LUZ ESPÍRITA
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 4 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:43 pm

A orquestra de bordo tocava a marcha "Cidade Maravilhosa", fazendo fundo sonoro com o solo do apito.
A caravana de bacharéis vibrava, festiva; os novos diplomados recostavam-se na amurada de metal dourado e polido, fazendo acenos aos parentes e amigos, enquanto agitavam bandeirinhas brasileiras e argentinas.
Claudionor, num entusiasmo infantil e eufórico, cruzava as mãos sobre a cabeça e depois as abanava de modo frenético, fazendo Lucília e dona Helena rirem divertidas.
Que Deus o acompanhe! — desejou dona Helena, com os olhos húmidos.
Tenho Claudionor à conta do filho que tanto desejei depois de você, para ser o meu arrimo na velhice!
E ergueu o busto num longo suspiro.
— Ora, mãe!
Não suspire a senhora por maus presságios.
Daqui a um mês estaremos casados e a senhora será a minha companheira para sempre.
Claudionor a quer tanto, quase como a própria mãe dele!
Está bem?
Quinze dias depois a caravana retornava de Buenos Aires.
No cais, moviam-se parentes e amigos dos novos bacharéis, ansiosos de os abraçarem.
Surpresas, dona Helena e Lucília não viram Claudionor desembarcar, o que lhes despertou mau presságio no coração.
Felizmente, Heráclito, amigo e colega de quarto do noivo, livrando-se dos abraços dos familiares, achegou-se, sorridente e alegre para Lucília:
— Não se preocupem! — Claudionor desceu em Santos e subiu até S. Paulo, para abraçar os velhos e deixar-lhe os presentes e lembranças adquiridos em Buenos Aires.
Em seguida retornará ao Rio e pediu-me para lhes dar o recado e estas lembranças.
O resto das encomendas ele virá trazê-las pessoalmente.
Embora a notícia não fosse tão grave, Lucília e Helena sentiram-se inquietas pela decisão repentina de Claudionor, pois ele mesmo havia decidido que todos seguiriam para S. Paulo, logo após o seu retorno de Buenos Aires, a fim de cuidarem dos papéis para o casamento.
Ademais, os pais haviam estado com ele, no Rio, durante a semana da formatura.
Algo estranho havia naquela súbita saudade de vê-los e na interrupção da viagem.
No fim da semana, os maus pressentimentos se comprovaram.
Claudionor escrevia adiando o casamento para daí a três meses, alegando motivos imperiosos que desejaria esclarecer pessoalmente no Rio.
Decorrido uma semana da promessa, ele comunicava em rápido bilhete, que viajara, às pressas, para Buenos Aires, a fim de adquirir matéria-prima para a firma.
Isso foi o início do calvário de dona Helena e culminou com o acontecimento funesto.
Nunca mais ela viu Claudionor, enquanto Lucília definhava assustadoramente.
Infelizmente, o desfecho apagou da fisionomia de dona, Helena a sua beleza tão doce e serena, extinguindo-lhe na, alma o interesse por qualquer coisa do mundo.
Lucília, sua filha querida, tão meiga e recatada, havia-se suicidado com. formicida, ao saber que Claudionor casara-se repentinamente; com formosa jovem platina.
— Lamento profundamente, dona Helena, que Lucília, tenha destruído a vida por criatura tão mesquinha como é Claudionor.
Sempre o detestei pela sua dissimulação e avidez egoísta! — considerava Odílio, o mais sincero e fiel amigo da família.
Porventura ela o amava tanto, a ponto de sentir-se incapaz de viver sem ele?
Dona Helena levantou-se, abriu a gaveta da pequena cómoda da saleta e dali retirou uma folha de papel.
Estendeu para Odílio, num gesto amargurado e os olhos marejados de lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:43 pm

Ele então reconheceu a letra miúda e delicada de Lucília:

"Adeus mãe.
Não posso sobreviver depois disso; antes de Claudionor viajar para Buenos Aires, eu fraquejei e ele se aproveitou de mim.
Perdoe-me, querida mãe, não sei viver enodoada.
“Lucília."

Durante o primeiro ano de casado, Claudionor fixou residência em Buenos Aires, às expensas da família e sob o pretexto de um curso de aperfeiçoamento jurídico.
Entretanto, o verdadeiro motivo era o temor de enfrentar qualquer pessoa das relações ou do conhecimento de Lucília e dona Helena.
Somente retornou a S. Paulo, quando soube que dona Helena havia falecido, o que se dera poucos meses depois do suicídio de Lucília.
O velho Benevides deu-lhe a gerência da nova filial, em populoso bairro paulista, e fê-lo advogado da firma para atender as complicações da indústria e do comércio junto aos poderes públicos.
Após um ano de casado, Claudionor começou a perceber o terrível equívoco:
Zulmira, que ele encontrara na festa dos bacharéis em Buenos Aires e lhe havia ateado um desejo ardente de posse, dia a dia mostrava os seus maus predicados e causava inúmeras decepções.
Era uma jovem de formas sensuais e toda ela a fremir pelos prazeres materiais, revelando nos modos e acções um primarismo grosseiro.
Ela fora criada por uma tia viúva e rica, além de receber vultosa mesada dos pais, que lhe proporcionava um viver de prodigalidade e exageros para sustentar a vaidade e faceirice, numa vida ociosa e divertida.
Era egocêntrica e idolatrava o corpo vistoso. Fazia questão de ressaltar as formas e tentar os homens, semeando conflitos entre os jovens estimulados por paixões imprudentes.
Formosa e afortunada, era cobiçada e vezeira em negaças amorosas, tendo causado dissabores pela volubilidade. Invejada pelas moças, e criticada pelas velhas solteironas, Zulmira penetrava nos teatros, cinemas, igrejas e festividades sociais, como a candidata de concursos de beleza comparecia mobilizando todos os seus recursos e atavios do corpo para atrair os aplausos do público.
Movia-se erecta, o busto vistoso e arfante, de lábios entreabertos a fluir o fogo que lhe grassava nas carnes palpitantes.
Claudionor, espírito escravo dos impulsos apaixonados, facilmente perdia o controle mental quando acicatado pelo desejo.
Ao ver Zulmira ficara obsediado pela sua figura voluptuosa, convencendo-se de que jamais teria tranquilidade sem aquela mulher.
Entretanto, Zulmira, além de excessivamente sensual era fanática por roupas luxuosas e berrantes, que abandonava nos guarda-roupas abarrotados de vestimentas em desuso.
Enfeitava-se de modo espalhafatoso, sobrecarregando o corpo de jóias valorizadas em milhares de cruzeiros, e sob as formas de penduricalhos pelo pescoço, orelhas, braços e dedos, onde cintilavam rubis, esmeraldas, diamantes e muito ouro, num gozo infantil e próprio do bugre civilizado.
Graças ao progresso financeiro da firma, cuja fortuna o velho Benevides havia triplicado, Zulmira possuía um luxuoso "Buick" de aros e enfeites niquelados, que impressionava muitíssimo na época.
Frequentava todas as reuniões de mulheres ricas, ociosas e fartas da vida, devotadas apenas ao culto prosaico do corpo perecível.
Passavam os dias a mastigarem docinhos bebericando alcoólicos afidalgados e fumando "cigarrilhas", que ela mesma trazia de Buenos Aires nas viagens quinzenais.
Exigia plena liberdade para as actividades e iniciativas onerosas, mostrando-se furiosa ante as veladas advertências do velho Benevides, quanto aos gastos excessivos.
Claudionor sentia-se cada vez mais fatigado da vida frenética e perturbado pela estultícia de sua mulher e evitava acompanhá-la nas suas excursões freqüentes e obrigações sociais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:43 pm

Como o desejo carnal depois de farto gera o tédio e com o tempo a própria repulsa, ele deplorava o estúpido casamento e sentia-se cada vez mais inibido quanto às exigências intermináveis da esposa.
Além disso, Zulmira tornava-se cada vez mais volumosa e se punha à mesa de modo estabanado, ruidoso e grosseiro, gritando com os criados em linguagem ofensiva.
A boca cheia de pão, confundindo o ato de comer com o de falar, era de uma verbosidade avassalante!
Ria-se às bandeiras despregadas, sacudindo o corpo farto por qualquer asneira do velho Benevides.
Depois de nascer Manuela, a primeira filha, modificara-se bastante o porte esguio e suas formas atraentes.
A pele, rósea e macia de pêssego aveludado, perdia a cor atraente mostrando-se cada vez mais graxosa e áspera.
Terezinha, a segunda filha, foi responsabilizada pelos noventa quilos que Zulmira atingira na gestação, dominada por uma fome insaciável.
Claudionor não era mais o moço néscio e insensato de solteiro.
Por necessidade de sua profissão liberal, entrara em contacto com advogados e juízes de cultura, exercitando e afinando o raciocínio pelas reflexões mais sérias.
A saudade de-Lucília e o sentimento de culpa insistente feriam-lhe a alma, acrescidos das atribulações ridículas e dos insultos recebidos da mulher, sensibilizando-o pouco a pouco o coração no preparo para os sofrimentos futuros.
Ele sentava-se à mesa, sombrio e silencioso, observando de esguelha as banhas fartas, a papada e os braços taurinos do mulherão em que se transformara Zulmira!
Os olhos grandes e belos apelidados por ele de "jabuticabas aveludadas", desapareciam espremidos pela gordura do rosto.
Sem força de vontade para fazer dietas de emagrecimento recomendadas pelos médicos, algum jejum esporádico ainda lhe triplicava o apetite e assim ela recobrava os quilos perdidos ficando mais obesa.
Claudionor percebia cada vez mais a enorme diferença entre a doçura, o recato e a inteligência de Lucília, os seus modos realmente femininos, o seu vestir singelo e agradável, comparados à eclosão sensual e ao primarismo de Zulmira, cuja figura parecia talhada num bloco de toucinho a resfolegar ruidosamente sobre o prato de alimento!
Até o fim da vida ele teria de suportar a engorda, a grosseria, a insatisfação e os trajes circenses da esposa mal educada, no mais vivo contraste à imagem delicada e sonhadora de Lucília, cada vez mais remoçada na sua mente angustiada.
Deus lhe havia posto na vida duas mulheres formosas; uma talentosa e pudica, outra imbecil e embrutecida!
Era um sofrimento masoquista, uma tortura contínua e o fogo da lembrança da própria infâmia a lhe queimar o espírito!
Pensando em Lucília e vivendo com Zulmira, ele agora reconhecia o castigo que decretara a si mesmo sob a força do egoísmo e do desejo puramente sexual.
A noite, recolhia-se à saleta de fumar e apagava as luzes, naquela postura sacrificial de se maltratar lembrando a cortesia e a leveza de espírito das duas criaturas sublimadas, como eram Lucília e Helena.
No entanto, jamais ouvira uma palavra incomum, um dito inteligente, um pensamento construtivo ou aparte subtil de Zulmira, que apreciava contar e ouvir as• estórias de baixo calão.
Ela esmiuçava detalhes de assuntos desagradáveis à mesa de refeições, comentava coisas repugnantes num contraste repulsivo com o alimento a ser ingerido; deliciava-se com as notícias fesceninas e não sabendo contar uma anedota razoável, supria a sua ignorância e insuficiência de espírito associando expressões escatológicas.
Faltando-lhe o senso de humor, ria-se desbragadamente ante a clareza dura de uma piada que exigia o recato de um sorriso disfarçado; depois silenciava, aparvalhada, sem compreender os motivos porque outros riam de alguma subtileza de espírito!
Assim que nasceu Sanita, a terceira filha, Claudionor apático e frustrado no desejo de ter um filho homem para o substituir na velhice, decidiu-se à continência sexual.
Então, Zulmira mostrou-se furiosa, invocando os dias apaixonados em que ela sendo mulher formosa "prestava" para ele.
Mas, diante da indiferença do marido, ameaçou-lhe de "traição", insultando-o de maneira grosseira e procurando feri-lo na sua dignidade masculina, embora ele a deixasse falar sozinha, subindo as escadas para seu quarto, no condomínio de Benevides, ainda ouvindo dela os gritos e os palavrões.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:43 pm

