seu jugo de bronze...
Tem o ser pensante o desejo indómito de libertar-se de tudo o que o molesta, de cortar o Espaço, como fazem os pássaros altaneiros; mas não lhe é dado realizar esse ideal enquanto não alija da alma o lastro avassalador dos erros e das paixões nefandas. Por isso, o jugo das provas é insuperável, aprofunda-o para a terra, lança-o nos subterrâneos tenebrosos, obriga-o a percorrer as selvas sombrias onde há silvedos de pesares e de infortúnios. . .
No entanto, irmã, é nesta masmorra de trevas, de dores acabrunhantes, que o ser consegue realizar o seu ideal de tantos séculos.
E' com o latejar do sangue, premido nos pulsos e nos tornozelos por grilhões torturantes (ao passo que os seus olhares se erguem para a amplidão estrelada, numa prece muda e enternecedora, sem blasfémias de rebelado nos lábios), que ele conquista a felicidade suprema: libertar-se de todas as atribulações terrenas!
Por meio da abnegação, do trabalho, da humildade, dos deveres rigorosamente cumpridos ele consegue a liberdade psíquica, que não é ilimitada, porque, na Terra ou no Infinito, todos são submissos ao Criador e Pai, que cumula de bênçãos e protecção a todos quantos sabem servi-lo com extremos de filhos reconhecidos...
Outrora, irmã querida, como agora, tu aspiraste a ser livre.
Deves aniquilar esta nobre aspiração?
De modo nenhum.
Cultiva-a qual um jardineiro a uma planta preciosa; rega-a com as lágrimas do sofrimento, das decepções tremendas, das humilhações pungentes, e ela, então, adquirirá vigor e se tornará cedro descomunal, igual aos do Líbano...
Mas, para isso, tens que libertar-te de todos os potentados deste planeta - que são os teus próprios erros e desvios morais - para te submeteres a um único Soberano, cujo poderio não te oprimirá: - Deus!
A vontade de ser livre é uma das mais sublimes aspirações humanas; e, por isso mesmo, mais difícil de ser realizada...
A liberdade absoluta não existe aqui ou além.
A única que podemos fruir - e é a mais meritória - consiste em nos desvencilharmos dos nossos maiores e mais implacáveis adversários: nossos erros, nossos crimes, livrando-nos do Mal.
Essa liberdade é conquistada pela Alma, depois de ter estado encarcerada na carne e nas trevas do remorso, emancipando-se de todos os seus desatinos, angelizando-se pouco a pouco, penosamente, heroicamente, subindo íngremes escarpas, vias dolorosas, ascendendo para o Espaço e para a Luz, para o Criador de todas as coisas!...
Outrora foi-te confiada meritória missão, para que conquistasses essa liberdade, e não a consumaste como era mister.
Agora, tens outra arriscada incumbência. Se saíres vitoriosa, o teu mérito será centuplicado, obterás a idealizada liberdade, que almejas há ilimitado tempo.
Quando os Espíritos ultimam as provas terrenas, tendo já sólida experiência das consequências desastrosas dos crimes cometidos, são-lhes outorgadas tarefas difíceis, para que seja aferido o seu valor moral.
Uma tiveste outrora; outra tens de executar fielmente, agora. ..
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 12, 2022 7:03 pm

CAPITULO XI
Houve um silêncio absoluto por momentos, que, à jovem adormecida, pareceram infindáveis, tendo tido a impressão de que a Natureza entrara em marasmo aniquilador, eterno...
Depois, assustada, e cheia de angústia, ela ousou interpelar a entidade sob cujo domínio se sentia então:
- Dizei-me, senhor, como devo agir para terminar todos os meus padecimentos desta existência?
- Não me chames senhor, mas irmão, pois todos nós o somos, filhos do mais perfeito e afectuoso Progenitor - Deus!
Escuta-me, irmã querida.
Tu já praticaste delitos, injustiças e prepotências.
Bela e impura, arrastaste muitos homens à loucura e ao desvario moral.
Destruíste e infelicitaste lares, esposas e crianças.
Oprimias por vaidade; possuidora de tesouros e poderio real, deles fizeste uso deplorável.
Tiveste, porém, profunda compunção, e desejaste remir os teus crimes.
Perdeste o direito a um lar tranquilo e afortunado.
Foste condenada a ser oprimida para melhor aquilatar o valor da liberdade, sabendo como ferem os corações as injustiças e as arbitrariedades.. .
Eis porque foste encarregada de dulcificar os tormentos dos desditosos que soluçavam nas masmorras insalubres do palácio maldito!
Sentiste, então, toda a hediondez dos que escravizam seres humanos sem lhes respeitar direitos sagrados.
Não concluíste tua missão terrena, voluntariamente.
Fracassaste. Deus, porém, misericordioso e compassivo, levou em conta, para a tua salvação, a virtude, os sacrifícios, os padecimentos, o altruísmo.
Bem vês que foste sentenciada por um Pai benévolo e Juiz Imparcial, e não por um déspota cruel.
Agora, vai ser posto à prova o teu mérito moral: encaminhar para o Senhor do Universo os seus vassalos transviados, os seus soldados desertores, desgarrados do exército do Bem e do Dever!
Difícil e arriscada será a tua missão: tens que arrancar, às trevas do pecado, almas denegridas pelas monstruosidades praticadas, mostrando-lhes o carreiro luminoso da Salvação!
- Como hei-de consegui-lo, se estamos sob o império de malvados, que, certo, quererão macular-nos com as suas torpezas?
- Quem são eles, porém, amada filha?
Gotas de luz do Astro Soberano de toda a Criação; são estrelas ofuscadas na cerração polar dos delitos e das crueldades; são águias acorrentadas ao charco da miséria e das podridões terrenas... mas não deixam de ser fagulhas do mesmo Sol, filhos do mesmo Pai clementíssimo, nossos irmãos ulcerados pela lepra da maldade, mas que não devemos deixar resvalar, eternamente, no abismo das vilanias!
Outrora, tu te compadeceste das chagas dos corpos, e lhes suavizaste as dores; agora vais pensar as úlceras das almas; e, quanto mais dificuldades encontrares, maior será o galardão conquistado!
E' mais excelsa a tua missão actual que a passada... só comparável à d'Aquele que tombou do Firmamento, como estrela cadente, à qual lhe faltasse a força de atracção, o Astro que se engastou, por momentos, nos mameis terrestres... cujas irradiações já atravessaram o Mar Vermelho e o Mediterrâneo e não tardam a chegar a Roma...
- Não sei a quem vos referis, Mestre e irmão querido...
- Vais sabê-lo, dentro em pouco. ..
- Que hei-de fazer de proveitoso, presentemente?
- Compadecer-te dos infelizes que te encarceraram.
Dar-lhes a mão que te parecerá maculada, mas, eu o afirmo que se cobrirá de luz imperecível.
Com a protecção do Alto, essa frágil e rósea mão tornar-se-á de bronze invencível, podendo assim retirar do resvaladouro dos crimes mais hediondos almas denegridas que ainda se esplenderão qual o diamante mais fúlgido, norteando-as às paragens siderais, que eles só contemplam para conjecturar se a noite será ou não bastante caliginosa, de modo a favorecê-los nas pilhagens ou nos homicídios que premeditam e realizam muitas vezes, apunhalando suas vítimas, ao brilho diamantino dos astros nocturnos...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 12, 2022 7:03 pm

Vais dirigir-lhes a palavra, com piedade e comiseração, despertando-lhes aversão pelos actos de ignomínia que já perpetraram, despertando-lhes novos sentimentos morais, fazendo-os compreender as sublimidades das Leis divinas, encaminhando-os, enfim, para o Sumo Juiz de todas as consciências...
Se assim procederes, serás escudada por uma força extraterrena, bem assim tua companheira de cativeiro.
Serás, então, coadjuvada pelas falanges siderais, e terás o poder invicto dos escolhidos do Omnipotente:
semear germes de luz nas trevas de muitas almas... e em teu próprio Espírito, que se tornará radioso, se bem cumprires tua dignificadora missão, sem falir.
Ai de ti, porém, se não souberes desempenhá-la, rigorosamente.
Não te amedrontes, porém, querida Norma!
Já possuis em teu íntimo um acervo considerável de virtudes, capaz de te inspirar o austero cumprimento das mais escabrosas incumbências, impavidamente, heroicamente!
Coragem, pois. Ânimo invencível.
Tereis, tu e tua nobre irmã, dedicadíssimos amigos a vosso lado.
Desperta, agora, irmã bem-amada!
Com um profundo suspiro, a jovem tornou à realidade, no mesmo instante em que Dulcina despertou também.
As irradiações solares penetraram no sombrio aposento das prisioneiras, parecendo que um sendal de luz se havia introduzido pelas grades da janela, para as envolver suavemente.
- Conseguiste dormir, Norma? - interrogou Dulcina à sua companheira.
Não sei explicar como pude adormecer assim, pesadamente, com tantas tribulações a flagelar-me o coração!
- Sim - respondeu-lhe Norma; e, depois de alguns segundos de reflexão, fez-lhe a seguinte confidência:
- De que estranho sonho acabo de acordar, Dulcina!
Dir-se-ia que eu conversava com um amigo invisível, que me falava de outras eras, em que sofri muito!
Sinto-me, porém, reanimada e confiante numa compassiva Entidade que acaba de sugerir-me ideias... que vou tentar pôr em execução!
- Pois eu, minha querida, tive horrível pesadelo: ia fugindo de um palácio, apertando ao seio preciosa mensagem, quando fui apunhalada; e, ainda semiviva, atirada a um tanque profundo, cheio de moreias insaciáveis!
Como era torturante estar sendo devorada por aqueles peixes famintos!
- Pavoroso o que sonhaste, Dulcina!
Hás-de ficar surpresa se eu te disser que tive um sonho semelhante ao teu! Vais ouvir o que planejei para executarmos hoje.
- Desconheço-te o ânimo, Norma!
És sempre irresoluta e tímida...
Hoje, até o timbre de tua voz tem outra modulação ...
Que resolveste que fizéssemos?
- O que ele, o amigo do sonho, me aconselhou: dirigir a palavra aos infelizes que nos encarceraram, chamando-lhes a atenção para o mal que já têm praticado, a fim de despertar neles a observância dos seus deveres morais...
- Será possível realizares o que dizes?
Querida! Só se te for concedido um poder celestial. ..
- Quem sabe se a Entidade que me orientou possui esse poder extraterreno?
De onde vêm os Génios benfazejos?
Do Céu, certamente...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:31 am

