LUZ ESPÍRITA
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:27 pm

SEMEANDO E COLHENDO
HERCÍLIO MAES

Atanagildo

CONTOS REENCARNACIONISTAS

As narrativas de SEMEANDO E COLHENDO identificam dezenas de situações inconvenientes e perigosas à ventura do espírito, após a morte do corpo carnal.
O autor descreve acontecimentos trágicos ocorridos no mundo material, para mostrar em seguida as condições dos personagens depois do desligamento do organismo físico, conforme o rendimento espiritual benéfico ou maléfico de suas atividades materiais.
Finalmente, completa o seu labor de advertência, ao remontar às origens dos dramas que se geraram no processo cármico e justo de "semear' e colher".

SEMEANDO E COLHENDO
Obra mediúnica ditada pelo espírito Atanagildo ao médium HERCÍLIO MÃES

Mesmo quem conhece bem os mecanismos da Lei do Carma, às vezes se vê perplexo diante dos grandes sofrimentos - aqueles em que a "mão do destino" parece pousar implacável sobre as criaturas.
O autor espiritual de "Semeando e Colhendo"- Atanagildo, discípulo de Ramatís, desencarnado neste século no Brasil - apresenta, nesta série de fascinantes contos reencarnacionistas, os reflexos dramáticos, no espelho de existências atuais, e as imagens originais ou causas geradoras — em existências passadas, relativos a casos extraordinários de reparação cármica.

Nenhuma ficção:
são histórias reais - comoventes todas, líricas algumas, sempre tocantes e profundamente esclarecedoras.
Da vida do cantor das multidões à terna história de Verinha, adolescente vítima da lepra; da redenção de um ex-inquisidor à incrível alquimia, num campo de concentração, da alma guerreira de um ex-líder das sombras (e onde se desvelam as raízes cármicas do holocausto judeu), entre outros, "Semeando e Colhendo" é um verdadeiro tratado das subtilezas e da eficácia da Lei de Causa e Efeito.

Depois de cativar milhares de leitores, este livro continua despertando lágrimas e sorrisos, e iluminando os mecanismos cármicos com rara sabedoria e encanto.

MINHA GRATIDÃO
Ao professor BRENO TRAUTWEIN
Imensamente grato pela inestimável ajuda e sugestões, que contribuíram para a melhor contextura desta obra de contos mediúnicos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:27 pm

INDICE
Preâmbulo
Algumas Palavras
Prefácio


(1) O Quebra Ossos
(2) Não se levanta!
(3) O Ergástulo de Carne
(4) A Mina
(5) Os Romeiros
(6) Assim estava escrito
(7) Inquisição Moderna
(8) O Cantor
(9) A Serraria
(10) Um mau negócio
(11) Frustração
(12) Adestramento Materno
(13) Hei-de ser rico
(14) A Vida contra a vi
(15) Expurgo Psíquico
(16) Anjos Rebeldes
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:27 pm

PREAMBULO
Estimados leitores.
Quando eu vivia na Terra, nascido em S. Paulo, viajava frequentemente pelo interior do Brasil, como topógrafo ou, agrimensor, e, muitas vezes, preocupou-me a natureza trágica e dramática de certas existências terrenas.
Embora conhecedor da doutrina espírita, cultor de ensinamentos esotéricos,. teosofistas e rosa-cruzes, que me esclareciam quanto ao processo reencarnacionista e à disciplina da Lei do Carma sobre o espírito encarnado, confundia-me o raciocínio certas tragédias, as quais não compreendia dentro das normas da Justiça Divina!
Logo depois de desencarnado, e entregando-me às actividades próprias do mundo espiritual, desejei conhecer a origem. cármica de alguns dramas tristes e cruciantes que eu conhecera na vida carnal.
Então, consultei os maiorais da metrópole onde vivo,(1) solicitando-lhes permissão para investigar as causas e os acontecimentos funestos na forma de narrativas singelas, e proporcionar-lhes ensinamentos imediatos.
O próprio médium, ao saber de meus propósitos pediu-me esclarecer casos do seu conhecimento, inclusive alguns factos dolorosos de sua parentela.
Daí, surgiu o plano e a sequência desta obra, guardando-se o necessário anonimato quanto à identidade dos protagonistas, a fim de não se ferir susceptibilidades de parentes encarnados ou expor o médium a processos desagradáveis.
Aliás, atendendo a sugestões superiores, procurei evitar propositadamente a identificação dos personagens destas histórias.
Mudei os locais, datas, circunstâncias e pormenores. dos factos narrados, porque as suas famílias ainda encontram-se na superfície terráquea no labor e aprendizado da vida.
Evidentemente, alguns leitores poderão associar assuntos e coincidências destes contos, de modo a comprovar factos e dramas que presenciaram ou tiveram conhecimento. Mas, o meu intuito é o de evitar tanto quanto possível essa identificação, pois ainda me soa aos ouvidos as recomendações de meu preceptor espiritual, ao me advertir:
"Atanagildo, não esqueça que os mortos bem intencionados não devem dificultar a existência dos vivos; deixe isso para os obsessores."
Também, não procurei fazer ficção nestes contos reencarnacionistas, nem os dramatizei de modo a merecer mais apoio ou lisonja dos leitores.
A verdade é que descrevi o mais fielmente possível as coisas como elas aconteceram, e se, alguém julgá-las exageradas ou inverosímeis, ou demasiadamente dramáticas para comover o público, isso é assunto de fácil comprovação pela simples leitura cotidiana dos jornais.
Desejoso de cooperar para a evolução de meus irmãos encarnados, dirigi-me à administração da metrópole "Grande Coração", onde solicitei permissão para a tarefa a realizar.
Atendido fraternalmente pelos mentores da mesma, muni-me das credenciais necessárias para fazer as pesquisas das origens cármicas empreendidas pelos protagonistas desta obra.
Desloquei-me para algumas comunidades espirituais situadas nas regiões asiáticas, europeias e sul-americanas, a fim de colher dados e apontamentos sobre as causas que originaram certas vidas tão lastimáveis, que eu defrontara na minha última existência física.
Também devo agradecer ao espírito de J.T. (2) conhecido escritor brasileiro, que ajudou-me a compor o enredo dos contos de modo a não causar confusões aos leitores, ensinando-me a sintetizar as acções e os factos, em afinidade com esse género literário tão difícil.
Aliás, devo explicar que não fui escritor na Terra, nem publiquei qualquer trabalho literário.
Não cheguei mesmo a compor a indefectível poesia própria da adolescência.
Na minha profissão de topógrafo, aproveitava a disponibilidade do tempo para estudar obras espíritas, teosofistas, esotéricas, rosa-cruz ou yogas, dominado pela avidez de saber, e não pela ambição de criar.
Em consequência, não pretendo fazer literatura, mas apenas informar aos meus irmãos da Crosta, sobre os factos e as consequências, que produzem as cruciantes torturas aos desencarnados no Além-túmulo!
Despreocupei me dos rendilhados e atavios estilísticos, que fizeram a tortura de Flaubert, Victor Hugo, Machado de Assis, Maupassant e outros escritores, para só comunicar os acontecimentos na sua expressão exacta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:28 pm

O leitor não deve confundir o mensageiro, cujo trabalho é informar, com o artista que comove!
A principal finalidade dos "contos reencarnacionistas" é de utilidade espiritual, numa tentativa de esclarecer dramas, tragédias, vicissitudes e dores, tão comuns à vida de muitos leitores.
Esforcei-me para lhe dar 'uma visão panorâmica dos diversos matizes cármicos gerados pela "lei de retorno" na vida do ser imortal.
Há problemas trágicos, frustrações, escândalos, ingratidões, impiedades e as mais variadas situações no seio de todas as famílias humanas, em analogia com muitos acontecimentos sucedidos nestes contos reencarnacionistas. Independente da consagração na esfera da literatura mediúnica, preocupa-me somente a satisfação íntima e impessoal de advertir, sugerir ou confortar os leitores, para que ao retornarem à pátria espiritual, possam fazê-lo de modo pacífico, agradável e consciente, em vez de sofrerem as torturas e angústias dos personagens imprevidentes de "Semeando e Colhendo".
Evidentemente, o médium que me serve, ainda se prende às convenções do mundo material, e, talvez, preocupe-se em ajustar vocábulos mais afidalgados para melhor compor a singeleza do meu pensamento.
É justo que isso possa acontecer, no tocante à sintaxe e altiloquência do enredo destes contos; mas, confio na sua proverbial boa intenção, e deixo a seu critério não trair a realidade dos fatos pelo requinte de estilo!
Oxalá, as narrativas verídicas que constituem o texto desta obra, possam proporcionar novos ensejos de discernimento e conforto espiritual nos leitores, compensando a mim e aos demais participantes da tarefa, do esforço singelo mas bem intencionado.(3)

Curitiba, 30 de janeiro de 1965
ATANAGILDO

(1) Metrópole do "Grande Coração", comunidade espiritual situada. sobre região populosa do Brasil! Vide as obras "A Vida Além da Sepultura" e "Sobrevivência do Espírito", de Atanagildo e Ramatis sobre a mesma.
(2) O médium não está autorizado a identificar o espírito do escritor J. T., e se isso acontecer, será por mera coincidência, pois as iniciais do seu nome referem-se apenas à uma de suas criações literárias no Brasil.
(3) N. Atanagildo: — Releve-me o leitor a composição de tantos rodapés nesta obra, além das citações do médium; mas, sinceramente, não elaborei obra para divertimento, passatempo ou simples prazer de leitura, porém, conteúdo didáctico, informativo e esclarecedor, em co-participação com sublimes amigos das esferas superiores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:28 pm

