LUZ ESPÍRITA
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:36 pm

— Meu Deus, murmurou ela, compadecei-vos de mim.
Como se esta pequena oração tivesse sido atendida, sentiu-se invadida por um agradável torpor e adormeceu.
No dia seguinte, embora se sentisse melhor, conservou-se deitada.
Pouco antes do almoço, apareceu no solar pedindo auxílio um mendigo andrajoso. Acolhido caridosamente, demorou-se em palestra com a cozinheira e manifestou desejo de falar à proprietária, alegando que ela já o conhecia. Achando-se Plotino ausente, foi chamado Samuel que recusou-se a perturbar o descanso da castelã e despediu o mendigo com um generoso donativo.
Enquanto isso. Emérita encerrada em seu quarto, cismava. Reconstituiu mentalmente o bilhete que Zenóbio ocultara no seu manto, cujos termos repetiu pela centésima vez. Arrependeu-se de havê-lo destruído, parecendo-lhe haver praticado um ato de traição ou covardia. Lembrou-se do momento em que, retendo na palma da mão, por momentos, as leves cinzas dissera consigo mesma:
— Eis a que está reduzida a minha vida terrena: um pequeno punhado de cinzas.
Subitamente, um calafrio percorreu-lhe a espinha e ela sentiu ecoarem dentro de seu cérebro, como que provindas do infinito, as seguintes palavras, que reconheceu serem de seu pai:
— Filha do meu coração, porque vacilas, porque aninhas em teu espírito as serpes da incompreensão? Aproxima-se o ponto culminante da prova que vens atravessando e vejo-te despreparada! Estás à beira de um abismo! Um passo em falso e resvalarás num báratro de trevas e sofrimento horrível! Filha, é o teu destino, ou antes, o teu futuro, que está em jogo. Esforça-te por resistir à tentação, a fim de que possamos auxiliar-te a vencer. Não penses que a morte do corpo te libertará dos prazeres, ao contrário, multiplicá-los-á ao infinito. Ouve bem, minha pobre filha; estás na encruzilhada de um caminho que se bifurca e que leva a dois infinitos: da dor ou da glória. À entrada do primeiro está Argos, atraente e enganador. As rosas que avistas são ilusórias e transformar-se-ão em espinhos lacerantes. À frente do segundo está o dever, a permanência no teu lar semidestruído. Os espinhos que neste avistas transformar-se-ão em rosas. Não te deixes portanto, enganar pelas aparências. Se pretenderes fugir ao teu dever de mãe, que te ordena a resignação e o auto-sacrifício, terás por companheiro de jornada o desespero, o vexame, o arrependimento, o remorso e a desilusão. Pensas que existe a ventura sobre a terra? A felicidade é um sentimento delicado como uma flor, que só desabrocha nas almas virtuosas e honestas, cuja consciência esteja perfeitamente tranquila. Se te suicidares ou abandonares o teu próprio lar, cometerás um dos mais abomináveis crimes que alguém possa perpetrar no Planeta da Lágrima: o da deserção. Não pode haver felicidade no erro. Tens um coração afectuoso e sensível — ávido de carinho que não encontraste ainda. Só consideras verdadeiro o amor de Argos, que te manifesta com veemência, mas que, na presente situação, te conduziria ao abandono do lar e à desventura total. Não convém que aceites as suas propostas loucas e deves repeli-las com todo o vigor. Projectas abandonar o convívio dos teus por um amor insensato, que te levará à perdição porque é condenado por Deus. Não faças semelhante loucura.
Emérita ouvia atenta e admirada as palavras que, do outro lado do túmulo, lhe dirigia o seu progenitor. Estabelecendo-se a pausa necessária para o proveito da conversação, Emérita obtemperou:
— Porque chamais de louco a este afecto sincero que nos atrai um para o outro?
Não temos acaso o direito de amar e procurar ser felizes?
— Filha, não raciocines parcialmente, pois enganas-te a ti mesma. Não vês que, pelo matrimónio, perdeste a oportunidade de corresponder ao amor de Argos? Com o casamento, a tua situação mudou completamente. És agora mãe de família, com deveres indeclináveis. Assumiste perante Deus e a tua própria consciência, um compromisso solene e irrevogável. Não podes abandonar a tua cruz no meio da jornada. Lembra-te de que o Divino Jesus deu o exemplo de submissão ao dever, conduzindo o seu madeiro até o cimo do Calvário. Se abandonares a família para fruir esse amor criminal, serás mais desditosa ainda do que presentemente, porque se agora desfrutas de relativo conforto material e moral, com aquele crime perderás um e outro.
Não faças como as crianças que, perseguindo uma borboleta, deixam-se cair no precipício.
— Perdão meu pai! Não compreendes que o meu caso ó diferente, porque já fui abandonada pelo meu esposo, que parece odiar-me? Os meus próprios filhos me desprezam!
— Não, Emérita. Todos te amam ainda. Sua atitude retraída traduz reserva e desconfiança e um justo ressentimento motivado pela tua conduta irreflectida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:36 pm

Acolhendo prazerosa os ousados galanteios do teu antigo namorado, causaste-lhes uma amarga decepção. Acham-se agora em expectativa dolorosa e, conforme for o teu proceder, eles se lançarão em teus braços ou apontarão a porta da retirada ultrajante.
Necessitas recobrar o antigo conceito junto às almas ilibadas que te cercam. Se te mostrares arrependida todos te perdoarão, mas é preciso que te humilhes e proves por actos que as suas suspeitas são infundadas. Esquece as palavras contundentes pronunciadas pelo teu esposo. Impulsionado pelo ciúme, não há coração que não cometa algum desatino. Quem quer ser perdoado deve começar perdoando. Esquece pois a ofensa e consagra o restante da tua existência ao mais belo de todos os ideais e ao mais elevado de todos os sentimentos: o da maternidade. Deves ser para os teus filhos um modelo de virtudes morais, para que eles se inspirem no teu exemplo e se elevem e se dignifiquem pensando em ti.
— Eles somente seguem os conselhos de Plotino e fitam-me com indiferença ou talvez com desprezo, como se eu já houvesse conspurcado o nosso lar, disse Emérita em pranto.
— Porque perceberam que amas o aventureiro ousado e estás desejosa de abandoná-los para seguir o intruso.
— O meu afecto por Argos estava adormecido, parecendo morto, mas despertou da letargia como sucede aos catalécticos, às vezes, dentro de sua própria sepultura. Eu porém estava resolvida a sacrificá-lo pela segunda vez nesta existência, se diversa fosse a atitude de Plotino. Este, entretanto, tornou-se um déspota, ofendendo-me até o âmago com a sua atitude. Abandonou o leito conjugal, deixando-me sozinha neste imenso quarto. Acho que tenho o direito de tomar uma desforra correspondendo ao amor de quem, apesar de menosprezado, continua a consagrar-me intenso afecto.
— Não compreendes que o que supões ser intenso afecto pode não passar de pretenso afecto? Às vezes as palavras de amor ocultam um plano de vingança. O despeito arma ciladas traiçoeiras, com as quais o indivíduo desprezado se vinga daqueles que, a seu ver, lhe roubaram a felicidade. Argos te ama, mas tem contas a ajustar contigo. O amor de certas pessoas faz sofrer mais do que o ódio de outras, que sabem perdoar. Trata pois de reconciliar-te com teu marido, que não te odeia, como supões, antes continua a amar-te. Ele intimamente deseja que permaneças aqui. Seu ciúme exacerbado comprova a intensidade do amor que te dedica, sente-se no entanto ofendido ao ver que amas o seu rival. Ele é sensato e sobretudo não deseja desonrar o nome dos vossos filhos, dois tesouros divinos cujo valor ainda não percebeste e que tens a obrigação de devolver a Deus tão puros como os recebeste, e não salpicados da lama do descrédito.
— Eles deixaram de consagrar-me verdadeiro amor e estão de acordo com o pai.
Perderam a afeição que me tinham e percebo que não tenho desejo nem ânimo para lutar contra essa injustiça, mas ao contrário, lutarei de bom grado contra o destino e arrancar-lhe-ei o quinhão de felicidade que ele me recusa.
— Quem ousa pelejar contra o Destino, para ser esmagado sob as rodas da seu carro invencível e triunfal?! Conforma-te ou serás triturada em rios de sangue! Não compreendes que estás pondo lenha na fogueira que te queimará? Não sejas leviana, filha; não desencadeies a guerra entre os dois rivais, ambos violentos e desejosos de eliminar o inimigo. O ódio intensificado pelo ciúme cega as almas bem intencionadas.
Plotino tem se esforçado para progredir espiritualmente e procura aprender as lições de Jesus, mas, apesar disso, ainda se deixa arrastar pela cólera e esta abre a porta de todas as desgraças. Cuida portanto, minha filha, em não praticares nenhum ato susceptível de agravar a situação. A tragédia ronda a tua casa e o menor deslize teu, lhe dará entrada. Adeus.
A infortunada castelã começou a soluçar e assim esteve por longo tempo.
Bruscamente ergueu-se, aproximou-se de um pequeno santuário onde havia uma luz permanentemente acesa, em homenagem a entidades santificadas entre elas, Artemis, a deusa da Justiça. Recordou que fora naquela chama que incinerara o bilhete amoroso de Zenóbio e suspirando ajoelhou-se.
— Amparai-me nesta emergência, murmurou. Estou exausta. Inspirai-me, pois minha razão vacila. Sinto o cérebro dolorido e incapaz de raciocinar. Perdi o amor de meus filhos e o meu esposo me abandonou. No meio de tanta amargura, um amor que julgara morto ressurge avassalador no meu peito e me promete uma felicidade que eu jamais tive. No entanto, recebo ordem de dizer não ao seu aceno. Oh, dai-me forças para resistir. Após largos momentos de oração e sentindo-se aliviada, chamou a empregada e determinou que lhe fosse trazida uma refeição, após a qual, abrindo uma das portas laterais do quarto, que dava para o jardim, foi estacionar num banco que havia perto de um pequeno lago.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:37 pm

Engolfada em profunda meditação, olhava, sem ver, o chafariz que brotava de um golfinho de mármore, quando notou a presença de um mendigo, de aspecto humilde e deprimido, que se acercou com demonstrações de respeito e assim falou em voz baixa:
— Nobre senhora, sou um pobre necessitado e desejo falar à dona deste alcáçar...
— Sou eu mesma! respondeu Emérita com voz débil.
— Será crível o que acabo de ouvir, senhora? interpelou-a o suposto mendigo com espanto. Estais muito mudada, e quase não vos reconheci.
— Sim, esta é a dolorosa verdade. Sou um espectro da que foi ao Solar de Apolo com ares de rainha. Tenho sofrido muito desde que lá compareci. Que desejas?
— Nobre Emérita, ouvi-me. Trago uma mensagem oral de meu amo e senhor
Argos Zenóbio. Ele vos saúda atenciosamente e informa que não vos escreve com receio de vos comprometer, pois da outra vez que aqui estive fui recebido com desconfiança por um jovem, que parece ter pressentido o motivo da minha vinda a este local e me despediu com valiosa esmola.
— Diz-me com presteza o que Argos manda transmitir-me:
Relanceando o olhar em torno, para certificar-se de que não havia ninguém nas proximidades, o indigente falou em tom de segredo:
— Eis o que o senhor do Solar de Apolo vos manda dizer. Meditai vossa resposta pois que a quer decisiva. Ele aqui virá ao alvorecer do dia de amanhã, antes do nascimento do sol. Hoje à noite fundeará ao largo um barco na qual, se quiserdes acompanhá-lo, ele vos conduzirá a um país distante. Caso contrário, ele apenas vos dirá adeus e partirá para todo o sempre!
Emérita sentiu-se desfalecer. A emoção fazia-lhe palpitar o coração em violentos socos, impossibilitando-a de falar.
— Qual a vossa resposta, senhora? insistiu o emissário.
— Diz-lhe que vou, decidir esta noite. Ainda não tomei uma resolução por amor a meus filhos!
— Compreendo, senhora, o quanto tendes padecido. Nunca vi uma pessoa fazer tanta diferença, em tão poucos dias, como vós.
— Tenho sofrido demais. Agora vai, apressa-te para que não te veja alguém do calabouço em que vivo! Adeus! Amanhã de madrugada estarei aqui.
O mensageiro de Argos acelerou os passos e ainda bem não havia desaparecido na curva da estrada, Samuel surgia, inesperadamente, ao lado de sua mãe. Depois de haver-lhe beijado a mão, disse-lhe com tristeza infinita:
— O "mendigo” a quem já dei cem denários outro dia voltou sorrateiramente, mãe!
— Quem necessita de pão, no lar sem recursos, meu filho, às vezes não tem outro remédio senão recorrer à caridade pública.
— Sim, mas a quantia que eu lhe dei era suficiente para ele não precisar importunar-nos tão cedo outra vez. Que queria ele?— Um auxílio.
— Tínheis algum dinheiro para lhe dar? tornou Samuel com curiosidade crescente.
— Não, por isso ficou de voltar outro dia. É um antigo criado de meu falecido pai.
Samuel fitou-a em silêncio, com um olhar em que se lia tristeza e reprovação.
Depois, para não constranger mais sua mãe com perguntas embaraçantes, interrogou:
— Estais melhor?
— Um pouco, mas meu desejo é desaparecer, dar um. fim a esta vida de martírios morais.
— Mamãezinha, vossas palavras me horrorizam!
— Por que? Sou demais na minha própria casa! Vou livrar-vos de preocupações e desventuras entregando-me àquela que não despreza ninguém: a amiga dos desventurados chamada Morte.— Estais louca, mãe? Quereis buscar a paz para vós. e deixar no desespero os que vos adoram?
— Quais são os que me amam, Samuel, se estou sendo menosprezada como se tivesse praticado um crime execrável?
— Todos aqui vos amam, minha mãe. Vós é que vos isolais e estais descontente connosco. Quereríeis que aplaudíssemos a maneira por que recebestes as excessivas demonstrações de apreço de Argos Zenóbio? Papai está justamente ressentido da atenção que dispensastes a esse homem, que não ocultou a simpatia que tem por vós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:37 pm