Assim que nasceu Sanita, a terceira filha, Claudionor .aquelas cenas indecorosas e bem próprias de cortiços, Claudionor adquiriu bela vivenda retirada do centro da cidade, semi-oculta entre agradáveis ciprestes e arvoredos de folhagem robusta, bastante isolada da vizinhança indiscreta.
Cada vez mais irascível e queixosa, pondo a culpa de sua frustração, obesidade e insatisfações nos ombros do marido, Zulmira desmedia-se pela violência nos gestos e gritos estentóricos ante a muralha de silêncio dele.
Servida por uma equipe de criados, arrumadeiras e jardineiros, fazia questão de humilhá-lo diante -dos empregados, num prazer sádico de compensar a própria perturbação espiritual com o sofrimento alheio.
E, ainda, conseguira o pior; à custa de intrigas, perfídias e acusações infundadas, despertara verdadeira repulsa e ódio silencioso das filhas Manuela e Terezinha, contra o pai, que dali por diante passou a ser ignorado por elas, mesmo quando lhes dirigia a palavra.
Em troca dessa ofensiva sádica e maldosa contra o esposo, Zulmira aliara-se incondicionalmente às filhas, prodigalizando-lhes toda a sorte de favores, mimos e presentes, dando-lhes plena liberdade de acção, sem cogitar de qualquer reprimenda ou advertência às suas aventuras de moças cada vez mais imprudentes e volúveis.
Era muito comum ela e as filhas retornarem de madrugada para o lar e Claudionor jurava que habitualmente estavam alcoolizadas.
Qualquer ensejo favorável servia para Zulmira dar vasão à sua desforra implacável contra o marido, atormentando-lhe o sono com as dispneias, perturbações hepáticas, pressão alta e desmaios melodramáticos, que punham as filhas em polvorosa e só faltavam surrá-lo depois dos piores insultos.
Zulmira aguardava todas as ocasiões para desabafar-se colericamente, relembrando pequenos descuidos e senões do marido, enquanto lamentava os excelentes candidatos que havia desprezado por causa dele e a deformação do seu corpo tão atraente pela gestação das filhas.
Comumente, insultava-lhe a família de portugueses sovinas e mal cheirosos, que a criticavam devido aos gastos exagerados e excursões censuráveis.
Manuela e Terezinha possuíam o próprio automóvel e com a mãe passaram a viajar frequentemente para o Rio, alegando empreendimentos e obrigações associativas filantrópicas.
Cristiano, filho mais velho de Benevides, jurava tê-las encontrado com estranhos em certa boate suspeita, no Rio, mas Claudionor mostrou-se indiferente à notícia.
O escândalo estourou, ruidoso e irreparável no seio da família laboriosa do velho Benevides.
Zulmira e as filhas, em companhia de outras amigas volúveis, haviam sido apanhadas pela polícia carioca, num bairro aristocrático da Capital Federal, em desenfreada bacanal com rapazes corruptos, onde além do excesso de bebidas alcoólicas, as autoridades encontraram resíduos de cocaína.
Infelizmente, a tempestade não amainou, pois ante o repúdio da própria família conservadora de suas virtudes ancestrais, Zulmira e as filhas passaram a desforrar-se esbanjando fortunas em banquetes, noitadas alegres em boates e locais de exploração viciosa.
Durante o dia elas dormiam a sono solto, e, à noite, cobriam de pó e creme as fisionomias maceradas pelo desgaste orgânico dos tóxicos e alcoólicos, em violenta ofensiva contra Claudionor pelas suas negativas em financiar as orgias censuráveis.
Sob a investida insistente da parentela, revoltada por tais acontecimentos, ele se viu obrigado a deserdá-las por edital público, eximindo-se de quaisquer responsabilidade que viessem a praticar sem sua prévia autorização.
Mas ao retornar ao lar, no dia seguinte, esperava-o nova surpresa; Zulmira e as filhas haviam-no despojado de todos os valores, títulos trancáveis, jóias e demais objectos de uso e utilidade.
Inquirido o mordo mo, ele explicou que elas haviam recheado os dois carros com todos os pertences transportáveis, limpando os guarda-roupas, as cristaleiras e as cómodas, protegidas por três indivíduos de aspecto agressivo.
Ao certificar-se da ruiva do seu lar, Claudionor reconheceu o castigo merecido por ter desprezado Lucília.
Desapareciam as esperanças de no futuro usufruir a desejada paz de espírito!
lguns meses depois soube que Manuela e Terezinha haviam desaparecido com dois rufiões na mais lastimável degradação moral.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:43 pm

Zulmira faleceu um ano após e foi encontrada em coma etílica, num modesto hotel de subúrbio, entre garrafas de rum e gin, que ingerira a noite toda, por ter sido abandonada pelo amásio, vulgar proxeneta que lhe havia consumido todos os bens.
Anos depois, Claudionor, envelhecido e trémulo dos nervos, com apenas 51 anos de idade, desencarnava na luxuosa vivenda.
O destino apiedado de sua tragédia fechara-lhe os olhos em presença da carinhosa Sarita, a filha que sobrevivera à enxurrada lodosa e lhe fora anjo amigo até os últimos momentos de vida carnal, depois de sofrer tanto por causa de sua imprudência espiritual.
— Por aí vocês verificam, — dizia-nos Epaminondas, o mentor espiritual de nosso grupo de estudos psicológicos da esfera "Grande Coração", ao narrar a história de Claudionor, — como é difícil e demorada a nossa ascese angélica no desempenho do programa redentor na carne.
Além das paixões, vícios e circunstâncias ou desejos, que nos acometem na existência humana, ainda defrontamos com a sobrecarga dos equívocos cármicos de nossa imprevidência com os adversários pregressos.
Partimos do Espaço jurando o aproveitamento de todos os minutos em exclusivo favor de nossa ventura espiritual, e, assim que ingressamos no esquecimento da carne, preocupamo-nos Unicamente em "ser rico" ou satisfazer todos os apetites animais.
Epaminondas fez um silêncio significativo, como a reunir fragmentos de suas próprias lembranças milenárias, e depois prosseguiu, calmamente:
— Claudionor, em existência anterior vivida na França, abusou da fortuna e prostituiu algumas jovens confiantes em promessas falazes.
Para isso servia-se de três mulheres alcoviteiras, que em troca de bom dinheiro providenciavam-lhe a mercadoria carnal, jovem e apetitosa, para ele saciar os desejos lúbricos.
Embora também houvesse nas suas vítimas uma certa tendência inferior, porque "as santas não se pervertem", e segundo a Lei Espiritual, "cada alma colhe o que semeia e conforme suãs obras", Claudionor assumiu a responsabilidade directa por lançá-las no desregramento sexual.
Possivelmente essas jovens imprudentes degradar-se-iam de qualquer modo sob outros ensejos lúbricos, mas o certo é que o nosso amigo Claudionor foi, na verdade, o "detonador psíquico", a lhes deflagrar as tendências para a prostituição.
Como sabemos, "a amor une e o ódio imanta", e por isso ele se ligou cármica mente as vitimas e as próprias alcoviteiras que lhe forneciam a carne moça para as satisfações carnais.
Depois de uma pausa, Epaminondas esclareceu:
— Claudionor atraiu para a intimidade da última existência as alcoviteiras com quem se imantou no passado, e por isso teve de lhes sofrer a natureza primária de espíritos imaturos!
Uma delas foi Zulmira, e as outras duas Terezinha e Manuela, cujas existências findaram-se nos prostíbulos!
Nenhuma revelou qualquer afinidade ou afeição a ele, assim como o comerciante não fica devendo favores afectivos aos fregueses!
— E Sarita? — perguntei.
— Sanita é a primeira vítima de Claudionor a ser "reembolsada" dos prejuízos causados na vida anterior, pois ela recebeu excelente educação e viveu confortavelmente, sendo, a herdeira universal dele.
Quanto às outras vítimas do passado, também hão de ser indemnizadas no momento oportuno! —completou Epaminondas, com um sorriso cordial.
— E Lucília? — perguntou Morais, outro espírito estudioso dos problemas espirituais de nossa preferência.
— Lucília é um espírito de boa estirpe espiritual, estimado pela sua ternura e escrúpulo, com algum crédito razoável na contabilidade divina!
Embora tenha falhado pelo suicídio, foi socorrida no transe cruciante até onde merecia pelos benefícios prestados anteriormente a outrem.
Sob o impulso do "amor-próprio" da personalidade humana, ela se esqueceu da obrigação espiritual para com Helena, que havia encarnado especialmente para a amparar na hora nevrálgica das provas espirituais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:44 pm

— Mas não seria demasiadamente chocante para um espírito do quilate de Lucília, enfrentar o sarcasmo do mundo na condição de "mãe solteira"? — considerou Laudálio, companheiro de nossas excursões à Crosta.
O mentor Epaminondas, de cabeleira embranquecida e com um halo mental prateado, elucidou:
— A verdade é que "não cai um fio de cabelo do homem que Deus não saiba", e isso nos induz a crer na mais perfeita justiça e protecção aos nossos espíritos, por parte do Criador.
Ademais, sabem vocês, o cidadão angélico é aquele que desintegra a personalidade transitória do mundo de formas; mata o "homem velho" estruturado pela animalidade carnal e nasce o "homem novo" sem vínculos à substância material.
Em. cada existência humana resgatamos nossas culpas ou equívocos passados, justamente com os comparsas a quem ferimos ou. nos feriram em actividades contrárias ao bem e ao belo:.
Confortado pela generosidade de Helena em acompanhá-la à carne, Lucília aceitara a existência de resgate. e reajuste cármico para compensar certos acontecimentos desairosos de sua responsabilidade em vidas anteriores.
Claudionor, embora espírito imaturo, havia-lhe prestado favores na Espanha, onde reconhecera um filho bastardo de Lucília, em cuja época ela falhou em sua promessa conjugal com Odílio, que suicidou-se desesperado.
É óbvio, que ninguém é induzido fatalmente ao suicídio, só porque inspirou outros a se matarem, nem há de ser desprezado só porque desprezou outrora.
A Lei alicia os personagens do mesmo drama pretérito, coloca-os »sob circunstâncias semelhantes invertendo muitas vezes a posição na carne, a fim de se comprovar que o espírito receba "conforme semeou".
Os conflitos, as frustrações, as desforras, ficam por conta das virtudes morais, dos sentimentos cristãos ou das paixões inferiores do ser, pois o espírito revela na matéria o que, ainda, alimenta potencialmente dentro de si mesmo.
O homem que mata o companheiro, não fica estigmatizado pelo fatalismo cármico e implacável de também ser assassinado na próxima existência, mas sendo um cidadão com afinidade de assassinatos, então elege-se para nascer no meio de criminosos.
A sua vida, portanto, dependerá do comportamento que mantiver entre os delinquentes a cuja companhia faz jus pelo passado atrabiliário.
Epaminondas sacudiu os ombros para avaliar a responsabilidade alheia, completando em seguida:
— Se esse espírito for humilde, resignado, bom e tolerante ante os assassinos em potencial onde irá viver, é bem maior a sua probabilidade de continuar vivo; porém, se resistir ou ferir, devolvendo insulto com insulto, desforra com desforra, é evidente que aumenta a possibilidade de ser assassinado.
Portanto, não é a Lei do Carma que o obriga a ser assassinado, mas é a própria imprudência, obstinação ou cólera, a criar condições indesejáveis para a morte violenta, como punição do passado!
— Mas Helena deve ter sofrido injustamente pelo suicídio inesperado de Lucília, pois havia se encarnado para ajudá-la no reajuste espiritual, não é assim?
— Evidentemente, irmão Atanagildo, — replicou Epaminondas, assentindo com a cabeça.
Jesus também desceu à Terra para ajudar a humanidade terrícola e crucificaram-no; no entanto, sabemos que ele não era responsável por nenhum carma de crucificação.
Entretanto, quem pretende ajudar, também se candidata a dissabores, surpresas, tormentos ou frustrações dos seus pupilos, conforme aconteceu com Helena.
Quando no Espaço ela concordou em amparar Lucília na carne, aceitou, também, a "cota" de sacrifício e dores, que lhe pudesse advir nessa empreitada decorrente das situações de sua protegida.
Sem dúvida, sofreu atrozmente pela morte da filha, mas o sofrimento cessou depois de desencarnada, ao verificar que isso já estava previsto no esquema da vida de Lucília, como uma possibilidade em potencial.
Helena foi muito bem assistida e desencarnou sob a terapêutica de "fluidos desvitalizantes", deixando o mundo alguns meses depois do suicídio da filha, porque sua encarnação era mais de natureza protectora e não expiativa.
— Zulmira, Manuela, Terezinha e Sarita, são do mesmo grupo espiritual de Claudionor, Helena, Lucília e Odílio? —indagou Raul, participante de nossas tertúlias educativas.
— Não são propriamente da mesma família espiritual, se considerarmos à parte os ascendentes genéticos siderais ou afinidades de grupos e propósitos individuais sob a mesma raiz espiritual.
Em verdade, só existe uma família: é a humanidade!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:44 pm