ALGUMAS PALAVRAS
Estimados leitores. Paz e Amor.
Não nos cabe abusar do tempo precioso do leitor, a fim de comentar o conteúdo benfeitor desta obra, pois irmão Atanagildo é bastante conhecido através de duas co-participações connosco, (1) quando divulgou certos acontecimentos do "lado de cá". Investigador percuciente e espírito laborioso, sinceramente interessado em auxiliar a solução das dificuldades espirituais dos irmãos encarnados, ele se propôs transmitir através do médium obra de leitura amena, agradável e ao mesmo tempo instrutiva, buscando atrair aos leitores pelos enredos sugestivos, preocupado principalmente na valiosa advertência espiritual dos fenómenos e das consequências dolorosas comuns aos seres humanos.
"Semeando e Colhendo" é obra que enfileira uma série de contos esquematizados em acontecimentos verídicos, cujos protagonistas viveram os factos descritos que ali se relata, e, quase todos, ainda lutam afanosamente pela sua angelização!
É tempo do homem integrar-se na frequência vibratória da realidade imortal, evitando existência imprudente e prejudicial, que depois o faz desencarnar entre terrores e sofrimentos, abalando a contextura do perispírito no cenário atemorizante do baixo astral.
É frequente a leva de almas enlouquecidas, atribuladas e esfrangalhadas pela imprevidência e desinteresse das coisas espirituais, que aportam diariamente ao mundo oculto depois de viverem existência epicurística, gozadora e inescrupulosa.
Aí no plano carnal muitos zombam e riem dos tolos que pesquisam a origem de si mesmos; mas é impressionante vê-los depois acovardados nas sombras tristes e ameaçadoras das regiões purgatoriais!
Eis porque 'achamos oportuníssima a obra "Semeando e Colhendo", de Atanagildo, cujas narrativas identificam dezenas de situações inconvenientes e perigosas à ventura do espírito, após a morte do corpo carnal.
O autor descreve acontecimentos trágicos ocorridos no mundo material, para mostrar em seguida as condições dos personagens depois do desligamento do organismo físico, conforme o rendimento espiritual benéfico, ou maléfico de suas actividades materiais.
Finalmente, completa o seu labor de advertência, ao remontar às origens dos dramas, que se geraram no processo cármico e justo de "semear e colher"!
Não é obra de estilo rebuscado, nem se valoriza pelas filigranas e tessituras literárias, porém, manual didáctico, compêndio de informações e até livro de consultas.
São condições dolorosas, expiativas, atribuladas dos personagens tão comuns em nossas vidas carnais, ou que podem se suceder na trama dos futuros destinos delineados pelos nossos maiorais.
Os leitores encontrarão motivos para avaliar e comparar acontecimentos relacionados com as próprias vidas, discernindo a conduta, a reacção ou solução mais favorável para o seu caso espiritual.
Também, é conveniente se considerar a grande diferença 'que existe entre os objectivos visados pela literatura mediúnica, com a forma convencional de se escrever no mundo.
As entidades desencarnadas, em geral, assumem perante os "Mestres da Evolução", o compromisso de transferir para a Terra somente advertências, esclarecimentos ou revelações inusitadas, sem qualquer preocupação estilística.
Basta-lhes a clareza, realidade e singeleza e utilidade imediata, sem as preocupações de burilamento da forma, requintes de sintaxe ou fluência verbal.
São obras mais didácticas, tendo algo da frieza técnica dos compêndios científicos e ilustrativos de factos prosaicos.
"Semeando e Colhendo", portanto, não é obra de ficção. para excitar a emotividade humana, mas, acima de tudo, compêndio escolar de ensinamentos e revelações da vida além da carne, onde o espírito enfrenta problemas imensuravelmente mais complexos do que os fenómenos corriqueiros do mundo. material.
Aqui, nós operamos na matriz das formas através das leis utilíssimas da vida imortal, e, por isso, distinguimos o que é melhor para a criatura humana.
Felizmente, pouco a pouco, o homem assume a responsabilidade directa dos seus actos compreendendo os ensinamentos sensatos e lógicos do Espiritismo e desenvencilhando-se do infantilismo das lendas bíblicas do Catolicismo e das provas de fé do Protestantismo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:28 pm

Entende, conscientemente, que além da devoção religiosa e do amor ao próximo, resta-lhe o dever e o compromisso íntimo de ampliar sua consciência espiritual pelo trabalho, estudo e amor, e não pela crença e adoração. Jamais pode confiar na salvação ou conversão à última hora, sob a aquiescência de prestimoso sacerdote, pois o paraíso não é concessão de nenhum credo religioso!
Finalmente, Atanagildo deixa entrever nos epílogos dos seus contos a esperança de que a felicidade espiritual é realmente o tema fundamental da vida do homem!
Todos podem sofrer, errar e desanimar, porém, jamais alguém deixará de ser feliz!

Curitiba, 30 de dezembro de 1935
RAMATIS

(1) Atanagildo escreveu com Ramatis as obras "A Vida Além da Sepultura" e "A Sobrevivência do Espírito", edições da "Livraria Freitas Bastos S/A".
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:28 pm

PREFACIO
Meu prezado amigo Hercílio.
Não pude atinar o motivo plausível para que me fosse dada a primazia de escrever o prefácio desta obra.
Na Terra, vez ou outra, aceitei prefaciar alguma coisa no trato da cultura livresca do "bicho homem"!
Mas, quanto a prefaciar coisas de mortos, jamais eu poderia imaginar isso na massa cinzenta da caveira.
Chegado ao Além e depois de acomodar as malas na estalagem sideral, passei a examinar mais ponderadamente o cidadão terrícola, que de um canto desintegra o átomo para fundir milhares de colegas em Hiroshima, e, de outro lado, é capaz de hipotecar os bens da vida e secar o depósito lacrimogénico, no melodrama de arrancar um pombo preso na cumeeira da Catedral!
Se evoluiu o homem, pergunta-me você?
Morava antigamente em cavernas de pedras, hoje habita elegantes canudos de cimento; apanhava pelos cabelos a mulher do vizinho e a arrastava pelas sebes espinhentas da era paleolítica; hoje, faz a mesma coisa usando coruscante "rabos de peixe"! (1)
Matava a tacape, de frente e berrando; no século XX ataca à traição empunhando luzidia automática de tiro silencioso.
Outrora fazia o delinquente estrebuchar na corda tesa da forca provinciana, após ligeiro conluio de um juízo sonso; agora põem-no amarrado à lúgubre cadeira eléctrica e ainda recorrem ao invento de Edison, torrando o infeliz para gáudio de sádica assistência!
Matava-se, antes, por emoção ou ignorância; hoje, um bando de togados, exalando cultura de ranço jurídico, liquida o desgraçado, fria e calculadamente, entre ume sanduiche de pernil e um copo de água mineral!
A velhacaria humana ainda é a mais séria competição à matreirice da raposa, covardia da hiena ou à traição da serpente!
Mata-se milhões de seres de todas as raças e credos, e depois se atribui essa resolução cretina aos deuses.
Aqui, Jeová, feroz e racista, sanciona imoralidades e cruezas bíblicas; ali, Maomé defende Allah pregando a tolerância no massacre sangrento de infiéis; acolá, Brahma protege a casta sacerdotal e a aristocracia hindu, mas escorraça os párias para os monturos de lixo!
Deus dos católicos patrocina a "Noite de S. Bartolomeu", nas punhaladas dos huguenotes hereges, ou então paraninfa a queima de judeus e mouros nas fogueiras da Inquisição, divertimento macabro concedido aos padres pelo piedoso rei Felipe II — um sacripanta digno de ser torrado no primeiro braseiro!
Só os católicos? Não!
Os protestantes, por sua vez, também trucidaram hereges e feiticeiros nas terras do Novo Mundo, com o santo intuito de limpar cracas e detritos para candidatá-los ao Paraíso.
Aliás, Miguel Servet é queimado por Calvino em Basileia.
Se evoluiu o homem?
Matava atrabiliariamente sob as hordas ferozes de Tamerlão, Gengis-Can, Atila, Aníbal, Júlio César ou Napoleão, abrindo crânios inimigos à custa de bordoadas; mais tarde espingardeava crianças, velhos e mulheres indefesas, socando pólvora nos trabucos de museus.
Sem dúvida, o terrícola progrediu consideravelmente, no tocante à exigência sanitária em matar, como fez a corja hitlerista gazeficando judeus nos fornos dos campos de concentração de Dachau, Belsen, Auschwizt ou Buchenwald!
Parece-me que o "bicho homem" não evoluiu, mas deve ter perdido os pêlos devido alguma "dermatose"(2) imprevista, e assim ingressou atabalhoadamente na civilização!
Entrou de contrabando, sem a devida promoção ou autorização dos meirinhos de fronteiras.
Mas, que estou a dizer neste prefácio, caro Hercílio?
Que devo expor além do dito por Ramatis e Atanagildo?
Na Terra, as vezes escrevia assuntos que julgava de critério saneador, porém, logo me saía matéria abrasiva a queimar a pele das sensitivas das letras!
Embravecia os embasbacados pelo mundo, quando mexia-lhes com os penduricalhos de ferro e baeta ou subestimava-lhes as comendas e os pergaminhos!
Investia nas minhas quixotadas contra supostos apiários, e caía-me o queixo ante a surpresa dos vespeiros!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:29 pm

Mas é tempo de parar meu atrevimento de "falecido", sem abusar da condição privilegiada do herói de Welis(3) a beliscar impune a pele dos "vivos".
Afinal a morte corpórea é apenas reajuste à vida imortal, mostrando-nos as burrices feitas na carne!
Talento, galões, comendas de ferro e baeta, diplomas de papel "couché" e solitários faiscando no dedão académico, são apetrechos usados no mundo, num "faz-de-conta" infantil, e que a Parca um dia intromete-se acabando com o brinquedo!
O Além é o chuveiro que tira a "craca" das ilusões humanas, limpando o cidadão do pó do mundo, que ele junta na sua espiada ilusória através do corpo carnal!
* * *
Não vou me demorar, caro leitor!
Leia a obra do bom Atanagildo e você mesmo perceberá na série de narrativas extraídas da vida dos protagonistas, dores, lutas, vicissitudes, dramas, tragédias, frustrações ou sucessos, coisas evidentes em todas existências humanas!
Acontecimentos que nós já vivemos, ou que teremos de vivê-los nas próximas encadernações carnais.
Na Terra, vez ou outra, ria ou blasonava da sobrevivência do espírito, apesar de haver traduzido obras de outras línguas, mas depois o espanto tomou-me a alma e caí em mim, desenxabido e aparvalhado, reconhecendo-me gasoso, mas vivo!
Quanta coisa por fazer, quanta coisa por começar, e, evidentemente, por corrigir?
Muito valente que fazia coro comigo, rindo às bandeiras despregadas à simples hipótese de sobreviver à forma de nervos, ossos e músculos, hoje bate-se por aqui, aos gemidos, aos sustos e pulos, fugindo da própria sombra!
Aliás, Atanagildo compôs o rumo certo dos seus protagonistas, pois suas vidas foram algo de nossas vidas.
Em verdade, todos nós temos algo da obstinação de Clementino em "ser rico", da lubricidade instintiva de Claudionor; do orgulho ferido de Romualdo; dos temores intuitivos de Salústio; da resignação mórbida de Mathias; da generosidade de Verinha; da ferocidade de Sesóstris; do fatalismo desesperado de Leonardo ou da avareza de Cardoso!
E os pressentimentos de Rosalino, a simplicidade de Gumercino, a tragédia de Fabiano, a frustração de Cristina ou a tara psíquica de Marilda e Sónia?
Semeia-se cacto, colhe-se espinho!
O terreno fértil da carne dá de tudo; abobrinhas, morangos ou pepinos; mas, cautela e caldo de galinha, pois também nela brota capim-navalha, erva tiririca ou piolheira!
Lavoura fértil ou lavoura estéril; e se colhem os bons e os maus frutos!
E nisso Atanagildo foi felicíssimo; pôs sua gente a colher do bom ou do pior, mas depois explicou as razões de fulano chorar pelo mau toucinho que encontrou no seu jacá!(4)
E também valorizou os préstimos de quem semeou bem e colheu melhor!
Que dizer do que disse Atanagildo?
Afora da narrativa "Anjos Rebeldes", que pede interesse e perspicácia dos leitores pelas revelações ocultas nas entrelinhas, os demais contos explicam por si a natureza da infelicidade humana!
E fico por aqui, devolvendo a "caneta viva" que Atanagildo me emprestou na pessoa do caro Maes, prometendo voltar, quando Deus o quiser, mas sem "beliscar" os caros irmãos!