CAPITULO XII
Um forte impulso abalou a porta do dormitório das moças, Que, atemorizadas, viram surgir um vulto masculino, envolto em negro manto, deixando apenas a descoberto a região frontal, onde se destacavam os olhos coruscantes.
Disse-lhes ele, em tom de servo respeitoso:
- No aposento contíguo a este, encontrareis banheira e vestes para substituição das que trazeis; à noite, virei para vos acompanhar até onde se realiza um banquete em homenagem às encantadoras rainhas dos Filhos das Sombras; e, assim, podereis conhecer o nosso ilustre chefe e nossos denodados companheiros. . .
Apesar de temerosas, não deixaram de cumprir as ordens recebidas.
Passaram ao compartimento imediato, onde encontraram o que lhes fora anunciado. Nenhum rumor havia por todo o prédio, semi-oculto pela serrania vizinha.
Parecia uma habitação ensalmada, sob o domínio do poderoso sortilégio.
Elas ficaram surpresas pelo exemplar asseio da banheira de alvo mármore.
Sobre um coxim de damasco negro (cor simbólica usada pelos salteadores em cujo poder estavam) viram duas formosas túnicas de brocado da mesma cor, talhadas à romana.
Não desejavam utilizar-se delas, mas, observando-as mais atentamente, viram um minúsculo papiro com os seguintes categóricos dizeres:
"Não tentem as novas Rainhas dos generosos.
Emboscados desobedecer-lhes à mínima das ordens, pois há severas punições para qualquer infracção às suas mais insignificantes deliberações".
Advertidas por secreto receio, depois das abluções vestiram as lindas túnicas, ornadas apenas por duas papoulas de veludo purpurino; cuidaram, com esmero, de todos os requintes da indumentária, enquanto lágrimas brotavam de seus formosos olhos...
- Eis-nos com os corpos engalanados, e as almas de luto! - murmurou Norma.
- São as ironias e os contrastes do destino, querida irmã!
Meu luto, porém, é mais intenso do que o teu: pois morri para o prazer, sentindo que meu coração também morreu...
Passaram novamente ao dormitório, onde encontraram uma bandeja com delicados alimentos.
O aposento estava todo reorganizado e florido, como se por ali houvesse passado alguma Fada.
Decorreu o dia cheio de penosas conjecturas.
Nenhum bulício percebiam.
Pelas janelas gradeadas, junto das quais haviam passado parte da noite, tentavam sondar o horizonte, sem o conseguirem, porque a mole granítica que lhes vedava a vista parecia um gigantesco mastodonte, eternamente adormecido, querendo elevar seu corpo descomunal até quase o Infinito...
Nenhum rumor, nenhum movimento agitava aqueles desolados penhascos.
Apenas, por momentos, voejaram graciosas andorinhas, que, dir-se-ia, desejavam manifestar cordialidade às jovens prisioneiras, pousando algumas alegremente nas grades do cárcere, como que convidando ambas a segui-las...
Depois, rufiaram as asas e partiram para muito além, ensinando-lhes como poderiam livrar-se daquele ergástulo:
rasgando o espaço azul!
- Porque não possuímos as asas daquelas ditosas andorinhas? - murmurou Dulcina olhando a irmã.
- Quem sabe se não as teremos ainda? - respondeu-lhe Norma, meditativa.
Nossas asas, as que os deuses nos concederam, acham-se encerradas no invólucro da carne, mas não estão quebradas!
Hão-de elevar-se, mais tarde, para além ainda das lindas avezinhas - até onde palpitam as estrelas mais brilhantes!
- Quem nos dera que as tivéssemos, agora, para conquistar a nossa liberdade!
Anoitecia. Em frente ao dormitório, avistava-se o Ocaso que se purpureava de lúcidos rubis.
Parecia que o Céu estava em plena apoteose, no final de uma ópera divina em que os atores fossem alados, descidos das regiões siderais, envoltos em mantos de pelúcia fulgurante, circundados de flores luminosas...
Ambas tiveram a impressão de que os próprios deuses velavam por elas.
Subitamente, um ranger da porta tirou-as do êxtase em que estavam, fazendo-as estremecer, involuntariamente.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:31 am

Os batentes abriram-se, como por efeito de encantamento, e as mesmas personagens da véspera, com os rostos velados por máscaras negras, adiantaram-se, e uma voz dissimulada, dirigiu-lhes estas palavras:
- Queiram descer as nossas Rainhas ao primeiro andar.
Esperam-nas os Filhos das Sombras...
As formosas donzelas, apesar da lividez dos semblantes, de mãos enlaçadas como para formar perpétua aliança, com os olhares perscrutadores, desceram estreita e sinuosa escada, entrando, após, em vasto salão, faustosamente ornamentado e iluminado por candelabros de bronze.
Extensa e florida mesa, de lauta ceia, estava circundada por cerca de trinta indivíduos, todos trazendo um peplo negro que lhes dava sinistra aparência, tendo no rosto máscaras sombrias.
À cabeceira, achava-se o chefe do bando fatídico, trajado com maior apuro do que os outros circunstantes, também com o semblante oculto.
A um sinal feito por ele, todos descobriram o rosto; e, horrorizadas, as prisioneiras reconheceram, em um deles, no chefe, o hediondo habitante das ruínas; e, em outro, o jovem e belo Felício, que olhava Dulcina, como se desejasse dizer-lhe, com a luz do olhar, algo de misterioso e inadiável...
Aplauso unânime acolheu as jovens, que tinham a palidez do jaspe branco, e os olhos cintilantes de lágrimas.
- Salve as duas mais formosas Rainhas do Universo! - exclamaram todos, exultantes de contentamento.
Foram elas instaladas em dois lugares até então vagos, perto do ocupado pelo indivíduo que parecia ter supremacia sobre os demais convivas.
Quando ele se ergueu para dirigir a palavra às recém-chegadas, estas foram abaladas por um tremor incoercível, certificando-se de que aquela voz e aquela fisionomia disforme, da personagem dos escombros, onde haviam pernoitado em horas fatais para ambas, eram do chefe supremo do bando.
- Formosas Rainhas, disse ele com emoção, olhando-as com o olhar fosforescente, eis-me cumprindo solene promessa!
Bem vedes que os chamados bandidos, malditos pelos ditosos da Terra, que desfrutam todas as regalias de uma vida ociosa e inútil, não se condoendo dos que tem fome e frio - sabem ser gentis para com indefesas donzelas...
Os considerados desprezíveis, enquanto vestiam farrapos, e tinham os rostos macilentos pela fome e pela vigília, são agora elegantes cavalheiros porque não lhes falta o ouro que fascina os olhos cobiçosos, e corrompe as consciências; e vingam-se da injusta sociedade que os oprimiu, impunemente, que os vergastou com escárnios e injúrias... quando lhes atirava o supérfluo! Vede os que vos cercam: interrogai-os!
Todos têm uma dolorosa história a narrar - a história da sua própria vida!
Quem são aqueles que nos deram o ser?
Para muitos, meros escravos, anónimos desgraçados... mortos, às vezes, ao furor da chibata dos senhores desalmados, que arrojaram os seus cadáveres, à guisa de fardos nauseantes, nas valas pútridas, ou nos tanque em que se engordam peixes ferozes e vorazes...
Para esses só têm mérito a opulência ou o despotismo.
O rico não necessita de virtude, nem de inteligência.
Cícero teve valor pelos bens que possuía, e não pelo fulgor de seu talento de escol.
Pois bem, temos conseguido justiça, exercida por nossas próprias mãos. Nós, os que nascemos na desventura, os filhos da miséria, dos prostíbulos e do anonimato desprezível, para os quais não há Leis nem Direito que os amparem, temos também necessidade de viver e fruir as delicias da vida...
Somos implacáveis adversários dessa classe privilegiada que nos expulsa como a cães, quando honrados, mas andrajosos, e nos abre os salões sumptuosos, quando estamos cobertos de veludos, embora de alma rota e carcomida de vícios, coberta de máculas ou da lepra dos crimes mais torpes!
Eis, formosas Rainhas, porque nos vedes empenhados na conquista do que a Humanidade mais valoriza:
Ouro! muito ouro!
Já o temos nós, tê-lo-eis vós!
Contamos com o vosso auxílio, com o fulgor da juventude, da beleza e da inteligência que irradiam de ambas, para todos galgarmos posições afortunadas!
Desse modo não passareis mais as humilhações que já tendes sofrido... em opulenta habitação onde éreis toleradas... e tidas por intrusas!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:31 am

O orador elevou sua taça repleta de um líquido dourado, e todos os convivas o secundaram em conjunto:
- Salve! as mais belas Rainhas de todos os reinos!
Somos aliados para a vida e para a morte!
Pálida, ofegante, mais formosa do que uma escultura grega, Norma, com timbre de voz dulcíssimo e vibrante de emoção, - clarim divino que ressoou pelo âmbito do salão festivo - dirigiu-se aos circunstantes, sendo ruidosamente aplaudida:
- Cavalheiros, vós nos surpreendestes com um acolhimento generoso e com palavras cheias de amargura, comovedoras ...
Não vos acusamos.
Sois o produto das injustiças sociais.
Sabemos quanto é impiedoso e cruel o mundo em que vivemos.
Os felizes ofertam iguarias saborosas aos cães de fina raça, e atiram côdeas de pão, já petrificadas, aos seres humanos que desmaiam de fome, quando não os fazem correr, a vergastadas, pelos lacaios arrogantes...
Penetramos nas vossas desditas, que fazemos nossas, nas vossas dores, que apunhalam corações sensíveis, que sabem medir as arbitrariedades e as humilhações dos potentados ...
Sabemos tudo isso, mas, apesar de espezinhadas, órfãs e pobres, possuímos o maior tesouro, a maior ventura que nenhum tirano, nenhum malfeitor nos poderá usurpar, porque está oculta em escrínio divino, que, para alguém conseguir abri-lo, com chave radiosa, terá de escalar o próprio céu: a nossa consciência pura, a paz interior, gerada pelos deveres morais, austeramente cumpridos, apesar de todas as atribulações por que temos passado...
Vós, senhores, seguistes uma vereda diversa da que eu e minha irmã trilhamos, porque não conhecestes os carinhos de uma santa mãe, não recebestes os sublimes conselhos de um pai laborioso e severo!
Nós, nunca nos consideramos pobres, porque possuímos, sempre, esta riqueza incomparável, que herdamos de nossos progenitores, e queremos restituir-lha nas paragens siderais: a virtude!
A virtude diviniza os seres humanos, mesmo que estejam atirados ao abismo da miséria e das mais rudes adversidades; ninguém lhes poderá roubar tal preciosidade celeste, bem semelhante à escaleira de Jacob:
liga ela as almas resplandecentes, das sombras da Terra, ao Firmamento repleto de estrelas!
Ela é asa de luz, que nos eleva deste planeta às mansões dos deuses!
A Morte não nos apavora, nem nos acovarda; preferimo-la à maior felicidade, com as almas corruptas pelo Mal.
Queremos a humilhação, a dor, o martírio, contanto que não percamos a pureza do nosso Espírito, a honestidade que herdamos de nossos pais, mantidas invulneráveis ao Mal, em uma cidade onde pompeiam a dissolução de costumes e o amor aos gozos...
Como quereis, pois, cavalheiros, aliar-nos às vossas empresas, que visam as venturas terrenas, se não nos vinculam os mesmos ideais?
Que nos vale o ouro, sem a paz de consciência?
Vós, que tendes sido desditosos e oprimidos, quereis tornar-nos cativas, ou impulsionar-nos a praticar o que está em desacordo com os nossos sentimentos?
- Queremos apenas o vosso concurso para que possamos realizar um arrojado empreendimento! - exclamou o chefe do bando sinistro.
- Sem mancharmos a nossa alma? - interpelou-o Norma, imperturbável.
- Que vem a ser alma para os Filhos das Sombras?
Falamos nela apenas como a sede de todos os sentidos, mas ignoramos se sobrevive à matéria!
Conhecemos e afirmamos o que nossos olhos enxergam, nosso tato pressente; tudo o que não for do mundo real, nós contestamos!
Se temos, ou não, alma, é-nos indiferente saber...
Se a temos de perder, se merece ela o Olimpo ou as Geenas, que nos importa o seu destino?
Não investigamos o futuro. Odiamos o passado.
Contentamo-nos com o presente.
Vemos que sois belas e inteligentes, e não podemos dispensar o vosso concurso precioso.
Eis tudo aclarado.
Nada mais desejamos, além do que já sabeis.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:32 am