Deixastes-nos sozinhos enquanto dançáveis alegremente com esse aventureiro. Uma senhora casada não deve pôr o seu esposo em segundo plano, em público.
— Queriam que eu tratasse mal a um velho amigo da minha família só porque manifestou prazer em rever-me e tratou-me com fidalguia?
— Mãezinha, eu não vos condeno nem sou vosso juiz. Cumpre-me tão somente amar-vos, amar-vos sempre. Mas, assim não pensa o meu prezado pai que há vários dias deseja saber a identidade do mendigo que aqui esteve e que não é conhecido de ninguém. Felizmente ele não o viu conversando convosco há poucos momentos, senão teria vindo afrontá-lo, pois conjectura que seja um falso pedinte mandado por Zenóbio.
Emérita sentiu-se vacilar, mas sem trair na fisionomia o susto que lhe ia n’alma, respondeu com calma aparente:
— Teu pai calunia-me, Samuel! Viver assim é impossível. Vou abreviar os dissabores que ora nos torturam. Deixar-vos-ei livres.
— Mãe, que pretendeis dizer? Então julgais que se eu e Anália vos perdêssemos, ainda poderíamos ser felizes?
— Se não puderdes ser venturosos agora, sê-lo-eis mais tarde. Teu pai, principalmente, triunfará com os argumentos que julga invencíveis.
— Voltemos ao solar, mãe e bani da mente tão aziagos pensamentos. Estou alarmado com as ideias que acalentais ultimamente.
— Amanhã, meu filho, tudo estará terminado.
— Silêncio, mãe, pelo amor de Deus. Não me tortureis com semelhantes palavras, sinto-me extremamente desditoso.
Samuel estreitou longa e ternamente sua genitora, soluçando fortemente. Com os olhos turvos de lágrimas e voz entrecortada falou:
— Não, não! Queremos que fiqueis sempre connosco!
— Se assim pensasses não terias aprovado teu pai, que me martiriza. Todo o crime que cometi foi ser pobre! Uma jovem sem fortuna nunca deverá desposar um fidalgo ou um ricaço, pois jamais poderão ser felizes. Os ricos quase sempre se deixam cegar pelo orgulho e pensam que a moça, por ser pobre, é inferior a eles e tratam-na como escrava e acham que dando-lhe de comer já fazem muito!
— Talvez tenhais razão, mãe querida, respondeu Samuel, mas crede que em idêntica situação eu jamais farei de escrava a eleita do meu coração. Se me acontecer casar com uma donzela sem riqueza, mas digna do meu afecto, terei o máximo prazer em proporcionar-lhe conforto e nunca lhe lançarei em rosto a sua pobreza. Mesmo porque, às vezes, numa criatura humilde e sem recursos se esconde uma alma grande e rica de dons espirituais. Jesus escolheu os seus discípulos entre os operários e pescadores, embora não desprezasse os ricos.
— Já tens outra nobreza, meu filho, a única verdadeira: a do espírito.
Infelizmente teu pai não pensa da mesma forma. Agora, agravaram-se as nossas dissensões de tal modo, que não vejo outra solução além da extrema.
— Acaso ainda premeditais o suicídio, mãe? Quereis perder vossa alma e desgraçar para sempre vossos filhos?
— Pretendo tomar a resolução suprema dentro de poucas horas e se tal acontecer, tu e Anália fareis preces em benefício de minha alma para que Deus me conceda o perdão.
— Mãezinha, se me amásseis não me faríeis sofrer assim! Vou falar a papai do que ocorre convosco. Sabendo a verdadeira situação é impossível que ele não intervenha com bondade, de maneira a evitar esta desgraça.
— Não, meu filho, não adiantaria. Teu pai é inabalável. Um dia me darás razão.
— Mãe, suplico-vos: aguardai dois dias. Dai-me um pouco de tempo para normalizar as coisas! Prometeis não atentar contra a vossa existência até depois de amanhã?
— Sim, respondeu Emérita com voz débil e indecisa.
* * *
Pesava sobre o Solar de Minerva, um silêncio de morte. A noite caíra sombria e tétrica como nunca. Ninguém ousava falar, e quando o fazia era em voz baixa, como é costume nas câmaras mortuárias. Encerrado em seu gabinete de trabalho, Plotino abismava-se em conjecturas sobre os fatos ocorridos e que são do conhecimento do leitor. Por volta das dez horas, Samuel dirigiu-se ao encontro de seu pai. Bateu levemente na porta. Como não obtivesse resposta, abriu-a devagarinho, vendo que seu pai, absorto, não ouvira o toque.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:38 pm

— Dá licença, meu pai?
— Entra, Samuel. Queres falar comigo?
— Sim, desejo falar-vos seriamente. A questão que surgiu entre vós e a querida mãe, desde a nossa malfadada ida ao Solar de Apolo, está assumindo um carácter cada vez mais grave e assustador.
— Já sabes avaliar a gravidade das situações, tendo apenas dezassete anos, Samuel?
— Sim, e estou muito preocupado com a marcha dos acontecimentos, que em vez de se desanuviarem parecem carregar-se mais. Não julgueis que estou fantasiando desventuras imaginárias. Estive conversando com mamãe e verifiquei que o seu estado de espírito é de desespero e que ela pode praticar uma loucura irreparável se não forem tomadas precauções.
— Diz-me, filho, o que soubeste. Estou alarmado com as tuas palavras!
Samuel, com os olhos toldados de lágrimas, expôs com lealdade o que se passava, excepto o encontro que tivera com o suspeito mendigo, para não agravar a situação materna. Confidenciou-lhe que sua amada progenitora premeditava suicidar-se na manhã do dia seguinte, pois não suportava mais viver desprestigiada em seu próprio lar; que com esforço, obtivera dela, promessa de não praticar nenhum atentado contra a própria vida naqueles dois dias. E rematou:
— Compadecei-vos dela, meu pai. Reconciliai-vos, para felicidade de todos e a fim de que volte a alegria e a paz a este solar, outrora tão agradável. Não posso conformar-me com a separação dos dois entes que mais amo sobre a terra: meus bondosos pais. Reflecti bem na seriedade do que está se passando e com um gesto generoso ponde fim a todo este mal-estar. Ensinastes-me a amar a Jesus e a sua doutrina de amor e perdão. Suas lições não dizem: perdoar sempre, esquecer todos os agravos? Chegou a hora de demonstrardes por actos que adoptais semelhantes princípios. Não sois vós mesmo que costumais dizer: não poderá haver felicidade na terra se os homens não se perdoarem reciprocamente? O perdão foi feito para quem erra e é concedido pela parte que foi ofendida. Mostrai que a razão está do vosso lado, perdoando à mamãe sua possível falta e tomando a iniciativa da reconciliação. — Meu filho, exclamou Plotino emocionado, levantando-se e abraçando Samuel em pranto, eu te considerava ainda criança, até este momento. Mas agora reconheço que já tens critério suficiente para aconselhar até um varão sensato, como eu me considero. Há dias que não discirno mais satisfatoriamente o que se passa no meu íntimo, tal o entrechoque de ideias que lavra no meu cérebro. Estou a ponto de enlouquecer, pois às vezes se estabelece tamanha confusão no meu pensamento que receio perder a luz da razão. Mas, tuas palavras vieram ajudar-me a adoptar uma orientação justa. Ainda neste caso parece que a salvação está, como sempre, em Jesus...
mesmo quando temos razão, devemos ceder, a bem da concórdia...
— Sim, querido pai, cedei, nós vos pedimos. Vereis como desaparecerá a lamentável incompreensão existente entre vós e a dedicada mãezinha. Salvai-a do suicídio que planeia.
— Filho adorado, farei como pedes. Amanhã de manhã, irei ao encontro de tua mãe e, com sinceridade e doçura, abdicarei das condições que impus para a sua permanência neste lar e, se ela manifestar desejo de reconciliação, acederei em recomeçar vida nova, em pé de igualdade, com esquecimento do passado.
— Pai, não sei como agradecer-vos. Tirastes um peso enorme de sobre o meu coração. Tenho um medo horrível de que mamãe se suicide. Porque não lhe falais agora mesmo?
— Porque é tarde. A luz do seu quarto está apagada; deixemo-la descansar; mas amanhã sem falta falar-lhe-ei. Eu também estou penalizado do sofrimento dela, que se espelha no seu impressionante abatimento físico.
— De qualquer modo, permanecei vigilante e atento, de modo a prevenir algum ato de desespero.
Plotino, comovidíssimo, abraçou novamente o filho bem amado, dizendo-lhe:
— Foi bom teres me prevenido do que se passa com tua mãe, a tempo de evitar o seu suicídio. Há dias já que o meu coração vinha me pressagiando desgraças irreparáveis, sem que eu pudesse atinar quais fossem. Tenho a impressão de que este solar está prestes a ser abandonado por todos os que o habitam.— Pai querido, vossos pressentimentos confirmam muitas palavras. Conjurastes o perigo que nos ameaça, sendo nobre e generoso e tomando a iniciativa da reconciliação com mamãe.
— Sim, meu filho, e obrigado por teus prudentes e nobres alvitres. As tuas revelações chegaram a tempo e prometo que amanhã à primeira hora irei procurar tua mãe e tentarei a nossa reconciliação. Não devemos ser irredutíveis em nossas opiniões.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:26 am

Conquanto a razão me assista e o primeiro passo no sentido da rearmonização devesse partir dela, quero fazer este sacrifício e serei o primeiro a estender a mão.
— Eu também vos agradeço, meu pai, o terdes atendido ao meu pedido. O fogo se apaga com água, o rancor se extingue com o amor. Afastemos pois, as nuvens negras que pairam sobre as nossas cabeças. Às vezes me parece ter havido um influxo maléfico, de origem espiritual, para que este lar, sempre tão risonho, se apresente de repente inteiramente transformado. Talvez sejam adversários de outras existências que nos perseguem e tramam a destruição do nosso grupo familiar...
— Crês realmente, Samuel, na possibilidade de sermos influenciados por espíritos, tu que eras há pouco uma criança? interpelou-o Plotino, surpreso com as expressões do filho.
— Sim, meu pai, eu creio na possibilidade de recebermos inspirações e influências espirituais. Todo pensamento atrai uma resposta que lhe é afim. Se pensamos em Deus, ele nos responde e nos tornamos melhores. Se pensamos em coisas más e nelas nos comprazemos, só podemos atrair influências semelhantes e portanto nefastas. Pelo menos foi o que nos ensinou o nosso mestre de filosofia, que demonstrou haver perfeita identidade entre os princípios das vibrações simpáticas de Pitágoras, e as lições de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre o poder da prece. Estou convicto de que nossas palavras e actos preparam o nosso futuro. Às vezes uma simples vida na terra não permite a realização dos nossos desejos e ideais. Voltamos então, em outro corpo, e conseguimos concretizá-los. Esta teoria é a única que concilia a Infinita Justiça com a Infinita Misericórdia, uma vez que todas as qualidades boas devem ser infinitas em Deus. Às vezes tenho a impressão de já ter vivido na Ásia, onde fui sacerdote hindu, encarregado de guiar para Deus as almas que pendiam para o abismo do erro. Recentemente, numa reunião cristã de domingo, o bispo recebeu o dom da profecia e tomado por um espírito anunciou-me que nesta encarnação estou incumbido da mesma elevada missão de guiar para Jesus muitos espíritos que fraquejaram nas batalhas da vida!
Plotino fitou o filho com crescente admiração; não parecia ele um simples adolescente mas um sensato e experimentado varão que já houvesse vivido mais de meio século no plano material.
Samuel, com apenas dezassete anos de idade, tinha estatura elevada, pouco musculoso, tez morena, olhos grandes, negros e lúcidos; sua voz possuía um timbre persuasivo e agradável, cuja vibração penetrava no íntimo dos corações e tornava-se inesquecível, ouvida uma só vez que fosse! Naqueles momentos memoráveis, seu aspecto era o de um inspirado oráculo do templo de Delfos; havia um estranho fulgor em seus olhos, que parecia desvendar o íntimo dos seres, devassar os corações e o mistério dos destinos.
— Desconheço-te, meu filho, nestes momentos inesquecíveis! exclamou Plotino.
Tu pareces realmente um dos inspirados hierofantes que sondam os corações e desvendam os enigmas do porvir. Sob tua esclarecida inspiração, acabo de banir do meu íntimo, sentimentos menos nobres que me tornavam implacável e sofredor. Aceito os teus conselhos,
Samuel, e ponho-me ao teu dispor, para tentarmos recompor o nosso lar antes que seja tarde demais.
— Como sou feliz, meu pai! Deus vos recompensará e fará cair sobre a vossa cabeça a sua bênção. Se tendes incontestáveis motivos de pesar, olvidai-os neste momento quase trágico, e tereis a maior das recompensas: a paz do espírito, a isenção de remorsos e a aprovação da vossa própria consciência! Ademais, mamãe não chegou a cometer nenhum crime, senão o de não haver repelido as gentilezas de um antigo admirador, talvez temendo ofendê-lo, o que excitaria os seus ímpetos de vingança e poderia provocar uma luta armada entre dois velhos amigos e companheiros de infância.— Tens razão. Confesso-te que só com o fato de ter tomado esta resolução, já me sinto melhor e recuperei minha capacidade de discernimento. Irei dentro de poucos instantes procurar tua mãe a fim de alijar de vez este peso sinistro que me oprime o coração e pressagia desgraças.
— Como sois bom, meu pai! Sinto-me também aliviado, pois é grande conforto, quando a desventura nos visita, sabermos que fizemos tudo para barrar-lhe a entrada.
— Reconheço agora, Samuel, que o meu procedimento com Emérita, foi um pouco rude! Mas, não pude refrear a minha revolta contra o modo de agir de tua mãe para com Argos Zenóbio. Compreendi nitidamente pelo delíquio de Emérita no salão, e depois pelo abalo por ela demonstrado, que ela ainda ama aquele histrião. Percebi a emoção de ambos quando, enlaçados, ela empalideceu e quase desmaiou nos braços do ousado aventureiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:26 am