Curitiba, 1 de janeiro de 1966
J.T.

(1) No tempo em que J.T. vivia na Terra, era moda os "cadilacs" rabo do peixe, hoje substituídas pelos "impalas" e "bel-air"!
(2) Dermatose, designação genérica das doenças da pele.
(3) O autor alude ao personagem de H.G. Wells, da obra "O Homem. Invisível".
(4) Jaca espécie de cesto de forma variável, feito de taquara ou cipó, para conduzir, às costas dos animais, carnes salgadas, peixe, toucinho ou queijos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:29 pm

1 - O QUEBRA OSSOS.
— Paulo! Chame a ambulância!
Ligeiro, homem!
Matias está quebrado, lá embaixo!
Os operários desciam dos andaimes, apressados, pela escada improvisada de madeira tosca; os mais afoitos escorregavam pelas cordas.
Sobre retalhos de sarrafos, ripas e tábuas de pinho, jazia um homem de bruços, imóvel, gemendo, sem que alguém se animasse de tocá-lo, tais eram os gritos lancinantes que soltava ao tentarem socorrê-lo.
Vinte minutos depois se fez ouvir o uivo estridente da ambulância correndo amalucadamente pelas ruas de S. Paulo, aproximando-se do "local do acidente.
Chegou e partiu dentro de alguns minutos levando a vítima, na qual o médico responsável pela tarefa constatou várias e dolorosas fracturas ósseas.
— Não sei o que há com esse homem! — dizia "seu Joaquim", o feitor, quando prestava declarações no inquérito formal da companhia seguradora.
Essa é a sétima vez que Matias se acidenta em nossa firma, durante onze anos de serviço.
Até parece mandinga, pois ele se quebra todos nos ossos.
E numa sugestão desconsolada, aduziu — Creio ser tempo dele se aposentar!
Matias não podia ser exonerado sem o consentimento do "Sindicato de Construções Civis", porquanto era empregado estável, com mais de dez anos de trabalho na mesma firma.
Realmente, em onze anos de trabalho acidentara-se sete vezes, caindo de andaimes, de escadas e do caminhão que servia para o transporte de materiais.
Então ele ficava engessado algumas semanas, no hospital.
Houve casos em que os médicos ajustaram os ossos de modo deficiente, e o infeliz teve de ser quebrado outra vez, para retornar à forma normal.
Haviam-no apelidado de "quebra ossos", e a quantidade de chapas radiográficas que ele possuía era suficiente para comprovar uma das mais tristes histórias de sofrimento e azar!
Vinte dias depois desse último acidente, Matias obtinha alta do hospital e se apresentava novamente ao serviço.
O capataz olhou-o, de fisionomia azeda e desconsolada.
-- Homem de Deus!
Por que você não se aposenta duma vez?
Que adianta trabalhar assim, se vive mais no hospital, todo quebrado?
—Que é que vou fazer, seu Joaquim?
Tenho mulher e cinco filhos.
O que o instituto paga não dá nem "pró" sustento, quanto mais "pró" futuro?
Encolheu os ombros, desacorçoado:
—Pode ser sina, não digo que não; mas se Deus quer assim, que vou fazer?
Um dia isso termina, nem que seja mesmo com a morte!
—Qual, homem! — atalhou Joaquim, o capataz.
Desse jeito você ainda vira farinha de ossos!
Joaquim, apesar de enérgico e rústico, era dessas almas simples e laboriosas, malgrado enfrentar os tipos mais ordinários em sua função espinhosa de feitor.
Tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos, numa arrumação pensativa; em seguida, decidido, deu um leve empurrão em Matias, como a disfarçar a sua boa intenção:
—Vai, homem!
Você daqui por diante fica na guarita, apontando os empregados e controlando os caminhões de carga.
Abrindo-se num sorriso satisfeito, arrematou, sem maldade:
— Acho que do chão você não passa!
Matias assumiu a nova tarefa, com o desânimo a lhe minar a alma, e parecia ouvir uma voz íntima predizendo o fatalismo incessante de novas dores e quebradeiras ósseas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:29 pm

Sentia-se vencido pela má sorte; batido pelo cansaço que o deixava desencorajado para o futuro.
No entanto, nenhuma criatura reagia tão vigorosamente na reparação dos ossos fracturados.
O organismo de Matias zombava de suas angústias, parecendo ter pressa em lhe reconstituir os ossos, a ponto de algumas vezes corrigir os enganos médicos e acertando-lhe a conformação anatómica.
Depois de uma fractura reparável somente em dois ou três meses, bastavam semanas para ele se recompor.
Os médicos do instituto, surpresos, examinavam-lhe a ossatura recuperada, as suturas coerentes e a rapidez da cura.
E o laudo, portanto, era sempre o mesmo:
"Apto para o serviço!"
De há muito tempo, Matias sonhava com a aposentadoria por invalidez, e depois complementaria o orçamento familiar fazendo alguns "bicos".
Entretanto, sentia-se dominado por um complexo; naquela existência malvada já temia andar pelas ruas, desviando cascas de banana, contornando o asfalto húmido.
Custava atravessar uma rua movimentada.
Não subia mais escadas.
Não se arriscava ao mais suave degrau.
Não aceitava qualquer convite para uma passagem de caminhão.
Inutilmente, tentava se libertar do génio mau e sarcástico, que parecia rir-se ao predizer no âmago do seu espírito, a sina dolorosa de ser esmigalhado até o último osso!
Graças a "seu" Joaquim, podia ficar protegido, junto ao chão, como apontador e porteiro da construtora, longe dos andaimes traiçoeiros, das cordas fracas e dos degraus podres que se desmantelavam à sua passagem. -
—Acho que do chão não passa! — dissera seu Joaquim, consolador.
A sua infância fora bem azarada; a velha Maria Turquesa cansara de arrumar-lhe os ossos dos braços, das pernas, e, certa vez, precisou consertar-lhe o queixo fracturado numa queda do muro.
—Matias! — clamou "seu" Joaquim.
Abra o portão dos fundos; o caminhão vai entrar por lá! Avia-te, homem!
Era o terceiro mês que ele servia como apontador de operários e fiscal das cargas trazidas para o almoxarifado da construção.
Sentia-se bem, muito bem; havia engordado cinco quilos naquela vida tranquila.
Apanhou o molho de chaves e desceu para os fundos do terreno, onde terminava o esqueleto da construção.
Abriu o portão e calçou as duas folhas pesadas de madeira; fez sinal ao chofer e indicou-lhe o caminho para levar a carga de ferros, cimento e quase uma tonelada de cano galvanizado para a rede de água e esgoto.
O pesado veículo roncou forte e o motorista pisou firme no acelerador, para vencer o declive da calçada e dobrar, rápido, em direcção ao almoxarifado, cujo terreno cedia facilmente.
O ar tresandou a gasolina e os pneus estalaram no cascalho solto.
Um golpe violento de direcção, uma derrapagem e quando o motor amainou foi que ouviram os ais de Matias, atirado numa poça de sangue junto ao pilar do primeiro pavimento.
O feixe de canos galvanizados, que se sobressaia do caminhão, apanhara Matias na curva da entrada, e o lançara a mais de dez metros de distância, como arremessado por certeira catapulta.
Quando os companheiros do infeliz chegaram, ele agonizava nos últimos estertores, pois dessa vez, além dos ossos partidos, haviam-se rompido as vísceras.
Um filete sanguinolento escorria-lhe dos lábios entreabertos e ouvia-se a dispneia da agonia.
Joaquim, o feitor, chegou afobado e estacou, descrente do que via.
Mas era tarde; Matias expirara ali mesmo e os homens entreolhavam-se surpresos e intrigados pelo fado implacável, cruel e vingativo, consumado no fatal acidente.
Oito quebradeiras de ossos!
Santo Deus!
Assim nunca vi!
Isso até parece praga de madrinha! — desabafou Joaquim passando a mão na testa, vendo-se frustrado nos seus bons intentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:29 pm

Enquanto mãos piedosas erguiam dali o corpo inerte de Matias, para conduzi-lo ao necrotério, do outro lado da vida o seu espírito também era socorrido por almas benfeitoras, amparando-o amorosamente.
Um sono pesado entorpeceu-o e pelas faces perispirituais espraiou-se uma expressão venturosa de paz e serenidade.
Momentos depois, os espíritos auxiliares afastaram-se, respeitosamente, ante uma entidade venerável, de cabelos níveos e faces ternas nimbadas de luz, que se curvou sobre o corpo perispiritual de Matias.
Em seguida, fez um aceno de despedida a todos e alçou-se, num voo angélico, conduzindo em suas mãos fulgentes a carga preciosa em direcção à alguma moradia feliz!
Tempos depois o espírito de Matias, o "quebra ossos", despertou bastante surpreendido num ambiente sereno e confortante, todo iluminado por suave luz cor de topázio com reflexos róseos.
Sentia-se eufórico e recuperado em suas forças vitais.
Naturalmente, pensava, devia encontrar-se abrigado em moderno hospital e sob os cuidados de médicos renomados, tal a sensação de saúde e bem-estar que sentia.
Procurou mover-se, com extremo cuidado, receando as dores habituais das contusões; mas estranhou a leveza do corpo, ausência de dor ou edemas provindos de contusões.
Surpreso, viu-se completamente livre, sem ataduras ou moldes de gesso que tanto o incomodavam depois de cada acidente.
Ao se virar, no leito, ainda ficou mais surpreso e quase assustado, ao deparar com um ancião de cabelos brancos e fisionomia ascética, que num gesto bondoso acalmou-o:
—Matias; fica tranquilo, pois a tua conformação na vida carnal libertou-te das culpas pregressas!
E ante o espanto do mesmo, prosseguiu, bondoso:
—Doravante, quando voltares à matéria, terás um fardo mais suave; mais aprendizado espiritual e menos rectificação cármica.
Agora estás em harmonia com a Lei que violentastes no passado, pois vivestes resignadamente o programa crucial de uma rectificação espiritual.
Os ossos do teu corpo físico quebravam-se sob o determinismo da Lei, mas tua alma fortaleceu-se na prova redentora.
Matias arregalava os olhos sob os influxos magnéticos, que saiam das mãos do venerável mentor; sua memória clareava-se surgindo-lhe quadros nítidos na mente.
Acontecimentos estranhos, mas que ele sentia tê-los vivido alhures, projectavam-se à semelhança da projecção de filmes na tela cinematográfica.
Confuso, porém, consciente, viu-se travestido noutro homem; um robusto espanhol tostado pelo Sol, arbitrário, de mau génio, agressivo, cruel e vingativo.
Alguns homens da mesma têmpera cercavam-no com respeito e temor, enquanto ele transmitia instruções severas.
Chamava-se Manuel Gonzalez, — o contrabandista — e tinha por hábito perverso vingar-se dos desafectos, nas fronteiras de Espanha e Portugal, atirando-os dos altos penhascos, para vê-los esfacelarem-se nas quedas desamparadas contra as rochas aguçadas, quebrando-lhes os ossos!
Então Matias volveu os olhos humedecidos para o mentor generoso, e reconhecendo-o na sua indumentária espiritual, agradeceu-lhe como a criança após reparar alguma imprudência.
Uma doce paz tomou conta do seu coração, enquanto esvanecia-se dele o remorso que há muitos anos crepitava causticamente no imo da alma.
Curvou a cabeça, reverente,. murmurando num tom venturoso e de incontido alívio:
— Obrigado, meu Deus!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:29 pm