CAPITULO XIII
Houve silêncio por alguns segundos, findos os quais a inspirada Norma novamente interrogou o chefe do bando sinistro:
- Que pretendeis que façamos por todos vós ?
- Dir-vos-ei, amanhã...
Hoje, festejamos a aquisição de mais duas Rainhas - por certo as mais encantadoras de todas - a cujos pés arrojamos os nossos corações deslumbrados e jubilosos!
Lívida qual alva camélia, prestes a desmaiar de emoção, temerosa de que ela e sua terna Dulcina fossem enrodilhadas em funestos sucessos, fez um apelo aos que a escutavam:
- Cavalheiros, vós, que sofrestes as injustiças e os vexames impostos pelos venturosos do mundo, lembrai-vos de que eu e minha irmã somos indefesas e honestas donzelas, tudo esperando de vossa magnanimidade!
Nosso ideal é o de viver na obscuridade de um lar modesto e honrado...
- Não haveis de arrepender-vos de vos associardes aos generosos Emboscados! - exclamou o chefe.
- Contai com o nosso ilimitado reconhecimento, senhor!
Quero, porém, elucidar melhor os meus pensamentos, que são idênticos aos de minha companheira e irmã, criadas com ternura por nossos dignos progenitores, aos quais fizemos um juramento sagrado na hora extrema de suas existências:
o de jamais faltarmos ao cumprimento de nossos deveres morais!
"Preferir a Morte à desonra!" - era o seu lema.
Eles nos confiaram a um outro Pai, sublime e inigualável: Júpiter, o soberano dos deuses!
Não desejamos, jamais, ofender à Majestade suprema, nem com uma ideia impura!
Não vos condenamos, senhores!
Relegamos, a quem os quiser, os bens terrenos, falazes, somente aspirando aos do Céu, perenes!
Fomos educadas na escola do Dever, do sacrifício e do estoicismo.
O menor desvio far-nos-á perder a nossa maior ventura - a paz de nosso Espírito, a protecção dos deuses e a de nossos Pais, cujas almas adejam, sempre, junto aos nossos corações, vibrando em nossos íntimos os hinos celestiais da harmonia, do Bem e da probidade...
Vós não conhecestes os arcanjos dos lares.
Não se podem improvisar sentimentos puros sem o escudo tutelar daqueles que nos deram o ser - os nossos mais desvelados amigos - que os infundem em nossos corações com os seus ósculos da mais sincera afeição.
Não se consegue ligar pedras com lama, mas, com argamassa, que se petrifica no decorrer do tempo...
Não tivestes essa ligação poderosa - a do amor paterno - e ficastes insulados no mundo, prestes a resvalar em um despenhadeiro ...
Faltou-vos o fulgor do afecto paternal; vossos corações ficaram com a rijeza do granito, sabendo empreender com denodo a luta em busca do ouro, das jazidas terrestres; mas desconheceis o ouro divino com o qual podemos conquistar o próprio Céu:
o cumprimento fiel de todos os deveres morais, a despeito de tudo, de todas as humilhações, injustiças, decepções e desventuras.
O berço em que nascemos faz-nos trilhar linhas divergentes - a Terra e o Céu!
Não podemos, pois, coligar-nos às vossas empresas sem o risco de perdermos o que vamos conquistando com lágrimas e sofrimentos inauditos!
Vós, que tendes as almas dilaceradas pelas iniquidades e espezinhações do mundo, concedei-nos o que desejamos com ansiedade: a nossa liberdade!
Deixai-nos partir... e nós vos bendiremos, considerando-vos os mais generosos e acolhedores amigos de quantos encontramos, depois que morreram os que os fados nos concederam, e, novamente, levaram Para o túmulo... ou para o Olimpo!
- Quereis livrar-vos de nós! - interpelou-a o chefe, com uma entonação em que se notava intensa ironia.
- Queremos a liberdade! - respondeu-lhe, com firmeza, a jovem oradora, empalidecendo.
Uma estridente gargalhada ressoou no recinto onde se achavam os comensais.
- Liberdade! Quem a possui na Terra, senão os déspotas e os abastados?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:32 am

Como a quereis adquirir, lindas jovens, se sois desprovidas de opulência e de defensores?
Aqui os tendes mais do que onde estáveis... nas condições, quase, de escravas...
Não cometais a loucura de querer livrar-vos do suave domínio dos Filhos das Sombras, que sabem ser amigos dedicados e adversários inexoráveis!
Aqui, sois Rainhas; tendes à vossa disposição banquetes, vestes luxuosas, adoradores fervorosos, ao passo que lá, de onde viestes, éreis tratadas como importunas (tal vos considerava a esposa de vosso tio Pôncio).
Sabemos da vossa vida pormenorizada.
Chamam-nos malfeitores, mas, os piores são os que residem em palácios e não se condoem dos desgraçados!
Não tenteis, pois, livrar-vos de nossa alçada, porque também nós, os odiados pela Humanidade, não sabemos perdoar, considerando o perdão a covardia dos fracos, dos que temem apunhalar um coração... que os detesta!
Somos terríveis no desforço, quanto magnânimos na amizade.
Contentai-vos com esta, e evitai aquele...
Sereis livres... depois que tiverdes satisfeito o que pretendemos de vós.
Banqueteemo-nos agora, pois estão à nossa espera... os nossos amigos!
- Cavalheiros; mais algumas palavras e terei terminado o que pretendo expor-vos.
Reconhecemos que muitos de vossos ideais são fundados na desoladora realidade da vida...
Nós, porém, preferimos as humilhações e os padecimentos mais acerbos a perder a limpidez de nossas consciências!
- A consciência deixou de existir, há muito, asfixiada no lodo pútrido que nos atiram os opressores do género humano!
- Que vos importa tenha ela desaparecido para os déspotas e os delinquentes?
Será crível que o ser humano - maravilha de órgãos e faculdades divinas - paute os seus sentimentos pelos dos maus ou dos tiranos?
Será aceitável que estejamos, aqui, atirados ao acaso, como pedras desprendidas dos penhascos?
Além, nas fronteiras azuis do Firmamento com a Terra, onde brilham os astros - que devem ser, talvez, as Pátrias dos bons e triunfantes do Mal, onde há luz em profusão - não existem, certamente, almas torvas, ou gangrenadas pelos delitos mais torpes; há, sim, Entidades prodigiosas, que descem a este planeta de trevas para nos observar, incessantemente, e seguem os nossos passos, como protectores abnegados, que penetram os nossos corações com o fulgor de seus olhares...
Não haverá, naquelas paragens celestes, uma Justiça absoluta, mas íntegra e imparcial, para punir os algozes, e galardoar os bons e os virtuosos?
Não será justo que os esfarrapados, os oprimidos, os infelizes sejam conduzidos às paragens ditosas do Universo, desde que sejam probos e austeros, cumpridores de seus deveres morais, convertendo-se as agruras da existência em gozos infinitos; ao passo que os perversos e arbitrários resgatam os seus crimes encerrados em calabouços, onde serão punidos com o azorrague do remorso, até que, nos seus Espíritos nebulosos, surjam fagulhas divinas de piedade e humildade - como saem do próprio granito, à vibração de um corpo metálico, centelhas fulgurantes, migalhas de estrelas?
Não é melhor trabalharmos para nossa felicidade perene, sendo honestos e bons; do que sermos opulentos à custa das lágrimas e dos tormentos alheios, acossados pelo látego da compunção ?
- E quem nos garante a imortalidade da alma, conforme no-lo afirmavam Sócrates, Platão e Pitágoras, linda jovem?
Quem assevera a infalibilidade daqueles famosos filósofos gregos?
- O nosso próprio ser; senhor!
Há, em nosso íntimo, algo de superior, de nobre, de divino, que não poderá ser destruído nem terminar no fundo dos sepulcros!...
O que é constituído
j de músculos, de nervos e de ossos, tem duração limitada, está sujeito às contingências da matéria e do aniquilamento: o pensamento, porém, que se irradia do cérebro, sem deixar vestígios, tal qual a luz solar que não possui combustível conhecido, é sempre inesgotável, como o são as mais excelsas aspirações humanas, que ninguém poderá suster nem exterminar!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:32 am