— Perdoai-me, pai querido, pois estais dominado pelo zelo e suspeitais o mal onde ele não existe. Talvez não se tratasse senão de uma indisposição causada pelo calor reinante. Sabeis que minha adorada mãe sempre teve conduta irreprochável e é digna da vossa veneração!
— Não posso dar-te uma resposta positiva, meu filho, pois tenho observado pessoas que eram modelo de virtude, enlouquecidas pela paixão, praticarem os maiores desatinos. Homens casados, que sempre foram bons pais de família, arruinaram-se por amor a meretrizes, e mulheres honradas que abandonam tudo para seguir aquele que as enfeitiçou. O coração humano é incompreensível.
— Mas querido pai, se vossa esposa estivesse já com a alma corrompida pela paixão ou dominada por um afecto criminoso, seria indiferente ao vosso proceder e não sentiria tanto a vossa aparente indiferença por ela.
— Não deixas de argumentar com critério, Samuel, e nestes dias de acerbos dissabores, tens sido o conforto do meu coração.
— Meu paizinho, vou revelar-vos algo que talvez vos surpreenda: conservo nítida lembrança de uma dolorosa experiência, semelhante à que estais atravessando, e que só pode ter-se verificado outrora, em outra vida terrena. Por isso trago a noção intuitiva de que qualquer violência em casos tais, é prejudicial e pode acarretar danos irreparáveis. Não vos deixeis arrastar pela paixão a algum gesto menos sereno, por muito justificado que pareça. Fazei como dissestes: sufocai vossos ressentimentos e sede generoso para com a vossa desditosa consorte, restaurando assim, a paz em nossa família.
Plotino baixou a fronte meditativa e após alguns momentos de silêncio murmurou:
— Será feito como desejas. Farei as pazes com Emérita, se em verdade ela te manifestou esse desejo. Todavia, dentro de poucos dias iniciarei uma longa viagem ao Oriente, deixando por tempo que não posso prefixar, esta casa sob a tua exclusiva responsabilidade! Há documentos preciosos, na arca que se acha no compartimento sempre fechado, que serve de arquivo, no andar de cima, os quais comprovam a legitimidade da posse destas terras, para o caso de surgir alguma dúvida ou questão judiciária, como já sucedeu há tempos. Quero tentar uma nova experiência que decidirá para sempre da nossa vida conjugal. Ficarás como verdadeiro senhor deste castelo, sempre vigilante e solícito e doravante serás o responsável por tudo o que ocorrer durante a minha ausência.
— Que dissestes, pai? interpelou-o o jovem, alarmado, quase em pranto.
Pretendeis abandonar-nos? Quereis retirar dos vossos ombros possantes o fardo das responsabilidades deste lar, colocando-o sobre os de um adolescente?
— Sim, mas não por egoísmo e sim porque compreendo que tens o espírito evoluído e melhor do que eu, saberás reorganizar a nossa casa. Deixarei o campo livre para que possas fazer o que eu não pude ou não soube fazer, a bem da harmonia da nossa família e do progresso deste recanto. Quando eu regressar, estarão as coisas serenadas e ser-me-á mais fácil recomeçar minha vida doméstica. O tempo ajudará a cicatrizar estas feridas. E pode ser também que a minha ausência permita a Emérita deliberar com mais liberdade sobre o que efectivamente deseja fazer.
— Então, falou Samuel alegremente, permitis que eu transmita agora mesmo a minha cara mãezinha, o resultado da nossa cordial palestra?— Sim, podes fazê-lo quando quiseres. Confio plenamente em ti, filho do meu coração.
Samuel beijou a destra paterna e retirou-se sem ruído.
Fatigado mas satisfeito, após a longa conversação mantida com o filho, Plotino apagou a lâmpada com um sopro e deixou-se cair no leito para repousar.
***
Enquanto Plotino e Samuel conversavam, vejamos o que acontecia a Emérita.
Recolhida ao seu aposento, em estado de espírito contraditório e vacilante, difícil de descrever, manteve-se largos minutos pensativa. Depois, levantando-se, apagou a luz e silenciosamente dirigiu-se ao quarto da filha. Esta, que se conservava acordada, apesar do adiantado da hora, levantou-se com vivacidade e beijando carinhosamente a mãe, trouxe-a para o seu leito. Assentando-se, tomou-lhe as mãos e perguntou-lhe ansiosa:
— Estás melhor, minha mãe?
— Não, Anália, sinto-me exausta e enferma e incapaz de agir na determinação dos serviços domésticos. Por isso, como tens horas disponíveis, de manhã, venho pedir-te que me substituas na direcção da casa, provisória ou definitivamente, não sei.
— Substituição definitiva, dissestes vós, mãe? interpelou a jovem angustiada.
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:27 am

— Quando alguém adoece, Anália, nunca poderá saber se irá ou não recobrar a saúde. Eis o que me sucede presentemente. Tenho me sentido mal e não sei se voltarei a gozar saúde. Em consequência, faço-te a rogativa de que assumas a chefia dos trabalhos desta casa, em meu lugar.
— Mãe! comunicarei a papai a vossa resolução e o estado precário de vossa saúde, para que ele providencie sobre o vosso urgente tratamento. Vou pedir-lhe que vos leve imediatamente a Atenas, para que sejais convenientemente medicada.
Emérita esboçou um sorriso triste e respondeu:
— É escusado o teu carinhoso cuidado, minha filha, pois, no estado em que estou, não há médico que remedeie. Acho que daqui só me ausentarei num caixão mortuário...— Falastes em morrer, mãe? Não percebeis o quanto de angústia invadiu meu coração? Oh meu Deus! Que infortúnio se aninhou nesta casa, outrora tão alegre! Não bastam os dissabores que por si nos batem à porta, para que os andemos a procurar por nós mesmos?! Mãezinha, cooperai para que possa voltar a felicidade ao nosso lar!
Vosso estado de espírito só pode favorecer novos dissabores! Deixai que o meu prezado pai vos leve a um bom médico. Ele é o primeiro a desejar o vosso restabelecimento, pois a vossa existência é preciosa para todos nós.
Isso dizendo, Anália prorrompeu em pranto, reclinando a cabeça no ombro materno. Emérita afagou com unção os cabelos da filha:
— Querida, minha existência não tem mais finalidade. Sou um fantasma vivo nesta casa. Assim, é melhor que eu morra logo, pois ficareis livres para recomeçar a vossa vida em melhor companhia...
— Mãe! não repitais semelhante coisa! Que horríveis e funestos pensamentos abrigais em vosso íntimo? Por que duvidais do nosso amor? Não vedes que o ciúme de papai é uma prova de que ele vos ama apaixonadamente? Da mesma forma, todos aqui vos estimam e idolatram. Por que acalentais ideias negativas? Não percebeis que elas só podem agravar a nossa situação, já de si tensa e lamentável?
— Filha, ninguém mais do que eu lamenta a situação que se criou em nossa residência e para a qual, se contribui, foi involuntariamente. Minha punição foi severa demais e o sofrimento moral abateu-me fortemente o físico. Estou incapaz do menor esforço e sinto que não poderei viver muito tempo. Não adianta mais fingir.
Revistamo-nos de paciência e encaremos o futuro como ele se nos apresenta. Amanhã assumirás a responsabilidade da direcção desta casa.
Neste momento entrou Samuel com ar sorridente. Ao ver a irmã com os olhos rasos d’água, disse-lhe:
- Não precisas mais chorar, tudo vai terminar bem.
E beijando ternamente a mãe e a irmã, contou-lhes pormenorizadamente a conversa que mantivera com o pai. Terminou transmitindo com palavras afectuosas a incumbência de Plotino, no sentido de um completo esquecimento do passado e da recomposição da família. Acrescentou que, com o intuito de facilitar essa recomposição, Plotino faria uma pequena viagem.
Emérita escutou o filho em mutismo absoluto e em seguida, disse-lhe com desalento:
- Meu querido filho, dize a quem te enviou, que não necessita abandonar este solar bem amado por minha causa, pois eu nada possuo aqui a não ser o precioso amor de meus filhos que, aliás, para meu coração, vale por um incalculável tesouro. Minha saúde está irremediavelmente arruinada e não poderá tardar muito o desenlace. Ele que espere mais alguns dias e o problema doloroso de nossa vida estará resolvido para sempre.
— Insistis em praticar uma loucura, mãezinha? falou Samuel. O suicídio é um crime perante o Criador, pois ninguém tem o direito de matar, nem o de auto-destruir-se. Não sabeis que a vida é dom de Deus e que é uma ilusão pretender suprimi-la?
Pode-se eliminar o corpo físico mas o corpo espiritual é indestrutível e o suicida tem uma dolorosa surpresa ao reencontrar-se nos planos superiores mais vivo que nunca...
e mais sofredor... Vossa insistência, mãe, revela que não tendes na menor conta a aflição que nos ides causar. Quereis levar à loucura aqueles que vos amam?
— Não, meu filho! Desejo apenas tranquilizar os corações dos que vivem neste lar que já não considero mais meu e cuja felicidade é impossível com a minha presença destoante. Vosso pai alimenta uma odiosa suspeita contra a minha fidelidade de esposa e eu não desejo sobreviver após tão deprimente ofensa à minha honra...
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:27 am

— Pois bem, cara mãezinha, disse Samuel com emoção e carinho, eu já vos transmiti a resolução que papai tomou, para que sejam sanadas as divergências presentes: deixemo-lo partir e, longe do lar querido, saudoso e com a paixão serenada, ele voltará livre de odiosas suspeitas, para recomeçarmos nova existência familiar em melhores bases de compreensão.
— Obrigada, querido filho. Ouvindo-te os judiciosos conceitos, julgo que já tens mais de um século de experiências terrenas. Infelizmente eu não participo do teu optimismo com relação ao futuro. Plotino nunca se modificará e suas suspeitas voltarão a ofender-me.— Desculpai-me, prezada mãezinha, mas, como adepta da nova religião, que sois, não ignorais que as ofensas por mais graves que sejam, podem e devem ser olvidadas. Ademais, permiti que vos diga, que o vosso companheiro de existência não deixa de ter alguma razão, porque suspeita que ainda consagrais afecto a Argos Zenóbio e vós não agistes de modo a dissipar o seu funesto engano. Não houve até agora uma explicação satisfatória para a violenta emoção que recebestes ao dançar com Argos e meu pai acha que ouvistes alguma declaração amorosa ou proposta ultrajante, que não lhe devíeis ocultar.
— Pois foi essa a interpretação que Plotino deu ao meu desmaio no Solar de Apolo? Não poderia ele compreender a minha perturbação, após dias de tensão e dissensões domésticas, por perdido o hábito de bailar num salão onde se aglomeravam
inúmeras pessoas? Porque agravou ele o que me sucedeu, sem que pudesse eu controlar as reacções do organismo desequilibrado?
— Tendes razão, mãezinha! Eu mesmo me senti afogueado e opresso no meio de tanta gente.
— Há ofensas, meu filho, que dificilmente se desvanecem de nossa alma. Tenho a sensação de que fui apunhalada e que a lâmina aguda permanece cravada no meu peito.
Samuel tentou desviar a conversação para um diapasão menos trágico e com efusão carinhosa disse, abraçando a mãe:
— Com a vossa licença, arrancarei do vosso coração esse punhal.
E com o gesto de quem retirasse uma arma invisível e a arremessasse longe, acrescentou sorrindo:
— Pronto. Estais curada e da ferida não resta sequer vestígio. Não falemos mais em coisas tristes e recomecemos a viver como se nada tivesse acontecido.
Isto dizendo, retirou-se acompanhando a mãe até o seu aposento e foi comunicar ao pai o feliz resultado das démarches de pacificação geral, após o que recolheu-se ao seu quarto.
* * *
A noite ia transcorrendo em calma aparente. Em seus aposentos separados, os esposos Isócrates, todavia, não conseguiam adormecer. Plotino, reconciliado com a sua própria consciência, sentia-se tranquilo e procurava absorver-se em conjecturas sobre as consequências dos seus últimos actos. O acolhimento dispensado por Emérita às propostas conciliatórias de Samuel, fora relutante... Esperava maior entusiasmo por parte dela, no entanto, de início, ela quase recusara a reconciliação e a conformidade obtida por Samuel, fora mais consentida que anuída. Seria próprio do temperamento feminino aquela incerteza ou Emérita realmente não o amava? Mas, neste caso, porque sofria tanto com a separação? Por que pretendia suicidar-se?
— Quem pode entender o coração feminino? murmurou ele. Como hei de julgá-la sendo assim tão contraditória a sua conduta? Se me ama, porque não se alegra com as pazes? Se não me ama, porque não aceita a liberdade que lhe ofereço? Que pretende ela? Seja como for, acho que fiz bem em tomar a iniciativa do apaziguamento. Queria ter a certeza de que havia feito tudo o que dependia de mim em prol da harmonia doméstica. Estou contente comigo mesmo: transigi ao máximo, fui mesmo além do que me permitia a própria honra. Por amoldar-me às lições de Jesus, cedi num ponto sobre o qual outrora não admitiria sequer discussão. Agora, devo aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
Emérita, por seu lado, permanecia angustiada. Os olhos desmesuradamente abertos fitavam a chama imóvel da pequena lamparina do santuário. A filha do professor Kondilahis compreendia que se aproximava o momento culminante do seu drama. Dentro em breve, Argos Zenóbio, grande paixão de sua vida, apresentar-se-ia mais uma vez para propor-lhe união. Certamente, esta seria a última oportunidade de ser amada por aquele que em segredo continuava a amar. Teria forças para resistir?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:27 am

Sim, pensava consigo mesma, pois estava decidida a dizer-lhe não. Ao mesmo tempo uma voz que parecia surgir do abismo, segredava-lhe:
— Tola, já te sacrificaste demais. Cada um procura as suas conveniências, a verdadeira felicidade te aguarda ao lado do teu amado. Ele é rico e poderoso e saberá proteger-te. Ireis viver num país remoto e desconhecido, onde recomeçareis a vida.
Teus filhos já estão criados e não precisam mais de ti. Plotino, é um déspota e merece uma lição. Não vaciles mais. És livre, teu marido espontaneamente restituiu-te a liberdade, desprezou-te e abandonou-te. Faze como tantas que não desistem de achar a felicidade, lutam por ela e acabam encontrando-a.
Emérita sentia-se enlouquecer.
— Que farei? Que farei?! exclamava baixinho batendo com os pulsos na fronte.
Subitamente um estranho bem-estar invadiu-a. Dir-se-ia que se encontrava sob a influência de um ser superior, cuja presença pressentia sem contudo identificá-lo visualmente. Abandonou-se feliz àquela paz desconhecida e insensivelmente cerrou os olhos.
O fenómeno de clarividência reproduzia-se, e ela ouviu:
— Filha, sou eu, tua mãe, que te falo, com a permissão de Jesus. Tanto roguei que ele permitiu a vinda de uma entidade suprema a fim de ajudar-nos a persuadir-te a seguir as rectas veredas da justiça. Estamos todos ao teu lado, procurando inspirar-te e muito já conseguimos através da mediunidade de Samuel. Mas a verdadeira decisão pertence a ti. Se insistes em acompanhar o teu afeiçoado, embora para isso precises calcar aos pés os teus sacrossantos deveres, ninguém poderá impedir-te. O arbítrio é livre e todas as criaturas podem fazer as experiências que desejarem, inclusive queimar-se voluntariamente. Considerando as provas do teu carma, obtivemos várias graças de Jesus, quais sejam a de permitir que nos ouças e que não te faltem conselhos oportunos. Ouve, minha querida Emérita: detém-te enquanto é tempo. Ainda não perdeste por completo o domínio da situação, mas o instante se aproxima em que deverás decidir por ti e não ouvirás mais a nossa voz. Fecha os ouvidos aos maus conselhos de entidades perversas que exploram as tuas fraquezas e procuram induzir-te ao erro. Não julgues que seja possível comprar a felicidade ao preço de abdicações ao dever. A honra deve sobrepujar a própria vida. Ainda uma vez te dizemos: não pode haver felicidade integral sem o cumprimento austero de todos os preceitos morais e espirituais! A opulência, o conforto, o amor conquistado pela violência, não sufocam os gritos da consciência culposa. Por absurdo que pareça, a verdadeira felicidade está na luta vitoriosa contra o mal, aliada ao sacrifício dos sonhos menos nobres. Pensas que poderia ser ditosa abandonando o lar conjugal, os teus filhos e aquele a quem Deus te ligou e que tem sido o teu amparo na vida?
— Mas, ele me enxotou de casa sem razão alguma, me calunia e oprime com suspeitas ultrajantes! exclamou Emérita mentalmente, soerguendo-se no leito em atitude do desafio.
— O ciúme, desditosa filha, conturba a razão, penetra no âmago das criaturas e desvenda com antecedência as possibilidades de traição que germinam em outra mente.
— Não sei o que responder-vos, mãe, porém não seguirei Argos. Resolvi apenas despedir-me dele, pois não nos veremos mais no plano terreno!
— É muito arriscada a despedida, filha!
— Não tenho ânimo de deixá-lo partir para sempre e não lhe conceder o derradeiro ADEUS! Não quero todavia ser acusada de infiel por Plotino e tão logo Argos tenha zarpado, pretendo atirar-me às águas do golfo.
— Persistes nos teus propósitos insensatos! Desconheces a força do pensamento!
Está se tornando quase impossível auxiliar-te e é com dificuldade que permaneço ao teu lado!
— Perdão! Amparai-me para que eu não enlouqueça de desespero!
— Emérita, tudo foi feito para amparar-te, mas tu não te dispões à luta e acaricias ideias criminosas que tornam cada vez mais difícil o nosso auxílio. Fixa o pensamento em Deus e medita no exemplo de Jesus que tudo sacrificou para cumprir o seu dever!
— Minha saúde está arruinada e o suicídio será um alívio para os que me cercam.
— Seja como for, não tens o direito de abreviar os teus dias. Não queiras atrair maiores martírios com a fuga às provas que te esperam! Em outra vida foste infiel ao que é actualmente teu marido e amaste loucamente a Argos Zenóbio. Tiveste o destino quase reproduzido nesta encarnação. Esforça-te por suavizar e não, agravar a tua situação porvindoura. Estás no momento decisivo e não queiras fracassar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:27 am