2 - NÃO SE LEVANTA!
João Baptista e Margarida mostravam-se exultantes, junto à pia de baptismo na igreja de Santo António.
O padre Marino, espanhol magriço e ossudo, arengava um latim ininteligível e aspergia de água benta a Hortência, a primeira filha do casal.
Os patrões de João Batista, "seu" Marcos e dona Merenciana, sua esposa, donos do armazém "Arco-íris", faziam as honras de padrinhos.
A festinha do baptizado fora simples e pródiga de doces, salgadinhos, refrescos e cervejas, terminando quase de madrugada, após muitas danças ritmadas pela harmónica do Germano.
Hortência era moreninha; de cabelos pretos, os olhos castanhos.
Muito viva aos cinco meses.
Os pais pobres e o advento da primeira filha, embora significasse um acontecimento auspicioso, aumentara as preocupações agravando o orçamento do lar. Infelizmente, passado um ano do nascimento de Hortência, João Baptista sentiu-se mal no armazém, febril e com dores no baixo-ventre.
Apesar das tisanas de camomila, chá de losna e erva-doce, receitada pelas comadres vizinhas, o médico foi chamado às pressas.
Mas já era tarde, pois João Batista mal chegou ao hospital falecia de apendicite com peritonite.
Margarida, além de viúva, ficou grávida, sem aposentadoria, sem seguro de vida ante a imprudência do esposo, nada provendo para a família no futuro.
Decorridos quatro meses da morte de João Baptista, nascia Guiomar, outra menina morena, bem nutrida, significando novos gastos.
Margarida atirou-se decididamente à luta e pôs-se a lavar, passar e serzir roupas para criar as filhas.
Felizmente, elas gozavam de boa saúde, mas à medida que cresciam, era fácil de se observar a diferença entre o carácter e o temperamento de ambas.
Guiomar, quieta e afável, entretanto, de espírito calculista, sovina, exigindo recompensas pelo mínimo favor prestado a qualquer um.
Hortência, embora mais pródiga, era má e irascível, além de orgulhosa.
Margarida pedalava a máquina de costura durante o dia e pela madrugada afora, a fim de obter o sustento mínimo da família.
Infelizmente, má alimentação, trabalho excessivo e fadiga, minaram-lhe a resistência orgânica, e a tuberculose tomou conta dos pulmões.
Nem chegou a sofrer os quadros trágicos da doença insidiosa.
Morreu em poucos dias, justificando plenamente os dizeres dos vizinhos:
"Margarida estava à beira do túmulo; a tuberculose unicamente lhe deu um empurrão!"
Hortência tinha quinze anos, quando ficaram sozinhas no mundo, obrigadas a aceitar toda sorte de empregos para sobreviverem no lugarejo pobre onde tinham nascido.
Eram infelizes órfãos entregues à própria sorte, num mundo agreste e mau!
Certa manhã, Hortência levantou-se apreensiva, pois alguma coisa estranha ocorria-lhe nos ossos, à altura da coluna vertebral, onde uma força esquisita parecia-lhe inclinar o corpo para a frente.
Assustada e aflita, semanas depois ela percebeu os braços pendendo em demasia para diante, contrariando a forma habitual.
Lentamente foi-se modificando.
Decorrido algum tempo ela já se movia num balouço grotesco, com braços e mãos pendentes, lembrando a oscilação dos pêndulos de relógios.
O rosto moreno, amarelecendo, de traços duros e antipáticos.
A cabeça angulosa coroada por uma cabeleira espetada e fosca.
Este aspecto asqueroso tornava-lhe a vida mais difícil.
Negavam-lhe trabalho, e os conhecidos antigos procuravam evitar até o simples encontro com ela.
Nas festas da igreja local, desprezada, ela se refugiava num canto, obstinada e de olhar duro, sem esconder sua agressividade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:30 pm

Guiomar, bem feita de corpo, de formas arredondadas e voluptuosas, passava de braços com as companheiras, numa garridice e trejeitos sensuais de moçoilas casamenteiras.
Hortência, no entanto, via fugir a cada momento a possibilidade de arranjar um marido que a amparasse pela vida fora.
A doença estranha avançava rápida e impiedosa.
uando Hortência foi examinada por um especialista da Capital, o diagnóstico foi chocante e desconsolador; era a hipertrofia da coluna vertebral com deformações irreversíveis.
Ela então foi-se curvando, paulatinamente, para o chão.
Os braços, para a frente, davam-lhe um aspecto ridículo; alguns meses depois ela tocava o chão com as pontas dos dedos, despertando piedade nas almas boas e repulsão nas insensíveis.
Guiomar ficou atarantada com a desgraça insuperável da irmã e deplorava o fardo oneroso que isso lhe causava na vida moça, cheia de sonhos.
Porém, tornou-se indiferente à sina de Hortência, e sua alma primária e inescrupulosa sentia certa satisfação mórbida, ao vê-la caminhar trôpega e balouçante, oscilando os quadris e os joelhos, tocando no solo com os dedos sujos e unhas enegrecidas.
Hortência ao completar vinte e cinco anos tinha a fisionomia completamente simiesca, causando susto e asco.
A testa era um mapa geográfico, com mil rugas, pelo esforço de olhar para a frente, sem poder erguer a cabeça.
O movimento espasmódico e antinatural fizera dela um objecto de escárnio para a gurizada traquinas e inconsciente, que a apelidaram de "relógio de parede"!
A infeliz aleijada já cogitara algumas vezes do suicídio, todavia o espírito egocêntrico e ainda essencialmente apegado à vida física dava-lhe forças para prosseguir naquele corpo deformado.
Confiante no milagre de uma cura imprevista, vibrava-lhe na alma a esperança de encontrar algum mago poderoso, capaz de livrá-la da enfermidade tão repulsiva.
Isso lhe animava o andar trôpego pelas ruas, malgrado reconhecer-se uma caricatura humana.
Certa vez, abalada nas fibras do ser, ouviu alguém verberar a estupidez de Deus, que ao "fazer a criatura à sua imagem, produzira um monstro!"
Guiomar, enojada, punha-lhe a comida no prato e Hortência alimentava-se como um cão esfomeado, abocanhando os alimentos, fuçando o prato, sacudindo-se toda para partir um pedaço de carne com os dentes e sem o auxílio das mãos ossudas e rígidas, que não se dobravam apesar do máximo esforço.
Quando se lavava metia o rosto na bacia de água e depois enxugava-se esfregando as faces de encontro aos ombros.
O banho do corpo simiesco só era possível com a ajuda de Guiomar, ou de qualquer outra alma caritativa.
Infelizmente, Guiomar, espírito irresponsável e ocioso desviava-se cada vez mais da rota de mulher digna, e punha-se a especular com o seu corpo vistoso, em troca de moedas aviltantes.
Algumas vezes retornou ao lar com visíveis sinais de embriaguez e censurada por Hortência, esbofeteou-a num assomo de nojo, ira e ódio, exclamando sob o efeito do álcool:
—É uma bruxa! ... Bruxa!...
Há de pagar tudo o que me fez!
No dia seguinte, sóbria, sentia remorsos por bater numa aleijada, e punha-se a chorar de modo piegas, enquanto a infeliz irmã curtida pelo destino humilhante, suplicava-lhe, num gesto de mendicância:
— Guiomar! Leva-me desta aldeia miserável!
Leva-me para a Capital e lá pode me abandonar!
E depois de se mover bamboleante pelo quarto, envolta em trapos, Hortência aninhava-se na enxerga imunda, com lágrimas ferventes nos olhos esgazeados pelo intenso sofrimento.
Guiomar conseguiu juntar algum dinheiro e resolveu livrar-se da irmã atendendo-lhe as próprias súplicas.
Em fria madrugada partiram de carroça, levando solicitação do juiz local para pernoitarem durante uma semana no albergue nocturno.
Ao entardecer chegaram a Capital, rumando para o albergue, onde encontraram sopa nutritiva, pouso e banho refrescante de chuveiro.
Na manhã seguinte, saíram cedo à rua, com Hortência deformada, a se mover numa ginga grotesca semeando confrangimentos, repulsas e até sarcasmos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:30 pm