CAPITULO XIV
Depois de uma pausa, que durou segundos, com o rosto acerejado por intensa emoção, transfigurada, e irradiando pensamentos dignificadores, Norma continuou:
- Cavalheiros, se fôsseis amados por vossos pais extremosos, se vísseis suas frontes encanecidas e beijásseis suas mãos enregeladas pela neve da Morte, à hora da partida para a verdadeira Pátria - a dos bons e virtuosos - certo havíeis todo o vós de crer, inabalavelmente, na sobrevivência da partícula divina, que se aloja no íntimo de nossa carcaça, e sem a qual o corpo seria inerte, inconsciente, inanimado, idêntico a um bloco de granito...
Não quereríeis perder, por todos os milénios, puras e santas afeições!
Vós sentiríeis, dentro de vós mesmos, a saudade dos que, desaparecendo, diante de vossos olhos materiais, se imortalizam pela luz das recordações e vivificam em nossa mente, ou em nossos Espíritos, que são as urnas sagradas que o Criador destinou para encerrar todas as relíquias preciosas de nossas existências...
- Vossa fala de rouxinol nos encanta e nos seduz, inspirada Pitonisa - disse o chefe - sem o que não consentiríamos que estivésseis dizendo as verdades....
desagradáveis que nos tendes patenteado!
Não conhecemos os que cometeram o crime de nos dar a vida, pois que no-la concederam para, logo após, nos abandonarem ao acaso, como se fôssemos culpados de haver nascido, ou como se houvéssemos vindo ao mundo já desprezíveis facínoras...
Fomos criados ao léu da sorte, e eles desapareceram nos calabouços ou nas valas comuns!
Nosso passado é tão sombrio quanto a cratera de um vulcão extinto...
Nunca indagámos do futuro. Somente temos uma preocupação:
adquirir ouro, às montanhas, para nosso uso e desfrute!
Deixai o idealismo que vos encanta, proferido por vossos lábios formosos, mas que não tem utilidade prática.. .
Sois bela em demasia para renegar os gozos deste mundo.
Escolhei, dentre nós, os que mais vos agradarem, e estes serão os vossos servos ou vossos esposos; e vós, adoradas soberanas!
Eu me iludi, quando disse que só desejamos tesouros deslumbrantes, pois eu os trocaria, de bom grado, para possuir um outro mais valioso ainda: vosso amor, formosa sacerdotisa!
Uma lividez lactescente, oriunda do pejo e da revolta, desmaiou o semblante sedutor de Norma.
Uma sensação desconhecida fê-la estremecer da cabeça aos pés, apoderando-se de seu ser uma vibração nunca sentida, que lhe deu inconcebível energia.
Retomou a palavra, e disse, com firmeza.
- Senhores, se sois os Filhos das Sombras, perseguidos pelos venturosos do mundo; se não conhecestes mães extremosas e nunca lhes beijastes as mãos venerandas; não julgueis que a Humanidade toda seja desprovida dos mais santos e imaculados sentimentos!
Nós - eu e minha irmã - nascemos para os lares puros, para os afectos ilibados, e não para as aventuras perigosas.
Lembrai-vos de que somos indefesas donzelas, e vós, que tendes por norma defender os fracos, deveis olhar-nos como se o fizésseis às vossas próprias irmãs, que fossem de reputação inatacável.
De outro modo não poderemos viver no mesmo ambiente em que vos achais.
Se nos forçardes a praticar qualquer ato que vá de encontro às nossas consciências, decretareis, irrevogavelmente, a nossa morte!
Houve um murmúrio de surpresa entre os circunstantes, alguns dos quais exclamaram, com sinceridade:
- Quanto nos desprezais, lindas jovens!
Acaso vos sentis desonradas em receber as nossas homenagens?
- Sim; se não souberdes respeitar a pureza de nossa alma, e a de nosso corpo.
Para vós, só há venturas na riqueza; para nós. na virtude.
Preferimos o ouro do Céu. ao da Terra.
Seremos mais ditosas em alfurjas, cobertas de andrajos, do que em palácios de onde a honra esteja banida!
Cada um de nós deve seguir os ditames de sua consciência.
Não duvidemos de que além, acima de nossas frontes, haja um tribunal luminoso, cravejado de estrelas, no qual terão de ser julgados todos os nossos actos - bons e maus!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:32 am

Não acreditais na imortalidade da alma?
Quem nos impedirá, porém, de crer nela com veemência? Nós sentimos essa certeza, em nosso íntimo.
Existe, no recôndito do ser, algo de imortal, de perpétuo que nos aconselha a praticar o Bem e a repelir o Mal.
Se estivermos iludidas, morreremos felizes, com a incomparável ventura de havermos sido sempre honestas, por não termos traído o juramento que fizemos, na hora extrema, a nossos pais.
Que é a felicidade para o Espírito cheio de remorsos?
Que sabor terá um fruto delicioso retirado da mão de um cego, ou de uma criança que não pôde defendê-lo senão com ardentes lágrimas?
Que prazer haverá nas vestes de púrpura e nas habitações faustosas, usurpadas aos que as possuíam à custa de labores e sacrifícios?
Não; mil vezes será preferível o pão negro da miséria, as roupas esfarrapadas, contanto que os nossos Espíritos estejam livres de máculas, envolvidos na túnica alva e radiosa da probidade!
Calou-se a donzela, cuja formosura radiante dava prova eloquente de que fora intérprete de verdades siderais, veiculadas das regiões fulgurantes do Universo.
Aqueles desditosos, que desconheciam os sentimentos afectivos e dignificadores, filhos do anonimato e da corrupção, repudiados pela sociedade enquanto trajavam de mendigos, e, depois, acolhidos como se fossem príncipes, quando ostentaram vestes custosas, conquistadas por meio de crimes sucessivos; que viviam com os corações transbordando fel e ódio, e as mãos adestradas nas armas fratricidas; foram despertos, sacudidos violentamente, pela primeira vez, por um clarim de ouro - a voz da virginal criatura que os fixava com ânimo sereno e piedade infinita.
De que lhes falara ela, afinal?
Da felicidade das mansões honestas, dos santos afectos dos progenitores, que eles não conheceram, por quem não foram amados nunca, por quem haviam sido atirados à senda do vício?
Ai! deles, porém!
Que poderiam ter feito em benefício dos filhos, se eram escravos, ou haviam morrido em pestíferas masmorras?
Nunca tiveram a ventura de beijar a mão de uma carinhosa mãe; nunca receberam uma prova de ternura paternal ...
Aquela jovem deslumbrante, cuja pureza se assemelhava à da mais cândida Vestal, viera, qual visão celeste, falar-lhes dos afectos que jamais haviam experimentado, e parecia aureolada de um halo divino - que a tornava invulnerável aos sentimentos impuros.
Eles penderam as frontes e alguns olhos marejaram-se de lágrimas; sinal evidente de que, da rocha viva de seus corações, havia porejado a primeira linfa imaculada, com que se alvejam todas as manchas das almas, por mais denegridas que sejam!...
Com verdadeira surpresa para as donzelas, o banquete fora servido por amestrados fâmulos, e em um ambiente de paz e ordem, abolidas as libações excessivas, sendo elas tratadas com delicadeza e respeito.
Quando finalizou a ceia, aproximaram-se das moças todos os convivas, já, então, sem as máscaras sombrias, que lhes davam um aspecto fúnebre.
O que assumira a chefia dos bandoleiros, a personagem das ruínas, denominado Plínio, tinha o rosto intumescido e arroxeado, a fades dos morféticos.
terrível enfermidade, de que fora presa, já se manifestava em toda a plenitude.
Era ele de estatura elevada, de cor indefinível - rubra e violácea - as orelhas disformes, o mento saliente, símile do de um troglodita, lábios excessivamente intumescidos, entre os quais sobressaíam os dentes, mal implantados e agudos, rivais dos de um carnívoro...
Era hediondo o seu aspecto, apesar do impecável traje.
Em seus olhos, havia o brilho sulfúreo de um archote aceso no interior de uma furna, quando olhara a formosa Norma.
Tentava sorrir, mas o seu sorriso era um esgar simiesco.
- Cumpri a minha promessa, disse ele às jovens, triunfante.
Quem poderá esquecer-vos, ainda que vos contemple uma só vez na vida, mesmo no relâmpago de um segundo?
Dulcina, menos tímida do que a irmã, e que, até aquele instante, se conservara silenciosa, disse-lhe, com firmeza:
- Já que sabeis tão bem cumprir as vossas promessas, senhor, haveis de comprometer-vos a conceder-nos a liberdade, amanhã, depois de expordes o que tendes planejado a nosso respeito...
- Estais, acaso, sofrendo algum desacato dos magnânimos Emboscados?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:32 am

- Não, senhor; e somos, até, muito gratas a todos pelo acolhimento que nos dispensastes; mas tememos que nosso tio Pôncio interprete mal a nossa ausência, julgando-nos coniventes com algum plano funesto...
Ele, que nos tratou paternalmente, deve estar sofrendo imenso com o nosso desaparecimento; e não queremos que nos considere indignas de sua afeição tutelar...
- Não careceis mais de sua protecção.
Ele que vos julgue como lhe aprouver.
Sereis felizes e opulentas...
- E haverá felicidade na Terra, para os escravos, ainda que habitem palácios sumptuosos?
- Mas, vós não sereis cativas, e sim rainhas!
Podereis fazer-nos imensamente ditosos!
- Como ? senhor!
Havemos de renegar nossa família para vos tornar venturosos?!
- Não tendes mais progenitores.
A vossa situação na residência de Pôncio era intolerável, porque sua esposa é uma pantera.
Aqui, não estais por esmola:
sois queridas e soberanas!
- Agradecemos as vossas homenagens, que não merecemos.
Se, porém, quereis fazer-nos felizes, consenti que voltemos para Roma.
Temos, lá, amigas desveladas...
- Amigas? Onde existem elas, quando não há fortuna para lhes proporcionar gozos?
Haverá amizade sem os elos do ouro?
Não existe afeição entre pobres e ricos, e sim ódio implacável !
- Podemos trabalhar e viver humildemente, à nossa custa...
- O trabalho, em nossa era, é desprezível, reservado aos escravos, exclusivamente.
Vale mais um bandido opulento, do que um justo sem um sestércio!
Quando nós, os Filhos das Sombras, possuirmos o tesouro que ainda estamos acumulando... seremos cônsules em Roma!
Enquanto se estabelecia este diálogo entre Plínio e Dulcina, um dos associados, Felício, o falso irmão de Regina, disse a Norma, em voz baixa:
•- Preciso falar-te.
- Onde?
- Aqui, amanhã, quando eles partirem...
- Tememos uma cilada.
Perdeste a nossa confiança...
- Juro-te que vos protegerei a ambas como se fossem minhas irmãs, que não tive...
Plínio, que não percebera as palavras de Felício e de Norma, mostrou-se contrariado, com o cenho carrancudo.
A moça, desde que findara a ceia, sem o fulgor da inspiração que lhe iluminara a fronte com lampejos de alvorada, sentiu-se novamente entibiada e apreensiva.
- Como és bela - disse-lhe Plínio com enlevo.
Eu, que me sinto putrefacto em vida, que sempre odiei as mulheres e as tive por traidoras, venais e perjuras, estou alucinado com a tua formosura e com a de tua irmã.
Teu aspecto, porém, é mais sedutor do que o dela.
Desvias, entretanto, do meu, o teu luminoso olhar!...
Compreendo que tens asco de mim.
Eu padeço com esse desprezo.
Quando falaste,
durante a ceia, eu julgava ter sido transportado ao Empíreo, apesar de ser um ímpio.
- Eu não vos desprezo, nem a pessoa alguma, senhor!
Se soubésseis também quanto sofro... longe dos que amo!
- Tu te referes a...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:33 am