Ainda podes desviar a tragédia iminente sobre o teu lar, tão tranquilo e ditoso até há poucos dias!
Adeus, Emérita, Deus te abençoe e dê forças, minha querida filha! As últimas palavras da amorosa entidade, foram pronunciadas em pranto, e findas que foram, estabeleceu-se profundo silêncio no cérebro de Emérita. Um soluço confrangeu-lhe o peito emagrecido e uma golfada de sangue rubro assomou-lhe aos lábios. Recolheu-o numa toalha, quedando-se horrorizada ante o espectáculo da sua ruína física. Levou a mão à testa, que ardia em febre e tombando para trás, sobre o leito, desfaleceu.
O desprendimento parcial do espírito, causado pela crise por que passava Emérita, proporcionou às entidades amigas, novo ensejo de fazer ouvir as suas vozes.
Entre as visões desconexas do delírio, apareceu-lhe a figura do médico egípcio que lhe dizia:
— Infeliz Emérita, os teus sofrimentos encerram uma lição que deves aprender: o erro acarreta invariavelmente a dor. Quando o homem se afasta de Deus para seguir a sua fantasia, a dor o acompanha. Não penses que é impossível ser mais desgraçada do que és actualmente. Leio no teu pensamento o propósito firme de te encontrares com Argos, a pretexto de que se trata de uma despedida para a eternidade. Teus martírios atuais têm origem em falta semelhante praticada no pretérito, conforme já te foi explicado. Insistes em encontrar-te com Argos, mas essa ventura te será negada enquanto não trilhares o caminho do dever e da honra. Evita portanto, o que for nocivo à tua alma, para que no porvir, não se reproduzam, agravadas, as angústias da era presente. Pensa na desilusão que irias causar aos teus filhos, cujo amor perderias totalmente.
Já te sentes gravemente enferma e é provável que em limitado tempo seja a tua vida material consumada; sacrifica-te pois, mais um pouco, por amor a teus filhos.
Argos outrora te abandonou num lupanar. Se com ele desertasses novamente, sabedor da grave moléstia de que és portadora, fugiria de ti, renegando o teu amor e ficarias novamente abandonada na mais extrema penúria!
— Não me tortures mais! Achas pouca a dor que me avassala? Oh, quem me dera morrer, findar este martírio!
— Filha, não te entregues ao desespero. Recorre a Jesus, que no Monte das Oliveiras sorveu a taça das amarguras que todas as criaturas humanas têm do levar aos lábios, Confia no auxílio e na protecção do Mestre incomparável, quo tudo tem feito e fará para retirar-te do abismo. Confia também em nós, encarregados por ele de dar-te apoio nesta emergência, e que também tudo temos feito para retirar-te da borda da cratera do vulcão chamado traição, em que pretendes precipitar-te.
— Não! dir-lhe-ei apenas adeus, rapidamente.
Embora semiadormecida, Emérita percebeu que o sábio herbanário reprovou suas últimas palavras. Uma infinita tristeza cobriu a fisionomia serena do Guia, que pouco a pouco foi-se apagando, enquanto novos rostos surgiam diante dos seus olhos, rindo e falando coisas desconexas. Pareceu-lhe ouvir uma estentórica gargalhada e receando que tivesse enlouquecido, acordou de repente, assustada. Ao recobrar a consciência do seu estado, soltou um ai dorido. Aquela gargalhada, de quem seria? que significaria? Lembrou-se do sonho com o egípcio: seria novo aviso ou um devaneio da sua mente exacerbada? Tentou erguer-se, mas sentiu dificuldade em fazer os mais simples movimentos. Retombou no leito e correu a vista em torno. O negrume da noite começava a dissipar-se e pela janela coava uma ténue claridade. Na fimbria do horizonte, percebia-se o recorte das montanhas e, por trás delas, um leve rubor. Não tardaria a amanhecer. Subitamente, veio-lhe à memória o encontro marcado por Zenóbio. Com esforço inaudito, pôs-se de pé, retocou levemente a toalete e lançando mão de um manto que a cobria da cabeça aos pés, abriu com extrema precaução a porta que dava para o jardim e deslizou para o exterior. Ao sentir o ar fresco da madrugada murmurou:
— A sorte está lançada!
Fitou a janela dos quartos dos filhos, fechadas e silenciosas, e mentalmente dirigiu-lhes um adeus. Pousou a seguir os olhos no quarto de Plotino e teve a impressão de que se encontrava desabitado, tal a quietude que nele reinava. A visibilidade era parca e uma densa neblina envolvia o jardim. Emérita não saberia dizer que horas eram, mas calculou que deviam ser menos de cinco da madrugada.
Cruzou o manto para proteger-se do frio, afastando-se cautelosamente, pisando de leve as pedras do jardim. Um cão de guarda pressentiu-a e latiu, aquietando-se logo, porém, no reconhecer a sua dona. Estugou o passo e atingiu a estrada. A emoção de que se achava possuída era tal que sentiu-se fraquejar e ela foi obrigada a estacar e apoiar-se numa árvore para recobrar as forças. Depois, retomou a marcha e caminhou até uma curva, de onde se avistava o vale e o mar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:28 am

Ancorada a pequena distância da praia, achava-se uma galera, que além do velame, dispunha de duas séries de remos. Pelos orifícios do costado coava-se ténue claridade, indicando que a equipagem se encontrava a postos.
— Eis onde se encontra Argos! Veio dizer-me adeus! Meu doce amado, serei digna de ti e da fidelidade do teu amor! Não te deixarei partir sem te dizer o quanto te amo e quanto sofre o meu coração com esta separação. Um abraço que me dês, em despedida, e eu me considerarei feliz e morrerei contente!
Isto dizendo. Emérita, sem mais hesitar, pôs-se a caminho, com a celeridade possível e mais alguns momentos decorridos, divisou dois vultos embuçados, acompanhados a curta distância por um grupo de marinheiros, que se dirigiam para o ponto onde ela estava.
— Emérita! disse um dos embuçados, agitando a mão em sinal de reconhecimento.
Era a voz de Argos, que vibrava clara na atmosfera matinal.
— Vamos, querida! Não percamos a derradeira oportunidade de sermos felizes nesta vida. Aguarda-nos um brigue salvador. Apressa-te!
Mais alguns passos e a esposa de Plotino era acolhida pelos braços vigorosos de Argos Zenóbio.
Após trocar ligeiras palavras com Argos, Emérita lançou um último olhar na direcção do castelo e o que viu gelou-a de pavor: Plotino acabava de assomar na estrada!
O imprevisto acontecera! Preocupado com as ocorrências verificadas em seu lar, Plotino atravessara a noite sem .dormir. Súbito, ouviu o ladrido do fiel Cérbero e conjecturou que naquele instante a desditosa mulher talvez se tivesse erguido do leito, não contando com a sua vigilância, e se preparasse para suicidar-se ou caminhasse em busca de outro afecto. De um salto aproximou-se da janela entrefechada e à luz imprecisa da madrugada divisou o vulto da esposa que se esgueirava de casa. Por, precaução armou-se com uma espada e seguiu-a sem ser visto, a regular distância.
Repentinamente ferira-lhe os ouvidos a voz de Argos Zenóbio, chamando Emérita.
Fremindo o ódio, empunhou a espada e precipitando-se para a frente, chegou à vista dos adúlteros no justo momento em que Zenóbio estreitava Emérita nos braços.
— Miserável! bradou Plotino presa de fúria incontida. Destruidor de lares!
Pagarás com a vida o teu crime, bandido! Defende-te! Sem vacilar, Argos Zenóbio empunhara uma cimitarra que trazia oculta sob o manto e enfrentou resolutamente Plotino. Por sua vez, o companheiro de Zenóbio, sacou uma comprida adaga e preparou-se para lutar em defesa do seu amo. Foi infeliz, porém, e o primeiro golpe de Plotino atingiu-lhe em cheio o peito e ele caiu em decúbito dorsal para não mais se erguer.
— Alfeu! gritou Zenóbio, para o chefe dos marinheiros, manda conduzir para bordo esta senhora. Enquanto o inimigo for um só, não precisam intervir, deixem-no comigo. Plotino acometia cerradamente o falso amigo, que se limitava a aparar os golpes enquanto estudava os pontos fracos do adversário e poupava as próprias forças, demonstrando assim, longa experiência de combates. As armas chocavam-se com estrépito enquanto os gritos de morte cruzavam os ares.
— Eu sabia que este dia tinha de chegar, disse Argos aparentando calma.
Roubaste-me a felicidade e agora vais pagar.
— Salteador de estradas! retrucava Plotino, o teu fim havia de ser triste! Toma!
O duelo prolongava-se entre golpes e contragolpes aparados com maestria.
Plotino, conquanto inferior em físico ao adversário, revelava-se brilhante esgrimista, e ambos já apresentavam alguns ferimentos no corpo, embora sem gravidade.
Repentinamente, surpreendendo Plotino desguarnecido na volta de um molinete, Zenóbio desferiu-lhe um golpe de ponta com tal violência que a espada ficou cravada no peito do infeliz. Mas, rápido como o raio, e tirando partido da situação, que privava Zenóbio de defesa, o moribundo cravou-lhe por sua vez o seu gládio. Ambos os adversários recuaram simultaneamente, feridos de morte, e tombaram ao chão, onde poucos momentos tiveram mais de vida. O ruído do combate havia despertado os moradores do Castelo e Samuel chegara correndo, a tempo de ver o pai expirar. Retirou com cuidado a lâmina assassina da horrenda ferida, recompôs as vestes paternas e fechou os olhos desmesuradamente abertos do morto. Ajoelhando-se, beijou-lhe carinhosamente a testa pálida e os cabelos precocemente encanecidos. Depois, lembrando-se de Emérita, pôs-se rapidamente de pé e perguntou:
— Onde está minha mãe?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:28 am

Alfeu, chefe dos capangas de Zenóbio, que, juntamente com os demais, permanecia silencioso ante o quadro dantesco dos três homens mortos, adiantou-se e respondeu:
— Meu caro jovem, vossa mãe foi afastada do cenário desta tragédia e dirige-se no momento para a praia. Se andarmos depressa, poderemos alcançá-la.
E voltando-se para os seus comandados, falou:
— Aguardem-me aqui.
Já Samuel corria estrada abaixo. Ao atingirem a praia, viram Emérita amparada por dois homens, que era conduzida para bordo num escaler. No momento em que acostava e eram lançadas as cordas, a pobre mulher, num gesto rápido e imprevisto, que ninguém pôde deter, arrojou de si o manto que a cobria e saltou às águas, desaparecendo. Seus guardiães sem vacilar, atiraram-se ao mar, à sua procura, mas após vários mergulhos, reconheceram a impossibilidade de encontrá-la. Samuel a tudo assistira petrificado de terror. Vendo que os marinheiros não traziam de volta à
superfície sua progenitora, lançou-se às ondas e em rápidas braçadas, procurou atingir o local do drama. Fazendo uso de um apito que lhe pendia do peito Alfeu deu ordem para que um escaler fosse ao encontro do bravo mancebo, enquanto ele por sua vez, atirava-se às vagas, na expectativa de salvá-lo caso as forças lhe viessem a faltar antes da chegada do pequeno barco. Exímio nadador que era, o marinheiro em poucos minutos emparelhou com o jovem, que lutava com as ondas que lhe fustigavam o rosto. Logo após, os nadadores foram içados para a barca, enquanto tentativas eram ainda feitas para encontrar o corpo da suicida, porém, sem resultado. Em face do insucesso, Samuel deixara-se quedar mudo e abatido. Depois, dirigindo-se a Alfeu, exclamou:
— Sois responsável pelo que aconteceu e vou denunciar-vos às autoridades de Corinto, que hão de saber agir com justiça.
— Meu caro jovem, nenhuma culpa me cabe pelos infaustos acontecimentos, que sou o primeiro a lamentar. Minha galera foi adquirida pelo senhor do Solar de Apolo, que pretendia retirar-se definitivamente deste lugar para ir habitar em distante país do Oriente. Jamais pensamos que aqui viesse a ocorrer tão impressionante tragédia.
— Porque deixastes minha mãe suicidar-se?
— Porque ela enlouqueceu repentinamente e agiu, como vistes, sem dar tempo a impedir seu tresloucado ato. Mas tudo foi feito para salvá-la.
— Ela vos acompanhava de vontade própria?
— Sim, mas acredito que a ideia do suicídio já a dominava quando acedeu em ser levada para bordo, pois suas palavras a Zenóbio, eram de quem viera apenas despedir-se. Infelizmente, mal chegamos, surgiu um senhor, que agora sei que era vosso pai, o
qual imediatamente atacou o senhor do Solar de Apolo e seu escudeiro Polidoro Asclépio, a quem prostrou morto. A seguir, travou-se um duelo feroz entre os dois inimigos, que terminou com o falecimento simultâneo dos adversários.
— Ninguém tentou impedi-lo, marujo? inquiriu Samuel enxugando as lágrimas que lhe corriam dos olhos.
— Não foi possível, moço. Tudo ocorreu tão rapidamente que não houve ensejo de uma intervenção pacificadora.
— Argos Zenóbio foi o verdadeiro culpado! Jamais deveria ter projectado uma despedida clandestina com a esposa do seu antigo colega de armas. Foi ele que causou a desventura do nosso lar! Porque não veio lealmente despedir-se do meu progenitor e de sua família?
— Também assim penso, meu digno rapaz, mas estávamos sob suas ordens e cumpria-nos obedecê-las.— Conduzi-me para terra. Vou mandar avisar as autoridades e aguardarei as suas decisões. Confesso que me sinto mais aliviado ao saber que minha mãe veio apenas despedir-se daquele que foi o seu primeiro namorado. Pobre mãe! Não creio que pretendesse abandonar o nosso lar!
— Sim, disse Alfeu, que parecia interessado em consolar o infortunado Samuel.
Tratava-se apenas de um adeus para todo o sempre e se não fora a violenta intervenção de vosso progenitor, tudo terminaria sem consequências a lastimar. Rumemos para terra!
Em caminho, o marujo prosseguiu com velada tristeza:
— Nobre mancebo, lamento profundamente o infortúnio que vos atingiu. Peço-vos que me perdoeis se involuntariamente concorri para ele. Reafirmo-vos porém, que nenhuma responsabilidade me cabe, porque Argos Zenóbio não nos revelou seus intuitos.
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:28 am