As faces cada vez mais embrutecidas pelo sofrimento.
Os olhos frios e duros a disfarçarem-lhe a revolta surda.
Os gestos bruscos e agressivos.
Então formava um conjunto dissonante e indesejável na cidade, enquanto Guiomar sentia-se cada vez mais revoltada em ser o "cicerone" de uma criatura teratológica.
Irritada e impiedosa, passou a hostilizar Hortência, responsabilizando-a, também, pela sua própria vida inútil e libertina.
Mas, dias depois, um acontecimento inesperado transfigurou Guiomar e encheu-lhe os olhos de cobiça e avidez ante a fabulosa descoberta; em apenas uma hora, depois de Hortência recostar-se na parede de um muro arruinado, fatigada de suas andanças, dezenas de pessoas condoídas daquele quadro burlesco, despejavam dinheiro, enfeites e até adereços de bom valor no regaço da infeliz.
Era um acontecimento inédito no lugarejo pobre onde viviam.
Lá, ambas mal conseguiam adquirir os meios para se alimentarem, pois nos últimos dias aceitavam roupas e auxílios dos conhecidos mais generosos.
À noite, Guiomar contou a féria e ficou perturbada.
Ali estava uma pródiga fonte de renda para si e a possibilidade de amealhar dinheiro fácil, cabendo-lhe Unicamente a tarefa de custodiar a irmã aleijada.
No princípio, tratou Hortência com fingida ternura e afabilidade, velando por sua saúde e bem-estar, mas, decorridos alguns dias, o seu espírito mercenário e calculista passou a explorar todas as circunstâncias favoráveis na especulação da desgraçada irmã. Percebendo que o aspecto melhor de Hortência, também lhe reduzia a féria diária, Guiomar negou-lhe os mínimos recursos de higiene e bem-estar, cuidando propositadamente de lhe dar um ar lúgubre, grotesco e trágico!
Empurrava Hortência para os lugares de maior afluência de pessoas.
Fazia-a levantar de madrugada e impelia-a pela rua escurecida a fim de apanhar o primeiro transeunte; e, altas horas da noite, ainda a sustinha nos pontos estratégicos de boa renda e muita gente.
Obsidiada pela mórbida especulação sobre a deformidade da irmã, Guiomar às vezes transportava Hortência de automóvel, de um canto para outro, a fim de apanhar festas de igreja, saída tumultuosa dos cinemas ou término das novenas bem frequentadas.
Largava-a quase aos arrastos na porta dos templos repletos de fiéis, ou lhe apurava o trote largo pelas ruas da cidade, na precipitação de alcançar a chegada de trens na gare ferroviária.
Hortência atingira os trinta anos e estava horrenda.
O crânio alongado com ralos cabelos eriçados, o rosto terroso e comprido, formavam um esboço humano mal acabado, esculpido por grosseiro artista.
Também perdera a maioria dos dentes, e, os que restavam eram pontudos, acentuando-lhe o aspecto animalesco.
Algumas criaturas de coração magnânimo compraram-lhe um carrinho de rodas de borracha facilmente movido à mão.
Guiomar ficara furiosa com essa providência caritativa, que logo reduziu grande parte das esmolas; e, certa noite escura, enquanto Hortência dormia, ela largou o carrinho no trilho da estrada de ferro e um trem o esfacelou.
Dali por diante pôs-se a vigiar Hortência como um felino vigia sua presa, impedindo-a de contacto com qualquer outra criatura.
Evitava as proximidades de associações beneficentes, só lhe permitindo o direito de pedir uma esmola pelo amor de Deus!
Toda a contextura espiritual primária de Guiomar veio à tona por força da ganância e sovinice.
Ela batia em Hortência, quando a féria era magra. verberando-lhe a moleza no pedir; e deixava-a propositadamente sem comida até conseguir determinada importância.
Explorava-lhe todas as possibilidades do ganho fácil, verificando que a própria fome melhorava a receita de Hortência.
Eis que, certa organização espírita, condoendo-se da situação pungente de Hortência, promoveu uma subscrição entre os associados e conseguiu pecúlio suficiente para interná-la numa instituição hospitalar adequada à sua enfermidade.
Em seguida, entregou certa importância em dinheiro para Guiomar adquirir roupas e utensílios necessários à irmã.
Mas para surpresa de todos, Guiomar desapareceu com o dinheiro subscrito e deixando a irmã na mais extrema miséria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 21, 2021 7:30 pm

Mais tarde soube-se de toda a verdade; Guiomar retirara farto pecúlio da Caixa Económica e sumira-se para lugar ignorado em companhia de conhecido vigarista da Capital.
Passaram-se os anos.
Um dia Hortência desapareceu da instituição em que fora acolhida.
Algum tempo depois, no lugarejo de Taperebá, o dia estava quente e abafadiço, o ar estagnado.
Os próprios pássaros refugiavam-se nos ramos imóveis dos arvoredos.
Entre os tufos de capim amarelecidos e pintalgados pela poeira vermelha, que subia da estrada principal, existia um caminho estreito e sinuoso entre os arbustos e sob os arvoredos copados.
Ao longe, na estrada, trotava uma carruagem deixando uma nuvem cor de tijolo à retaguarda.
No riacho, debaixo de uma ponte, algumas mulheres lavavam roupas nas tábuas lisas, depois de as esfregarem com sabão de cinzas.
Algumas delas fumavam cigarros de palha, espalhando no ar o cheiro acre do fumo caboclo; outras tagarelavam e riam numa prodigalidade de gestos próprios do mulherio de cortiço.
Entretidas na faina laboriosa e como não eram dotadas com a "faculdade de vidência",(1) elas não podiam perceber a cena insólita que se passava justamente sobre a ponte onde se abrigavam do sol causticante.
Ali, sem se preocupar com o calor estorricante, encontravam-se três homens de vestes translúcidas, envoltos por uma luminosidade suave e um "lusco-fusco" lilás safirino.
Jamais as lavadeiras poderiam ouvir-lhes o diálogo, pois eram, realmente, espíritos em alguma tarefa importante naquela zona.
— Creio estarmos bem orientados! — exclamou o mais idoso entre eles, um senhor de aspecto agradável, tipo latino, mas envergando uma túnica de seda branca como usavam os antigos gregos, a qual lhe caía harmoniosamente até um pouco abaixo da cintura.
Apontando para o atalho sinuoso entre os arbustos, ele acrescentou.
— A nossa cliente deve agonizar nessa direcção!
E sorriu, com certo ar travesso, mas cordial, ao mencionar a palavra "cliente".
Os outros dois companheiros trajavam um costume branquíssimo lembrando a figura de enfermeiros.
Cada um deles segurava um pequeno aparelho prateado que refulgia sob as cores dum verde-suave respingado de lilás emanado das próprias auras.
Em seguida, eles se puseram a caminhar, lentamente, alcançando o caminho estreito.
Depois de alguns minutos de caminhada num cordial entretenimento espiritual, chegaram defronte a uma cabana arruinada, que só por um milagre estava de pé.
Foram recebidos por uma mulher de meia-idade, envolta num halo cinzento e sem claridade definida, cuja fisionomia rejubilou-se ao comprovar a chegada dos espíritos.
— Graças a Deus! — disse ela, pondo a mão no peito e apontando para dentro do casebre.
Ela está sofrendo demais e não pode se libertar sem o socorro desencarnatório.
Eis, porque, rogo-lhes desculpas pelo meu apelo aflito.
Os três espíritos penetraram no casebre e não puderam ocultar um choque vibratório desagradável, que os atingiu causado pelos fluidos densos e mortificantes, e pela multiplicidade de miasmas, germens e bacilos psíquicos activados no entretenimento de sua vida inferior.
Num canto, atirada sobre uma enxerga de trapos e capim infecto, Hortência, a mulher simiesca e repulsiva, estertorava em tormentosa agonia, com os olhos esbugalhados para o tecto esburacado da cabana.
Não havia qualquer semelhança com algum ser humano, mas apenas uma caricatura que fosse esculpida no tronco de uma árvore carcomida.
O espírito mais idoso curvou-se sobre ela, num gesto de profunda comiseração e ao mesmo tempo de pesquisa, como o técnico que procura alguma falha em peça valiosa.
Em seguida, ele esclareceu, erguendo-se:
— Realmente, o cordão umbilical rompeu-se e o chacra laríngeo está se apagando pela evasão do éter-físico, o que se comprova pela perda da voz e a dispneia na tentativa de falar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:50 pm

Já foi superada a fase instintiva e o nosso trabalho agora resume-se na região mental, onde se aninha a última onda de vida carnal!
Os dois jovens postaram-se ao lado de Hortência e conforme as instruções do seu mentor, moviam os seus aparelhos em complicados processos a despedir clarões de um alaranjado brilhante e às vezes matizado de um prateado fulgurante.
Dali a pouco via-se perfeitamente o duplo astral de Hortência projectado uns três palmos acima do seu corpo físico, mas ainda ligado por um cordão prateado,(2) que resplandecia como um fio eléctrico incandescente.
Alguns minutos depois, o espírito mais idoso apanhou de um estojo castanho claro, uma espécie de tesourão pequeno de podar arvoredos, e ligou-o numa caixa presa à cintura de um dos jovens companheiros, algo parecida com um pequeno transformador.
Ato contínuo, despediram-se milhares de fagulhas serpenteantes do referido tesourão, num tom azul-aço, e dali a pouco pendia da região bulbar do perispírito de Hortência o cordão prateado, de cuja ponta balouçante fluía o "tónus vital", em clarões intermitentes.
O venerável espírito voltou-se para os companheiros e para a mulher, que então se achava amparada por outro espírito desencarnado, de aspecto modesto e humilde, dizendo-lhes:
—Irmãos Margarida e João Baptista, entrego-lhes o espírito de Hortência, que foi sua filha na última existência terrena, e deixo a cargo de vocês a assistência que ela poderá necessitar.
Almejo a todos compreensível vivência espiritual e eficiente programa redentor para o futuro.
Retornaram pelo mesmo caminho sinuoso entre os tufos de capim avermelhado, enquanto o mentor comentava:
—O problema cármico na Terra ainda é complicado e bem tormentoso!
No entanto, quando o espírito aceita espontaneamente a prova redentora e a cumpre com resignação, conformidade e estoicismo, é sempre compensador ajudá-lo no seu transe final a se desenvencilhar dos últimos grilhões da carne! Hortência, a irmã que atendemos, apesar do orgulho e ferocidade do passado, aceitou e cumpriu resignada a prova trágica e dolorosa, que impôs a si mesma para a sua mais breve rectificação espiritual.
—Irmão Demócrito, — indagou um dos jovens espíritos — qual foi a causa que gerou um destino material tão horripilante para essa irmã?
A simpática entidade, depois de um momento de abstracção, explicou:
—Hortência foi no século passado dona Francelina, esposa de abastado fazendeiro paulista.
Mulher cruel e tirânica, que administrava pessoalmente os bens do marido, o qual consumia a existência e fortuna no bulício de Paris, sustentando vaidosa e fútil amante.
Dona Francelina não fora nascida mulher para o lar, pois, se fosse homem, seria um feroz sargento de quartel.
Era espírito de comportamento masculino, resoluto e despótico, vigiando tiranicamente a vida e as negaças dos escravos da senzala.
Ela sabia extrair o máximo do trabalho cativo no eito.
Escravo doente, defeituoso ou exaurido, era vendido de modo inclemente para outros fazendeiros menos privilegiados.
Não vacilava em separar os filhos dos pais.
Não escondia sua desusada volúpia, quando apanhando escravos em falta grave, podia se vingar deles separando-os dos familiares.
Demócrito fez uma pausa, como a coordenar lembranças:
— Mas a vingança mais impiedosa e sádica de dona Francelina, consistia em obrigar a escrava ou escravo faltosos a ficarem de quatro, o dia todo, com as mãos no chão, só permitindo-lhe alimentar com a boca, como fazem os cães!
Qualquer gesto ou tentativa de burlar o castigo e livrar-se da posição incómoda e dolorosa, ela mandava vergastar.
E enquanto os feitores castigavam o lombo dos infelizes cativos, ela gritava, num tom de voz varonil e no sotaque arrastado de mulher nortista:
— Não se levanta! ...
Não se levanta! ...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:50 pm

Atingida a ponte de cimento, Demócrito arrematou:
- Sob a lei de que a "semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória", dona Francelina retornou à Terra, na localidade de Taperebá, vivendo a figura da infeliz Hortência e nas condições dramáticas que vocês puderam verificar, modelando durante anos na sua deformidade insuperável e posição quadrúmana, a mesma configuração que no passado ela impunha impiedosamente a seus infelizes escravos.
Considerando-se que o "amor une" e o "ódio imanta", as almas entre si, junto de Hortência nasceu-lhe como irmã, Guiomar, a escrava mais pérfida da fazenda, e da qual dona Francelina mais se desforrava pela chibata.
O esposo, boémio, irresponsável e sua amante parisiense, também se aliaram à prova de Hortência na carne, vivendo as figuras de João Baptista e Marciana, seus pais, a quem ainda a pouco entregamos a filha.
Enquanto os dois espíritos moços reflectiam sobre a trama cármica que reajusta a entidade faltosa na busca da felicidade perdida, Demócrito, num gesto de sincera ternura, acrescentou:
— Que eles sejam felizes; mas, em face do seu primarismo espiritual, ainda precisam de muitos séculos para alcançar a ventura angélica!