Esténio. não é verdade? - exclamou ele com a catadura feroz.
Nunca devias ter amado o filho daquela que te odeia!
- Como sabeis de nossa vida, assim, tão minuciosamente?
- Temos agentes vigilantes em quase todas as habitações de abastados.
Muitos informes obtivemos também por intermédio de Regina.
- Nós a considerávamos amiga; e, no entanto, traiu a nossa confiança!
- Não a acuses.
Ela, como tu e tua irmã, órfã e desprotegida, foi repudiada pelos parentes abastados.
Então, não relutou em aceitar a nossa protecção, e. ..
ainda não se arrependeu de assim haver procedido!
- Norma, não desejando agravar a sua situação, calou-se.
A conversação generalizou-se; e a jovem, após mais alguns
momentos de palestra com aqueles indivíduos que lhe causavam temor, manifestou o desejo de se recolher ao aposento que lhe fora reservado.
Subitamente, um dos convivas, Cláudio, em plena juventude, traços perfeitos, olhos negros e intensos, robustez de atleta, aproximou-se de Norma.
Olhou-a com infinita emoção, e, quase em segredo, disse-lhe:
- Vim, hoje, de Veneza.
Conheces Esténio e Octávia?
A mãe do escultor obrigou-o a abreviar o seu casamento com a prima, e ele vai obedecer-lhe, brevemente.
Já estão preparando os principescos esponsais...
A donzela exalou um estridente grito, e caiu, como que fulminada por um corisco.
Dulcina, alucinada de dor e aflição, rogou aos circunstantes que a transportassem ao leito, a fim de lhe poder prodigalizar os cuidados de que necessitava, com urgência.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:33 am

CAPITULO XV
Todos os associados queriam prestar-lhe socorros, mas, o rapaz que lhe causara o desmaio, com a terrível notícia, precipitou-se para a desfalecida; e, qual se fora ela uma débil criança, transportou-a nos braços vigorosos, celeremente, até o aposento.
Dulcina, desatinada, ajoelhou-se em frente à cama, onde se achava, lívida e amortecida, a irmã adorada, que encerrava para ela todas as afeições terrenas; e, entre pranto e gemidos, tentava despertá-la para a vida, fazendo um apelo aos deuses para que não lhe arrebatassem a alma ao corpo exânime!
Tão veemente era a amargura da aflita Dulcina, que aqueles endurecidos delinquentes que as rodeavam, afeitos ao crime e à impiedade, corações empedernidos em empresas sinistras, que não estremeciam ao saquear os cadáveres das vítimas de seus punhais e de seus mosquetes mortíferos, arrancando-lhes as bolsas tufadas de moedas preciosas, eles que desconheciam os carinhos dos pais e os afectos de honestas irmãs...
pela primeira vez, como que içados de um abismo insondável, às Alturas consteladas, sentiram-se comovidos à vibração daquela dor fraterna, empalidecidos; e, alguns deles, com brilho de lágrimas nos olhos, ressequidos ao fogo das paixões violentas e dos ódios irreprimíveis, que arrancam chispas coruscantes dos corações dos celerados!
Tal o poder da virtude, que semelha um raio de Sol, penetrando nas profundidades de uma jazida carbonífera, levando suaves fulgores onde só imperam as trevas; igual ao aroma inebriante de cândida açucena que embalsama o ar, e parece que impregna a própria alma do ser... o seu poderio é tão intenso que, escudada pelos mensageiros celestes - cujas armaduras são forjadas de bronze imaterial, misto de luz e diamante imponderável - às vezes paralisa o braço de um verdugo, e o faz, após, contrito, seguir o carreiro áspero do Bem...
Raras as criaturas que são insensíveis ao influxo divino de um ente virtuoso.
As que são indiferentes a essa puríssima influência é que ainda se acham distanciadas da Majestade Suprema, a Suma Perfeição, qual os errantes cometas que se afastam, sempre, do ponto primitivo, enovelados pelo Espaço em fora, até que o Imã divino os detenha e os transforme em novos mundos.
Em tais momentos decisivos, em que o vício escravizava a virtude, houve a primeira metamorfose salutar naqueles Espíritos entenebrecidos pelos crimes, tal qual, na profundeza das minas de hulha, uma faísca poderá fazê-las explodir em vulcões de chamas! Dir-se-ia que, estendido sobre as duas donzelas, um manto estrelado as tornava invulneráveis ao Mal.
Os que contemplavam o comovente quadro das vítimas de sua prepotência - uma, inanimada qual arcanjo tumular, e a outra, abalada por evidente sofrimento - sentiram-se compungidos, e desejosos de lhes prestar socorros fraternais.
Levaram à Dulcina essências eficientes para debelar o delíquio da irmã bem-amada! Houve um momento em que, insensivelmente, todos aqueles desditosos delinquentes, ante a perspectiva da morte "e Norma, da qual se julgariam culpados, se prosternaram no solo, como que abatidos pelo mesmo golpe - o da espada luminosa do arcanjo da Justiça, a Témis Divina - cujas vibrações não visam o corpo material, mas os Espíritos criminosos ...
Quando, depois de alguns instantes de ansiosa expectativa, após uma imobilidade que dava à jovem desfalecida a aparência da rigidez cadavérica, ela descerrou os olhos tristes e encantadores, todos eles tinham lágrimas bailando nas pálpebras - primeiro manancial que brotou do rochedo de suas almas, para que fossem, mais tarde, saneadas das muitas atrocidades que já haviam praticado, e por onde entraria o primeiro revérbero da luz da redenção!
Plínio, que não cessava de lhe fixar o olhar, onde havia lampejos de hostilidade e de paixão, precipitou-se para ela, interrogando-a:
- Que te disseram, formosa?
Diz-mo, que quero punir o culpado - que me parece ser Cláudio!
Ela o olhou com doçura, mas pareceu não o haver compreendido; cerrou as pálpebras novamente.
- Não a interrogueis agora, senhor! - advertiu-lhe Dulcina.
Bem vedes que seu estado inspira cuidados...
Amanhã, se for possível, ela vos dirá o que lhe sucedeu.
Deixai-nos a sós.
Quero que ela repouse.
Todos se retiraram, ficando as jovens a sós.
- Quem nos valerá nestas circunstâncias desesperadoras ? - gemeu Dulcina.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:33 am

Norma olhou-a com ternura, murmurando:
- Se eu tivesse morrido, sabendo que te iam salvar deste cárcere - seria feliz!
- Não, minha adorada; pois minha única ventura é ficar a teu lado!
Quero que vivas para que ainda sejas venturosa!
Esténio merece tua afeição, pois é digno dela, ao passo que eu... tive para sempre destruída a minha mais cara esperança!
Ouvindo a irmã pronunciar o nome de Esténio, lágrimas ardentes derramou a enferma, dizendo em segredo:
- Como estás enganada, Dulcina querida!
Ele me esfacelou o coração mais acerbamente do que Felício ao teu: ambos são uns carrascos do nosso afecto!
- Porque te expressas assim?
Norma! Acaso Esténio também se transformou em bandido?
- Sim, pois me traiu covardemente...
Vai casar-se em Veneza...
Não pôde concluir a frase: os soluços abalaram-na, convulsivamente.
Dulcina abraçou-a, interpelando-a:
- Foi o que te revelou Cláudio?
Norma! Fala!
Norma contou-lhe tudo quanto o belo atleta lhe segredara e que lhe causara a impressão de uma punhalada...
- Eu já conhecia Cláudio, Dulcina.
Não te lembras que parecia ele ser amigo de nosso primo?
- Lembro-me, agora, de o ter visto no festim em que fomos apresentadas a Felício e à sua falsa irmã...
Escuta-me, Norma: quem sabe se Cláudio te ama e forjou uma calúnia para que odeies a Esténio, desistindo de ser sua esposa?
Eles, aqui, estão ao par de toda a nossa vida íntima.
Sabem que amas nosso primo.
Querem que renegues sua afeição, para que te infames aos olhos de Esténio, e este não providencie contra o nosso rapto aviltante.
Não te mortifiques, pois.
Hei de apurar a verdade, mesmo com sacrifício da própria vida!
- Mas eu não posso consentir nisso; Dulcina!
A todas as afeições, prefiro a tua!
Sem ela é que não poderei mais viver sobre a Terra...
Norma, com a loura fronte reclinada no regaço de sua irmã, chorou por muito tempo.
Dulcina, alma forte e estóica, esforçou-se para lhe confortar o coração.
A noite foi escoando-se, lentamente.
Igual ao da véspera daquele dia, novo e apavorante temporal fustigou a habitação fatídica, em que se achavam as encarceradas, qual se tentasse arrojá-la despenhadeiro abaixo.
Só conciliaram o sono quase ao terminar da noite.
Ao alvorecer, avistaram elas um pequeno rectângulo de pergaminho, junto à soleira da porta.
Dulcina apressou-se em apanhá-lo, e leu o que nele se continha, com emoção:
"Dulcina.
Amo-te ainda mais do que quando me prezavas, julgando-me digno do teu amor!
Compreendo o que se passa em teu nobre coração... tu, porém, nunca perceberás a tortura que flagela o meu!
Tudo hei-de fazer para reconquistar teu afecto, reabilitando-me a teus lindos olhos... onde noto uma comovedora tristeza...
Se quiseres encarregar-me de alguma incumbência para os teus parentes, poderás fazê-lo com inteira confiança.
Prefiro a morte a cometer mais uma deslealdade para contigo! Adeus.
Perdoa-me e auxilia-me a sair do abismo insondável onde me arrojou a desgraça!"
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:33 am