Apenas nos disse que ia despedir-se de uma pessoa e que o acompanhássemos, para o caso de ser atacado por um destemido adversário. Se me permitis, dar-vos-eis um conselho ditado pela experiência: não leveis ao conhecimento das autoridades policiais de Corinto o que aqui aconteceu. Eu e meus amigos conduziremos para bordo do ARGONAUTA os cadáveres de Argos Zenóbio e Polidoro Asclépio, rumando a seguir para o Oriente, de onde não regressaremos nunca. Vós mandareis inumar vosso progenitor, fazendo constar que ele e a esposa foram vítimas de um naufrágio nas proximidades desta praia, e assim poderemos ainda hoje ficar livres dos desagradáveis percalços que certamente levantarão as autoridades. Nenhuma culpa temos dos sucessos desta madrugada e quanto mais depressa os esquecermos, melhor. O irremediável remediado está.
— Talvez tenhas razão, marujo, mas e se alguém nos denunciar? Vão julgar que ocultamos a verdade por algum motivo inconfessável.
— Guardemos no recesso de nossas almas o segredo. Eu respondo pelos meus homens. Compete a vós obter silêncio dos moradores da vossa casa. Quanto a mim, levantarei ferros neste momento, levando os dois corpos. De passagem, avisarei as autoridades de Sicione de que avistei um escaler destroçado nos rochedos, de modo a justificar as vossas declarações. O silêncio de Samuel valia pelo seu consentimento. Ao chegarem juntos dos corpos caídos, Samuel reconheceu no escudeiro de Zenóbio o mendigo que avistara por duas vezes no Solar.
Alfeu, o comandante do Argonauta, determinou que os despojos de Zenóbio e Polidoro fossem transportados para o barco e estendendo a mão para Samuel, disse-lhe:
— Adeus. Jesus vos proteja sempre.
— Assim seja, adeus, respondeu Samuel emocionado. Parte tranquilo, e que a fortuna te acompanhe.
* * *
O corpo de Plotino foi sepultado no cemitério local, em singela cerimónia. A seguir Samuel reuniu os moradores do solar, aos quais solicitou que fizessem segredo sobre as verdadeiras causas da morte de seus pais, a fim de que, explicou, não viessem a correr interpretações difamatórias sobre as razões do duelo e a presença de Zenóbio a horas mortas no Solar de Minerva. Declarou mais que as pessoas que desejassem retirar-se dali, seriam integralmente indemnizadas pelas benfeitorias que houvessem feito, ou das quantias de que se julgavam credoras. Depois, assumindo com critério a direcção do seu lar, legalizou sua situação e a de sua irmã, submetendo às autoridades a partilha dos bens deixados pelos seus progenitores, o que aliás não foi difícil, pois Plotino deixara testamento, e todos os documentos concernentes às suas propriedades e bens se achavam em perfeita ordem, como se previsse a sua próxima morte.
Considerando a sua nova situação de chefe de família, que lhe impedia de prosseguir os estudos, dispensou os professores, a quem gratificou generosamente, assim como restringiu o número de serviçais, também recompensados com quantias que lhes poderiam garantir a manutenção durante algum tempo, de modo a que pudessem conseguir novas colocações.
Depois dos momentos aflitivos, sucederam-se dias de silêncio e serenidade. O Solar de Minerva, agora imerso em quietude, parecia desabitado. Anália, desde os trágicos acontecimentos, guardava o leito, reequilibrando-se lentamente das violentas emoções sofridas. Uma serva acompanhava-a dia e noite, propiciando-lhe alimentos e calmantes e ao mesmo tempo procurando distraí-la. Frequentemente Samuel ia vê-la, a pretexto de pedir-lhe conselho sobre uma ou outra providência a tomar, mas com o intuito oculto de proporcionar-lhe um derivativo às preocupações. Um dia, a serva, sempre vigilante, veio chamar aflita o Sr. Samuel — como passou a tratá-lo — dizendo:
— Senhor, a enfermidade de vossa irmã agravou-se, pois ela está delirando.
— Será possível? falou o jovem preocupado. Tenho estado tão absorto, que receio ter descuidado o tratamento da minha querida irmã! Vou vê-la imediatamente.
Encaminhou-se para o quarto de Anália e grande foi o seu susto ao ver que, efectivamente, ela apresentava sinais alarmantes, como sejam, rigidez, queda de temperatura e pronunciava palavras desconexas, como se conversasse com pessoas invisíveis.
— Anália, gritou Samuel aflito. Que tens? Não me deixes agora, que mais necessito da tua presença. Desperta, em nome de Jesus! Não te abandones ao desânimo; reage, querida irmãzinha; sou eu, Samuel, que estou aqui; fala comigo!
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:28 am

Como se atendesse ao chamado, Anália reabriu os olhos, onde brilhava um fulgor celeste, e volvendo-os para Samuel, murmurou:
— Atendi ao teu apelo. Eu já tinha morrido mas tornei a viver desde que pronunciaste o nome sacrossanto de Jesus! Voltei para lutar ao teu lado.
— Sentes-te melhor?
— Sim. Meu grande mal era o desejo de morrer para reencontrar nossos amados pais, todavia durante o letargo por que passei, avisaram-me que devia regressar ao corpo e auxiliar-te, pois muito teremos que trabalhar ainda na face da terra.
— Óptimo, exclamou Samuel. Precisas ajudar-me a administrar este valioso património. Sabes que dispensei os nossos dedicados professores e muitos dos nossos servos?
— Não! Ignorava tudo o que me disseste! Vou sentir a ausência de todos eles!
Não lhes deste algum auxílio?
— Sim, tanto que muitos permanecerão aqui até que obtenham nova ocupação.— Fizeste muito bem. Mas porque não vieram despedir-se de mim?
— Porque estava doente e eu receava que essa notícia prejudicasse o teu restabelecimento, pois não ignoro que a muitos dedicas real afeição.
— É verdade. E agora manda servir-me uma boa refeição. Quero restaurar as forças e contar-te minuciosamente as visões que tive durante o desprendimento do meu espírito.
— Estou curioso para saber o que se passou contigo nesse estranho estado de rigidez que atravessaste e que me alarmou à chegada.
Depois de ter-se reconfortado com o alimento que lhe foi servido, Anália sentou-se ao leito e disse:
— Ouve agora, meu irmão, o que desejas saber: parece-me que, no dia da tragédia, algo se passou com o meu espírito, pois apesar de não ter ouvido o ruído do combate, senti uma angústia horrível, que não sabia explicar, e que me fez despertar com a sensação de que uma grande desgraça acabava de abater-se sobre nós. Levantei-me e os factos vieram confirmar os meus dolorosos pressentimentos. Aniquilada pelo golpe, pretendia deixar-me morrer no leito, quando ontem verificou-se novo fenómeno. Meditava ou sobre os amados pais, tão tragicamente desaparecidos, quando aos poucos uma vertigem apoderou-se de mim e eu me senti arrastada para distâncias incomensuráveis e me vi como no fundo do mar, entre sargaços e algas e monstros marinhos. Bracejava por me desenvencilhar daquele meio, como se estivesse presa de um horrendo pesadelo, quando subitamente deparo com um corpo de mulher flutuando entre duas águas. Adivinhei que se tratava de nossa mãezinha. Aproximei-me, abracei-a e beijei-lhe os cabelos que ondulavam desatados. Ao meu apelo, abriu os olhos e como se saísse de si mesma, o seu espírito levantou-se enquanto o corpo permanecia inerte.
— Anália, disse-me ela com voz cava e estranha, onde estou não poderias penetrar, por isso vim ao teu encontro trazida não sei por que força. Teus pensamentos chegam até mim em forma de nítidas sensações, apesar do abismo que nos separa, por mim mesma cavado. Ouve, minha filha, não te deixes morrer. Serás responsabilizada por suicídio. O corpo, por mais doente ou disforme que seja, é uma bênção para o nosso espírito cheio de culpas. Agarra-te a ele e defende-o, pois muito podes e deves realizar ainda, na superfície da terra. Roguei a Deus e ele permitiu que eu viesse avisar-te. Ora por mim e por Argos, cujo sofrimento ainda é mais atroz que o meu. Não posso vê-lo na escuridão que me rodeia, mas ouço os seus gritos de ódio. Ele se julga ainda em luta com Plotino. Só não ouço a voz do meu marido. Filha, um último conselho:
Foge das imprudências, pequenas causas têm às vezes, grandes efeitos. Adeus. Pede sempre por mim. Não te refiro o que estou passando para não entristecer-te. Adeus.
Sua alma pareceu reentrar no cadáver e enormes peixes se aproximaram e começaram a devorá-lo. Em poucos instantes, aquela que foi nossa mãe estava reduzida a um triste esqueleto, que foi afundado lentamente até desaparecer de vistas no pélago profundo.
— É horrível, murmurou Samuel. Aí talvez esteja a explicação do porque o seu corpo não foi achado nem deu à costa. Pobre mãe. Oremos sempre por ela.
— Sim, é importante fazê-lo e doravante enviar-lhe-ei todos os dias pensamentos de amor e carinho. Mas, ainda não te contei tudo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:28 am

Guiada por misterioso instinto, dirigi-me para outro ponto, mar a dentro, e pude perceber mais dois corpos arrastados pela correnteza submarina: os de Argos Zenóbio e do seu escudeiro. Aproximando-me deles, vi que tinham atadas aos pés, grossas pedras, cujo peso no entanto não tinha sido suficiente para fixá-los ao fundo. Uma coragem desconhecida me impulsionava e chegando-me perto de Zenóbio olhei-lhe atentamente a cabeça. Como se os meus olhos penetrassem o abismo interior dos seres, percebi, sob a imobilidade aparente do corpo, a extraordinária movimentação do cérebro. Lendo-lhe o pensamento, confirmou-se o que minha mãe havia dito, sobre a perturbação do seu antigo admirador. Zenóbio imaginava-se em luta de morte com um invisível adversário, com o qual rolava no solo e trocava baldões e golpes de arma. A seu lado, em atitude de oração, permanecia aquele médico egípcio, que atendeu mamãe no Solar de Apolo.
O herbanário percebeu a minha presença e dirigiu-me a palavra nos seguintes termos: "Senhorita, agradeço a vossa intenção de auxiliar meu infeliz amigo, todavia, nada é possível fazer por ele no momento, excepto rezar. O estado de excitação em que se encontra o seu espírito inibe-o de perceber a nossa presença. Debalde tentei evitar a tragédia que todos lamentamos. Meus conselhos não foram acatados pelo meu filho de outras vidas, sempre caro ao meu coração. Não o julgueis com severidade. Argos tem muitas qualidades, porém, é impulsivo e não se detém ante obstáculo algum. O sofrimento que lhe acarreta esse defeito acabará por curá-lo e em próximas encarnações teremos nele um abnegado paladino das boas causas. E tal como nós, que outrora também vivemos para a satisfação dos nossos caprichos, sem por isso deixar de ser auxiliados em nossas quedas, cumpre-nos auxiliar os que hoje tombam vencidos pela paixão. Ao vosso lado se acham, invisíveis ao vosso olhar, várias entidades, que em vida foram parentes e amigos. Elas mandam dizer-vos que deveis mudar vossa atitude e preparar-vos para desempenhar uma bela e nobre missão. Não se justifica o vosso desespero, minha boa menina. Voltai ao vosso corpo ciente de que de hora em hora Deus melhora, mesmo quando tudo pareça piorar.
O ancião voltou às suas vibrações e me senti trazida novamente para casa. Qual não foi a minha surpresa, ao chegar, deparando com o nosso pai em pé, à entrada.
Pude ver outros espíritos que o ladeavam e que me pareceram ser os dos nossos avós.
Afigurava-se restabelecido do ferimento, pois me disse com voz firme:
— Anália, vim despedir-me de ti. Dentro de poucos instantes serei levado para uma casa de repouso. Precipitei-me lamentavelmente, quando devera aguardar serenamente o desenrolar dos acontecimentos e concorri para o desfecho sangrento desta desavença. Essa sensação de culpa agrava o meu estado. Todavia confio em Jesus que me será permitido reparar o mal feito e os meus protectores espirituais me asseguram que o conseguirei. Mas, antes de me ausentar, tenho que dar-te, bem como ao querido Samuel, um conselho que aliás me foi sugerido por um dos meus referidos protectores. Meus adorados filhos, tereis de partir também para outro campo de acção, longe deste local, e das recordações deprimentes que ele vos provoca. Não convém que permaneçais aqui por mais de um mês. Ides ter tremendas decepções se continuardes neste solar, pois ele não foi licitamente adquirido, tendo sido isso uma das causas que contribuíram para o nosso infortúnio, embora nenhuma culpa nos coubesse, pois eu ignorava como os fatos se passaram. Deixei uma quantia suficiente para viverdes sem preocupações financeiras até que organizeis a vossa vida definitivamente. Estou repetindo as palavras de uma elevada entidade, que muito vos ama, e aconselha, de alma para alma, a fim de que seja evitada outra catástrofe sangrenta! — Sede sempre, amados filhos, ordeiros e pacientes. Lembrai-vos sempre de Jesus e quando vos sentirdes feridos, calai a vossa mágoa. Cumpri escrupulosamente todos os deveres terrenos, a fim de esgotardes vossas dívidas cármicas e não aumentardes o cálice de amarguras, como eu fiz! Para punição minha e daquela que foi minha companheira, vamos ficar separados e também de nossos amados filhos. Nossa vontade é limitada pela força das circunstâncias que criamos! Vigiai pois e orai, a fim de que, não fracassando, possais gozar das venturas que já na terra felicitam a consciência dos justos.
Um soluço vibrou nos ares e, após vi o nosso desditoso pai afastar-se do nosso lar acompanhado dos amigos siderais.
— Anália, pelo que me descreves, possuis uma valiosa faculdade espiritual, idêntica à das pitonisas de Delfos! É uma riqueza maravilhosa a que Deus te concedeu!
Se quiseres fazer uso corrente desse dom, poderás espalhar mais benefícios, curas e consolações do que se tivesses de posse de todo o ouro de Creso!
A moça emocionada, soluçava.
— Coragem, minha boa irmãzinha, exclamou Samuel afagando-lhe os cabelos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:29 am