Mas primeiramente surge o indivíduo, a família, a tribo, a raça e a nação; depois a aldeia, a cidade, o estado, o país, o continente, o globo, a constelação planetária, e, enfim, o Universo.
Futuramente só haverá uma parentela sideral oriunda da mesma fonte divina que é Deus!
Mas, no momento, Zulmira, Terezinha, Manuela e Sarita, juntaram-se à vida de Claudionor "imantadas" pelo mesmo Carma.
São espíritos primários, cuja encarnação ainda se processa por "força de atracção" da carne e não pela escolha espontânea ou consciência de obrigações assumidas nos programas de redenção espiritual.
Uniforme no todo "psíco-físico" e demasiadamente presos às reacções da animalidade, eles são atraídos para o corpo orgânico pelas linhas de força do magnetismo inferior.
Vivem existências indisciplinadas e turbulentas, dirigidas exclusivamente pelos desejos e paixões.
Reagem apenas pelos instintos primários, como o animal ao se defender ou atacar no seio da própria espécie e sem qualquer intenção sacrificial.
Espíritos "imediatistas" buscam só os momentos propícios à satisfação egocêntrica e prazenteira, proporcionadas pelo seu sistema sensorial desabrochado para o mundo exterior.
Sem escrúpulos ou preocupações pelos prejuízos alheios, pois não possuem a noção consciente do Bem, baixam à carne e retornam ao mundo espiritual, quase inconscientes do que lhes aconteceu na existência praticamente sonambúlica.
Muitíssimo egoístas, são capazes de arrasar um tomateiro para provar um tomate, incendiar uma casa para aquecer o corpo ou dinamitar uma fonte d'água para lavar as pontas dos dedos!
Quando se filiam à religião católica transformam a Igreja numa passarela de modas e exposição de jóias.
Se ingressam no Protestantismo, gastam fortunas em Bíblias de ouro e pedras preciosas, mas ignoram a associação de caridade e jamais compreendem a desgraça alheia.
Sob a égide do Espiritismo, vampirizam os médiuns no vício do "papa-passe", ou requerem receitas mediúnicas para a mais singela dor no cotovelo.
Obrigam os confrades a deixarem os leitos, em madrugada gélida, só para lhes atender a dispepsia provocada pelo excesso de carne de porco, ou então eliminar o resfriado consequente da cerveja ou do "whisky" gelados.
Dramatizam a gripe mais inofensiva à conta de uma consequência cósmica, mas ignoram o câncer do vizinho antipático.
Epaminondas cessou de falar, reflectindo na própria descrição do tipo de almas que enunciara, quando espíritos mais conscientes vão à imprudência de "imantá-las" às suas vidas educativas no futuro.
— Não há dúvida, — continuou ele — a inconsciência e o egoísmo são estados naturais de todas as almas no princípio de formação da consciência espiritual, embora depois sejam outros tantos anjos e deusinhos.
Não devemos condená-las nem repeli-las, pois tais ascendentes nós também já os revelamos alhures.
No entanto, convém examinarmos as características desse tipo espiritual, antes de qualquer conluio ou requisição de seus serviços no mundo, porque depois precisamos de muita renúncia e tolerância para vivermos aturando sua bagagem inferior!
— Em consequência, — inquiri, curioso, — poderemos supor que Claudionor estava predestinado a sofrer tremendo tumulto em sua vida, devido à qualidade inferior da esposa e das filhas?
— Absolutamente, não! — atalhou Epaminondas.
Se você atrair um macaco para o seu palácio ornamentado de cristais, porcelanas, móveis estofados de seda e veludo, depois não deve se queixar, porque o animal quebrou-lhe a louça, a porcelana e rasgou os belos estofados.
Em verdade, isso não é determinação implacável do destino para acontecer fatalmente, mas é decorrência natural do "estado evolutiva" do macaco, que é um animal indócil e daninho.
Portanto, as companhias que atraímos para a órbita de nossa vida espiritual acompanham-nos em todas as transladações e vidas futuras, cujos laços culposos não devem ser rompidos, mas desatados.
Elas nos perturbam mesmo quando já definimos o nosso rumo espiritual para o Norte Angélico, caso ainda não estejamos completamente libertados do magnetismo inferior.
— Pressupomos, então, que Zulmira, Terezinha e Manuela são algo de "macacos", que Claudionor atraiu para sua vida, e por isso sofreu-lhes os danos próprios das naturezas espirituais primárias, não é assim?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:44 pm

Epaminondas sorriu, com certa finura:
— Bem, dei a vocês um exemplo rudimentar e sugestivo, quanto à conveniência de seleccionarmos com cuidado as companhias para as nossas viagens futuras no trajecto educativo da vicia carnal, e assim evitarmos atrapalhos e sofrimentos decorrentes de suas inferioridades.
Já pensaram na vantagem de Claudionor, se em vez de ligar-se a espíritos instintivos, como o fez para gozar sua vida anterior, ele tivesse recorrido aos serviços de seres da estirpe de Francisco de Assis, Terezinha de Jesus, Vicente de Paula ou o próprio Jesus?
— Porventura, Claudionor não poderia ter-se apaixonado exclusivamente por Lucília, sob a premonição espiritual de que ela seria a companheira electiva à experiência terrena?
— O tipo espiritual de Claudionor — fundamentalmente impulsivo, egoísta, inescrupuloso e desgovernado no comando do sexo — toda vez que fosse colocado diante do binómio cármico que ocorreu em sua vida, ele sempre desejaria o tipo plácido e doce de Lucília, para esposa, como um verdadeiro refrigério à sua vida intempestiva e excitante, e Zulmira, na sua ostensividade tentadora e sensual, para a amante!
Mas, infelizmente, para ele, Zulmira era espírito astuto e egoísta, que percebeu logo a vantagem imediata pelo desejo vulcânico ateando através das formas opulentas e dos acenos lúbricos.
Ela soube controlar-se até levá-lo ao casamento, para só depois ceder aos seus caprichos.
Sem dúvida, ele teria sacrificado metade da vida, caso pudesse reconsiderar o ato inescrupuloso e desposar Lucília, livrando-se do estafermo que lhe foi Zulmira!
— Ainda uma pergunta, irmão Epaminondas, — acrescentei.
Que aconteceria a Lucília, caso não se suicidasse?
— A Lei já havia colocado no seu caminho um óptimo companheiro, que não só a esposaria movido por um afecto sincero gerado em vidas pretéritas, como ainda acabaria reconhecendo-lhe e legitimando o filho espúrio de Claudionor.
— Mas em face do suicídio de Lucília, esse bom samaritano, que naturalmente estaria indicado para ser o esposo, porventura não ficou frustrado na sua programação pela morte dela?
Não é bem assim, irmão Atanagildo, — retrucou Epaminondas, atencioso.
Esse alguém nascido para amparar Lucília, também, terminou encontrando no caminho outra Lucília, espírito afim, e que não se suicidou!
Compreendeu?
Epaminondas levantou-se e deu a entender que havia terminado os esclarecimentos instrutivos sobre a vida de Claudionor, cujo espírito estulto havia trocado o amor puro e sublime de Lucília, pela paixão inflamada e fugaz de Zulmira.
O nosso mentor e amigo, cuja humildade e bom ânimo encobria uma das mais abalizadas experiências do mundo espiritual, encerrou a história:
— Claudionor, como a maioria dos encarnados imprevidentes, prendeu-se à beleza exuberante e efémera da flor do cáctus de um dia, deixando de colher a violeta singela e duradoura!
Sem dúvida, o pobre homem fez "um mau negócio."
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:44 pm

11 - FRUSTRAÇÃO
Margarida atingira o oitavo mês de gravidez sem problemas, tranquila e jovial, sem as manifestações violentas ou desagradáveis próprias das parturientes menos felizes.
Romualdo Moreira, -- o esposo —, advogado de renome e bem postona vida, mal conseguia suportar a demora dos dias que ainda faltavam para fruir a venturosa condição de pai.
Sua mente fértil e dinâmica havia delineado o futuro do primogénito.
Sem dúvida, seria um "menino"!
Mentalmente, via-o crescer, alegre e robusto, a soletrar as primeiras letras do alfabeto na escola primária; em seguida, o ginásio, o "pré-académico", e, finalmente, um curso brilhante, entre palmas festivas e a comoção de Margarida, graduando-se médico pela "Faculdade de Medicina" local.
O menino chamar-se-ia Honório, em homenagem particular de Romualdo a Honoré de Balzac, seu autor predilecto a cuja fertilidade de espírito sentia-se bastante afinizado.
Embora ainda moço, ele possuía regular fortuna, assegurando-lhe o ensejo de presentear Honório — futuro médico —, com o melhor consultório da cidade.
Enfim, Margarida recolheu-se ao hospital, aproximando-se o momento nevrálgico da "delivrance" e o consequente advento do primeiro filho.
Romualdo jamais duvidara de que seria um menino, embora Margarida estivesse certa de "ganhar uma menina".
Quando aumentaram as dores do parto, Romualdo pôs-se a fumar freneticamente, num "vai e vem" nervoso pela ante-sala de cirurgia.
O médico, Dr. Monteiro, muito amigo da família, surgiu calmamente à porta, e também resolveu aderir à impaciência do futuro pai e aceitar um cigarro.
Romualdo inquiriu, nervoso:
— Tudo bem, doutor?
— Até agora Margarida vai optimamente!
Não se preocupe. — Olhou o relógio de pulso e depois bateu amistosamente no ombro do amigo.
— Creio que dentro de uns 30 ou 40 minutos, você será pai de algum robusto garoto!
E num sorriso algo travesso.
— A não ser que venha alguma encantadora menina!
E retornou para o quarto, atirando fora o-cigarro meio queimado.
A porta fechou-se e Romualdo demorou-se a fitá-la, com um ar tão trágico como se todo o seu futuro dependesse do que iria acontecer lá dentro.
Rumou outra vez para a janela e ficou espiando a rua ensolarada, onde um bando de guris se movimentava aos gritos correndo atrás de uma bola de pano.
O hospital ficava numa elevação de terreno e dali se podia descortinar parte da cidade.
Os edifícios esguios e altos, surgiam por cima da copa dos arvoredos da praça e as janelas cintilavam à luz do Sol.
Os canteiros de grama estavam bem verdes, crivados de verbenas, miosótis e amor-dos-homens, rodeados pelas touceiras de cravos brancos, róseos e vermelhos.
Algumas pessoas ociosas e sem rumo, sentavam-se nos bancos de mosaico, vulgarizados pelas frases comuns das propagandas comerciais.
O dia estava tranquilo.
A brisa suave mexia com as folhas dos arvoredos, sacudindo os desenhos de luz e sombra, que o Sol traçava sobre a areia miúda dos caminhos e nos canteiros.
Romualdo tentava matar o tempo entretendo-se em observar a paisagem agradável.
Logo ouviu o ruido da porta do quarto de Margarida, ao se abrir, dando passagem ao médico.
Voltando-se, precipite, nem reparou na fisionomia triste do Dr. Monteiro, denunciando má notícia.
— É menino ou menina? — indagou alvoroçado.
— É homem! — respondeu o médico num tom de voz soturno, que espantou Romualdo.
— Que aconteceu, doutor?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:44 pm