Não estava assinado o manuscrito, mas a moça não duvidou de que fosse, realmente, de Felício.
- Agora começo a compreender o que sonhei, ontem: os deuses encarregaram-nos do desempenho de difícil missão terrena:
despertarmos, em muitas almas corruptas, nobres sentimentos! - pensou Norma, ao terminar a leitura da mensagem de Felício.
_ No decorrer do dia foram elas chamadas à presença de Plínio, que, depois de se certificar a respeito da saúde de Norma, lhe disse, com manifesto interesse:
- Que te disse Cláudio, quando desmaiaste, ontem?
- Não o escutei, senhor.
Senti-me indisposta, depois da ceia; e nem sequer percebi o que os cavalheiros presentes conversavam...
- Pois bem, essa informação livrou-o de severo castigo ...
Passemos, então, a outro caso.
Os Filhos das Sombras vão agir, agora, em Roma. Nossa empresa vai ser, doravante, mais arriscada ainda...
Quero que ambas nos concedam esclarecimentos seguros sobre o que desejamos saber. Já frequentastes a mais elevada sociedade romana?
- Sim, enquanto nosso pai possuía invejável fortuna, respondeu-lhe Dulcina.
- Quero informações reais sobre a situação das mais afortunadas famílias das vossas relações.
- Podemos saber do que se trata? Senhor!
- Não vos compete interrogar-me, e sim obedecer-me!
Este é um dos artigos do nosso Código Secreto.
Estamos agindo de acordo com os interesses da associação a que pertencemos.
Previno-as, a ambas, de que, se proferirem inverdades, perderão toda consideração com que têm sido tratadas...
Serão, então, escolhidas para amantes dos mais destemidos dentre nós, depois de encarniçada luta para selecção entre os vencedores.
Eu, como chefe, tenho o direito de escolher uma de vós; e, essa, tal como o fez Regina, terá de conquistar quem possa fornecer-nos o que mais ambicionamos: ouro, muito ouro!
Uma lividez de alabastro substituiu o róseo das faces das infelizes prisioneiras, que, no íntimo, sentiram insuportável revolta.
- Não percais um tempo precioso.
Todos aguardam vossos informes, com ansiedade, a fim de partirem para Roma.. .
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:33 am

CAPITULO XVI
Norma, ofegante, estava prestes a esmorecer como acontecera na véspera daquele dia. Subitamente, porém, seu rosto ruborizou-se e algo de extraordinário vibrou em seu âmago: uma força desconhecida amparou-a e impulsionou-a a pronunciar a palavra que seus lábios recusavam proferir, pois a ouvira agora, nítida, no recesso do seu ser, em tom incisivo:
- Obedeceremos!
Uma grande alegria iluminou os rostos sinistros dos que a olhavam, com olhares de abutres.
- Podeis tomar apontamentos, senhores - disse Norma, com o mesmo timbre de voz com que pronunciara, no dia antecedente, a sua comovedora alocução.
Vamos obedecer-vos, embora nos sintamos amarguradas!
Entre a força e a razão, vencerá a primeira, porque ela é qual um penedo; a segunda, um raio de luz; uma esmaga, outra ilumina os lírios, tornando-os mais alvos e puros!
Obedecer pela opressão é anular, por momentos, a voz divina que vibra dentro da alma dos justos, dando-lhe a coroa do martírio!
Compete aos deuses julgar o nosso proceder...
Nenhuma objecção fizeram, ávidos que estavam pela posse de novos e maiores cabedais para a- associação infernal a que pertenciam.
Quando Norma terminou as informações, um grito uníssono se lhes escapou dos lábios, como se já estivessem contando montanhas de preciosidades.. .
Repentinamente, todos, alçando os chapéus acima das frontes, numa alegre saudação às donzelas exclamaram:
- Ave, formosas soberanas!
Para breve será o nosso regresso; e, então, sereis coroadas de rosas e louros, recebendo o quinhão de nossas colectas...
Poucos instantes depois, os da corja afastaram um alçapão, que havia na sala das refeições, e por ele desapareceram, ingressando em extensa galeria perfurada em uma das ramificações dos Apeninos.
Somente ficaram no antro dos Emboscados, além das prisioneiras e alguns serviçais, Plínio e Cláudio, que, à hora da partida dos companheiros, se sentiu atacado de súbito mal, que o prostrou no leito, gemendo lamentosamente, em aposento contíguo ao refeitório.
Assim Plínio ficou a sós com as duas raptadas, abeirou-se de Norma, e disse-lhe, emocionado:
- Linda Rainha, pela primeira vez em minha acidentada existência, sinto-me fascinado por uma deslumbrante formosura: a que possuis!
Eis-me, pois, subjugado aos teus irresistíveis encantos!
Estou enamorado de ti; e, para conquistar o teu amor, farei todas as sublimidades, ou todas as abjecções.
Somos muitas vezes milionários; e eu, chefe dos Filhos das Sombras, tenho o maior quinhão...
Onde me viste nas ruínas do castelo em que vos abrigastes, há meses, estou sempre vigilante qual o tigre à espreita de uma presa apetecida, a fim de que ninguém possa penetrar na galeria, por onde, há momentos, viste os nossos companheiros desaparecerem.. .
Estas terras sempre me pertenceram.
Sou o filho bastardo de um rico e temido castelão, que aqui passava o inverno, e residia em Roma.
Nunca soube quem foi a que me deu o ser.
Fui criado com imenso conforto e educado principescamente, tendo viajado com meu pai - que me legitimou - em diversos países, inclusive a Grécia, o Egipto e a Palestina.
Aprendi filosofia, pintura e música.. .
Tendo morrido meu pai, em desastre, quando viajava em sege, que rolou por um despenhadeiro pouco distante desta habitação, fiquei órfão aos dezoito anos; e, desde então, começou a tragédia da minha vida...
Os nossos parentes, que me detestavam e ambicionavam os meus haveres, levados por meio de documentos valiosos, sob o pretexto de me protegerem.. . furtaram-me tudo o que eu havia herdado, inclusive o solar, cujos escombros já conheceis...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:34 am

Soube, por um servo fiel, que meu progenitor não sucumbira por acidente, mas fora atirado a um profundo fosso, cavado nesta serra, e oculto por uma frágil ponte, coberta de algumas camadas de terra.
À hora aprazada, o palafreneiro desceu da boleia e fustigou os cavalos, que resvalaram com o veículo para um verdadeiro abismo...
Eu, possuindo ainda alguns bens para me consolar da perda irreparável que havia sofrido, atirei-me a uma vida de gozos e devassidão, em plena Roma, onde contraí este mal execrável. ..
Vi-me perseguido pelos parentes e abandonado pelos que eu considerava amigos.
Acossado por adversários rancorosos, esgotei os haveres que me restavam; e, em lutas sangrentas, consegui exterminar alguns deles...
Fui atacado neste castelo, que ficou reduzido a escombros; e nele, desde então, passei a habitar.
Passaram-se os tempos...
Odiando a Humanidade da qual fui banido, organizei a associação dos Filhos das Sombras, constituída por diversos infortunados, chefiando-a o mais desgraçado de todos; pois os outros têm ainda ilusões e esperanças na vida, e eu... nem na vida nem na morte!
Tenho vivido com o coração transbordando fel, vingança, ódio, decepções, remorsos!
Pensava em consumar o meu suplício, cravando no próprio seio meu punhal empeçonhado... quando me apareceste, Norma, qual visão celeste... gémea da que outrora contemplou Jacob!
Nunca me considerei tão desditoso, nem me senti tão enfeitiçado.
. Agora, que te vejo sob minhas ordens, sem querer forçar os teus sentimentos... eu te pergunto se queres transformar o Orço (7) de minha existência no Olimpo (8) incomparável de ventura, unindo ao meu destino o teu!
Indizível angústia se apoderou das duas jovens, que aquilataram toda a gravidade de sua situação naquela fortaleza, à mercê de tal súcia, sem defesa possível, ilhadas da Humanidade!
Norma lançou um súplice olhar à irmã, que, tentando salvaguardar a liberdade de ambas, lhe disse:
- Norma, senhor, é noiva de nosso primo Esténio, e não deseja ser perjura nem pérfida!
- Não proferiste uma verdade, trigueira, pois sei que eles se amam, mas ainda persiste o compromisso de Veneza; e sua mãe forçá-lo-á a cumpri-lo.. .
- Perdoai-me, senhor, não posso compreender como outrem, que não seja eu ou Norma, aqui, tenha conhecimento da última deliberação de Esténio, ao partir para Veneza, pois somente nós duas ouvimos o que ele disse.. .
- Que vos falou ele? Quero sabê-lo!
- "Norma, somente a morte poderá separar-nos, pois eu não me casarei com alguém que não sejas tu!
Espera-me; pois, tão logo regresse, serão efectuados os nossos esponsais!"
Plínio sorriu com sarcasmo, e respondeu-lhe:
- Soubemos, ontem, que ele se consorciará em Veneza, e não em Florença, onde não irá, jamais!
- Não é bastante a notícia, sem uma prova concludente! .- observou-lhe Norma, tomada de intenso pavor.
- E se eu a obtiver, serás minha esposa?
- Sim, murmurou a infeliz, quase desfalecendo de angústia, fazendo um secreto apelo aos deuses para que as salvassem em tão dolorosa conjuntura.
Alegria satânica fulgurou no rosto patibular de Plínio, que, ébrio de contentamento, disse:
- Para provar que não tens repugnância de minha enfermidade, consentes que eu oscule as tuas encantadoras faces?
- Oh! senhor! - disse ainda Dulcina, com denodo.
Esperai, para satisfazer o vosso desejo, que venham as provas das pesquisas que ides fazer!
Um lampejo de despeito e raiva transpareceu no olhar do assassino, que, exasperando-se, disse com aspereza:
- Estais sob o domínio do chefe dos poderosos Emboscados, o qual, aqui, é maior do que o próprio Nero, em Roma!
Aqui impera a minha vontade.
Até os Filhos das Sombras - que sabem manejar, com perícia, o punhal - me obedecem sem discutir!
Sois minhas escravas, até que Norma se torne minha mulher!
- Enganas-te, Plínio, cruel, aqui há quem defenda estas míseras donzelas! - disse Cláudio, saindo do aposento em que estivera simulando grave enfermidade.
Plínio voltou-se rapidamente, fazendo um brusco movimento para desembainhar o reluzente punhal, até então escondido sob as vestes, dizendo com arrogância e cólera:
- Quem ousa, assim, desrespeitar a seu chefe?!...