Isso não é motivo para te entristeceres. Pelo contrário. Graças ao teu dom de profecia, ficamos sabendo desde já que o crime que destruiu o nosso lar teve origem no passado dos que o perpetraram. Isso nos adverte de que precisamos meditar sobre os nossos próprios sentimentos, a fim de que saibamos repelir os maus pendores e possamos praticar sempre o bem. Mais uma vez se verifica na prática que a única directriz sábia é a que traçou Jesus — farol aceso pelo próprio Omnipotente para orientação de todas as almas neste planeta!
— Tens razão, mas porque Ele não me permitiu desenvolver esta faculdade antes, a tempo de prevenir a mamãe do infortúnio que a ameaçava? Confesso que o que mais me flagela o coração é saber que ela foi ao encontro do inescrupuloso Argos.
Ela nunca deveria ter atendido ao criminoso convite para uma despedida clandestina...— É bem verdade o que disseste, Anália! Que essa dolorosa tragédia nos sirva de exemplo salutar até o fim desta existência! Cumpramos sempre, a despeito de todas as desilusões, nossos deveres sociais, morais e cristãos. Antes a sacrifício que a desonra!
— Nunca imaginei, Samuel, que os nossos bondosos pais, sempre ordeiros, ponderados e nobres, se envolvessem em tão deplorável episódio!
— As tragédias da vida, Anália, são sempre inesperadas. Às vezes nos envolvemos num ato dramático contra a nossa própria vontade. O Destino nos parece cruel, mas deve ser baseado na justiça divina e é forçosamente consequência dos nossos próprios actos do passado. Ouvi falar de seres quase angélicos que reencarnam para resgate de faltas cometidas há dez ou vinte mil anos! Animemo-nos, pois. Preparemos desde já o nosso futuro feliz seguindo a trilha que nos mostrou Jesus.
Graças a Ele já te encontras bem melhor e doravante, até o remate da nossa vida planetária, havemos de agir com denodo e rectidão e, assim procedendo, não teremos motivos para nos lamentar nem arrepender!
Anália escutava admirada as sensatas ponderações de Samuel e interiormente rejubilava-se em possuir um irmão com tais dotes.
No dia seguinte, a jovem levantou-se bem disposta e, à primeira refeição, narrou a Samuel novo caso de vidência ocorrido à noite.
— Ontem, depois da nossa conversa, senti-me melhor e logo que saíste, adormeci. Vi-me perfeitamente a mim mesma deitada, enquanto o meu espírito se levantava. Ao meu lado achava-se a personalidade insinuante de um mancebo de extraordinária beleza. O seu olhar, estranhamente calmo e severo, infundia ao mesmo tempo confiança e respeito. Vestia uma túnica de imaculada alvura, parecendo seda, e me disse:
— Anália, chamo-me Cirinto e sou um dos teus amigos espirituais. Nossas relações datam de um passado milenar. Já foste minha filha, assim como eu fui teu filho. Hoje somos irmãos. Em conformidade com os planos traçados antes da tua descida à carne, inicia-se agora uma nova etapa em tua vida. Trata-se de uma missão de amor e caridade, com cujo desempenho muito deves lucrar, pois extensos benefícios podes espalhar. Sempre que houver mister, comunicar-me-ei contigo e te orientarei, assim como atenderei aos teus chamados. Desejas alguma informação?
— Venerável mentor, murmurei, meu pai ontem aconselhou-me a não permanecer neste castelo. Podeis confirmar essa recomendação?
— Sim, tomou Cirinto. Não deveis permanecer aqui, porque se assim procederdes, sereis vítima de uma cilada.
— E para onde deveremos ir?
— Ireis para Delfos e sempre que for possível haveis de comparecer às reuniões que lá se efectuam no Templo de Apolo. Ambos possuem aptidões psíquicas de grande utilidade para a prática do bem, mormente Samuel que no passado foi meu discípulo na índia e possui fulgurante inteligência, de irresistível poder de persuasão. Almas trevosas serão encaminhadas até vós, a fim de receberem conselhos e orientação. Até breve!
Samuel ouvia a narrativa de Anália com o máximo interesse. Quando ela terminou, disse:
— Rejubilo-me com a notícia de que também eu desenvolverei o dom de receber os Espíritos Santos. Já há tempos venho sentindo inspirações que não provêm exclusivamente do meu cérebro. Repetirei uma frase que li num livro cristão: "Faça-se no servo a vontade do Senhor". E levantando-se da cadeira, visivelmente inspirado, ergueu com arrebatamento os braços, orando com eloquência:
— Jesus, consolador dos infortunados, eis-nos à disposição das tuas ordens, prontos a executar qualquer tarefa que te dignares confiar-nos em tua seara. Não aspiramos a honra nem felicidade maior do que essa: a de sermos contados entre os teus cooperadores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:29 am

Compadece-te das nossas imperfeições e aceita a humilde oferenda dos nossos, serviços. Sê nosso Amigo e nosso Pai, substituindo o que o Destino nos tirou. Norteai nossas almas para Deus! Amparai-nos quando vacilarmos. Sede nossa única inspiração!
Mal terminara a invocação, Samuel inteiriçou-se e, de olhos fechados, com o timbre de voz alterado, dirigiu-se à irmã com as seguintes palavras:— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
— Para sempre seja louvado seu santo nome, respondeu Anália prontamente.
— Minha irmã, sou o protector espiritual do vosso irmão germano. Meu nome é Hermínio Condilalds, e fui vosso avô materno, que aliás não conhecestes. Jesus, cuja doutrina, sempre que tive ensejo ensinei na Academia, designou-me para auxiliar-vos em vossa tarefa. Minha experiência e a possibilidade que ora tenho de ler os pensamentos, me permitem dar-vos conselhos úteis, como já o fiz àquela que vos deu o ser.
— Tiveste ensejo de advertir minha mãezinha do perigo que a ameaçava? - inquiriu Anália.
— Sim, preveni-a de tudo o que sucedeu. Dei-lhe as mais paternais orientações;
aconselhei-a a fugir ao encontro fatal; avisei-lhe de que aquela era uma hora decisiva para a sua prova e que não comparecesse à despedida oculta. Faltou-lhe porém, forças para vencer a atracção de Argos a quem ela desde milénios consagra um amor profundo!
— Pois ela amava a outro homem sem ser o seu marido? Fazia melhor julgamento de minha mãezinha, falou Anália pesarosa.
— Filha, o amor é um sentimento misterioso e invencível. Hoje não há tempo suficiente para relatar tudo quanto ocorreu com a tua progenitora, a quem eu acompanho desde um passado imemorial. Ultimamente, em consequência de reincidências, suas encarnações têm sido penosas. Quer isto dizer que devemos multiplicar esforços por auxiliá-la a vencer o abismo em que caiu. Oremos por ela, que necessita imensamente de amor e carinho. Não te abandones à tristeza depressiva. Jesus, a quem invocaste, te protege. Breve terás ciência de importantes acontecimentos.
Teu irmão, que me recebe neste momento, tem faculdades psíquicas e vai terminar cristãmente sua tarefa terrena. Vai ele despertar, agora, para terminar tuas apreensões".
Samuel despertou e vendo sua irmã chorando, e a si mesmo no meio do salão, percebeu que também recebera o dom mediúnico e intimamente elevou um preito de reconhecimento ao Senhor. Dirigiu-se para a irmã e abraçando-a carinhosamente disse: — Querida Anália, fui inspirado agora para irmos ao salão nobre, onde se acham os retratos de nossos infortunados pais.
Assim dizendo, Samuel encaminhou-se para o local juntamente com a irmã.
Lá chegando, fitaram ao alto os quadros representando seus pais, pintados a óleo por verdadeiros artistas. Ajoelhando-se, murmurou:
— Amados pais, onde estiverdes recebei nosso pensamento de afecto e gratidão, saudade e amor indelével. Depois das tempestades vêm as bonanças. Assim, possamos nós reunirmo-nos todos, um dia, novamente, esquecidos de tudo que não seja o bem e o nosso imenso amor recíproco. Sede sempre nossos protectores. Abençoai-nos.
Depois destes fatos, sentiram-se bastante aliviados e puderam ocupar-se com proveito de outras actividades.
Vários amigos de Plotino, abalados com os acontecimentos, visitaram o Solar de Minerva para transmitir aos jovens enlutados, palavras de conforto e encorajamento.
Mais alguns dias decorreram, após os episódios aqui relatados, sem incidentes dignos de nota. Aos poucos voltava o Solar à normalidade. Outros assuntos, além da tragédia, já ocupavam as conversas, e o tempo, o grande curador, estendia sobre as feridas do passado o bálsamo do esquecimento.
Retiraram-se os professores e os servos dispensados pelo sensato Samuel, que dia a dia firmava a sua autoridade com actos e decisões esclarecidas e acertadas.
***
Quem no plano terreno jamais passou um dia sombrio, assistindo à perda de um ser idolatrado, não poderá avaliar com precisão o que seja o sofrimento de um coração amoroso após o golpe desfechado pela mão impiedosa da morte. Os que padecem essa rude prova, jamais olvidarão os cruéis momentos passados, em que o primeiro gesto da criatura é de revolta contra o destino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:29 am

Já Ovídio descrevia esse estado de espírito em seus maviosos versos:
Perdoai meu atentado
Mas ao ver os bons morrer
Disposto me sinto a crer
Ser Deus um nome inventado.
Só a confiança cega em Deus pode valer ao coração alanceado, se lhe faltarem os meios de comunicação com os mortos. O Espiritismo, que nada mais é que o cristianismo em sua pureza e simplicidade originais, restabeleceu, entre outras coisas, o intercâmbio entre as esferas, possibilitando o encontro de seres provisoriamente separados pela morte. Por isso Jesus, ao anunciar o advento futuro do Espiritismo, chamou-o de Consolador quando disse: Eu vos enviarei o Consolador, que ficará convosco até a minha volta e restabelecerá as coisas que eu ensinei. Aludia ele assim,
também, antecipadamente à deturpação que a sua doutrina viria a sofrer nas mãos da igreja romana. Esforços foram feitos pelo Mestre para deter essa corrupção, entre eles enviando à terra o seu discípulo amado na figura de Francisco de Assis, e Allan Kardec na pessoa de João Huss. Mas o progresso não pôde realizar-se contra a vontade dos
homens e o efeito dessas tentativas foi somente minorar os grandes males da impiedade e do mercantilismo católico, que avassalavam o mundo. No tempo em que decorre a nossa história, o recurso à comunicação com o plano invisível era ainda corrente, como fonte de consolações, depois de ter sido reaberta (por Cristo), a porta fechada por Moisés quando proibiu as invocações. Assim, os jovens irmãos Samuel e Anália, apesar do tremendo abalo sofrido em seus frágeis organismos pelo duplo golpe que os atingiu, se refizeram rapidamente e volvendo à realidade, começaram a agir construtivamente, sempre de comum acordo.
Uma tarde, à segunda refeição, disse Samuel:
— Minha irmã, deves varrer da lembrança esses pensamentos tristes que às vezes se apoderam de ti e te fazem, ainda chorar. Nossos pais, onde estiverem, sentir-se-ão aliviados se souberem que estamos enfrentando com galhardia os acontecimentos.
Precisamos agora aprontar-nos para deixar esta casa quanto antes e para isso deves ir tomando providências. De minha parte já notifique! a todos os nossos empregados para procurarem outros patrões, uma vez. que novos cortes se tornam imprescindíveis.— É verdade tudo quanto disseste, meu irmão. Não sei porque, mas às vezes, me domina um estranho desalento. Tenho notado que desde a partida dos professores, os empregados que aqui permanecem estão arredios, fitando-nos. com desconfiança.
— Ainda não observei o que acabas de revelar-me... Amanhã, sendo o último dia do mês, reuni-los-ei no saguão, como nossos pais faziam, e quando lhes for fazer o pagamento, dirigir-lhes-ei colectivamente a palavra para saber se têm alguma queixa de nós. Percebo agora que talvez tenham sido forjadas calúnias contra nós ou nossos esforçados genitores.
No dia seguinte, à tarde, enquanto aguardava a hora em que os servidores deviam comparecer, Samuel e Anália trocavam impressões e confidências.
— Já pensaste, Samuel, no que a humanidade deve a Jesus? Sem o Sermão da Montanha, que prega o perdão e a renúncia e fornece uma nova Lei aos homens, viveríamos ainda sob o império dos deuses impiedosos ou da lei antiga, do olho por olho, dente por dente. Jesus nos forneceu o segredo da felicidade presente e futura.
— É verdade minha irmã, e louvo o acerto da tua observação; mas não penses que a humanidade tenha ficado privada de luz durante tantos séculos. Sempre houve filósofos que ensinaram a verdade em grau adequado à receptividade das nações. Em nossa amada pátria tivemos sábios como Sócrates, Platão, Aríston, que pregaram uma elevada moral, exemplificando-a com o seu procedimento correto até ao sacrifício.
Mas, quase todos foram combatidos e perseguidor porque a humanidade emerge lentamente da animalidade para a espiritualidade e detesta os que lhe falam em abdicar dos gozos terrenos. Se Jesus renascesse, novamente os Sumos Sacerdotes o condenariam à morte, pois o que o matou não foi um adversário individual, mas uma classe, ou seja, a maioria dos componentes da sociedade. Não foi por outro motivo que Sócrates foi condenado a beber cicuta e os demais filósofos foram perseguidos e exilados. Entre os judeus se observa o mesmo fenómeno e raros foram os profetas que não morreram apedrejados pela multidão ou degolados pelos tiranos. Roma também teve os seus enviados celestes, nas pessoas de Numa Pompílio, Cícero, e outros. Mas que se pode esperar de uma civilização que nasceu com um rapto e cujo símbolo é um lobo?— E será sempre assim? perguntou Anália.
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 10:29 am

— Não, temos uma profecia de Jesus que diz: "Os mansos herdarão a terra". Aos poucos a humanidade irá ascendendo a graus mais elevados e prevê-se o dia em que os bons serão a maioria. Até lá convém que haja dificuldades e sofrimento, pois é por meio deles que os homens se purificam e se elevam. Não devemos temer covardemente a dor. Sem luta não há vitória. Alexandre o Grande, apesar de ter sido discípulo de Aristóteles, morreu, como sabes, vítima do vício da embriaguez, depois de ter vencido todos os adversários menos a si mesmo. Temos aí um exemplo de que o forte é aquele que se domina e não o que domina os demais.
— Samuel, disse Anália mudando de assunto, pois se sentia incapaz de acompanhar o irmão em suas especulações filosóficas, acreditas que mamãe, que sempre foi fiel companheira de papai, amasse realmente Argos Zenóbio?
— Creio, Anália, que mamãe foi apenas amável com ele, querendo talvez evitar algum ato violento do seu admirador. Há pessoas que não sabem ser rudes e nossa mãe era uma delas.
— Tens razão. Às vezes fico pensando se não terei culpas no sucedido, pois o meu dever era ter ficado ao seu lado naquela noite sinistra em que mamãe veio despedir-se de mim. Vendo que eu estava ao seu lado, não teria tido ensejo de ir ao encontro daquele homem fatal. Hoje compreendo que devíamos tê-la melhor amparado desde que fomos à festa. Há situações que não se pode vencer sem amparo de outros corações amigos. Quanto não deve ela ter sofrido para recorrer ao suicídio!
— Sirva-nos os exemplo esse doloroso sucesso, Anália! Quando imaginarmos que nada mais é possível fazer em benefício de nosso semelhante, lembremo-nos de que uma palavra de carinho ou um sorriso de compreensão às vezes podem afastar uma desgraça. Há outro aspecto do drama que requer meditação, é o que diz respeito ao cuidado que devemos ter em nossas relações com os nossos semelhantes. Os árabes dizem com razão que somos donos das palavras que calamos e escravos das que proferimos. Quem sabe se não lhe teria escapado uma promessa, que depois foi forçada a cumprir, de um encontro a sós? Quando unirmos o nosso destino ao de outro ser, procuremos, antes de assumir responsabilidades, sondar-lhe os sentimentos. Talvez ele a tenha ameaçado de violência se não fosse atendido o seu convite. Neste caso, foi para salvar a nossa vida ou a de nosso pai, que ela se sacrificou. Estava com a saúde irremediavelmente perdida e preferiu arrostar sozinha a morte, para não imolar a família!
— Que nobres pensamentos tiveste, Samuel, em defesa de nossa torturada mãezinha! exclamou Anália sufocada.
Houve alguns momentos de silêncio, com a aproximação de dois servidores que os fitaram de modo estranho.
A conversa porém prosseguiu entre os dois jovens, dizendo Samuel:
— Reflectindo sobre as ocorrências, eu conjecturo se Argos Zenóbio não veio disposto a raptá-la caso ela não comparecesse ao encontro. Se o seu propósito era apenas despedir-se, não havia necessidade de fazer-se acompanhar de tantos homens.
Acostumado a expedições guerreiras, podia bem ter planejado um assalto ao castelo com o extermínio dos que se opusessem. Neste caso, nossa mãe evitou o mal maior.
— Não o duvido, Samuel, eu também já pensei nisso.
— Agora, minha irmã, façamos silêncio em torno desses dolorosos acontecimentos, guardando todavia, as suas lições.
Os dois irmãos ficaram por momentos em completo mutismo. Depois Samuel continuou:
— Nunca cogitemos de falsear a verdade, de iludir o nosso próximo, nem a nós mesmos. Quem mente e engana o seu semelhante é como o traidor que se disfarça para melhor ferir. Por isso Jesus disse: seja o vosso falar sim, sim, não, não.— Prometo que assim o farei sempre, disse Anália.
— Agora, voltemos à realidade. Diz-me porque às vezes ao me dirigires a palavra, mudas de voz e me olhas fixamente como se quisesses devassar os meus pensamentos?
— Meu irmão, desde aquele instante inolvidável, em que fizeste uma vibrante invocação para que eu despertasse de um torpor quase mortal, sinto que se operou uma grande metamorfose em minha alma e vêm-me ao cérebro inspirações irresistíveis, como se eu estivesse sob a influência de um ser invisível de grande força espiritual.
— É o que eu supunha. Trata-se de teu guia Cirinto, que certamente procura desenvolver as tuas faculdades psíquicas. Pois sabe que esta noite vi como em sonho, um amigo desconhecido, cujas feições me pareciam familiares sem que eu pudesse recordar onde nos conhecêramos. Ante o meu embaraço, sorridente me fitava. Por fim disse: és incapaz de relembrar o lugar onde me conheceste porque tua memória está adstrita ao cérebro de matéria astral, que usas no momento, e que não me pode reconhecer pela simples razão de que o nosso conhecimento data de época anterior à constituição do teu corpo actual.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 7:29 pm

Guardas apenas de forma intuitiva a noção de que sou uma pessoa familiar, mas debalde, procurarias localizar-me entre as tuas lembranças positivas. Chamo-me Hermínio e fomos companheiros de encarnação na índia, onde sob a chefia de Cirinto, trabalhamos juntos em prol do nosso progresso psíquico bem como do de nossos irmãos, que são todos os seres humanos. Exerceste notável e edificante mister na Ásia e fizeste jus a exercê-lo novamente na Europa. Quando chegar a ocasião, tuas faculdades despertarão e desfrutarás de maior lucidez espiritual. Se souberes premunir-te contra o orgulho nos últimos triunfos que te aguardam, atingirás a libertação definitiva dos grilhões terrenos, e à terra só voltarás em missão voluntária.
Anália ouvia-o atentamente. De súbito estremeceu e levantando-se de olhos fechados, aproximou-se de Samuel a quem falou:
— Nossas comunicações se amiudarão. Falo-te agora por intermédio do corpo de tua irmã, estando tu consciente no plano físico, para que conserves perfeita lembrança do que vou dizer-te: vai se operar grande mudança em tua existência e na de tua irmã.
Como já vos foi dito, houve outrora ilegalidade na aquisição deste castelo, por parte de um dos vossos antepassados. Dentro de poucos dias virá aqui um dos seus legítimos herdeiros reclamá-lo. Não questiones, para que sejam evitados novos dissabores. Teu pai, no fim da vida, vivia em verdadeira angústia, por ter sido cientificado da verdade sobre a herança. Essa era uma das causas da sua tristeza. Deves transferir esta propriedade ao referido postulante, que virá em companhia de um irmão. Eles estão premunidos de documentos para, em caso de recusa, causar-vos bastantes pesares. Logo que tenhais cedido o imóvel, partireis para Delfos, como também já vos foi aconselhado. Lá encetareis vida humilde, mas honesta, e por muitos anos podereis viver em paz. Lá também encontrareis as criaturas que serão vossas consorcias de peregrinação terrena. O que desejo é reiterar a recomendação de que estejais prontos para retirar-vos deste castelo mui brevemente. Não tenhais receio.
Segui sem hesitar o carreiro do Dever, da Honra, da Fé e da Caridade e contai sempre com a nossa assistência. — Avisa tua irmã, que ora transmite as minhas palavras mas que ao despertar não se lembrará delas, que terá como companheiro de jornada um digno cavalheiro e que nunca olvide o que sucedeu à sua desditosa mãe, pois também ela tem infracções a resgatar e será posta à prova a sua integridade moral. Ela será mãe e terá por missão guiar para Deus o espírito de um ser muito amado, que virá ao plano físico para cumprir uma breve mas dolorosa expiação, em resgate de uma falta clamorosa. Tenha em mente nossa irmã Anália que jamais uma esposa deve manter relações secretas com ninguém — por mais nobres que sejam, seus intuitos! Tende vós ambos sempre presente o que sucedeu à infortunada Emérita, por não ter ouvido os conselhos que lhe foram dados reiteradamente. O sofrimento que fustigou a alma dessa infeliz irmã é indescritível. Deveis fazer irradiações espirituais de paz e harmonia em benefício do seu espírito. Orai também pelo vosso algoz, Argos Zenóbio, cujo sofrimento é digno de compaixão. Procurai adquirir o hábito da oração, não no sentido de pedir favores ilícitos a Deus, mas para pedir forças para as vossas lutas e paz e felicidade para todos os seres, bons e maus. — Ao partirdes, deveis levar convosco os mais fiéis dos vossos servidores: Nereu e sua esposa, que vos consagram afeição paternal. Em Delfos encontrareis outro lar, sem o perigo do isolamento em que viveis, à mercê de adversários ocultos, como os há, neste castelo. A fim de partirdes com a alma serena, sem levardes convosco sementes de remorsos, gratificai compensadoramente todos os que aqui permanecerem.
Podeis levar o que mais vos convier, e que vos pertence legalmente: jóias, relicários de família, o dinheiro encontrado no cofre de Plotino. Procedei sempre inatacavelmente e os mensageiros de Jesus estarão ao vosso lado. Adeus. Hermínio. Anália abriu os olhos e vendo-se em pé percebeu que estivera mediunizada.
Samuel transmitiu-lhe pormenorizadamente as palavras de Hermínio e seu coração de donzela exultou diante do prognóstico de que um cavalheiro digno seria o seu príncipe encantado. A essa altura já eram numerosos os servidores que se reuniam no saguão.
Samuel e Anália efectuaram os pagamentos devidos a cada um e depois Samuel fez-lhes cientes de que estava cogitando de transferir sua residência para local mais povoado e que, assim, aqueles que possuíssem outros meios de vida fossem tratando de readaptar-se em outro lugar. A seguir indagou se algum dos presentes tinha queixa ou reclamação a apresentar, por serviços ou favores prestados aos seus pais. Como ninguém se manifestasse, disse:
Permiti que vos presenteemos com algumas lembranças. Escolhei neste castelo algo que vos agrade ou de que estejais necessitando e levai para as vossas casas, como recordação nossa. Desde já aceitai estas peças de roupa e de fazenda, que talvez vos sejam de utilidade no inverno que se avizinha.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 7:30 pm

Samuel e Anália levaram os aldeões a uma sala onde havia grandes armários e abertos estes, distribuíram entre todos, grande quantidade de cobertores, agasalhos, tecidos de lã que ali havia, findo o que, retiraram-se os aquinhoados sobraçando as suas dádivas, muitos deles com lágrimas nos olhos.
***
No dia imediato, tal como fora vaticinado pelo mentor espiritual, apresentaram-se no castelo dois indivíduos que aparentavam ter mais de cinquenta anos, manifestando o desejo de falar ao seu proprietário. Recebidos cortesmente por Samuel, que os convidou a entrar no salão nobre, assim se expressou um deles:
— Eu e meu. irmão Alceu Isócrates Galeno, há muitos meses estávamos concatenando documentos para provar que somos os legítimos herdeiros desta propriedade, de cuja posse fomos espoliados por um dos vossos avós paternos.
Obtivemos cópia do processo a que respondeu esse antepassado vosso e bem assim, declarações juradas de antigos moradores deste solar, que comprovam o nosso direito.
Antes de intentar a necessária acção perante os tribunais, achamos de bom alvitre propor-vos um acordo amigável: vós nos transferireis este solar como se tivesse havido uma compra e venda e nós vos indemnizaremos das benfeitorias aqui introduzidas pelos vossos genitores. Deste modo evita-se uma longa a custosa questão judiciária, que só pode terminar com a nossa vitória, e vós não saireis prejudicados. Pagaremos imediatamente um terço do valor combinado, ficando o restante para ser resgatado em cinco anos. Se vós e vossa irmã aceitardes esta proposta, faremos perpétuo silêncio em torno dos documentos que conseguimos coligir e cuja divulgação viria manchar desnecessariamente a memória de vossos ascendentes. Caso contrário, tudo será patenteado perante as autoridades, obrigatoriamente. Aqui estão as declarações de dois eminentes jurisconsultos, cujo parecer nos é inteiramente favorável. Agora, meditai e dizei-nos o que resolverdes.
— Cedei-me os documentos que trouxestes, disse Samuel, que os leu atentamente, verificando a procedência das reivindicações formuladas pelos dois reclamantes.
Depois de passá-las às mãos de Anália, que os examinou igualmente, assim falou Samuel:
— Senhores, é possível o acordo. De nossa parte encontrareis a máxima boa vontade para resolver em paz este caso. Tendes alguma proposta concreta a fazer?
— Sim, respondeu Galeno, o mais velho dos irmãos. Dar-vos-emos trinta mil denários, em prestações de dez mil, sendo uma à vista.
— Com vossa licença, disse Samuel, vou mandar servir-vos um refresco enquanto consulto minha irmã sobre a vossa proposta.
Levantaram-se os dois irmãos para providenciar a bebida e nesse ínterim, confabularam rapidamente sobre a proposta, resolvendo aceitá-la, conforme lhes haviam recomendado os guias espirituais. Instantes depois regressavam com uma bandeja contendo doces e refrescos, o que estabeleceu maior cordialidade entre as partes. A seguir Samuel tomou a palavra:
— Senhores, as provas que apresentastes são concludentes. Eu e minha irmã lamentamos o sucedido, que vos privou durante tanto tempo do uso e o fruto deste imóvel. Em consequência, aceitamos a vossa proposta com uma condição: a de não recebermos senão os primeiros dez mil denários que nos ofereceis, ficando os restantes vinte mil como justa indenização que vos é devida. Podeis providenciar a lavratura da transferência da propriedade bem como ocupá-la quando o desejardes. Tão logo vos apresenteis, partiremos para sempre deste lugar.
Os dois anciãos retiraram-se satisfeitos e no dia seguinte efectuou-se a transmissão da propriedade perante o notário público, tudo de acordo com o combinado, ficando os irmãos Galeno de ocupá-la tão logo pudessem mudar-se.
À noite, Samuel e Anália refugiaram-se no salão de música, onde costumavam conversar a sós. Lá chegando, mal fechada a porta, Anália transfigurou-se e inspirada pelo seu Guia, assim falou:
— Irmãos em Jesus, eu vos felicito. Agistes muito bem recusando os vinte mil denários que os generosos irmãos Galeno vos ofereceram. Não tenhais receio do futuro, que a Deus pertence! Recebereis sempre as inspirações necessárias para o êxito da vossa missão. Lá para onde norteareis vossos passos, há um templo onde recebereis luminosos conselhos. Agora preparai-vos secretamente para partir.
— Porque secretamente? interrogou Samuel. Estamos em perigo aqui, onde nascemos e temos vivido sem fazer mal a ninguém!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 7:30 pm

— Sim, meu filho. Tua alma bondosa desconhece a inveja, mas há servidores que se sentem prejudicados porque gratificastes liberalmente os primeiros que foram despedidos enquanto eles só receberam presentes. Os últimos acontecimentos, notadamente a venda do castelo, provocaram o despeito de alguns antigos servidores, que se mancomunaram com adversários de vosso pai, sobre os quais eu desejo guardar reserva. Projectam eles, antes da vossa retirada, contando com a inexperiência de ambos, apoderar-se do cofre que existe no gabinete, onde acreditam existir incalculáveis riquezas! Para isso estão dispostos até a exterminar-vos!
— Estou alarmado com as vossas palavras, meu caro amigo, falou Samuel emocionado. Procurei agradar a todos e fazer justiça dando a cada um mais do que a cifra a que tinha direito. Porque pois nos odeiam a ponto de intentar matar-nos? — Filho, a inveja é um sentimento satânico do qual só estão livres os espíritos purificados. Há pessoas que odeiam aqueles que lhes fazem benefícios. A falta de reconhecimento chama-se ingratidão. Esse é o proceder da maioria dos seres humanos.
Nós mesmos, que vigiamos nossos pensamentos, somos ingratos para com Deus e com Jesus. Quase todos neste planeta, sabem exigir, mas raros os que sabem dar. Poucos conhecem a alegria de retribuir, mesmo com palavras, ou um gesto cortez, um benefício recebido. Lembremo-nos do Mestre de Infinita Bondade: generoso, compassivo, recto, sereno, recebeu da humanidade o flagício, o azorrague, o sarcasmo e a cruz! O pungente drama aqui desenrolado despertou, não a piedade pelas vítimas, mas a cobiça, o desejo de se apoderar das haveres dos herdeiros, julgando-os demasiadamente aquinhoados pela fortuna!
Deveis, pois, fugir aos ocultos adversários que aqui estão agindo sob o influxo maligno de entidades atrasadas, tanto encarnadas como do plano espiritual.
Amanhã, veladamente, encerrareis em arcas o que possuirdes de mais necessário e valioso, sem que ninguém aqui perceba os vossos preparativos. Organizareis a partida na calada da noite de modo que ao alvorecer o dia já vos encontreis longe deste castelo. Adeus e até breve em Delfos! Cirinto.
À noite, Samuel e sua irmã convocaram os fâmulos do castelo e assim lhes disseram:
— A todos vós que nos ouvis, e que nós, desde que abrimos os olhos, nos habituamos a considerar amigos, comunicamos que dentro de três dias partiremos para longínqua região. As recordações pungentes dos derradeiros sucessos magoaram profundamente nossos corações e desde então, tornou-se penosa a nossa permanência neste solar bem amado. Os novos proprietários acederam em utilizar o trabalho de todos os que aqui queiram permanecer, desejando que sejais seus amigos e colaboradores como fostes dos nossos pais.
Nós vos apresentamos pois as nossas amistosas despedidas. A cada um de vós será conferida uma gratificação pelos vossos serviços inestimáveis. A todos as nossas despedidas, talvez eternas! Emocionados, os servos entreolharam-se e Samuel e Anália abraçaram em despedida um por um, gratificando-os generosamente.
Nessa mesma noite, Samuel avisou Nereu e sua mulher que tivessem tudo pronto para partirem de madrugada sem ser pressentidos pelos empregados que dormiam numa ala do andar térreo. Tendo fechado hermeticamente as janelas, Samuel e Anália silenciosamente acondicionaram roupas, objectos, preciosidades, em malas que Nereu e Samuel iam transportando para uma carruagem oculta nas cercanias. Quando terminaram os preparativos, a noite ia alta e o castelo estava mergulhado em trevas e silêncio. A seguir, os dois homens deram a mão às duas mulheres e descalços, em absoluto mutismo, atravessaram o jardim e ganharam a estrada, lançando um último olhar de adeus ao velho solar onde haviam residido durante tantos anos. Anália soluçava e a seu lado Samuel sentia o coração confrangido. A seguir, subiram no carro que os esperava a regular distância e afastaram-se com a celeridade possível. Não decorrera meia hora de caminho quando perceberam desusado movimento no castelo, que ficara nas alturas. Detendo por um momento a carruagem, ouviram gritos e imprecações que partiam de pessoas que assomavam às janelas com archotes nas mãos e compreenderam que tinha havido um motim entre os servos e que grande era a indignação que lavrava entre os assaltantes ao perceberem que as ricas presas haviam escapado.
Volvamos um instante ao solar. Após a distribuição das gratificações, procedida por Samuel e Anália, vamos encontrar alguns fâmulos reunidos na cavalariça, conversando animadamente.
— Vejam, dizia um deles, a migalha que recebemos depois de uma vida de trabalho e dedicação aos nossos senhores. Façamos justiça pelas nossas próprias mãos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 7:30 pm

Arrombemos o cofre e apoderemo-nos da quantia a que temos direito, antes que os nossos lindos pássaros batam a plumagem. Bem vistes que eles pretendem partir brevemente. Proponho que seja hoje o assalto. Estejam todos preparados para, às duas horas, lançarmos mão do que é nosso e nos foi negado. É bom virem armados, pois talvez encontremos resistência inesperada. Hipólito os chamará. Agora ide para casa. Ninguém objectou a essas disposições e cada um se retirou. Por volta de duas horas, ou seja, pouco depois que Samuel e seu pequeno grupo haviam partido, o chefe da conspiração, acompanhado de um grupo de homens amados, dirigiu-se à luz de lampiões, para o gabinete de Plotino. Ao depararem com o cofre aberto e vazio, perceberam que algo havia sucedido. Correram ao quarto de Samuel, cuja porta foi arrombada, e igualmente encontraram-no vazio!
Grande foi a revolta que se apoderou dos invasores ao verem que haviam sido logrados!
Citron, o chefe, encolerizado, assim falou:
— Se me tivessem ouvido, não teria acontecido isto! O que pretendíamos fazer neste momento já o devíamos ter feito desde que foi cedido o Solar aos irmãos Galeno!
Não havia mais nada que esperar!
— Paciência, disse um deles. Talvez tenha sido melhor assim. A jovem Anália está gravemente enferma e por esse motivo certamente seu irmão apressou a partida.
— És um bobo, falou Citron. Provavelmente foi Nereu que nos denunciou e preveniu Samuel dos nossos planos. Mas quem teria contado a Nereu?
— Agora é tarde para nos lamentarmos, manifestou outro.
— O traidor precisa pagar! exclamou Citron. Um de nós irá ao encalço desse miserável e o eliminará. Se o nosso plano tivesse vingado, poderíamos partir ao amanhecer para longínqua região, onde cada um iria viver sem a preocupação do dia de amanhã. Agora, foram-se as nossas esperanças de independência! Teremos de ser servos o resto da vida! Maldito Nereu! Encarrego-me de aplicar-lhe a punição merecida. Eu mesmo lhe cortarei a língua!
— Tenhamos calma, Citron, falou Hipólito, pois poderemos executar os mesmos planos com os novos senhores deste solar... Se eles não reconhecerem nossos direitos e não nos indemnizarem, faremos com os Galenos o que pretendíamos fazer com os Isócrates que fugiram...
E nesse tom, prosseguiu a conversa.
* * *Depois do algumas horas de viagem, feitas à luz da lua, que felizmente estava em fase crescente, Samuel e seus companheiros estacionaram em frente a uma humilde casa de pasto, nas vizinhanças de Corinto. O sol já abrira o seu leque de luz no
horizonte. Fazia frio e os viajantes desejavam comer algum alimento quente. O estalajadeiro, que nesse momento abria as portas, prontamente os atendeu. Enquanto aguardavam a refeição, trocavam impressões sobre as ocorrências daquela noite memorável. Quem teria sido o cabeça da revolta? Quais os motivos alegados para justificar o ataque? Ou o móvel do crime teria sido pura e simplesmente o roubo? Estas e outras perguntas foram feitas sem que ninguém alvitrasse resposta satisfatória.
Baseado nas revelações do guia espiritual, Samuel informou que a inspiradora do assalto havia sido a inveja aliada à ingratidão e que portanto, era escusado procurar uma explicação plausível para o ato dos servidores. E acrescentou:
— Não esqueçamos de agradecer aos bons guias, cujas advertências nos salvaram a vida. A tendência da criatura é olvidar os benefícios recebidos, vigiemos portanto para não incidir no mesmo defeito que criticamos nos outros.
— É verdade, disseram todos. íamos esquecendo de dirigir o nosso pensamento de gratidão às luminosas entidades que abnegadamente nos salvaram. Por aí se vê que também nós ainda estamos muito longe da perfeição...
A seguir, Samuel, que apesar da sua pouca idade, se tornara o mentor do grupo, disse:
— Nereu, estás muito calado desde que partimos. Quero que saibas que não vemos mais em ti um empregado e sim um amigo muito querido. E já que o destino não vos concedeu filhos, peço-te, e à bondosa Diana, que a partir de hoje nos considerem seus filhos. Jesus ensinou que todos os homens são irmãos e que nenhum é mais do que o outro. Em consequência, peço-te que doravante tenhas inteira liberdade connosco.
— Obrigado! respondeu o humilde servidor, todos são irmãos mas uns melhores do que os outros e eu reconheço a superioridade do vosso espírito sobre o meu. Portanto, embora eu e minha companheira desde muito já vos consideremos como filhos, continuarei a tratar-vos com o respeito merecido. Acompanhar-vos-emos aonde quiserdes ir e enquanto nos quiserdes em vossa companhia. O que mais desejamos é permanecer ao vosso lado até o fim dos nossos dias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jan 07, 2023 7:30 pm

Eu, porque gosto muito do senhor, e Diana porque tem loucura por dona Anália.
— Ó meus amigos, disse o jovem comovido, nos momentos de prazer não faltam pessoas que queiram fazer-nos companhia, mas nos momentos difíceis são poucos os que se apresentam... Tu e Diana de modo nenhum sereis mais considerados servos, e sim parentes dignos e respeitados!
— Mais uma vez obrigado, meu caro menino, disse Nereu disfarçando as lágrimas que lhe assomavam aos olhos.
Repentinamente, Anália que se achava abraçada a Diana, teve um estremecimento e retomando a sua posição erecta na cadeira, falou, de olhos fechados:
— Caríssimos irmãos. Prossegui a peregrinação encetada esta noite. Nada receeis; estais sob a protecção de devotados amigos siderais. Tereis hoje e sempre, enquanto cumprirdes escrupulosamente os vossos deveres divinos e humanos, todo o apoio fraternal dos falangeiros do bem. Com esta marcha inicia-se a vossa missão. Ao fim de três dias chegareis às proximidades de Delfos, onde encontrareis a habitação que será vosso lar e onde vivereis em paz e harmonia.
Conhecereis duas dignas famílias, onde encontrareis dedicados amigos que já foram vossos consortes em outra vida... Antes do vosso casamento haveis de encontrar alguém cuja amizade será fonte de inexauríveis alegrias para vós ambos. Nada posso dizer por enquanto sobre essa pessoa. De tudo porém, ficareis inteirados com o escoar do tempo.
Ides habitar uma região propícia aos ideais que acalentais: Delfos. Amanhã já avistareis o Monte Parnaso, em cuja encosta fica o templo, singelo na aparência, mas de grande actividade psíquica, que ireis frequentar, em benefício do vosso desenvolvimento espiritual e com proveito para inúmeras almas que a ele recorrem em busca de inspiração e auxílio. Permanecei em paz. Adeus.
Anália despertou e pelo olhar espantado de Nereu e sua esposa, compreendeu que um mensageiro de Jesus fizera ouvir suas sábias palavras.— Que foi que eu disse? perguntou ela a Samuel.
Este pô-la ao corrente da mensagem recebida por seu intermédio e ficou surpreso ao ver que os dois fiéis servos haviam se ajoelhado junto à mesa.
Fê-los levantar-se e juntos ergueram o pensamento a Deus em sinal de agradecimento pelo auxílio que lhes era prestado de modo tão constante e extraordinário na dolorosa contingência em que se viam.
* * *
Decorridos três dias de viagem, chegaram ao local almejado: Delfos, actualmente chamada Castri e reduzida a ruínas, mas que na época da nossa história era ainda uma bela e pequena cidade da Fócida. Hospedaram-se numa das numerosas "pensões" existentes nos arredores, onde permaneceram até conseguir uma habitação que lhes conviesse, não longe do Templo de Apolo Delfinios, que dava o nome à cidade e cujo símbolo era um delfim. Tudo ocorreu conforme havia previsto o Guia Espiritual por intermédio de Anália. Depois de convenientemente instalados em uma nova e aprazível residência, Samuel convocou os familiares e, reunidos que foram, assim se expressou:
— Amigos, penso que é ocasião de entoarmos loas ao Creador(2) pelas graças que temos recebido. Após a catástrofe que sofremos, com a morte de nossos pais, verificou-se a ruína material: perdemos a nossa casa e as terras de que vivíamos. Porém, graças a Deus, com a ajuda dos seus mensageiros, esses dois golpes, que talvez nos houvessem prostrado, foram suportados com coragem e ainda conseguimos escapar indemnes a uma cruel tentativa de morte. Possamos nós ser sempre dignos de tão grande protecção.
De minha parte tenho a dizer-vos que não ambiciono riquezas, mas servir a Deus e aos meus semelhantes. Em consequência não é razoável esperar que venhamos a ter o conforto que já gozamos e sim que levemos uma vida simples e modesta. Aqui não poderemos ter empregados. Todos são livres e se alguém quiser algum dia retirar-se desta sociedade fraterna para viver mais a seu gosto, faça-o sem constrangimento.
— Senhor Samuel, disse Nereu, não serão necessários empregados. Eu e Diana faremos todo o serviço de casa, pois assim as horas passarão facilmente. Os labores, não sendo exaustivos, têm a vantagem de fazer o tempo transcorrer mais suavemente do que quando ficamos de braços; cruzados.
— Obrigado Nereu. Viveremos aqui sem luxos nem caprichos, apenas frequentando lares de pessoas de hábitos singelos. Procurarei uma profissão e na primeira oportunidade, passarei a frequentar o templo.
Começaram então aqueles quatro seres a viver pacificamente naquela pequena casa, que possuía um belo pomar e, em frente, um pequeno mas encantador jardim.
Todas as nobres aspirações dos moços foram realizadas dentro de poucos dias.
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 2 Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

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