(1) Vidência, faculdade própria dos médiuns que podem enxergar os espíritos desencarnados.
(2) Citado na Bíblia: Eclesiastes 12-6.
O último cordão perispiritual a ser seccionado após à desencarnação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:50 pm

3 - O ERGÁSTULO DE CARNE.
Ali pelo ano de 1923, eu fora convidado para ir à Curitiba, a fim de proceder um levantamento topográfico em terrenos de propriedade do governo do Estado do Paraná.
Embora estivesse habituado ao ruido e à agitação da capital paulista, onde nasci e vivia, agradei-me bastante da tranquila "cidade sorriso", como a chamavam na época, pelo seu povo pacato e afável.
Depois do almoço, no "Grande Hotel", à rua XV de Novembro, convidei Hamilcar, sócio de minha empreitada de agrimensor, para então visitarmos alguns logradouros públicos, e conhecermos melhor a cidade.
Achava-me à porta do "Café Brasil"(1) tomando um cafezinho gostoso a 200 réis. a xícara, servido em mesas e com direito à dobradinha quando, de súbito, percebi, quase a meus pés, uma criatura de aspecto repulsivo, que em movimentos ofídicos, arrastava-se pela calçada, ora firmando os cotovelos, ora de joelhos e as vezes a própria cabeça, contra o solo.
As mãos estavam calejadas.
Os cotovelos e os joelhos que lhe serviam de apoio para se arrastar, protegidos por retalhos de couro.
Ele se movia numa oscilação desconexa; erguia, por vezes, a metade do corpo, como a foca no jogo de bola, e deixava-se cair novamente sobre o chão, despertando sentimentos contraditórios nos transeuntes, entre o asco e a compaixão.
Os mais compassivos metiam-lhe nos bolsos do paletó, moedas de valores variados.
Ele os olhava, inexpressivamente, cansado e indiferente diante da própria situação horrível.
Não se mostrava grato às esmolas pródigas, nem se lhe notava qualquer gesto de revolta ou ressentimento contra os que se recusavam a ajudá-lo ou injuriavam-no.
Graças aos meus estudos esotéricos e às conclusões filosóficas espíritas, eu podia identificar ali naquela criatura infeliz, apenas um espírito endividado e submetido à rectificação cármica para se ressarcir de algum passado tenebroso.
O meu cérebro trabalhava inquiridoramente, condoído do tal desgraça:
"Que fez essa alma, no passado, para gerar destino tão trágico?"
Olhei-o, demoradamente, e nesse momento ele voltou-se; então percebi por que as criaturas mais optimistas ou insensíveis, estremeciam num gesto de repulsa, quando o aleijão lhes passava perto.
O seu ouvido direito era uma chaga aberta, cujas bordas ainda apresentavam os sinais indefectíveis de uma corrosão impiedosa.
As vezes, num gesto maquinal, sacudia a cabeça, tentando enxotar as moscas que voejavam em torno.
Diante do quadro tão infeliz, voltei-me para Hamilcar, interrogador:
—Qual seria o motivo dessa criatura enfrentar um viver tão cruel?
Um oficial médico da Polícia Militar, que ali se achava, destacando-se de um grupo de pessoas que se aquecia do Sol, informou-nos, gentilmente:
— Essa criatura surgiu há duas semanas, aqui em Curitiba, trazida por um trem de carga do Sul.
Nasceu no Uruguai, e muito cedo foi abandonado ao léu, criando-se à custa de esmolas e dos favores públicos.
Arrasta-se de um canto para outro, até o dia em que Deus lhe termine a existência tão complicada.
Oferecendo-nos um cigarro "Liberty", que agradecemos por não fumar, o médico militar concluiu, solícito:
—Contaram-me que o desventurado, há dois ou três anos, dormia acomodado no chão do laboratório de uma farmácia, em Porto Alegre, quando, ao voltar-se, num espasmo, bateu com violência no suporte inferior da prateleira onde se achava próximo.
Para sua desgraça, entornou-se um frasco de ácido nítrico, caindo a rolha de vidro e vazando-lhe o conteúdo corrosivo directamente no ouvido direito.
Sorvendo longa baforada de fumo, o oficial médico assim arrematou, na sua linguagem impessoal e curtida pela profissão:
—Dizem que os gritos dele acordaram toda a vizinhança, como berros de um animal sacrificado no matadouro.
Depois dessa tragédia e apesar do tratamento mais generoso, ele só dorme à custa de anestesiantes e soporíferos em altas doses.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:50 pm

As esmolas, assim no-lo disse, mal servem para cobrir-lhe os gastos de comprimidos!
A chaga do ouvido parecia resistir a qualquer terapêutica e já lhe havia atingido o ouvido interno.
Naquela época, a Medicina ainda não gozava dos benefícios bactericidas e antibióticos, pois as infecções semelhantes eram tratadas à base de iodo, arnica, nitrato de prata, ou então pelas tradicionais pomadas de Reclus ou pasta de Lassar.
Jamais pude esquecer a configuração tétrica e arrasadora daquele homem rastejando pelo solo na forma de um verme humano, exaurindo-se no gasto de suas energias, a fim de avançar alguns palmos de calvário de sua vida estigmatizada pelo infortúnio.
Não me confrangi de examiná-lo atentamente, mas o fazia como um clínico interessado em minorar o sofrimento do paciente.
Verifiquei-lhe a atrofia dos braços, que se mostravam estranhamente colados até os cotovelos no dorso, e as pernas, que ele as virava, num só movimento, como se estivessem amarradas.
O seu esforço exaustivo para empurrar o corpo para frente, lembrava-me o mineiro ao se arrastar pelos túneis de ligação às galerias das minas; ou alguém tentando passar debaixo de uma cerca ou portão.
Não, havia dúvida; ali se mostrava uma criatura realmente "amarrada" pelos cordoames implacáveis dos nervos e dos músculos atrofiados!
Depois que desencarnei (2) e me reajustei, no Alem Tumulo, ingressando nas actividades socorristas da metrópole espiritual "O Grande Coração", desejei conhecer alguns destinos trágicos ou catástrofes, que surpreendem e confrangem os encarnados na face da Terra.
Logo recordei-me do "amarrado vivo", que tanto impressionara o meu espírito durante a visita feita à Curitiba.
Através do "Departamento Sideral de Fichas Cármicas", de minha metrópole, soube que a referida entidade havia se encarnado no Uruguai, mas era espírito egresso de colónias espirituais situadas no astral da Espanha.
Munido do credenciais superiores tive acesso aos "registos akhásicos" ou "anotações etéricas" de processos cármicos, da colónia espiritual conhecida por "Mansão do Vale".
Embora eu fosse um razoável psicómetro, isto é, com a faculdade de ler no Éter alguns acontecimentos do pretérito, solicitei ao mentor responsável o obséquio de projectar por certo aparelho, sem analogia na Terra, apenas os quadros cármicos que haviam gerado a existência tão cruel e causadora do aleijão, que eu conhecera em Curitiba como um "amarrado vivo".
Logo em seguida, um técnico sideral pôs em funcionamento o aparelho, ao mesmo tempo projector e receptor no astral, e em seguida desenhou-se numa tela leitosa a configuração de uma cidade, que logo depois reconheci tratar-se de Barcelona, ali pelo século XVI, na época de Felipe II.
Em seguida, a cena foi se esfumando e Barcelona desapareceu na tela esbranquiçada, surgindo, pouco a pouco, os contornos de uma vasto porão, cuja abóboda era sustentada por uma série de arcos de pedras enegrecidas.
Em virtude das projecções tela-cinematográficas no mundo astralino revelarem em sua intensidade todos os fenómenos oriundos dos acontecimentos em projecção, como seja o colorido local, a temperatura, os sons e os odores, diante daquele porão construído na forma de arcada, senti um bafio desagradável de humidade e as exalações repugnantes de sangue misturadas ao, cheiro acre da fumaça de enxofre.
Ouvia o remexer de ferros e alguém mover-se sobre o chão de pedras polidas.
Súbito, o aparelho focalizou no campo etérico a figura de um homem agigantado, com traços de mouro, vestindo calções de algodão ordinário e tendo o dorso completamente nu.
Os cabelos curtos, espessos, recobrindo parte da testa, tão duros como a piaçaba, davam-lhe um aspecto simiesco e agressivo.
Era um tipo de magarefe rotundo, pernas curtas e "bíceps" assustadores; suava em bicas e mexia alguns ferros cm dois cadinhos de material refractário, onde ferviam enxofre e chumbo sobre forte chama avivada por um fole.
Em seguida, o projector focalizou junto à trempe do braseiro, um homem amarrado do pescoço aos cotovelos, cujos pés, também, estavam atados por uma vigorosa corda de couro cru.
Os seus olhos revelavam um sofrimento indescritível.
Dai cantos dos lábios fluía uma baba sanguinolenta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:50 pm