(7) Orco, inferno dos gregos.
(8) Olimpo, Céu.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 8:34 am

CAPITULO XVII
Cláudio, que havia aparentado súbita e violenta enfermidade, velozmente, pela retaguarda, cingiu-o, imobilizando-o com os braços vigorosos, que se fecharam com a força de tenazes de aço.
Plínio, porém, adestrado nas pelejas corporais, tentava morder-lhe as mãos, para, no caso de o não poder matar, ao menos inocular-lhe o mal que lhe empeçonhava o organismo.
Não conseguindo seu intento, Plínio, espumejava, horrível, contorcendo-se qual serpente aos pés de um Hércules invencível; e, baqueando por fim, caiu sobre o solo, com o tórax perfurado por um punhal indiano, e o sangue jorrou em catadupa impetuosa.
Ele, com o olhar coruscante de ódio, cravado no seu agressor, disse, a custo:
- Infame... perjuro... recaiam as maldições dos deuses... sobre tua cabeça!
- Os deuses não te escutam, malvado!
Compreendemos, todos nós, os teus planos indignos, quando nos mandaste raptar estas inofensivas jovens: tu as querias para manchá-las cem o veneno que corre em tuas veias!
Ocultaste todos os tesouros que já conquistámos, sem os repartires connosco.
Prometeste, ontem, punir-me severamente, suspeitando que eu houvesse dito palavras de amor a Norma, patenteando, claramente, a tua paixão criminosa por ela!
Percebi tuas infames intenções, monstro: tu nos mandaste a Roma para ficares com o campo livre - com os nossos cabedais, e estas lindas jóias...
- Maldito!... Maldito!... também tu... morrerás...
Cheguei a ferir-te... e esta arma está... envenenada!
Cláudio empalideceu, bruscamente, contorcendo-se em convulsões espasmódicas, e caiu pesadamente sobre o soalho.
As duas prisioneiras, espectadoras emudecidas daquela trágica cena, que não durou senão alguns minutos, abraçaram-se fortemente, sem poder articular o menor comentário sobre o que haviam presenciado.
Cláudio, agonizando, com o olhar fixo em Norma, ainda pôde murmurar, com a boca contorcida:
- Adorada... fuja!
Isto é um covil de lobos!
Fujam!... Norma... Dulci...
Um último estertor saiu-lhe do peito amplo.
Olhando, até o derradeiro alento, o desmaiado rosto de Norma, seus olhos imobilizaram-se afinal e as pálpebras foram cerradas por invisíveis dedos.
Estavam mortos os dois desventurados companheiros aliados por ambições e sentimentos torpes.
Silêncio sepulcral reinou no fúnebre recinto, onde as duas irmãs continuavam estarrecidas de pavor, os olhos desmesuradamente dilatados, como se esperassem uma outra tragédia.
- Dulcina, murmurou Norma, a medo, como ainda não enlouquecemos?
- Pensemos, agora, que estamos quase livres!
Vamos, Norma, aproveitar o ensejo, e fugir - por onde eles saíram deste antro de feras!
- Um momento apenas, Dulcina; vamos rogar aos deuses para que se compadeçam destes desgraçados...
Não nos esqueçamos, nunca, de que Cláudio sucumbiu salvando-nos a honra, que vale mais que a nossa própria vida!
As infelizes, ajoelhando-se por instantes, elevaram o pensamento ao Criador do Universo, implorando-lhe piedade para os desditosos, cujos cadáveres estavam naquele recinto, e agradecendo a protecção valiosa que haviam recebido para se libertarem do jugo esmagador dos Filhos das Sombras.
As jovens, fechando as portas que davam para o interior da habitação, temendo que também os criados fossem perigosos sicários, galgaram rapidamente a escada que dava acesso ao andar superior, envolveram-se nos mantos escuros que lhes pertenciam; e, precipitadamente, desceram ao refeitório, a fim de descobrirem a saída para a galeria subterrânea.
Seus intuitos foram coroados de êxito; e, à pressa, começaram a percorrer a extensa galeria - que, certamente, devia terminar nas ruínas - quando, já mergulhadas em trevas, ouviram rumor de passos.
Um vulto negro, que mal percebiam, encaminhou-se para ambas.
- Estamos perdidas! - pensaram as infortunadas.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 7:01 pm

Um archote foi aceso e empunhado pelo indivíduo, que
não foi reconhecido pelas fugitivas, pois q seu rosto estava velado por uma negra máscara.
- Como pudestes livrar-vos de Plínio e Cláudio? - interpelou-as o indivíduo, com a voz alterada pela surpresa e pela emoção, iluminando-as com o facho.
- Mataram-se um ao outro!
Deixai-nos livres, senhor, exclamou Dulcina, abraçando-se à irmã.
O indivíduo arrancou da face, rapidamente, a máscara, e, atirando-a ao chão, falou com segurança:
- Não me temais.
Vede-me bem; sou Felício, e vim para vos salvar!
Alentadas com essas palavras, elas o interrogaram sobre a sua presença, que lhes havia de ser tão útil, mostrando-se surpresas e alegres com o seu inesperado regresso.
- Ontem - explicou-lhes ele - quando Norma desmaiou, Plínio, louco de zelos, supondo que Cláudio lhe houvesse feito alguma grave revelação ou confidência amorosa, prometeu castigar a ousadia do nosso destemido companheiro...
Entre ambos germinou a desconfiança, que se transformou em ódio indomável, cujas consequências vós já conheceis...
Plínio, desejando conquistar o amor de Norma, encarregou-me de ir a Veneza, colher informes a respeito de Esténio, de quem sou já conhecido.
Nosso cruel chefe - felizmente, agora, eliminado dentre os vivos - ordenou-me que, se ele desfizesse o contrato de casamento com a outra prima, eu o matasse!
Desde, porém, que iniciei a viagem, algo de anormal se apoderou de meu ser: uma indescritível inquietação, uma desconhecida angústia, uma sensação de vergasta ardente a fustigar-me a alma - cuja existência, até há bem pouco,
eu menosprezava - fizeram-me retroceder, contando com a sanha de Plínio contra mim... pois não tolerava que lhe desobedecessem impunemente!
Vim, pois, disposto a cometer o derradeiro crime de minha acidentada existência, ou... a ser morto, contando unicamente com auxílio dos deuses, para vos salvar!
Vejo agora que Eles nos protegeram, livrando-nos dos dois mais temíveis Filhos das Sombras.
Desde que me foste deparada pela Fatalidade, Dulcina, compreendo o abismo cavado entre nós, e já não sou o mesmo perverso de outrora...
Apavorei-me dos meus delitos, e quis retroceder, mas não posso ainda satisfazer esse desejo, porque os meus companheiros ou comparsas não permitem que algum de nós se desligue desta fatal associação dos Emboscados, pois o matam de modo implacável!
Morrer, para mim, é indiferente, mas ao que aspiro, tendo concorrido para vossa desdita e vossa reclusão, é a reabilitar-me perante ambas, arriscando a minha infeliz vida para salvar a vossa, com a honra ilibada!
As palavras de Norma, ontem, no banquete, penetraram-me o coração, dolorosamente; e nunca me senti tão desgraçado como desde essa hora, por ter compreendido o poder da Virtude, e a desventura do pecado..
Vós estais protegidas por uma força extraterrena, por uma ronda de Entidades celestes; quando vos recolhíeis ao dormitório, muitos dos mais perigosos Emboscados postavam-se à porta que se interpunha entre eles e vós, mas, porque não vos dizer a verdade que vibra dentro em mim?
Parecia-me que uma gigantesca muralha de rocha a pique, intransponível, se interpunha entre nós e vós. erguendo-se das profundidades do solo ao Infinito!
Eis porque se tornou inviolável o vosso abrigo!
Se não fora isso...
À luz avermelhada do archote Felício viu lágrimas nos belos olhos das duas donzelas.
Dulcina, sensibilizada, respondeu-lhe, com lealdade:
- Felício, nós te agradecemos a dedicação incomparável, e a sinceridade de tuas expressões...
Contamos, agora, contigo, para vencer a prova final: - salva-nos deste covil aonde uma sina fatal nos conduziu!
Os deuses recompensar-te-ão esse nobilíssimo proceder... digno dos legítimos heróis!
- Muito me conforta o que acabas de me dizer, Dulcina; mas, hoje, não é possível realizar o que me rogas.
E' mister permanecer aqui, até o regresso dos meus companheiros, a fim de que justifique os acontecimentos, a morte de Plínio e Cláudio, se não julgar-me-ão assassino de ambos; e, então, a vingança seria imediata e feroz...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 7:02 pm

Nestas condições não poderei ausentar-me, nem deixar-vos partir, para que eles se convençam da verdade.
Sem isso, iriam em nossa perseguição.
- E' horrível a nossa permanência neste local maldito, Felício! - exclamou Dulcina.
- Bem o sei, mas não me culpes do que vos sucedeu; pois fui impelido a fazê-lo sob o guante invencível do infame Plínio, loucamente enamorado de tua irmã.
- Porque não me avisaste do que premeditava ele contra nós?
- Seria pior Dulcina.
Eu seria morto, e ambas cairíeis vítimas daquele verdugo, sem um defensor sequer; pois, aqui, todos desejavam a vossa escravidão, ou o vosso amor; e, em qualquer dos dois casos, seria a vossa perdição!
- Esténio e meu tio Pôncio nos defenderiam, Felício!
- Quer isso dizer que me detestas tanto quanto aos outros sicários, Dulcina! - exclamou o jovem com tristeza indefinível
- Não, Felício, eu não desconheço que tens nobres predicados; a tua lealdade e a tua solicitude, por nós nunca serão esquecidas!
Não posso, porém, deixar de sofrer, quando me recordo de que te apresentaste à nossa vista sob a aparência de um cavalheiro digno de nossa consideração, e como irmão de uma desvelada amiga nossa.
Fomos ludibriadas. Felício; e... quanto tenho padecido por essa acerba e esmagadora desilusão!
- Sim; não deixas de ter razão no teu severo julgamento; mas, ainda não compreendeste a crueldade dos Filhos das Sombras...
Se eu desobedecesse ao chefe, estaria condenado por ele!
A princípio, quando me estabeleci em Florença, tinha apenas um intuito:
- cumprir as ordens de Plínio, mas depois... agi por conta do próprio coração! Sabes, acaso, interpretar todo o afecto que te consagro, Dulcina?!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 7:02 pm