— Romualdo, meu amigo; você não desespere.
Francamente, a gente nem sabe como comunicar certos fatos a um amigo.
Romualdo empalideceu pressentindo a dolorosa surpresa que devia esconder-se atrás das palavras aflitivas do médico.
Provavelmente, Margarida sucumbira durante o parto, ou talvez o próprio recém-nascido.
Afrouxou os nervos preparando-se para receber a notícia grave e dominar a emoção indisciplinada.
Em seguida, falou, num tom conformado:
— Bem, doutor Monteiro, pode dizer o que aconteceu?
— Margarida está bem! — aliviou o médico, de princípio.
E o menino, além de sadio e encantador, seria um sucesso se não fosse a "focomelia"!
— O que? — exclamou Romualdo, sem entender o termo patológico.
— Ele praticamente não tem os braços! — respondeu o médico, com certo atropelo nas palavras.
— Sem braços? Como?
Não pode ser!
Romualdo recuou, num gesto de assombro e horror, deixando as mãos caírem desamparadas próximas do corpo.
Os olhos percorreram os quatro cantos da sala.
Algo entontecido, fez um gesto de entrar no quarto de Margarida, mas logo mudou de ideia, clamando numa voz desesperada:
— Não! Não quero vê-lo, doutor!
Esperei minuto a minuto esse filho!
Vivi-lhe todos os desejos e sonhos no meu pensamento.
Acompanhei mentalmente seus passos desde o berço, antecipando-me a ventura de o fazer médico.
Queria que ele exaltasse ainda mais o meu nome feito com sacrifício e honradez.
Num gesto resoluto, sacudindo a cabeça com inusitada veemência, rectificou num tom de voz implacável.
— Não quero vê-lo, doutor!
Jamais hei de vê-lo!
— Acalme-se, amigo Romualdo, de início tudo é assim mesmo.
Não é a primeira vez que participo de acontecimentos semelhantes, mas asseguro que depois você sentirá estima e ternura por ...
— É inútil, Dr. Monteiro!
É inútil; eu não quero ver esse filho de modo algum.
Esperei um companheiro para a minha velhice, mas não um mutilado que insulta a minha própria configuração física!
Como é possível um casal sadio gerar um ser disforme?
Como isso é possível, Dr. Monteiro?
Achegou-se à janela, olhando para fora sem ver a paisagem.
— Eu não quero vê-lo!
Nunca o verei! — repetia sem cessar.
— Romualdo!
A culpa não é dele!
Isso cabe ao Senhor da Vida e deve ser algum destino cujo objectivo ignoramos — tentou contemporizar o médico.
— Não! A mim pouco importa quem seja o culpado, pois não transigirei num milímetro na minha resolução.
Não darei o meu sobrenome a um aleijão, que depois o levará pelo mundo afora como um estigma deplorável à minha linhagem sadia.
Criem-no, quem quiser; menos eu!
E voltando-se para o médico, decidido.
— O assunto está encerrado, doutor Monteiro!
Ainda não sou pai, nem tenho filho! — completou num tom melodramático.
Depois, tentando moderar o seu nervosismo, indagou:
— Margarida sabe disso?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:45 pm

— Não. Achei que seria prematuro dizer-lhe a verdade, enquanto ela não se refizer do parto.
Poderá esperar alguns dias para o saber, pois terá de vê-lo despido.
Redarguiu o médico, profundamente constrangido.
- Doutor Monteiro, queira dizer a Margarida que eu fui chamado com urgência para atender um interurbano no escritório.
Preciso andar, andar muito e pensar nesta desventura.
Quero ficar a sós, algumas horas, comigo mesmo, a reflectir quanto à maneira de enfrentar minha mulher, para lhe dizer do meu repúdio a esse filho teratológico.
Até logo,. doutor.
E Romualdo rompeu corredor afora, lábios fortemente cerrados e as mãos crispadas nos bolsos da calça.
Subitamente, voltou-se, dizendo com voz algo ameaçadora:
— Por favor!
Não diga a Margarida o que aconteceu até eu o avisar, doutor.
Primeiramente procurarei decidir quanto à atitude mais sensata neste caso desagradável.
— Tranquilize-se, Romualdo; ela ainda levará alguns dias para sabê-lo.
Haviam decorrido seis anos do incidente acima, quando, num formoso domingo ensolarado, ali pelas cinco horas da tarde Romualdo e Margarida descansavam no varandão confortável de sua granja, no interior do Estado do Rio, onde costumavam passar os fins de semana.
Os pessegueiros, as ameixeiras e macieiras resplandeciam de flores rosadas, brancas e vermelhas, rendilhando a paisagem sob o fundo azul do céu límpida e a força estuante da primavera.
Romualdo lia revistas e jornais, e ouvia no rádio músicas para o entardecer, enquanto Margarida, de óculos, entretinha-se a bordar delicadas flores azuis numa toalha de seda.
No tapete de lã, espesso, um menino robusto, de cabelos louros, perto de uns três anos de idade, movimentava-se alegre e risonho, entre bolas, cornetas, tambor, caminhões, cavalinhos, piões e jogos coloridos.
Margarida, talvez movida por alguma lembrança mais aguçada, levantou a cabeça do bordado e num tom cismático, dirigiu-se a Romualdo, absorto:
— Romualdo, -- disse ela num tom pesaroso — creio que o nosso primeiro filho estaria fazendo sete anos, neste mês, não é assim?
Romualdo ergueu os olhos, tentando ocultar certo embaraço, até responder com voz algo insegura:
— É! É verdade!
Pena ele ter morrido ao nascer!
— Ele morreu... morreu de que, mesmo? — insistiu Margarida, tentando avivar a memória.
— Morreu de uma "cardiopatia congénita".
Defeito da coração — esclareceu Romualdo, incomodado com a natureza do assunto.
— Ah! Eu havia me esquecido do que ele morreu!
Margarida era um tipo de mulher tranquila, cuja fisionomia plácida não denunciava problemas ocultos, muito fácil de ser convencida.
Deu um longo suspiro, traindo o seu profundo sentimentalismo, e, antes de se curvar novamente para o seu bordado, ainda rememorou:
— Imagine, Romualdo, que falta de sorte.
Você esperou tanto aquele filho.
Fazia projectos maravilhosos.
No fim, mal dei à luz e ele faleceu.
O que é a vida?
Romualdo, impaciente, procurou torcer o assunto, distraindo Margarida:
— Cuidado aí com o Geraldinho, Margarida, senão ele pode cair da varanda através das grades.
Depois ele mesmo ficou pensando no acontecimento ocorrido há sete anos, quando aguardava na sala do hospital aquele filho que dera vida tão exuberante e venturosa em sua mente, desde o primeiro instante de gravidez de Margarida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:45 pm

Fora o maior choque de sua vida a notícia dada pelo médico, quando comunicou-lhe a falta de braços no recém-nascido.
Olhou, de esguelha, para a esposa, e não pôde furtar-se de certo remorso ao tê-la enganado, depois de comprar o silêncio da enfermeira e conseguir a adesão do médico a fim de a convencer da morte do filho.
Mas isso fora para seu bem e evitou que ela também viesse a sofrer qualquer traumatismo moral.
Felizmente conseguira encontrar o casal Venâncio, sem filhos e descendente de modesta família uruguaia, que adoptou o menino registando no próprio nome.
Em troca, Romualdo comprou-lhe óptima vivenda, além dos seguros dotais para o menino e o compromisso de polpuda mesada para a sua criação.
Era homem de posses e assim pôde descartar-se do filho aleijado, recusando-se a vê-lo sob qualquer pretexto.
Mandava regularmente a mesada para o casal Venâncio, através da agência bancária local e nunca fora à modesta cidade, na fronteira com o Uruguai, onde vivia o filho sem braços e o motivo de seu vexame paterno.
Malgrado exames de sangue, líquido raquidiano e pesquisas de "genes" da família materna e paterna, os médicos não encontraram qualquer vestígios de tara ou de herança mórbida.
Disfarçadamente, ele mandara fazer exames de Margarida, mas os resultados negativos também comprovaram-lhe tratar-se de mulher sadia, de bons ascendentes biológicos e sem qualquer acontecimento desairoso na família.
Romualdo soubera que o filho aleijão gozava de excelente saúde, era de uma vivacidade incomum; tinha os olhos azuis os cabelos louros como a mãe.
Que apesar de se mostrar surpreso diante dos demais meninos normais, ele era sempre jovial, boníssimo, empreendedor e talentoso.
Havia completado sete anos de idade e já sabia ler e escrever!
Ora, aparteara Romualdo, descrente:
"Só se escrevesse com os pés!"
Sim, — respondera-lhe seu Venâncio, num tom de desafio — o menino escrevia com os pés!
E chamava-se Manuelito, nome do pai de Venâncio, nas ido no Uruguai.
— Seu Venâncio! — dissera-lhe Romualdo, algo impaciente.
Quando precisar de alguma coisa, o senhor escreva-me.
Não precisa vir aqui!
O menino não me pertence.
Dei-o de papel passado e o senhor aceitou-o!
Por isso eu prefiro esquecê-lo e nem sequer saber o que ele faz ou pensa fazer.
Compreende, sim?
— Compreendo, doutor Romualdo; o senhor falou-me do choque nervoso que teve no nascimento dele.
Mas é pena! Um menino inteligentíssimo, querido de todos e parece um anjo
— Basta! Seu Venâncio, por favor, entenda-me! Sim?
Romualdo procurava esquecer o sucedido e riscou da mente o nome de Manuelito.
Temeroso de novo fracasso, esperara cinco anos, contrariando a ansiedade de Margarida em ser. mãe.
Ela vivia amargurada enfrentando noites de insónia, lendo, bordando ou ouvindo música, mas sempre lamentando-se que daria tudo aquilo pela obrigação de trocar fraldas, fazer mamadeiras ou cuidar de filhos.
Margarida era o tipo clássico da mulher maternal.
Na falta de um filho transferia para o marido todo o seu afecto e preocupação; advertia-o incessantemente da chuva, da alimentação, do frio e até dos perigos do trânsito.
A vida tornava-se cada dia mais intolerável.
Então ele resolve arriscar-se, certo de que sempre encontraria um casal Venâncio para criar qualquer outro filho aleijão, pois dispunha de meios suficientes para assumir novo compromisso no caso.
Imerso na recordação de alguns anos antes, Romualdo foi despertado pelos gritos de júbilo do menino, e que na sua inconsciência infantil quase estrangulava o gato imprudente.
Aquele filho era o seu "oásis", a compensação que Deus lhe dera após o nascimento do primeiro sem braços.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:45 pm

Acariciou-lhe os formosos cabelos louros, num gesto venturoso:
— Geraldinho é um primor de saúde e encanto, perto daquele filho que era... era ...
E ante a indagação muda, mas curiosa de Margarida, ele corrigiu a tempo:
— Era fraco do coração. Não é?
— Ah! Sim; foi uma pena!
E Margarida também voltou os seus olhos enternecidos para o filho, cujos olhos azuis refulgiam no rosto rosado sob a moldura atraente dos cabelos louros a despedirem cintilações sob os derradeiros revérberos do Sol.
* * *
Passaram-se mais de quinze anos, depois da cena do varandão.
Em noite tranquila e enluarada, em populoso arraial do Rio, destacava-se formosa vivenda edificada entre arvoredos copados e arbustos ornamentais a dançarem tangidos pela brisa soprada do mar.
As lâmpadas eléctricas iluminavam prodigamente o vasto jardim da sumptuosa residência, reflectindo na superfície de luxuosa piscina de forma oval, encravada no tapete de grama florescente.
Um largo portão ornamentado com volutas em cor de alumínio dava entrada para um largo caminho de lajotas vermelhas e castanho, ladeado de abajures de luz resplandecente até ao abrigo da parte da frente.
Havia soado quinze minutos para meia-noite e o vasto salão da frente estava iluminado.
Era um aposento decorado em. coral quase fosco, com larga porta envidraçada, emoldurada por caixilhos de imbuia e almofadas de pau marfim, guarnecida por cortinas de veludo vermelho-escuro franjada de um pérola esmaecido.
O assoalho era forrado de parede a parede, por um tapete persa tão macio como o pêlo do gato angorá.
Quadros valiosos, enfeites de boa ourivesaria, jarras e estatuetas de alabastro, abajures à meia-luz e um riquíssimo candelabro da Baviera, completavam a beleza do aposento.
Recostado em confortável poltrona, encontrava-se Romualdo, enquanto Margarida, à sua frente, mexia em ricas bijuterias depositadas numa caixa feita de sucupira lavrada.
Ambos estavam acabados.
As fisionomias maceradas pelo sofrimento estampavam um ar de aflição fruto de alguma dor prematura.
Romualdo apresentava os cabelos estriados de branco e muitas rugas na testa, embora só contasse 47 anos de idade.
Emagrecera bastante e se via nele o esforço incessante para dominar a pressão abafada nos nervos tensos; Margarida usava o cabelo em coque, e a sua costumeira palidez agora se mostrava cerácea.
Os pés de galinha sulcavam-lhe os cantos dos olhos; os lábios mostravam-se laminados, num rictus aflitivo, devido à permanente contracção nervosa.
Em torno de ambos exalava-se uma aura de infortúnio e dor moral, que o luxo e a beleza daquele aposento não podia dissimular.
Romualdo falava e as mãos se moviam num gesto quase de súplica, queixa ou desespero, traçando arabescos nervosos no ar.
Dali a pouco o gigantesco relógio situado num canto do aposento, como implacável vigia das horas de sofrimento humano, fez um rendilhado de sons saltitantes e depois bateu sonoramente as doze badaladas da meia-noite.
Romualdo ergueu-se, foi a janela e afastando o luxuoso reposteiro de seda, perscrutou a rua, procurando divisar alguma coisa no pontilhado de luzes reflectidas pelas lâmpadas sobre a humidade do asfalto.
Depois ele fechou a cortina num gesto de completo desânimo e sentou-se na poltrona, juntando as pontas dos dedos num tremor convulso e dominado por reflexões dolorosas.
— Nada? — indagou Margarida, num queixume.
— Nem sinal dele! — suspirou Romualdo, abrindo as mãos num gesto desesperançado.
Que nos espera esta noite?
Amanhã? Depois? Ou daqui a um mês?
Como decidir isso, Margarida?
Como solucionar esse problema terrível?
Qual a .nossa culpa em tudo isso?
Onde pecamos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:45 pm

Caminhou, agitado sobre o tapete macio, passando repetidamente as mãos no cabelo.
— Que devemos fazer?
Abandoná-lo? Desistir da vida?
Rodeou a mão, num gesto brusco, como se quisesse abarcar toda a sua propriedade.
— Que vale tudo isso sem ele?
E, paradoxalmente, que vale isso tudo com ele?
Achegou-se de um pequeno móvel de imbuia, com tampo de mármore, onde se achava um balde de prata com delicados relevos e repleto de gelo.
Retirou a garrafa de "whisky" e despejou o líquido no copo, até ao meio, adicionando água mineral.
— Devemos ter paciência, Romualdo.
Talvez seja a idade, embora eu reconheça que Geraldinho já passou da conta e está nos matando aos poucos! — aduziu Margarida com os olhos lacrimosos.
Confio em Deus e tenho esperanças de que ele ainda há de se regenerar!
— Não creio, minha velha!
Geraldinho fez dezoito anos e estupidamente eu ainda o emancipei.
Envergonho-me de dizer; mas nosso filho é um delinquente!
Um delinquente igual a dezenas de outros, cujos pais desesperados costumam contratar-me para defendê-los nos tribunais.
Mas é nosso filho; se o abandonarmos, o mundo o massacra duma vez! /
Caminhava nervoso, o copo na mão esquerda, bebericando goles de "whisky" e agitando a mão direita, quase frenético.
— No entanto, Margarida, temo a minha própria relação diante de qualquer nova ocorrência!
Já não suporto mais essa espera maldita!
Preciso viver, desafogar um pouco ou rebentarei de tanta tensão!
Que fizemos nós para merecermos filho tão rebelde?
Que fiz eu, enfim, para ver exterminado o meu ideal mais puro na vida?
Porventura não mereço um filho de minha estirpe moral?
O primeiro... Bem, o primeiro faleceu ao nascer, e Geraldinho, sadio e venturoso, perverteu-se nos albores da adolescência.
Cessou, de súbito, quase alarmado pela terrível associação de ideias que lhe invadiam a mente!
O outro! O aleijado!
Sem braços, o mais necessitado, ele o deserdara entregue à própria sorte!
Ao filho que nascera sadio e amparado por todos os recursos favoráveis da natureza, dera-lhe a fortuna, o conforto e a protecção incondicional contra as surpresas da vida humana!
Onde estaria o mísero aleijado?
Vivo, morto? Na miséria?
Desde a morte do casal Venâncio jamais soubera dele; porém, estava certo que viveria bem com o bom pecúlio herdado dos pais adoptivos!
Nervoso, tamborilava os dedos no braço da confortável poltrona, numa evocação masoquista da vida turbulenta e irresponsável de Geraldinho, o filho adorado, ao qual jamais negara a satisfação do mínimo capricho ou censurara de qualquer traquinada.
Agora, reflectia de "cabeça fria", sem os pieguismos paternos a lhe cegar o sentido exacto das coisas.
Percebia ter sido iludido manhosamente pela astúcia, insensibilidade e falta de escrúpulos do filho solerte.
Menino ainda, era o terror dos bichanos e dos cães vadios, revelando estranha volúpia ao judiar dos animais, aves e insectos.
Malgrado custosos presentes e a prodigalidade de gastos, às vezes inoportunos, Geraldinho mal terminara o curso primário, e fugira do ginásio usando de todas as artimanhas e engodos para evitar o estudo.
Ferira a dignidade de professoras condescendentes, que a pedido de Romualdo haviam esgotado a paciência em ensinar menino tão daninho, cínico e debochado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 26, 2021 6:45 pm

Geradinho conseguira fazer-se expulsar de dois colégios de alta tradição pedagógica. Insultara autoridades, que relaxavam as queixas dos seus danos, em consideração ao famoso causídico — Dr. Romualdo Moreira.
O futuro médico dos seus sonhos, fora-lhe um malogro, assim como o primeiro havia sido por nascer sem braços.
Isso agora o irritava.
Sentia-se traído acintosamente nos sentimentos de pai amoroso e de homem digno.
Reconhecia, tardiamente, que o carinho excessivo, a tolerância e facilidade em satisfazer ao filho todos os desejos pelo poder mágico da fortuna, acabara por favorecer as más qualidades da alma.
O seu dinheiro abria todas as portas para livrar Geraldinho da prisão, relaxando punições, indemnizando prejuízos e cobrindo salafrarices freqüentes.
Com isso, assegurara ao filho de modo imprudente, uma confiança absoluta de que a Lei jamais poderia atingi-lo!
Rico e abalizado advogado da cidade, as autoridades deveriam respeitá-lo ou atendê-lo em todas as actividades censuráveis do seu descendente!
Romualdo agora sentia rugir no imo da alma a violência do seu amor-próprio ferido pela humilhação e frustração.
Reconhecia que fora apenas o "velho" ingénuo e sentimentalista, sempre pronto a solucionar todas as tropelias, arruaças e dívidas escorchantes!
Recordava-se do brilho sardónico nos olhos de Geraldinho, do ar de sarcasmo ou zombaria entendíveis pelos companheiros, ao livrar-se das punições "improcedentes", graças ao prestígio e autoridade do pai!
Recostou-se na poltrona, profundamente ressentido das próprias tolices ou sentimentalismo.
Engoliu, bruscamente, o resto do "whisky", entrecerrando os olhos num impulso mórbido de auto-flagelação e julgando mentalmente os actos e imposturas do filho desnaturado.
Teria de distinguir, honesta e imparcialmente, a intensidade do deboche, do cinismo e da maldade de Geraldinho, em confronto com as virtudes ou qualidades que ainda pudessem existir a seu favor.
O balanço foi trágico e sem compensação, pois o filho demonstrava completa falência moral!
Era um bruto, que havia se divertido com a bondade, o amor e protecção incondicionais dos pais!
Quando aquilo realmente começara?
Certa madrugada, surpreso e enraivecido, Romualdo saltara da cama e fora à delegacia de polícia, protestar contra a infâmia de encarcerarem seu filho, um menino de quinze anos, só porque ao retornar da festividade do seu aniversário natalício ele e os companheiros haviam reagido contra um guarda-nocturno, inculto e inexpressivo.
Sem dúvida, os rapazes quebraram as costelas e o crânio do guarda; mas isso teria sido depois dele os atacar perigosamente!
Porventura, esses ferozes representantes da Lei não haviam tido mocidade, para compreender a euforia dos jovens numa brincadeira inofensiva?
Romualdo pagara a hospitalização do guarda ferido, indemnizando-o ainda pelos dias de inactividade, o que lhe devia ter sido de boa compensação.
Algumas semanas depois, fora o acidente com o guardião da fábrica de cigarros, quando Geraldinho o atropelara por falta de visibilidade, em madrugada de cerração.
No décimo sétimo aniversário do menino, e a pedido de Margarida, Romualdo dera-lhe um "carro-desportivo" conseguindo licença precária para o filho dirigi-lo.
Quando Geraldinho acariciou a capota e os pára-lamas do carro, sentindo-se tão feliz no veículo, Romualdo não pudera vencer a emoção ao perceber que também era dele a alegria do filho.
— Não faça as ruas da cidade de pista de corrida, Geraldinho — havia-lhe advertido numa voz de amistosa censura.
— Tranquilize-se, pai!
O mestre aqui sabe tocar essa "gostosa" no meio dos "pinguins" sem lhes arrancar as asas!
E riu de um modo fino e sarcástico.
— Credo! Que linguagem esquisita, Geraldinho! — estranhara Margarida.
— Ora, mãe!
Até você está "boiando" e não "morou" na jogada?
E deu-lhe um beijo apertado, no rosto; que fez Romualdo sorrir, compensado de sua primeira repulsa à gíria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:14 pm

Alguns dias eram transcorridos, quando chegou a notícia trágica.
Geraldinho, como um bólide, a correr pela avenida Central tirou um "fininho" de outro automóvel, perdeu a direcção e subiu à calçada, esmagando contra o muro duas meninas de onze e treze anos de idade que ali brincavam.
Romualdo chegou à "Delegacia de Trânsito" e viu Geraldinho tão pálido, boquiaberto e angustiado pelo que acontecera, que sentira o coração arrasado e fora abraçar o menino pela sua "má sorte"!
Ali mesmo, havia prometido livrá-lo das consequências punitivas do acontecimento fatal e imprevisto, solicitando ao médico para assisti-lo naquele transe.
Mobilizando o seu prestígio e amizades, conseguiu isentar Geraldinho da culpa pela imprudência que lhe era atribuída.
O técnico do trânsito, em troca de polpuda gorjeta, assegurou no laudo que o desastre se devia, "à quebra inevitável do garfo da direcção".
Margarida também havia abraçado o filho num amplexo lavado de lágrimas, consolando-o quanto ao acontecimento, pois aquilo poderia acontecer a qualquer pessoa.
Quem estaria livre de atropelar um transeunte descuidado pelas ruas?
Com referência à família das meninas atropeladas, gente modesta e de poucos recursos, ainda se deu por muito satisfeita ao receber régia indemnização pelo casual acidente.
Revendo o passado, Romualdo não duvidava, no momento, da realidade dos sentimentos condenáveis de Geraldinho, —irresponsável e cínico, — até nos comentários mais trágicos.
Lembrava-se de uma indagação curiosa de alguém sobre o desastre, ele respondera em flagrante dureza de coração:
— Ora, você sabe como foi?
Bobice daquelas imbecis.
"Moraram" demais no "ponto" e acabaram engraxando as rodas do meu "desportivo"!
Um frio gélido passou pela espinha de Romualdo ao lhe cair a venda ilusória das próprias convicções, ante a significação cruel da frase do filho debochado, ao qual não dera o, devido apreço na época.
Aliás, após amainar a tempestade, Geraldinho retornara à vida pública, guiando outra vez o carro-desportivo como um bólide, às gargalhadas festivas e troçando do acidente como se fosse um troféu conquistado em competição gloriosa.
Cada vez mais seguro de sua impunidade, ele se desmandou numa onda de distúrbios e conflitos, habilmente justificados por circunstâncias e imprevidências alheias.
Romualdo abria a carteira e enchia cheques cobrindo despesas hospitalares de atropelamentos. Indemnizava raparigas insultadas pela "gang" do filho, ou mandava substituir mobiliário quebrado em hotéis, bares e agremiações desportivas.
Conseguira livrar o "menino" de dois casamentos inconvenientes, com jovens pobríssimas, que decerto haviam tentado "chantagem", alegando violência sexual, por se tratar de filho de pai rico.
Margarida ficara enferma, até a solução favorável desses acontecimentos tão desagradáveis.
E havia, também, um processo duvidoso de conhecida e volúvel enfermeira, teimando em acusá-lo com os companheiros de uma "turra" em sua filha menor.
Romualdo, a conselho de pessoas experientes, resolveu trancar o carro desportivo na garagem e suspender a pródiga mesada de Geraldinho.
Três dias depois teve de comparecer à Polícia, para indemnizar os donos de dois carros roubados e massacrados contra postes pela "gang" do filho.
Logo em seguida, cobriu uma série de cheques falsificados por ele em seu nome e emitidos para suprir as noitadas viciosas e fartas de bebidas.
A "gang" mostrava-se cada vez mais frenética.
Os rapazes invadiam os lupanares ameaçando surrar infelizes mulheres.
Bebiam nos bares e divertiam-se em provocações aos frequentadores e garções.
Tentando ultrapassar um ónibus, Geraldinho pegou um "Ford" que surgira à sua frente, fê-lo tombar desgovernado, na barroca.
No desastre saíram ilesos a mulher e o marido.
Contudo, a menina de seis anos, filha do casal, ficara completamente esmagada entre os ferros retorcidos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:14 pm

O carro-desportivo transformou-se num montão de ferragem inútil; porém, Geraldinho, como o "afilhado do Diabo", fora atirado através da porta esquerda arrancada pelo outro carro, caindo afortunadamente sobre o barranco revestido de touceiras de capim, tendo apenas a fractura do braço esquerdo e leves escoriações pelo corpo.
Dos cinco companheiros da "gang", dois jaziam mortos entre os escombros do carro; os outros três foram recolhidos ao hospital, com algumas contusões mais ou menos graves.
Só então a Polícia identificou o motivo das correrias frenéticas de Geraldinho e seus comparsas, pois além de se embriagarem com álcool, eram viciados em entorpecentes.
Romualdo, a conselho do Chefe de Polícia, seu amigo íntimo, concordou em deter o filho durante um mês na própria residência, submetendo-o a tratamento médico contra o vício das drogas.
Malgrado a indocilidade, o nervosismo e algumas ameaças devido à excitação produzida pela falta de álcool e das "bolinhas", Geraldinho permaneceu durante trinta dias prezo no lar.
Porém, Romualdo não poderia conservá-lo ali, em definitivo.
Conversou demorada e amistosamente com o rapaz, e fê-lo prometer de se regenerar, assumindo novas directrizes na vida.
Ademais, aquela segregação amistosa reparara-lhe também a saúde bastante abalada pelos entorpecentes e promovera a consequente melhoria nervosa.
Aquela noite era a primeira vez que o rapaz saía, por cujo motivo os pais se mostravam apreensivos e abatidos.
Aguardavam o retorno do filho que havia prometido chegar em casa até as dez horas da noite.
Entretanto, o ponteiro implacável do relógio já acusara uma hora da madrugada!
O sono e o cansaço dominavam ambos; Romualdo levantou-se animado, ouvindo o ruido de um carro.
Aproximou-se da janela.
O veículo vinha em disparada pela rua asfaltada, mas descrevendo rápida curva, passou diante da residência em direcção ao subúrbio.
Completamente desconsolado, ele propôs à esposa:
— Margarida, vamos deitar!
É inútil esperar.
Vamos; seja o que Deus quiser.
Geraldinho não tem mais respeito e consideração pela nossa dignidade e afecto.
Nada mais lhe significamos do que simples "fornecedores" de recursos para ele se devotar à sua vida devassa de prazeres e violências.
Haviam se deitado, quando o telefone bateu.
Antes de pegá-lo, Romualdo estremeceu e Margarida recostou-se nos travesseiros, levando a mão ao peito, num gesto de profunda angústia.
Do outro lado do fio soou uma voz conhecida dele; o Dr. Diniz, delegado da "Ordem Social Pública".
Romualdo foi ouvindo o que ele dizia, meneando a cabeça, de vez em quando, ou murmurando algum sim inexpressivo.
— Morreu? — indagou friamente, num tom que fez Margarida afligir-se.
Depois de algum tempo respondia.
— Não, Dr. Diniz!
Jamais sairei daqui para atender Geraldinho.
Ponha-o na cadeia, sem dó nem piedade!
Diga-lhe que se quiser advogado, faça petição de indigente, pois vou deserdá-lo amanhã.
Não! Dr. Diniz, sou homem de uma só palavra.
Não importa! Não tenho filho!
Isso foi há muito tempo.
Desculpe-me.
Minha decisão é irrevogável; nunca voltarei atrás.
Boa noite e agradeço-lhe as palavras de consolo.
Largou o fone.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:14 pm

A fisionomia estava contraída e severa; fitou um ponto vago, no espaço, é deu um suspiro que lhe subiu do fundo da alma.
Enquanto o coração sangrava acometido pelo sentimentalismo paterno, aquela resolução significava o rompimento definitivo do pieguismo que o acorrentara tantos anos ao filho desbragado.
Não transigiria, jamais!
— Que foi? — inquiriu Margarida, aflita.
— Geraldinho e sua "gang", outra vez!
— Quê ele fez?
— Meteu a faca num garção de bar, onde farreavam e se forneciam de drogas entorpecentes!
Foi preso em flagrante!
— Machucaram muito o homem?
— Morreu, ao dar entrada no hospital!
Margarida arfou, desesperada.
E depois indagou, alarmada:
-- Ah! Meu Deus!
Você não vai à Polícia?
Romualdo estendeu a mão em direcção ao abajur da mesinha de cabeceira e antes de apagá-lo, de fisionomia séria, exclamou com voz seca, e que fez a esposa estremecer, espantada:
— Não vou, não, Margarida!
Não sei quem é esse "tal" de Geraldinho!
No dia seguinte, contratou correctores e pôs à venda todos os bens.
Substabeleceu suas causas em juízo para colegas experimentados, foi ao cartório e redigiu a minuta deserdando Geraldinho.
Dias depois mudava-se com malas e bagagens para Porto Alegre, decidido a recuperar a vida destruída pelo filho devasso e cruel, cujo nome não permitia que fosse pronunciado à sua frente.
Resolveu excursionar pela América do Sul, e iria mesmo até ao México.
Recuperaria os nervos abalados e traçou um roteiro por Venezuela, Bolívia, Peru, Chile, Paraguai, d'onde retornaria a Buenos Aires para ficar algum tempo.
No entanto, mal supunha o tremendo choque que o esperava na capital portenha, quando o destino teimava em lhe avivar velhas cicatrizes de amarguras infindas.
Passava diante de conhecido teatro, quando deparou com o cartaz desafiante, em castelhano e num belo colorido.
Ficou meio atarantado e tão pálido, que Margarida indagou-lhe, apreensiva:
— Que houve, Romualdo?
Você está doente?
— Ahn? Não é nada, não!
Vamos ali para aquela confeitaria.
Quero sentar-me e pensar!
Preciso pensar!
Enxugou o suor do rosto e, dando o braço à mulher, atravessou a rua rapidamente, sentando-se à primeira mesa da "Confeitaria Estrelita".
— Mas Romualdo?
— Deixe-me! Deixe-me pensar!
Que refresco deseja? Doces?
A noite ele havia decidido.
Não fugiria mais, embora isso viesse lhe causar novas dores.
Precisaria conhecer as próprias reacções, a natureza real dos seus sentimentos; rever-se a si mesmo, analisar o seu domínio e o carácter tão obstinado.
Sim, iria ao teatro aquela noite, aproveitando o ensejo de julgar friamente a si mesmo, talvez sofrer violenta tortura masoquista!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:14 pm

Acompanhado de Margarida, penetrou no teatro apinhado de espectadores.
Minutos depois, a orquestra executava a "ouverture" de "Cavalaria Ligeira" de Von Suppe, oferecendo ao público melodia leve e graciosa.
Após veementes aplausos, o enorme e luxuoso pano de boca abriu-se para iniciar o encantador espectáculo.
As bailarinas eram impecáveis, ágeis e flexíveis, movendo-se com a leveza de borboletas esbranquiçadas a voejar ao ritmo das ondulações melódicas do "Lago dos Cisnes", de Tchaikovsky.
Encerrou-se o primeiro acto com diversas danças da suite "El Amor Brujo", de Fala, após movimentadas demonstrações rítmicas das "Danças Eslavas", de Dvorak.
O 2.° Acto também foi recheado de melodias agradáveis, de historietas curtas e cómicas, onde a graça se fazia mais pela finura de espírito e não pela malícia ou deboche.
Tudo era limpo, de gosto fidalgo e talento, numa aura de embevecimento sadio.
Ninguém corou na plateia, envergonhado pela graça infeliz das piadas obscenas ou citações repugnantes próprias dos maus artistas.
O riso farto e sadio explodia por força das situações engendradas habilmente pelo autor de bom quilate espiritual.
Havia beleza, jovialidade, respeito, inteligência e bom senso aliados à arte de bom gabarito.
No entanto, os programas explicavam que um só homem era o génio realizador de toda aquela festa de magia e encanto.
Finalmente, a orquestra executou sob elogiável equilíbrio sonoro a "Marcha Triunfal" da ópera "Aida", anunciando o inicio do 3.° Acto.
Aos últimos acordes da orquestra, surgiu ao palco um integrante da companhia, comunicando em voz vibrante:
— Senhores e senhoras!
Agora apresentaremos um dos mais empolgantes triunfos do espírito humano sobre a matéria, demonstrando-vos, que a alma sadia é a senhora absoluta do corpo carnal!
Em curvando-se, em mesuras e louvores, acenou para a direita, exclamando:
— Senhoras e Senhores!
Convosco Manuelito, o Mestre, o Enciclopédico e o Poderoso, que faz com os pés actividades que milhares de homens não as realizam com as mãos!
Entre delirantes aplausos do público, apareceu no palco um moço de uns vinte e seis anos de idade.
O porte airoso e atraente mais se realçava quando ele movia-se com encantadora graça.
O rosto era impecável e seráfico; os olhos fulgiam num azul-celeste, sob a moldura dos cabelos louros e cintilantes sob as luzes da ribalta.
Vestia uma blusa de seda verde-claro, e fofa, de mangas curtas e gola desportivo.
A calça era de flanela branca, "à la espanhola", toda bordada de fios verdes malva escuro em volutas e arabescos atraentes, presa à cintura por uma faixa larga, de veludo cor de cereja e que depois formavam um laço à esquerda, caindo em pontas franjadas de fios de seda num tom de pérola.
Ele seria um apoio, se não fosse aleijão!
Não possuía braços!
Mas a piedade surgida no princípio entre os espectadores, logo se transformou em aplausos entusiastas e exclamações de admiração, assim que ele começou a revelar o talento e a habilidade incomum.
Utilizando-se dos pés, cujos dedos eram longos e flexíveis devido a exercícios incessantes, Manuelito fez as demonstrações mais fabulosas com a graça e a agilidade de um pássaro.
Frente à máquina de escrever, provou ser exímio dactilógrafo.
Apanhando a caneta-tinteiro escreveu versos de vários géneros, numa grafia serena e harmoniosa, alinhando frases, aforismos e conceitos, que ao serem distribuídos ao público arrancaram demorada ovação.
Em seguida, compôs em papel apropriado pequenos trechos de música ligeira e alguns rápidos arranjos de melodias conhecidas, num entrecho musical agradável, que prolongou as ovações do espectadores durante a execução pela orquestra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:15 pm

Sentou-se na banqueta, um pouca mais afastado do piano e dedilhando o teclado com os dedos dos pés executou em toda a sua fragrância a encantadora e terna página musical de "Sonho de Amor", de Liszt.
Rapidamente, interpretou pequena rapsódia alinhavada com trechos: musicais de Chopin, destacando os sons saltitantes das valsas aligeiradas, a marcialidade das "polonaises" e a poesia cristalina dos "prelúdios", para finalizar com o tema fundamental do "Nocturno em Mi Bemol Maior".
Minutos depois, os seus auxiliares trouxeram ao palco um instrumento de aparência incomum; era semelhante a um acordéon em horizontal, com o fole em vertical e de gomos bem longos, cujo teclado amplo era bastante saliente.
Manuelito colocou o pé esquerdo numa alça situada na extremidade do fole, e com o pé direito percorria o teclado lenta ou aceleradamente, num arranjo particular sobre diversos trechos musicais das "fugas, sonatas e prelúdios" de Bach, provando que também era excelente organista.
Ato contínuo deitou o violoncelo da orquestra no soalho, sentou-se comodamente na poltrona, e apanhando do arco interpretou sobre as cordas algumas partes da peça o "Poeta e o Camponês", de Von Suppé, incluindo alguns trechos da abertura de "Guilherme Tell", de Rossini, delirantemente festejado pelo público.
Manuelito sorria agradecendo em curvaturas gentis.
Em seguida, desdobrou pequenas folhas de papel no palco e pintou rapidamente à aquarela, duas miniaturas de paisagens platinas; servindo-se de folhas mais amplas, embebeu os pincéis nas latas de tintas multicores, e, ágil, e seguro, decorou três fundos cenográficos, comprovando ao público entusiasta, que ele também era o autor dos magníficos cenários da companhia de variedades.
Ali estava vivo e sólido, Manuelito, director, cenarista, orientador, argumentista, produtor, compositor, poeta, criador e o principal artista do espectáculo.
Era, enfim,. o homem enciclopédico, "el poderoso", o triunfo do espírito sobre a matéria.
Na apoteose final, surgiram ao palco todos os artistas ladeando Manuelito, o qual, sorridente, feliz, agradecia aos aplausos intermináveis, comovendo o público pela sua resignação e estoicismo ante a deformidade.
Ele fez um sinal para o lado direito do palco e logo surgiu encantadora jovem de cabelos negros e movimentos graciosos, acompanhada de um menino de cinco anos, sorridente, que vestia um traje espanhol semelhante a Manuelito, seu pai!
O quadro emotivo e absorvente sensibilizou de tal modo os espectadores, que todos puseram-se de pé a gritar, na euforia latina:
"Gracias"! "Muchas gracias, Manuelito!"
Romualdo tinha os olhos quase esgazeados, pelo esforço de não trair os sentimentos que o invadiam, o que só conseguia graças ao seu temperamento rígido e obstinado.
Lutava heroicamente para não chorar e na mente hiper-sensibilizada projectava-se a síntese de todos os contrastes da vida atormentada.
Manuelito e Geraldinho, luz e sombra, santo e demónio, virtude e vício, herói e pusilânime!
E, porque não dizer, também?
Manuelito, o homem são e Geraldinho o aleijão?
Ergueu-se da poltrona, empurrado por aquele desejo veemente de andar toda vez que experimentava problemas nevrálgicos cruciantes.
Embora reconhecendo que era irremediavelmente tarde para consertar tudo aquilo, ele se voltou mais uma vez para o palco iluminado e pousou os olhos sobre o trio formoso: o filho, a nora e o neto!
Ajeitou os óculos, desviando a tempo duas lágrimas teimosas e próprias de um sentimentalismo tolo que lhe contrariava o temperamento pétreo.
Súbito, fixando Margarida lavada em lágrimas, perguntou-lhe, num tom de voz desconfiada:
— Que é isso, Margarida?
Você conhece Manuelito?
— Oh! não! — respondeu ela, mal conseguindo dominar os soluços sob o lenço ensopado.
Por que Deus concedeu-me um filho tão perverso, como Geraldinho, e não me enviou um filho assim, igual a Manuelito, mesmo sem braços?
*******
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:15 pm

Eu acabara de ler a biografia de Manuelito, Romualdo, Geraldinho e Margarida, no "Departamento de Fichas Cármieas" da metrópole do "Grande Coração", onde fora atendido gentilmente pelo Samuel, espírito que na última existência terrena descendera da raça hebraica.
Ali estavam as especificações siderais(1) de um punhado de espíritos, cuja romagem educativa se fazia no Brasil, há três séculos.
Era uma espécie de biblioteca ou arquivo de "fichários individuais", onde se poderia conhecer a história de diversas entidades entrelaçadas sob o mesmo Carma colectivo.
Perscrutando a vida de Manuelito, pude conhecer a vida de Geraldinho, Romualdo e Margarida, assim como poderia conhecer a vida de Manuelito, apenas investigando a biografia dos primeiros.
Animado pela afabilidade de Samuel, fiz-lhe algumas perguntas, que ele respondeu-me sem constrangimento:
— Estimado irmão Samuel, — indaguei-lhe — qual foi o motivo cármico de Manuelito ter nascido sem braços?
— Manuelito é entidade de alta estirpe sideral, caro amigo Atanagildo.
Conforme você mesmo verificou através do "prefixo-sideral" da ficha cármica, ele supera bastante a graduação dos demais membros de sua família espiritual.
Quando Manuelito soube que Romualdo, entidade do próprio grupo familiar, iria ser pai na Terra de um filho "focomélico"(2) para se recuperar das imprudências de vidas pretéritas, quando deixou ao abandono filhos aleijados, Manuelito solicitou aos "Senhores do Carma" essa oportunidade de nascer sem braços.
Almejava viver na carne existência dificultosa, que lhe permitisse exercitar e concentrar as energias espirituais num esforço incomum, a fim de melhorar os poderes criadores e depois ajudar os companheiros retardados.
De princípio, os "Mestres Cármicos" negaram-lhe o pedido, alegando que Romualdo ainda não merecia na família carnal entidade de graduação superior como Manuelito, cuja presença seria sempre de benefício e realce à parentela humana.
Após alguns momentos de meditação, inquiri, novamente:
— Amigo Samuel, ser-vos-ia possível dar-me outros esclarecimentos?
— Fale, meu filho.
— Disse-me o bom amigo, que Manuelito não precisaria encarnar-se deformado porque estava isento de culpa cármica, assim o fez espontaneamente aproveitando o ensejo de resgate pretérito de espírito de sua própria família espiritual.
Como entender a lógica dessa decisão, ou qual a sua significação? (3)
— Ora, querido Atanagildo, você sabe que a Terra não é apenas um mundo de reajuste cármico de nossos equívocos passados, porém escola de educação espiritual proveitosa, malgrado o primarismo do seu cenário e o tipo psíquico de sua humanidade.
Na crosta material adquirimos os rudimentos de alfabetização do espírito, para depois integrarmo-nos correctamente na linguagem própria dos anjos!
Silenciou, alguns momentos, e aduziu:
— Você já avaliou a persistência, perseverança, a paciência, o domínio, o treino, o estoicismo de Manuelito para desenvolver aquela flexibilidade e autodomínio perfeito dos dedos dos pés, até lograr o êxito de igualar-se aos demais homens?
Aliás, superá-los nas tarefas da vida em comum?
É certo que a natureza compensa a falta de certos órgãos pela hipertrofia dos órgãos remanescentes.
Sabe-se que o pulmão, o rim ou o próprio Olho humano, duplicam sua sensibilidade e capacidade para compensar a extirpação ou o colapso do companheiro.
Ainda menino, Manuelito já possuía os dedos dos pés com mobilidade e crescimento além do homem comiam, mas foi a sua energia espiritual agindo como catalisador, que depois lhe proporcionou o pleno domínio nos pés.
Além disso, ele se glorificou pela demonstração heróica de comprovar o poder indiscutível do espírito imortal no comando da carne.
E como pretendesse avaliar o efeito de suas próprias palavras, o laborioso Samuel disse-me, num tom revelativo:
— No programa de recuperação espiritual de Romualdo, o homem que deveria nascer sem braços no seu lar era Geraldinho e não Manuelito!
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— Geraldinho? — indaguei, surpreso.
Porventura isso não seria prova demasiadamente severa para Romualdo?
Como ele poderia resignar-se ante um filho aleijado de corpo e de alma?
Samuel sorriu, esclarecendo-me:
— Meu bom Amigo, você mesmo certificou-se de que Romualdo nem quis saber do filho aleijão.
Portanto, não lhe importaria se o aleijado fosse Geraldinho ou Manuelito, pois o pai sempre o abandonaria ao nascer!
Óbviamente, Romualdo agravou sua prova cármica para o futuro, vencido pela obstinação e orgulho e pelos característicos de vidas anteriores.
Geraldinho, espírito rebelde e mesquinho, deveria nascer sem braços porque o seu defeito físico ser-lhe-ia de imenso benefício, freando-lhes os impulsos perigosos e as iniciativas perversas.
Sem braços, ele não poderia participar coerentemente das actividades comuns do mundo, nem conduzir carros de alta velocidade, a ponto de trucidar meninas e abalroar outros veículos matando os ocupantes.
Não poderia atacar moçoilas imprudentes, impor-se ante as autoridades, esbofetear prostitutas, agredir vigilantes nocturnos, esfaquear garçons, roubar automóveis ou falsificar cheques.
Apesar da fortuna e do prestígio do pai, ele não passaria de um aleijado digno de comiseração alheia, vivendo em condição humilhante, mas pacífica.
— Creio que nesse caso Geraldinho ainda seria mais revoltado e daninho, — comentei, hesitante.
— Bem, isso seria inevitável e decorrente do seu- carácter rebelde e destrutivo, próprio de um "anjo decaído" ou "espírito exilado", em permanente rebelião contra os poderes angélicos, negando-se à ascese espiritual e desforrando-se dos próprios companheiros de romagem terrena.
No entanto, Geraldinho além de nascer equipado com braços, em virtude de Romualdo rejeitar Manuelito, ainda recebeu dos pais todos os meios possíveis para vazar as imperfeições morais numa ofensiva pertinaz e feroz, que culminou em trágicas consequências. Aleijado e não podendo agir de modo brutal e perverso, talvez sublimasse a deficiência física com alguma realização educativa do espírito.
Mas a Lei atendeu à própria decisão de Romualdo, que recusou Manuelito, aleijado, mas um tipo espiritual generoso e sábio, fazendo jus a Geraldinho, sadio de corpo mas enfermo de alma!
Que péssima transacção, fez Romualdo com a Divindade! — arrematou Samuel.
Traindo um sorriso piedoso de si mesmo, Samuel comentou jocoso:
— Francamente, Atanagildo; se eu vivesse junto de Manuelito, na Terra, o visse executar com os pés, ao piano, e de maneira tão primorosa, Beethoven, Chopin e Liszt, e depois Von Suppé e Rossini ao órgão, coisa que mediocremente mal consegui com ambas as mãos, tremeria de vergonha!
Batendo-me cordialmente no ombro, enquanto mais refulgia o seu halo mental luminoso, sob o combustível de pensamentos sublimes, Samuel encerrou, em definitivo o nosso diálogo.
Atanagildo!
O que é infelicidade irreparável para um homem, pode ser a glorificação de outro, sem que isso indique reparação cármica.
Jesus recebeu a coroa de glória no sacrifício da cruz, mas, pelo que eu saiba, a sua crucificação não foi qualquer reajuste cármico por ter crucificado alguém.
Ele era o Mestre, mas preferiu viver em si mesmo as lições ensinadas aos homens!
Glorificou o madeiro infamante da cruz, deixando a mensagem salvadora à humanidade:
"Servir até na morte; Amar até na dor!"

(1) N. de Atanagildo: Os "Senhores do Carma" da escolástica hindu, ou "Mentores Cármicos" da sinalética oriental, controlam cada espírito desde os primeiros bruxuleios de sua consciência, através das fichas cármicas com o prefixo sideral da família espiritual a que pertence, acrescidas dos dados da sua graduação sempre actualizados.
O número sideral é a identificação definitiva do "espírito-indivíduo", em todas suas encarnações e ascese sideral.
E' evidente que se determinado espírito chama-se na Terra, João, Rafael, Júlio César ou Sócrates, isso se refere apenas à sua existência transitória na carne, não propriamente à sua verdadeira identidade espiritual, que é um número sideral permanente.
(2) Focomélico, sem braços.
(3) N. do Médium: — Atanagildo é entidade suficientemente esclarecida para conhecer a solução das perguntas acima, mas ele prefere armar os diálogos desse modo, a fim de facilitar ao leitor uma compreensão gradativa dos assuntos transcendentais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:15 pm

12 - ADESTRAMENTO MATERNO
A noite estava tranquila e alguns fiapos de nuvem, prateados pelo luar de setembro, vagabundeavam pelo céu límpido.
No casarão do velho Genaro, emigrado bem jovem da Itália, a alegria e a atrapalhação tomavam conta dos familiares.
Cristina, a caçula, moça belíssima em seus dezasseis anos, casava-se com Jamur, rapaz alegre, bem apessoado, mas algo pródigo de bolso e de gastos, e que mal havia conseguido alguns modestos móveis de pinho para montar a casa.
Descendente de sírios, Jamur não fora bem recebido por Genaro e alguns membros da família.
Eles desejavam melhor partido para Cristina, tão linda, com seus olhos de jabuticaba a refulgir num rosto rosado e macio como as pétalas de rosas ao desabrocharem.
Genaro casava a última filha, e conforme dizia:
"pagava a última duplicata!
Coerente com a tradicional fertilidade característica da raça italiana, ele possuía onze filhos:
três homens fortes e ruidosos e oito mulheres, sendo Cristina a oitava duplicata a ser resgatada.
Don Genaro, como era mais conhecido e assim preferia ser chamado, já atingira aos setenta anos de idade e esperava usufruir uma vida sossegada dali por diante, junto a dona Carolina, a esposa.
Entretanto, esse prazer era impossível, pois à medida que aumentava a fauna de genros e noras, os netos, também, nasciam trimestralmente, à guisa de prestações vencidas em datas certas, trazendo novas complicações demográficas à vida dos avós!
Em torno do casarão bafejado pelo perfume fragrante das macieiras, dos pessegueiros e ameixoeiras floridas na primavera, as lanternas multicores dançavam ao impulso da brisa agradável da noite.
O mulherio corria, dum lado para outro, mexendo nos fornos, abrindo gavetas, armários e destampando panelas.
Da cozinha exalava-se o 'cheiro apetitoso do "risotto" fortemente condimentado ao gosto italiano, misturando-se com o odor dos leitões, galetos, carneiros e das pacas assadas no espeto, que vinha da churrasqueira do galpão, sob os cuidados do Beppi — perito na profissão.
Nha Rita, famosa pelos seus conhecimentos culinários, de vez em quando metia o garfo comprido no painelão de ferro e erguia feixes de "spaghetti",. analisando-lhe a cor e a consistência, num exame atencioso e severo.
— Quem quiser vinho, tem na geladeira; quem não quiser,. tem "choppes" de barril, lá na varanda! — avisava Don Genaro, todo eufórico.
Ele se mostrava feliz na figura de anfitrião, blasonando a própria prodigalidade numa gabolice ingénua:
— E vocês aí se mexam! — exclamava dedo em riste, apontando o mulherio atarefado e que não lhe dava a mínima importância.
Que não vá faltar comida!
Olhe bem, seus pestes; na minha casa a gente come com fartura!
Dona Carolina sacudia a cabeça sob grave censura e excomungava o marido numa voz lerda, mas decidida:
— Genaro, vá lá pra dentro, homem de Deus!
Não se meta na cozinha que é lugar só para mulher!
Ele se preparava para responder desaforadamente, quando percebeu a figura encurvada do velho turco Abrão, que. chegava à varanda cumprimentando os presentes.
Genaro sorria zombeteiro e tinha um brilho sádico nos olhos, pois o turco Abrão, sempre conformado e bom de génio, era o bode. expiatório da sua descarga sarcástica.
Mas, também, era o seu melhor amigo e parceiro de "truque", "três sete" e "estopa".
Ambos passavam os sábados à tarde e os domingos todos a jogar baralho no varandão, xingando-se e trapaceando, entre goles de vinho, petiscos de queijo, azeitonas, "frios", num aperitivo sem fim.
Don Genaro olhou demoradamente o velho Abrão empacotado numa roupa preta, luzidia, todo enfarpelado pelo colarinho duro, donde ressaltava a gravata marron armada em bojudo laço.
Rodeou-o, devagar, por duas vezes, num exame minucioso de cima para baixo.
Depois, num grunhido zombeteiro, largou a deixa:
— Aí peste! Tive de casar a Cristina, para você tomar um banho e mudar de roupa!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:15 pm

E casquilhou uma risada fina e comprida, enquanto o turco encolhia os ombros, indiferente curtido, aparentemente satisfeito daquelas ironias que nada tinham de injuriosas, mas traíam sincera amizade.
Don Genaro também vestia um terno preto antigo cheirando a "naftalina", justo e ameaçando romper pelo corpo rotundo e atarracado.
Ele tinha um ar esportivo.
O rosto corado, o nariz bojudo, e' brilhante, por culpa do bom vinho "feito em casa"!
Metia as mãos no bolso da calça, por baixo do paletó, como era seu costume ao assistir as corridas de cavalos na raia.
Estava satisfeitíssimo com o bulício da festa num afrontoso senso de propriedade, ou de construtor envaidecido, que põe a última pedra na sua melhor obra.
— Pai! Tira as mãos dos bolsos!
Que modos! — censurou-lhe Clarita, a penúltima filha casada, ao passar rente a ele e com a bandeja repleta de cálices cheios de aperitivos.
O velho voltou-se, num tom brusco e de zanga, porém, ao reconhecer a filha, apenas disse desaforado:
— Ah! Vai... mandar no teu marido; aquele moleza!
E num gesto de desafio e desforra, enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos.
— Está um festão, o casamento de Cristina! — comentou o turco Abrão, sacudindo a cabeça e derramando olhares cobiçosos sobre os nacos de leitão e galetos assados, que o Beppi trinchava arrancando dos espetos e arrumando com jeito nas travessas de louça florida.
— Claro, homem! — retrucou Don Genaro, trovejante.
Isto aqui é casamento de gente pobre, mas de trabalho!
Comigo não tem esse negócio dos convidados saírem com fome e ainda falando mal da festa.
Gosto de ver comerem até rebentar, pois casamento sem fartura é começo de vida com miséria!
Falava num tom de voz petulante e capaz de escandalizar qualquer outra pessoa estranha ao seu temperamento galhofeiro.
— Não vou a esses casamentos de "alta sociedade" — continuou ele, sardónico, onde dão um cálice de vermute, uns postaizinhos, e doces miúdos, que nem quirera para pintos!
E num riso farto, sarcástico, sumamente divertido, acrescentou, transbordante de gozo:
— Depois do casamento de "grão fino", dizem que os convidados ainda vão "pro," restaurante reforçar o "pandulho"!
Minutos depois, as mesas quase ruíam de tanta fartura.
Para começar serviram a famosa "minestra", sopa feita de queijo "parmezon" ralado — tão ao gosto italiano acompanhada de pão de forno e manteiga fresca.
Depois a gostosa "maionese" de ovos, batatas, vinagre de vinho, azeite italiano, com muita ervilha e azeitonas.
Finalmente,, começaram a chegar os travessões com os galetos do "primeiro canto", leitões, carneiros, e carne macia de paca, acompanhados dos pratos de "spaghetti", "talharim" e "risotto" de galinha, fumegantes e emoldurados por montanhas de alface e "raditch", regados com o azeite pura de oliva.
Entre os pratos recheados de novidades, as mulheres colocavam outras travessas menores repletas de saladas de tomates rubros, palmito, rabanetes, pepinos e couve-flor em conserva, prodigamente reforçados com azeitonas temperadas ao tipo grego.
A mesa estava farta; mas ainda foram colocadas as tijelas de lasanha ao forno, com fatias de queijo "mozzarella" e condimentadas com orégão.
A comilança era regada com vinho branco e tinto, fabricação de Don Genaro, bem como a famigerada "craspa" servia de aperitivo intensivo.
— Que diabo de gente! — berrava Don Genaro.
Onde está a cerveja?
Esconderam os refrescos de uva, de laranja e de maracujá para as mulheres e crianças?
Depois que o repasto terminou, as cadeiras foram arrastadas para junto das paredes e desmanchadas as mesas improvisadas com tábuas cepilhadas de pinho.
Lourenço, o melhor "gaiteiro" ali do subúrbio, orgulhoso de sua nova apianada de 80 baixos, sentou-se num canto da sala, mexendo no instrumento e rebuscando papéis, pois ele já tocava alguma coisa por música.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:16 pm

Don Genaro, com o copo de vinho na mão, vermelho, quase apopléctico, achegou-se exclamando ruidosamente:
— Vamos Lourenço!
Vê se toca alguma coisa que preste para o povo dançar de verdade!
Arranca uns chotes, polcas e "quadrilhas", em vez dessas porcarias de músicas modernas, como sambas, tangos e "foxes"!
Lourenço olhou a moçarada.
Então viu-lhe o muchocho de desagrado e decepção ante as músicas sugeridas por Don Genaro.
Num gesto compenetrado, de artista ou autoridade no género, replicou num tom decisivo:
— Os chotes e as polcas vêm depois no tempo certo, quando a velharada começar a dançar; agora é a valsa da noiva e depois as danças dos moços!
Cruzou as pernas, indiferente à cara de desagrado de Don Genaro, inclinou a cabeça sobre o "acordéon" preto e lustroso, e, num impulso maquinal, enquanto Jamur e Cristina esperavam no centro da sala, Lourenço deu início à valsa "Abismo de Rosas", a coqueluche da época.
Como os noivos haviam decidido viajar muito cedo para a fazenda Roseiral, despediram-se no fragor da festa.
Buscaram Don Genaro e o encontraram com o tio Clemente, bastante tocados pelo vinho e sob as árvores frutíferas, interpretando num contracanto desafinado a bela "canzoneta" italiana, "Il Sole Mio".
Em torno deles os mais velhos tinham os olhos umedecidos de lágrimas e suspirosos da Itália — a pátria querida e inesquecível.
Don Genaro, à despedida, não pôde suster o seu espírito mordaz costumeiro, dizendo a Jamur, num tom paternal, mas algo ríspido:
— Você se alinhe, homem!
A vida de casado não é viver flauteando!
Depois, retribuindo o abraço afectuoso de Cristina, enxugou os olhos no lenção colorido, exclamando, seriamente comovido:
— Deus te acompanhe, minha filha, e que você seja muito feliz!
De repente, um pouco apreensivo, passou a mão na fronte dela, indagando.
Você está com febre, Cristina?
— Não é nada, pai; isso é por causa do nervosismo do dia!
A festa do casamento prolongou-se até ao amanhecer.
O céu limpo, no horizonte, prenunciava um domingo ensolarado.
A brisa suave sacudia, de leve, as árvores em flor, desmanchando as florzinhas, cujas pétalas caíam como confetes coloridos e cintilantes.
O casarão estava quase vazio.
Apenas alguns familiares e convidados mais íntimos, abraçados num estouvamento alcoólico, balouçavam o corpo no varandão, tentando executar o trecho do "Miserere", da ópera "Il Trovatore", num coro emperrado e fanhoso, em que Don Genaro, vermelho como um pimentão maduro, puxava com visível dificuldade a parte destinada ao barítono.
Nesse momento, estacionou, junto ao portão da frente, um carro de praça e dele saiu Dagoberto, genro de Don Genaro, ainda sonolento e com a fisionomia profundamente apreensiva.
— Cristina está mal! — foi ele dizendo, de chofre.
Jamur levou-a para a Santa Casa!
O caso é muito sério mesmo!
O espanto e o constrangimento desmanchou as últimas alegrias do festejo de casamento; e quando os parentes chegaram ao hospital, Cristina estava inconsciente, ardendo em febre alta.
O corpo rígido e os pés distendidos, como se ela quisesse empurrar algo para a frente.
Os médicos haviam retirado líquido cérebro-espinhal e aguardavam os exames de laboratório.
As nove da manhã, sob a mais dolorosa expectativa, o diagnóstico foi estabelecido: meningite!
A desolação manifestou-se na fisionomia de todos.
Cristina era queridíssima da família e dos vizinhos.
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