Os dedos retalhados das mãos sangravam prodigamente pelos ferimentos parcialmente queimados com enxofre.
Seus cabelos deviam ter embranquecido algo rapidamente, pois ele ainda era moço e sua barba em ponta, repartida ao meio, bem feita e bem tratada, era quase preta.
Toda vez que algo respingava do braseiro e queimava as mãos do rotundo magarefe daquele porão, ele grunhia de raiva, e à guisa de compensação, também respingava gotículas de chumbo ou enxofre fervente nos pés da infeliz criatura amarrada ali no solo, fazendo-a sacudir-se numa crise de estremecimentos convulsivos e gemidos estertorados.
A cena confrangedora deslocou-se, pouco a pouco, e reconheci os primeiros degraus de uma escada de pedra encardida, a qual devia dar acesso ao porão.
Assim como acontece na cinematografia terrena, o aparelho projector foi subindo a escada, e, súbito, surgiram duas botas cor de manteiga, de couro finíssimo e macio, magnificamente trabalhadas por exímio artesão.
Em seguida, gradualmente, delineou-se na tela a figura imponente de um homem robusto, espécie de requintado fidalgo da corte de Felipe II, diante do qual o magarefe curvou-se servil e atencioso.
Alto e forte, o fidalgo movia-se numa pose estudada, traindo a preocupação de não decepcionar o público; num gesto voluptuoso e narcísico, retirou as luvas de pelica branca e sacudiu os punhos rendados.
Vestia um, gibão de veludo cor de jabuticaba sobre a blusa de seda imaculadamente branca, da qual sobressaiam-se as mangas fritadas e rendilhadas.
O traje se completava por um calção de veludo, cor de avelã madura, e preso pelos canos bordados das botas flexíveis, acima dos joelhos.
Sobre a cabeça usava um gorro de veludo, azul-marinho, caído em dobras delicadas e com preciosos bordados de fios de seda formando volutas prateadas.
Os cabelos negros e ondulados sobressaiam-se soltos sobre os ombros e salientados pelos lavores do gorro.
O seu rosto era quase redondo; mas o queixo agudo, avançava decididamente sobre as rendas branquíssimas que lhe envolviam o pescoço não Muito vigoroso; o nariz, por mais que ele o disfarçasse, tinha aquela curvatura peculiar do homem de mau instinto, um quê de ave de rapina à cata dos despojos humanos.
Malgrado a sua estudada movimentação, o esmero dos gestos e a fanática vigilância para não causar qualquer impressão desagradável alheia, aquele fidalgo da corte de Felipe II trazia estampada na figura o estigma da serpe traiçoeira ou a avidez felina pelo bem alheio.
Desceu os degraus de pedra.
Os olhos faiscaram ao dar com o homem manietado a seus pés.
Rodeou-o, como a hesitar no ponto em que deveria feri-lo.
Sem disfarçar o estremecimento de ódio, que o dominou num relance, virou-se para o magarefe, indagando-lhe:
—Ele confessou?
—Nada, Excelência! — respondeu-lhe o interlocutor numa curvatura servil.
Transmutou-se o fidalgo!
As faces maquilhadas pelo mais fino creme à moda da fidalguia espanhola, corou violentamente pelo sangue afluindo de roldão e os olhos ficaram congestos, as mãos se crisparam sob as rendas finíssimas, num movimento de incontida fúria interior.
Percebia-se, ali, a alma de instintos vis disfarçada superficialmente pelos retoques protectores da civilização.
Aquele fardo humano, jogado a seus pés, devia ser-lhe algum entrave a objectivos ambiciosos ou empecilhos às suas paixões.
—Vamos! Confessa, miserável!
Onde escondeste Consuelo? — exclamou mal podendo conter a força que se abafava sob os seus nervos tensos.
Ante o silêncio e a indiferença da vítima, desabafou num tom perverso e ameaçador:
—Não adianta calares; revolverei toda a Espanha e hei de encontrá-la!
Fala, se ainda queres ver a luz do Sol!
O homem perdera a compostura, o requinte humano e surgia a fera!
Os movimentos, antes tão comedidos, agora transformavam-se em impulsos de ariete ameaçador.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:51 pm

Irritado com a atitude estóica do adversário jungido a seus pés, parecia rebuscar mil vindictas e torturas inimagináveis para vencê-lo.
Finalmente, fez, um sinal irritado ao carrasco, apanhou um dos cadinhos de cabo comprido aproximando-se do infeliz amarrado, que estremeceu de pavor, ao perceber o chumbo derretido em efervescência.
O temor da vítima pareceu animar o algoz, tentando convencê-la com voz melíflua e insincera:
—Vamos, Lorenzo!
Conta onde se encontra Conselho e ficarás em liberdade, pois do contrário era melhor que não tivesses nascido!
Num supremo gesto de desespero, como se desejasse terminar todo o sofrimento duma só vez, Lorenzo ergueu a cabeça e escarrou sobre as botas finíssimas, que se achavam próximas de sua cabeça.
O fidalgo perdeu as estribeiras; num turbilhão de cólera incontrolável, pôs-se a dar pontapés com selvageria na cabeça do adversário impotente, fazendo-a sangrar em diversas partes.
Súbito, como arrependido de sua precipitação em liquidar Lorenzo, cessou a brutal ofensiva e acenando para o carrasco, ordenou-lhe, irado:
—Não o mates!
Quero deixá-lo apodrecer vivo!
O verdugo, com meticuloso cuidado, deixou cair um filete de chumbo líquido no orifício do ouvido da vítima, a qual se transformou num grito lancinante e prolongado, até atingir o esgotamento vital pelo desmaio sob o impacto da dor cruciante.
Depois de algum tempo, o fidalgo abaixou-se e auscultou-lhe o coração a bater vigorosamente.
—Leve-o daqui para onde sabes!
Ponha-lhe a mordaça!
O bruto amordaçou Lorenzo, ergueu-o do solo, saindo por certa porta disfarçada entre as pedras pondo-se a subir silenciosa ladeira.
Após algum tempo de exaustiva caminhada com o fardo vivo às costas, deixou-o completamente manietado no seio da mataria fechada, em lugar ermo e inóspito, jogado sobre o "húmus" das árvores.
Depois das cenas terríficas que presenciei, acontecidas em Barcelona, no século XVI, a tela leitosa mudou para um tom mais espesso ou cremoso.
Surpreso, revi novamente o infeliz aleijão que eu denominara de "amarrado vivo", a rastejar pelas ruas de Curitiba.
Mas ele era uma cópia fiel daquela criatura que fora pisoteada e torturada pelo chumbo derretido no macabro porão.
Percebendo a trama rectificadora do Carma em existência tão deserdada, indaguei ao espírito que comandava a projecção de registros cármicos no Éter da "Mansão do Vale":
—Naturalmente, é o algoz que transitava pelas ruas de Curitiba naquele terrível ergástulo de carne, não é assim?
-Realmente, irmão Atanagildo; quem se arrastava pelas ruas da sua pátria terrena, manietado pelos músculos atrofiados, vítima da prova do ácido nítrico no ouvido, era Don Ramon Avelleda y Guadalquivir, isto é, o responsável por diversos corpos encontrados nas matas de Barcelona, em deplorável estado depois de serem impiedosamente torturados.
Era o modo cruel dele se desenvencilhar dos seus competidores políticos, rivais amorosos, judeus ou protestantes, e depois lhes arrebanhava a fortuna sob o beneplácito da Inquisição do Santo Ofício.
E fazendo um gesto ao técnico sideral, o venerável mentor de linhagem espanhola, recomendou:
—Focalize, no Éter, o término da vida carnal de Don Ramon Guadalquivir, quando ele então resolveu resgatar suas culpas pretéritas, depois de quatrocentos anos de sofrimentos e revoltas no mundo astral.
A tela cremosa iluminou-se, novamente, e percebi uma estrada lamacenta, em noite chuvosa e sob o clarão de relâmpagos.
Nela se movimentava um carroção típico do sul do Paraná, e no assento dianteiro iam o carroceiro e mais dois homens encharcados pela chuva, com visíveis sinais de embriaguez, a passar uma garrafa de bebida de boca em boca.
Então pude distinguir deitado no fundo do veículo vazio o "amarrado vivo", que eu conhecera rastejando pelas ruas de Curitiba, provavelmente conduzido à cidade próxima por favor daqueles indivíduos.
Numa verdadeira tomada de câmara cinematográfica, vi-lhe a chaga horrenda, que já havia destruído a orelha e parte dos músculos do pescoço.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:51 pm

Súbito, devido à violenta sacudida do carroção, o infeliz foi lançado contra a grade direita, e dos seus bolsos caíram diversas moedas, que brilharam à luz rápida dos relâmpagos nas tábuas escuras do assoalho.
Aquilo foi uma tentação irresistível para os homens rudes e bêbedos do carroção, avivando-lhes a cobiça, pois, numa confabulação quase instintiva, decidiram-se a espoliá-lo dos bens.
Tudo foi rápido e implacável; os dois acompanhantes do carroceiro lançaram-se sobre o aleijado e limparam-lhe os bolsos, aliás bastante recheados!
Depois, entre chacotas e pragas impiedosas, tiraram-no da carroça e o jogaram mata a dentro, sobre o lodaçal de detritos orgânicos e folhas apodrecidas.
Era uma clareira de mato batida pela chuva torrencial.
O aleijado retorcia-se, entre gritos cruciantes e brados de desespero, decidido a extinguir a vida tão tormentosa.
Sangrava fortemente das mãos e dos pés deformados, numa crise histérica incontrolável, pois atirava-se contra as farpas dos troncos de pinheiros ou enterrava-se de bruços no lodo fétido, esperançado de afogar-se.
Sem anestésicos ou comprimidos para suas dores, Don Ramon Avelleda e Guadalquivir, fidalgo da corte de Felipe II, em Espanha, no século XVI, acertou suas contas com a Lei do Carma.
Reproduziu, em noite chuvosa, a mesma espécie de morte que ele costumava sentenciar aos seus desafectos e competidores.

(I) N. do Médium: — No mesmo local, hoje existe o "Restaurante Tingui.
(2) N. do Médium: — Atanagildo relata minuciosamente o seu processo desencarnatório, na Terra, quando completava 28 anos de idade, o qual se encontra descrito na obra "A Vida Além da Sepultura", desde os capítulos iniciais a cuja Segunda parte pertence a Ramatis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:51 pm

4 - A MINA.
Salústio Mulinari, pensativo, segurava a lanterna acesa, e quando a movimentava, as pernas da mesa e a cafeteira formavam estranhos bailados de figuras sombreadas na parede de tábuas amarelecidas da cozinha.
Maria, a esposa, trouxe-lhe a manta de pelúcia, pois um vento frio zunia fora do casebre.
Faltavam apenas vinte minutos para a turma da noite começar o serviço na "Plumbum S.A.", mina de chumbo dos franceses, próxima à casa de Salústio.
Ele ficaria encerrado vivo, naquela tumba, até ao amanhecer, a dezenas de metros abaixo do solo e cavando o minério, que seria transformado em chumbo.
Mas Salústio vivia cada vez mais absorto e melancólico.
O seu espírito se distanciava do presente e se punha a reviver o passado triste e doloroso.
Já faziam nove anos que Geraldo, seu filho, moço robusto e alegre, havia sucumbido num desabamento trágico.
Desde menino se devotava à fatigante tarefa de catar as escórias da mina e fazer alguns miúdos para auxiliar em casa.
Crescera forte e disposto; decidido a triunfar na vida através da própria capacidade.
Foi para ele um grande dia, quando assinou o primeiro contrato de serviço da "Plumbum S.A.", com a perspectiva de ganhar bom salário e assim cooperar nas despesas onerosas dos pais.
Satisfeito, vivia cantarolando, mas impaciente para começar o serviço marcado para o início do mês, com a turma da madrugada.
Enchia de vida o casebre de tábuas de pinho e resfolegava, ruidoso, quando lançava as mãos cheias de água fria sobre o rosto recém-saído das cobertas.
Correto no horário, fazia seu trabalho jubiloso sem reclamar da exploração dos franceses, que se serviam do braço pobre do lugarejo a troco de migalhas.
Sem vacilar, era o primeiro a mergulhar no ventre traiçoeiro da mina, retesando os músculos ao mover a pá chumbada no solo; as veias pareciam saltar à superfície da pele queimada pelo Sol.
Ele tinha um gosto sadio por tudo, irradiando optimismo; à sua chegada, até velório se encantava!
Era de riso farto, bom génio e solto de bolso.
Quase sempre, pai e filho, substituíam-se à luz da madrugada, pois Geraldo partia cedo para a mina e Salústio retornava à noite de sua faina exaustiva.
Geraldo herdara a resignação optimista do temperamento caboclo de Maria, e a exuberância emotiva do sangue quente de Salústio, nascido na viçosa Itália!
Um dia, lembrava-se Salústio, com angústia, ele chegara exausto e desconsolado, pois se metera na dura empreitada de escorar o tecto precário da galeria dezasseis, cuja madeira apoia-se com a vibração do bater das picaretas na rocha apodrecida pelas infiltrações de água.
Ao retornar para casa e algo atrasado, reconheceu Geraldo, que já atingira a ponte na entrada da mina, cujo vulto recortava-se à luz ténue da madrugada, tendo por fundo a moldura cinza do céu.
O filho então pareceu-lhe um ser imponderável, no seu andar bamboleante nas pranchas soltas da ponte.
Imerso nessas reflexões, aproximaram-se um do outro.
—Bênção, meu pai!
Salústio, surpreso, caíra em si, superando o mau presságio que lhe toldava o espírito e trazia-lhe a dolorosa inquietação de uma desgraça iminente.
—Deus lhe abençoe, filho!
E num desafogo repentino, havia indagado.
— Dormiu bem?
—Nem se pergunta, pai.
Quando me deito sou que nem o chumbo dos franceses!
E num gesto amplo, passando a lâmpada para a mão esquerda, Geraldo bateu afectuosamente nos ombros de Salústio, aconselhando:
—Vai dormir, pai; o café está na chocolateira.
Sei que está cansado; deixa-me terminar o serviço que você começou na mina.
—Até à noite!
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Salústio dera alguns passos, quando, súbito, voltara-se aflito:
—Geraldo; você não se aventure pela dezasseis, pois o esfaqueamento dela está ruindo.
Só por milagre o Casimiro e eu não ficamos soterrados.
Queixe-se de doença, de dores, do que quiser, mas não deixe o velho Jean mandá-lo para a galeria dezasseis!
E num arremate angustioso, desesperado:
— Meu filho, mesmo que seja preciso; peça demissão da "Plumbum", mas não entre na dezasseis!
—Fique sossegado.
Não vou assim às cegas; sei onde piso!
Salústio tinha parado, outra vez, além da ponte, pois algo o induzia a olhar demoradamente para Geraldo.
Quisera vê-lo bem antes de se deitar.
A sua figura robusta e o engraçado balanço do corpo, comoviam-no de modo estranho.
De longe o filho acenara-lhe com a lanterna, num movimento cordial mostrando o rosto risonho a mover-se à luz mortiça.
Em seguida, tomando o elevador, mergulhara nela boca do túnel nas profundezas do sub-solo plúmbeo.
O repique do sino de alarme quebrou o sossego da manhã fria.
Salústio, porém, já estava de olhos abertos, insone, vagueando pela noite, como a esperar o lúgubre som da mina traiçoeira e assassina.
Fora o primeiro a chegar ao portão e a penetrar no pátio, enquanto dezenas de pessoas corriam de casas em trajes precários, para saber dos familiares trabalhando no fundo da mina.
Salústio sentia terrível abandono na alma, vendo a multidão a se comprimir junto ao pesado portão da "Plumburn", aos brados, gritos e súplicas.
Ele tinha os olhos fitos sobre as roldanas de ferro do elevador, e quando elas se moveram e o cabo de aço começou a subir, ansioso esperou até aparecer o gancho da gaiola, a qual logo surgiu trazendo Jean, o feitor, e quatro mineiros sujos de pó e terra.
Temendo ao som das próprias palavras, indagara temeroso:
—"Seu" Jean, onde foi o desastre?
-- Na dezasseis!
Era justamente a zona de trabalho dele e de Geraldo.
Faltaram-lhe as forças sob a terrível intuição que lhe dominava a alma.
Não o deixaram descer para o fundo da mina e ajudar a socorrer; para isso existia equipe adestrada.
Salústio retornara à casa com passos estugados e uma vontade imensa de beber, de embriagar-se para esquecer a angústia e a dor daquela premonição de desgraça.
Abraçou Maria e lágrimas caíram pelo rosto queimado, enquanto ela, num gesto doloroso, foi caindo de leve, sobre a caldeira, lutando para vencer o choro convulso que também lhe subia à garganta.
E por estranho que pareça, quando o cadáver de Geraldo foi retirado dos escombros da galeria dezasseis, ao meio-dia, ate as velas para o velório já estavam providenciadas, tal a certeza de Maria e Salústio na morte do filho!
E agora, decorridos nove anos, Salústio sentia o estranho pressentimento, que antes o advertira da morte do filho.
Súbito, ouviu o som familiar, longo e estridente da sirene avisando os retardatários.
Ponha a manta, Salústio; faltam cinco minutos para fechar os portões! — advertiu-lhe Maria, fazendo-o livrar-se das reminiscências lúgubres dos acontecimentos trágicos que há nove anos vitimaram Geraldo na mina.
Salústio detestava a maldita mina dos franceses.
Era um serviço duro e o salário reduzido, além dos acidentes freqüentes, das doenças do chumbo, que causavam aos mineiros cólicas cruciantes.
Em seguida saiu rápido, enquanto Maria, encostada melancolicamente na porta da cabana, tinha os olhos húmidos.
Talvez recordasse o desastre de Geraldo, naquele mesmo dia, há nove anos.
Atravessou a ponte do escoadouro da mina e ainda movido pelas lembranças tristes do passado, pareceu-lhe ver Geraldo, mas de cabelos louros, ricamente vestido, a sorrir-lhe do mesmo jeitão habitual, à porta do elevador e fazendo-lhe acenos afectuosos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:51 pm

Passou a mão pela testa, pois sentia-se cansado do esforço mental para desanuviar as lembranças tristes e angustiosas de sua imaginação.
Depois olhou o túnel; as lanternas dos companheiros brilhavam, lá embaixo, fazendo dançar-lhes as imagens nas paredes lustrosas.
Ele penetrou no elevador e a carga humana desceu, lentamente.
Salústio, entontecido e indiferente à sua tarefa de mineiro, apanhou a picareta e aumentou a luz da lanterna, seguindo a fila em direcção à galeria vinte e seis, onde tinha sido descoberto farto veio de chumbo.
Maria, enleada num cobertor e sentada na cadeira de balanço, completamente insone, ainda chorava quando o sino repicou desesperadamente, anunciando outro acidente.
Era aniversário da morte de Geraldo, e ela não sabia se a dor estranha que lhe subia do fundo da alma era proveniente da lembrança da morte do filho, ou era fruto do pressentimento de nova desgraça.
Sentia-se desassossegada, a memória aguçada e inquieta pelo mau presságio.
De onde proviria o motivo daquela esquisitice?
Por quê, antes de Salústio sair para a mina, ela fora algumas vezes ao quarto, vê-lo no seu sono repousante e sentindo-se completamente inquieta?
Por isso, quando o apito da "Plumbum" deu sinal da nova tragédia e trouxeram-lhe a notícia da morte de Salústio, na galeria vinte e sete, Maria levantou-se, resignada, e acendeu o fogo, para fazer o café do velório!
Dali por diante passou a viver do socorro dos vizinhos, pois não havia na época a legislação trabalhista e institutos de aposentadorias que protegiam a família do trabalhador.
Um profundo desencanto minou-lhe a saúde abreviando-lhe a vida.
A tuberculose insidiosa e irrecuperável num lugarejo pobre e longínquo, não encontrou a mínima resistência para lançá-la desamparada no curso de lenta agonia!
Numa noite fria e de forte garoa , depois de três horas de sofrimento atroz.
Maria partiu da carne apenas assistida por um casal de vizinhos caritativos e generosos, embora o casebre depois ficasse lotado pela vizinhança pobre, mas amiga.
Ao aproximar-se o desencarne, os sentidos perispirituais se aguçam sob o impulso liberativo do espírito.
Maria agonizava, mas sentia-se surpreendida pela projecção cinematográfica regressiva de sua vida a se suceder na tela indestrutível da memória sideral.
Sob a acção de estranha força, ela via-se consciente de todos os actos bons e maus de sua existência humana.
Um sonho misterioso a fazia retroceder para a mocidade, meninice e o próprio berço de recém-nascida!
Incapaz de tolher o impulso que a projectava para trás, sentiu-se prosseguindo além do próprio berço, reconhecendo-se situada num ambiente estranho à. sua actual memória.
Viu-se envergando riquíssimo traje de veludo bordado com jóias faiscantes, recostada em luxuosa poltrona, examinando alguns objectos preciosos retirados de uma caixa de marfim.
Ao seu lado estava Salústio, falando-lhe idioma estranho, mas diferente; era um homem de cabelos claros, gestos nobres, mais requintado e de porte aristocrático.
Ele se lamentava das exigências absurdas dos mineiros de sua mina de carvão e dos enormes prejuízos causados pelos acidentes tão freqüentes.
Maria pouco escutava o marido, pois num gesto coquete arrumava o cabelo castanho, bem, tratado e solto sobre a gola de rendas finíssimas.
Ela se mostrava completamente indiferente à sorte dos trabalhadores desconhecidos, que só traziam preocupações e mau humor ao seu esposo.
Salústio então puxou o cordão da campainha, junto à porta, e ordenou ao criado que o atendeu:
— Chame o Dr. Charles; preciso falar com ele!
Envolvida nessa alucinatória regressão de memória à beira da morte, e tendo consciência simultânea de duas vidas, Maria surpreendeu-se ao reconhecer Geraldo entrando sob a aparência do Dr. Charles, um homem jovem, forte, de cabelos louros e trajando impecável costume.
Era alegre, despreocupado e de riso fácil.
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