CAPÍTULO XVIII
Dulcina escutava-o enternecida,, e não desejava magoá-lo; era-lhe impossível, porém, encorajá-lo, correspondendo-lhe ao amor, pois, de permeio havia um oceano de decepções e a lembrança vívida dos crimes cometidos por ele...
Meditou por momentos, e respondeu-lhe:
- Felício, eu te agradeço as expressões do sentimento que te domina, e, talvez, te faça erguer do fundo de um abismo aos píncaros divinos do perdão!
Esqueçamos, porém, o doloroso passado e lembremo-nos de que precisamos agir, presentemente, para alcançar a felicidade!
- Dulcina, não penses em ficar ausente, quando, justamente, abrolha em meu coração o veemente desejo de abandonar uma vida que me causa horror, aspirando a renascer para outra existência que eu desconhecia: a da Honra e do Dever!
Esqueçamos o passado odioso.
Temo, porém, que me abandones, deixando-me à beira da cratera do crime...
onde rolarei, certamente!
Não podeis partir por enquanto.
E' mister esperarmos a volta dos que foram meus comparsas.
Por um dever de lealdade - que temos de manter, sob pena de morte - quero contar-lhes o que aconteceu e repartir o quinhão dos cabedais, que toca a cada um.
Só depois que assim fizer é que me considerarei livre de qualquer compromisso para com os meus antigos companheiros!
Se me ausentar neste momento, levando-vos em minha companhia, eles irão em nosso encalço, considerando-me traidor e ladravaz...
Não me livrarei de sua vingança, e - o que seria horrível - não deixariam de vos fazer desgraçadas!
Somente tu, Dulcina, e o Nume celeste que é tua irmã, podeis salvar-me, arrancando-me à vida que ora abomino!
Se me abandonardes, porém, tornar-me-ei o chefe dos Filhos das Sombras, tão cruel quanto o outro foi; e, desse modo, arrojareis a um sorvedouro a minha alma, que agora já tem nobres aspirações e deseja salvar-se, qual um náufrago, em pleno mar tempestuoso!
Vós sois a única salvação que se me apresenta nesta hora; valeis por uma galera encantada, à qual pode ser recolhido o náufrago em instantes desesperador!...
Reinou silêncio na galeria, onde apenas era percebido o crepitar do archote empunhado por Felício.
Dulcina emudecia, sentia-se atormentada por um padecimento indefinível.
Foi Norma quem, subitamente inspirada, respondeu emocionada :
- Felício, o teu apelo é justo e comovedor...
Sacrifiquemos a ventura da liberdade, a que aspiramos com veemência, pelas amarguras de um dever bem doloroso!
Voltemos, querida Dulcina, para a prisão odiosa, para cumprir uma ordem suprema!
Compreendo toda a protecção que nos tem sido dispensada nesta região abominável...
Nossa vida, actualmente, é semelhante a esta soturna galeria, cheia de trevas; mas sabemos que lá, no exterior, há Sol, há brisa pura, há espaço, há liberdade, enfim!
Vamos conquistar a felicidade imortal de nossa alma, a golpes de sacrifício, sofrimento e renúncia!
Assim dizendo, Norma abraçou a irmã, que semelhava naqueles instantes a personificação da própria Dor; e retrocederam lentamente até o refeitório, onde se achavam os cadáveres de Plínio e Cláudio - aquele circundado de uma rubra mortalha de sangue, o segundo, com o rosto ainda contraído, ao influxo do supremo sofrimento, todo denegrido, qual se ainda usasse a mascara fatídica - tal a violência do veneno de que estava impregnado a lâmina, que lhe arrancou a vida, parecendo ter sido fulminado por um corisco, sem expelir uma só gota de sangue...
Felício contemplou o quadro sinistro que se lhe deparou, e empalideceu...
- Como compreendo, agora, toda a hediondez de uma existência repleta de impurezas, crimes e abominações! - exclamou.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 7:02 pm

Serenamente, Norma retrucou-lhe:
E' preciso que seja inabalável o teu arrependimento, Felício!
O arrependimento sincero é a prova evidente de que existe, dentro da alma, um íntegro juiz, que julga, imparcialmente, todas as faltas cometidas, absolvendo ou condenando o delinquente...
Só conquistarás a paz de consciência, trabalhando e praticando a virtude, com que se resgatam todas as iniquidades do tenebroso passado...
- Esta é a minha mais ardente vontade, Norma!
Tu és do Céu e percebes o que se passa no recesso de meu coração...
Depois, mudando de tom, disse, com tristeza:
- Ide para o vosso dormitório.
Vou providenciar para que estes desditosos desapareçam no profundo fosso onde eram atiradas... as nossas vítimas!
As moças retiraram-se, vagarosamente, para seu aposento; e só então, após tantas emoções abaladoras, prorromperam em soluços.
Quando amainou essa explosão de pranto, Norma transmitiu à irmã seus secretos pensamentos:
- Dulcina, mais uma vez venceu o poder oculto que nos protege e nos orienta para o Bem!
Tenho a alma torturada por não havermos logrado a nossa retirada deste antro; mas algo me adverte de que fizemos, hoje, o mais heróico sacrifício de nossa existência!
Entre a liberdade - que me parece estar almejando há séculos, e, para mim, representa a felicidade suprema - e a angústia desta reclusão, imolamos a primeira à segunda.. .
Dir-se-ia que, quando decidi voltar para este sepulcro, onde estamos enterradas vivas, ouvi. distintamente, no íntimo de meu ser, uma vibrante voz dizer-me: .
- "Salvai esta alma, que, sem o vosso apoio, sem os vossos conselhos, resvalará no torvelinho dos mais hediondos crimes... ou então, faltar-vos-á a protecção dos invisíveis legionários do Bem e da Virtude!
Deter uma alma à borda do abismo, sustendo-a pelas vestes rotas e frágeis como neblina, com ingente esforço, eis um dos maiores méritos que o Espírito humanizado pode conseguir!
Sus, irmãs queridas!
Estais granjeando um tesouro, com lágrimas - moeda dos desventurosos, a única que tem valor nos Reinos siderais, e com que se pode conquistar a própria liberdade, ou liberdades e venturas imorredouras!"
- E' estranho o que se passa contigo, Norma querida!
Os deuses que nos protejam, para que estes conselhos recebidos por ti não se transformem em ciladas e para que continues com a tua clarividente inteligência integral; pois, com tantos golpes morais, tudo podemos recear!
- Eu confio, sempre, Dulcina, em uma intervenção superior, que nos há-de salvar!
Ambas permaneceram por algumas horas silenciosas, alheias ao que se estava passando naquele covil de malfeitores .
Ninguém havia descoberto ainda, naquela fortaleza - construída toscamente de pedras, arrancadas à serra em que foi erguida, do lado oposto ao desfiladeiro próximo - que existissem nas galerias subterrâneas, que se entrecruzavam, diversos esconderijos, escavações profundas, onde muitos caminheiros, incautos e opulentos, foram sepultados, sem que seu paradeiro jamais houvesse sido descoberto. ..
Felício abriu a porta que dava acesso às dependências inferiores do prédio, e chamou pelos dois servos - que haviam percebido a discussão de Plínio e Cláudio, mas ainda ignoravam o seu fim trágico - e disse-lhes:
- Venham auxiliar-me a fazer desaparecer estes dois infelizes, que se mataram em um ímpeto de ódio feroz!
- E onde se acham as Rainhas? - interpelou um dos criados, suspeitando de Felício.. .
- Elas se acham ainda prisioneiras, no andar superior; e aguardam a vinda dos companheiros, para decidirmos sobre seu destino.
Eu me conservarei aqui, para as defender, com este punhal, herança de Plínio, que se gabava de nunca haver ferido alguém sem lhe causar morte instantânea...
Eis porque ele se supunha invencível:
a lâmina desta arma é venenosamente mortífera!
Os dois servos cumpriram-lhe a ordem; e, depois, fizeram a limpeza do refeitório.
Felício meditou sobre a grave situação dos que se achavam naquele reduto do crime, aliados pela fatalidade do destino, e resolveu ir em busca das jovens para as fazer compartilhar de suas penosas cogitações e fundadas suspeitas.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 13, 2022 7:02 pm

- A nossa permanência, aqui, não é tranquilizadora...
Receio qualquer traição dos criados - que foram temíveis associados.
Eles é que compram os víveres e os preparam.
Eram afeiçoados a Plínio e não sei quais os seus sentimentos a meu respeito...
Eles me interrogaram sobre ambas, fazendo-me despertar a desconfiança de que tramam alguma armadilha contra nós, antes que os outros regressem de Roma.
Temo até a alimentação que eles vão preparar.
Já reservei frutas, pão e vinho, que vou trazer-vos para nossas refeições.
Vou mostrar-vos como podereis fugir deste prédio pelo lado oposto ao das ruínas.
Tenho que ficar vigilante, até que voltem todos, e estou receoso de que não creiam na minha sinceridade e me acusem de haver matado nossos companheiros; pois a maior parte do tesouro desapareceu...
Aqui estão as chaves de diversos compartimentos.
Se me tirarem a vida, ireis até à estrada real; e, reunindo-vos a alguns peregrinos, podereis voltar a Florença.
As donzelas comoveram-se com a prova de lealdade e fraterno interesse, que ele lhes dera, e Norma lhe disse:
- Felício, sempre te seremos gratas pelo que acabas de fazer, revelando-nos os teus temores e os meios de que lançarmos mão para sair deste suplício...
Antes, porém, que se possa realizar algum imprevisto acontecimento, eu te rogo que envies um dos servos a Florença, levando notícias nossas a nossos parentes, Esténio e seus pais.
- Sim, isso até nos convém; pois, assim, só teremos que temer um dos criados, desde que se ausente o outro!
Uma das jovens apenas escreveu em um pequeno rectângulo de pergaminho:
"Prezado tio Pôncio.
Estamos reclusas, mas não infamadas.
Fomos vítimas de uma odiosa perfídia, mas, já antevemos a nossa alforria.
Muito temos padecido, mas continuamos dignas de vossa amizade, da de Esténio e da de sua progenitora. Adeus".
Felício, depois de haver prometido generosa recompensa ao emissário, quando regressasse, ordenou-lhe que lhes trouxesse notícias dos parentes de Norma e de sua irmã.
Em seguida, cumprindo o que prometera às encarceradas, entregou-lhes diversas chaves e mostrou como poderiam sair, sem ser pressentidas, se houvesse disso necessidade premente.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122461
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 8 Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Conteúdo patrocinado


Conteúdo patrocinado


Ir para o topo Ir para baixo

Página 8 de 16 Anterior  1 ... 5 ... 7, 8, 9 ... 12 ... 16  Seguinte

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos