LUZ ESPÍRITA
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:52 pm

Ante a indagação de Salústio sobre os percalços da mina de carvão, das exigências dos mineiros e dos prejuízos produzidos pelos acidentes, Geraldo, ou Dr. Charles, o engenheiro louro e sócio de Salústio, ria-se, despreocupado, fazendo um muchocho nos lábios e concluindo impassivelmente:
— Quem são os mineiros?
Criaturas miseráveis a implorar serviço em troca da própria vida!
Evidentemente, eles têm bem mais do que o destino lhes determinou.
Encolheu os ombros, num gesto de indiferença.
— Porventura cabe a nós a culpa dessa situação?
Não fizemos o mundo, nem criamos os mineiros, não é assim?
Rindo-se, eufórico, acendeu luxuoso charuto, enquanto Salústio, mais calmo, arrumava uns documentos no cofre atrás do quadro e suspirava aliviado do remorso que ferira sua alma por alguns momentos.
A visão esfumou-se e Maria no término de sua agonia, sentiu-se precipitada no vórtice de um turbilhão flamejante.
Era o fim.
O espírito culposo desprendia-se do corpo, sublime instrumento de resgate dos erros passados e ensejo de progresso angélico do futuro!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:52 pm

5 - OS ROMEIROS.
Era domingo, e o ar estava tranquilo, proporcionando sensação de agradável quietude.
A canoa deslisava silenciosa "sobre a superfície da água cristalina e mansa.
O Sol fulgurante atingia o fundo pedregoso e limpo do rio, mostrando o cardume de cascudos e pintados em movimentos lépidos e sinuosos.
Um majestoso pé de chorão inclinava-se na margem do rio e fazia deliciosa sombra.
Abaixo dele estendia-se a faixa de areia suja de cavacos, pedregulhos e do lixo varrido pela chuva dos barrancos de terra descarnada.
Arvores esguias, mas copadas e verdejantes, pareciam achegar seus troncos escuros até o espelho líquido do rio, como se apenas desejassem molhar as raízes na água límpida.
Alguns pássaros de plumagem branca e as pontas das asas sarapintadas de um azul escuro arroxeado, voejavam baixo à cata de peixes imprudentes.
Rapazes e meninos estavam de cócoras, na praia do rio, jogando botões e baralho, quando Gumercino e Bonifácio encostaram a canoa e foram acolhidos por gestos amistosos.
Arriaram os remos, saltaram da canoa e os pés descalços imprimiram sua marca na areia.
Depois subiram o barranco, por uma escada rústica feita de costaneiras de madeira.
Alguns metros mais adiante, num tabuleiro de terra cor de tijolo pontilhada de grama rasteira e amarelecida, quatro rapazes tostados pelo Sol e de nervos retesados, jogavam argolas de ferro em piquetes de madeira.
Fizeram um gesto amistoso, quando Gumercino dirigiu-se a um deles:
—Atanásio, você não sabe se o Estanislau está com o caminhão livre?
Ou se ele desceu para Itaoca?
Atanásio, homem alto e espinafrado, um tanto curvo para a frente, coçou uns restos de barbicha, respondendo numa voz dolente e arrastada:
Homem; saber mesmo num sei!
Mas parece que ouvi o ronco do caminhão dele hoje de madrugada!
E apontando para a direita, em direcção a uma casa feita de tábuas de canela brava, acrescentou:
— Acho que o Miroslau, filho dele, está lá, no Sezefredo, e deve saber do pai!
Gumercino seguiu o carreiro de terra arenosa, que se abria entre tufos de ervas secas e capim empoeirado, não tardando a chegar à casa cor de café desbotado.
O caminhão do Estanislau estava num largo de terra batida e alguém mexia nele.
Miroslau, um rapagão de cabelos cor de mel, olhos azuis e faces apagadas, próprias do mestiço de caboclo e polonês, apareceu sendo interpelado por Gumercino:
—Olá! O Estanislau está aí?
—O pai está de cama; pegou febre nos baixios do Xerém.
Estou lidando com o caminhão e aprontando as cargas para Itaoca.
—Nós queremos alugar o caminhão para a festa do Bonfim, desde quinta-feira até o domingo — replicou Gumercino.
—Mas tenho o compromisso do carregamento de Itaoca.
—Mas você não vai voltar na terça-feira?
Nós só vamos na madrugada de quinta-feira; acho que assim vai dar certo!
Miroslau pensou, titubeou, indagando algo hesitante:
—O negócio tem de ser fechado agora mesmo?
— Ah! isso tem! Nós somos uns vinte e três e já havíamos combinado o preço com o Estanislau.
Sabe como é; o pessoal tem suas coisas para arrumar e precisa saber com antecedência a certeza da viagem.
Em caso contrário temos de arranjar outro caminhão.
Gumercino pensou e reforçou a proposta:
— Outra coisa, nós garantimos todas as despesas de você! Serve?
Miroslau ainda cismava, indeciso, mas em seguida concordou:
—Tá bem.
Desço hoje mesmo para Varginha e de madrugada sigo até Mirinsinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:52 pm

Na quarta-feira, então, eu engraxo o caminhão e arrumo as instalações eléctricas, para não termos surpresas durante a viagem de noite.
Gumercino, típico caboclo nortista, forte e atarracado, pele cobreada com veias à mostra, tinha as calças arregaçadas até o meio das canelas e vestia uma camisa sem mangas, xadrez preto e vermelho.
Usava chapéu de palha trançada, meio atirado à nuca.
Tirou o palhinha encharcado dos lábios, e circundando a mão num gesto significativo, inquiriu, resoluto:
—Feito o negócio, Miroslau?
—Mas o pai falou que precisa mais uns 20%, devido o aumento da gasolina.
Gumercino estacou, num gesto de desânimo e ao mesmo tempo especulativo:
—Não dá, Miro!
De jeito nenhum!
Tem dó; seja cocompanheiro pois a turma está chiando no preço combinado e há gente desistindo!
Imagine qualquer aumento?
O que posso fazer, e isso eu garanto, é arranjar mais uns cinco romeiros e assim você melhora a diferença. Serve?
Dali há pouco, ele e Bonifácio remavam rio acima, devagar, e suando em bicas sob o Sol dardejante das duas horas da tarde.
Novamente a canoa foi encostada no baixio de urna enseada-mirim, onde o rio descansava da corredeira.
Gumercino amarrou a canoa na estaca fincada no barranco e quando Bonifácio pulava para a margem, recomendou:
—Bonifácio; dê a notícia pró pessoal.
O caminhão está fretado e agora não tem mais esse negócio de vai ou não vai!
Quem assinou a lista tem que ir ou então paga sua parte.
Tá? Quinta-feira.
A madrugada estava deliciosamente fresca e o céu límpido pontilhado de estreias a tremeluzirem sobre a superfície tranquila das águas preguiçosas do rio raso.
Três canoas encostavam na margem, ao pé dos chorões e delas desciam diversas pessoas bulhentas, carregando sacos de roupas, sacudindo canecos, bules, frigideiras e panelas, e subiam alvoroçadas os degraus de madeira tosca fincados na terra e entremeados de erva rasteira.
Depois misturavam-se com outros grupos em torno do caminhão de Miroslau, num vozerio ruidoso e atrapalhação.
O veículo estava coberto por um toldo alto esticado sobre seis pés direitos; no seu interior estendia-se a fila de cinco bancos colocados transversalmente.
—Vamos pessoal! Ponham as tralhas debaixo dos bancos; cada um no seu lugar e não misturem, para não dar confusão, — orientava Gumercino, num tom enérgico.
Os lampiões pendurem nas estacas da tolda, mas cuidado com o querosene; as lonas dobrem debaixo dos pés.
—Gumercino! — gritava nhá Verónica.
— Os farnéis, onde pomos?
Como um general, compenetrado de sua responsabilidade, Gumercino apoiou o queixo na mão esquerda e correu os olhos pelo caminhão, em cujo fundo havia sacos de aniagem, cestos, caixas de papelão, cobertores, caixotes contendo talheres, pratos, copos, bules, bacias, frigideiras e panelas.
Então decidiu-se:
— Os farnéis temos que arrumar no banco do fundo; nem que alguém viaje encostado na grade.
Súbito, olhando o tecto da cabine, gritou:
— Ei, quem é que vai levando tarrafa, que só enche lugar?
—Sou eu, Gumercino!
E a voz tímida e embaraçada do velho Favoreto sobressaiu-se na algazarra geral.
Quero dar umas tarrafadas no rio da Várzea, junto à ponte das Araras e pegar uns cascudos dos bons!
Vai servir para todos nós e garanto que não escapa um!
Gumercino, pensativo, trepou no estribo do caminhão, apalpou a tarrafa que fazia um volume grande sobre a cabine atulhada de coisas e conformou-se:
—Bem, desta vez você leva, mas os farnéis bem que podiam ir aqui!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:52 pm

—Dá muito soco! — atalhou o Miro, numa voz profissional.
Os galos já haviam cantado algumas vezes.
As galinhas e os marrecos saiam a ciscar e a se debicar no terreiro, enchendo de bulha o ar fresco da manhã.
Gumercino vistoriou tudo, mais uma vez, e num gesto de aprovação deu o sinal de partida.
—Toca, Miroslau!
O motor já estava aquecido e o caminhão partiu costeando a casa do Sezefredo; em seguida desceu para a esquerda, como se fosse para o rio, mas, de repente, num ronco forte e surdo, virou à direita em curva fechada e subiu a encosta dirigindo-se decididamente para a estrada arenosa talhada no seio do capinzal.
Mas a marcha do veículo foi interrompida pelos gritos de alguém que parecia desesperado, superando o próprio barulho do motor.
—Pare, Miro! Pare, homem de Deus!
Era o Bonifácio, que saltou para o chão, alvoroçado:
—Espera um pouco, Miro, esqueci a cachaça e os torresmos lá no Jeremias!
E saiu a correr desabaladamente em direcção à venda do Jeremias, recortando a silhueta agitada contra o horizonte iluminando-se pela luz do Sol vencendo a noite.
Minutos depois ele voltava esbaforido, carregando pequeno saco de aniagem nos ombros e uma engradado de garrafas de pinga tinindo no sacolejo apressado. Com extremado carinho, os romeiros içaram a carga para o interior do caminhão.
—Éta Bonifácio! — exclamou o velho Favoreto.
Quase esquece o principal!
O motor roncou novamente, e dali a pouco o caminhão corria pela estrada à margem do rio rumo à capital.
De longe ainda se ouvia o som da harmónica cromática, puxada por alguém, executando uma trepidante rancheira acompanhada aos trancos pelas vozes dos romeiros jubilosos.
O início da viagem se mostrava festivo.
Dentro em pouco, corria entre eles o café quente, os bolos de goma, de polvilho e as panquecas de milho cozido, enquanto o cheiro forte dos cigarros de palha juntava-se ao aroma da cachaça.
Diz um velho adágio que: "em dia de divertimento, ninguém percebe passar o tempo", e, assim, chegou o domingo, com o fim da festa do Bonfim, com os festeiros e vendedores procurando ganhar os últimos tostões de qualquer maneira.
O leilão de prendas corria apressado e a roda da fortuna dava três e quatro prémios de cada vez, num estímulo para os últimos candidatos.
O padre Timóteo movia-se atribulado entre o povo bulhento, expedindo ordens e fiscalizando cosas, atendendo crianças e orientando festeiros.
Os derradeiros foguetes eram disparados para o céu, num estouro contínuo e seco.
O churrasco sobejava chiando nas trempes aquecidas e os churrasqueiras berravam a plenos pulmões, sobre o vozerio humano:
— Vamos, minha gente!
Dois churrascos por um!
Aproveitem! Está gostozinho!
A farinha é de graça e à vontade!
O povo ria e mais adiante as moças anunciavam:
Vai correr a colcha de seda!
São os últimos bilhetes!
Os últimos bilhetes!
No meio da multidão festiva, as pretas velhas vendiam gostosos acarajés, nadando no azeite de "dêm-dêm", bolinhos de camarão com pimenta malagueta, munguzá feito de milho no caldo de côco, cocadinha, pipoca na manteiga, passocas de milho cozido, "quindins" de gema de ovo no côco ralado, amendoim torrado, bolos de arroz, de polvilho, de carne e aveia; os vendedores ambulantes ofereciam pentes, bexigas coloridas, espelhinhos, colares de contas de vidro, bijuterias, e toda sorte de quinquilharias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 22, 2021 6:52 pm

Os dois sinos da igreja batiam festivamente anunciando o fim de festa com a saída da procissão.
A pinga e a cerveja corriam soltas.
Os namorados passavam sobraçando bonecas, estatuetas, garrafas de vinho, cestinhas, bolos enfeitados é imagens de santos, prémios que haviam ganho na roleta, pesca e no leilão.
Atrás da igreja juntavam-se as carroças e os caminhões dos romeiros.
Tudo ali era movimento; desmanchavam-se barracas, enrolavam-se lonas, recolhiam-se roupas, caixotes com utensílios e garrafas vazias.
O vozerio e a atrapalhação dominavam o ambiente; alguns manobravam os veículos, apontando-os para a estrada; outros apressavam-se a conferir as cargas, juntar os trastes e separar coisas, enquanto ainda era dia.
— Vamos pessoal; a noite está chegando e precisamos sair logo daqui, senão perdemos a última balsa do rio da Várzea, — gritava o Gumercino, enquanto Miro punha água no radiador do "Chevrolet".
Eram nove horas da noite, quando eles chegaram à margem do rio; dez caminhões já esperavam, em fila, a vez de passar à balsa.
Na outra margem as casas eram grotescas figuras sob o efeito da cerração formada na superfície da água.
Duas horas depois chegou a vez do caminhão do Miro; a balsa deslizou de enviés movida pela força da própria corredeira do rio, e momentos depois o veículo já roncava fortemente na subida da outra margem.
Dentro, os romeiros procuravam-se acomodar para cochilar, enquanto outros conversavam trocando poucas palavras, frases soltas e sem ânimo, pois era visível o cansaço e o desejo de chegar ao lar.
Em breve, fez-se completo silêncio e só de vez em quando se ouvia alguma tosse ou o ronco do mais dorminhoco.
Quando o caminhão fazia as curvas, os faróis então projectavam sua luz sobre os palanques das cercas, as rochas descarnadas e as árvores, cujas sombras dançavam na superfície da estrada arenosa um bailado fantasmagórico.
As vezes um mocho voava subitamente do cimo de algum arvoredo ou um lagarto, lépido, cruzava a estrada numa corrida rasteira.
Nas descidas, a luz dos faróis sumia-se nos descampados das curvas engulidas pelos precipícios.
Gumercino, o chefe daquela empreitada, não abusara da bebida para comprovar sua responsabilidade.
Viajava sentado junto do Miro, na cabine do caminhão, satisfeito e tirando longas baforadas do cigarro de palha, mas sem dominar estranha inquietação.
Singulares lembranças lhe invadiam a mente.
A estrada amarelecida e ensaibrada, às vezes lhe parecia branquíssima e pedregosa, enquanto os pneus do caminhão, de repente, perdiam o seu chiado costumeiro, transformando-se em rodado de carruagens barulhentas.
Súbito, ele bateu no joelho direito, com excessivo vigor:
—Que bobagem!
Miro voltou-se, calmo:
—Que foi que disse, seu Gumercino?
—Nada! Bobagens, Miro.
Para não cochilar, eu pensava no mundo e não sei por quê, prendi meu pensamento em coisas da Itália!
Ora, veja só; da Itália!
Nunca me incomodei com isso!
A viagem prosseguiu monótona e aos sacolejos.
Os romeiros estavam completamente fatigados e a maioria num sono confortante.
O caminhão gemia nas subidas da estrada e depois de vencer os topes, ganhava velocidade no declive, acordando o pessoal e fazendo alguém esparramar-se pelos bancos.
Olhando para os lados, Gumercino franziu os supercílios, algo inquieto, pois as árvores, os palanques, as encostas rochosas da estrada surgiam e desapareciam cada vez mais rapidamente.
Sem poder dominar o temor que o invadiu, ele exclamou:
— Cuidado, rapaz!
Não corra tanto que aí vem a curva do Gancho!
A mais perigosa de todas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:39 pm

Era tarde! Miro, desesperado, tentava mudar de marcha e metia o pé no freio até o fim; porém, tudo em vão!
O caminhão crescia em velocidade.
A luz dos faróis lambia violentamente as margens da estrada, os palanques e as árvores relampejavam num relance.
Os pneus chiavam sem atender ao esforço inútil de Miro para aguentar o veículo no declive cada vez mais abrupto.
Gumercino gritou forte e o pânico tomou conta dos romeiros, quando surgiu a curva do Gancho.
A estrada ali parecia suspensa sobre o abismo devorador.
Miro, desesperado, torceu a direcção num golpe seco e violento para a esquerda, tentando jogar o caminhão contra o barranco rochoso da margem direita e evitando o precipício.
Mas o caminhão não aguentou o impacto devido à velocidade muito acelerada e foi tombar de lado, chocando-se violentamente no chão, estilhaçando parte da grade, moendo o pára-lama direito; e depois, ainda impulsionado pela força centrífuga virou de rodas para o ar e continuou aos trambolhões, a triturar paus, cabine, bancos, mulheres e homens.
O motor deslocou-se ao solo, a carga voava por todos os lados, e depois do seu valsar tão macabro, o caminhão parou à beira do abismo, completamente destroçado!
Deixara atrás de si a destruição e a morte, num coro trágico de gritos e gemidos dos acidentados!
Dez minutos mais tarde, outro caminhão de romeiros surgia no local e os seus ocupantes ficaram estupefactos diante do espectáculo confrangedor descortinado à luz dos faróis.
As manchas de gasolina e óleo confundiam-se com as poças de sangue dos corpos mutilados.
Aqui, romeiros jazam de bruços, com os corpos reduzidos a frangalhos; ali, alguns gemiam ou gritavam de dor sob destroços; acolá, outros haviam sido atirados contra o barranco rochoso e pareciam bonecos sangrentos!
De baixo do motor sobressaiam-se as pernas de alguém completamente esmagado; das grades do caminhão pendia um braço esfacelado e um ferido arrastava-se pela estrada sem rumo definido.
O balanço do desastre fora trágico; dos vinte e oito romeiros, dez haviam sucumbido sob o massacre do caminhão; dois estavam desaparecidos e três outros não resistiram à viagem de retorno, morrendo antes do amanhecer devido à forte hemorragia das vísceras rompidas.
Miro ficara pouco ferido.
Ao torcer a direcção a portinhola abrira-se e fora lançado contra a margem arenosa, sofrendo escoriações pelo corpo e fractura da perna direita.
Gumercino morrera esmagado pelo motor, que lhe caíra em cima depois de saltar do caminhão; Bonifácio havia sido lançado com extrema violência sobre as pedras, rompendo o tórax e sucumbindo na primeira golfada de sangue.
Entretanto, o seu rosto não parecia contrafeito naquela morte violenta; talvez sucumbiu inconsciente e sob o torpor da pinga de que ele tanto abusava.
Salvaram-se treze romeiros entre mulheres, velhos e rapazes, embora alguns bastante feridos e com fracturas generalizadas.
No dia seguinte foram encontrados os corpos do velho Favoreto e de seu filho André, arremessados pelo grotão abaixo e estatelados nas lajes do riacho do Gancho.
O Sol mostrou-se radiante no céu azul e claríssimo, reflectindo-se na superfície da estrada manchada de óleo e sangue.
Enquanto nove dos falecidos eram sepultados no modesto cemitério de Itaparica, outros seis cadáveres seguiam de canoa para a outra margem do rio, a fim de serem enterrados no seu lugarejo.
Num gesto que fez todos chorarem, "seu" Jeremias estendeu a tarrafa sobre o corpo do velho Favoreto, cujo destino implacável o havia impedido de pescar alguns cascudos na bacia rasa do rio da Várzea, junto à ponte das Araras.
A noite chegou, outra vez pontilhada de estrelas a luzirem indiferentes sobre a quietude das águas do rio das Pedras.
Itaparica dormia, mas em alguns lares diversas criaturas choravam os parentes acidentados no desastre da serra do Gancho.
No entanto, espíritos familiares dos desencarnados também haviam se exaurido em prestar-lhes toda assistência possível no mundo espiritual.
Quase todas as vítimas da trágica romaria, já haviam sido acomodadas em postos de socorro situados nas adjacências da Crosta terráquea.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:39 pm

Algumas delas mostravam-se agitadas sob o impacto da morte violenta, e outras imobilizavam-se numa espécie de "choque" psíquico.
Entidades benfeitoras despendiam todos os recursos para livrar os desencarnados da "queda específica" na direcção dos charcos do astral inferior, embora se tratasse de almas primárias e bastante presas às algemas da carne animal.
Decorridas algumas semanas, os espíritos mais calmos foram encaminhados para as moradias astrais de sua ascendência espiritual, situadas na área astralina brasileira.
Gumercino, o cérebro organizador da romaria fatídica era o principal personagem daquele drama inesperado.
Sua esposa, dona Merenciana, não quisera acompanhá-lo na excursão, alegando "maus pressagies"; Gabriel, seu cunhado, chegara atrasado e depois benzia-se pela boa sorte.
Bonifácio tinha alegado o impossível para escapar da tragédia que estava a pressentir no âmago de sua alma; mas a esposa obrigara-o a ir de qualquer modo, para depois chorar inconsolável de remorso.
Gumercino abriu os olhos, lentamente, e pôs-se a examinar o quarto singelo onde se encontrava, estranhando a claridade fosforescente.
Descansava em cómoda poltrona de assento tão macio como espuma; um cobertor leve o aquecia produzindo um efeito vitalizante, pois sentia um frio cortante quando se descobria.
Os pés estavam apoiados num respaldo revestido de algodão.
Ao lado havia uma jarra cristalina com um líquido róseo, escuro, muito parecido ao suco de morango; junto à janela de caixilho de alumínio brilhante, balouçavam-se duas cortinas branquíssimas rendilhadas de bordados verde-malva agradabilíssimos.
Alguns vasos de material translúcido, semelhantes a conchas do mar voltadas para cima, estavam guarnecidas de ramalhetes de flores azulíneas, róseas, lilases e topazinas.
Tudo era simples, mas agradável e tranquilizante.
Gumercino sentia-se algo confuso e perturbava-se quando as luminosas cores empalideciam e o ar pesava-lhe nos ombros despertando um desejo veemente de fugir dali em direcção as vozes, que o chamavam para o lar no vilarejo.
Naqueles momentos desaparecia a fosforescência opalina para dar lugar a uma cor cinzenta e sombria; e ele jurava ter entrevisto a imagem da esposa lacrimosa.
Ainda julgava-se entontecido pelas pancadas recebidas na queda espectacular do caminhão, tratando de identificar o lugar onde estava hospitalizado.
Alegrou-se, aliviado, vendo penetrar no aposento um senhor idoso, de porte alto, majestoso e nobre.
Os cabelos eram bastos e brancos, com reflexos prateados.
Na face destacavam-se as sobrancelhas escuras, grossas, arqueadas sobre os olhos fulgurantes e dominadores, o que lhe dava um aspecto incomum no contraste singular com os cabelos esbranquiçados.
Vestia uma espécie de túnica, com gola alta, presa à cintura por um cinto largo com lavores bronzeados.
Trajava calças fofas, de seda cor de manteiga, que se prendiam junto aos tornozelos por um par de botas pequenas de belo matiz castanho.
Apesar do seu traje lembrar algo da indumentária grega, a fisionomia de exuberante vitalidade mostrava as características próprias do tipo italiano e os traços másculos do calabrês.
Aproximou-se do leito e Gurmercino notou as belas mãos de dedos finos e compridos, de molde aristocrático, das quais ele podia jurar que saiam reflexos azulados, quando num gesto suave e harmonioso, tocou-lhe a testa, a região cardíaca e o plexo solar, numa auscultação profissional.
Em seguida, meneando a cabeça, dirigiu-se a Gumercino com voz cordial e cálida:
—Meu irmão acha-se muito bem!
Folgo em cumprimentá-lo por isso e pela sua boa disposição perispiritual.
Embora algo surpreendido pelo tratamento tão afectivo e o estranho diagnóstico, que nada o esclarecia, Gumercino apressou-se a dizer, num suspiro de alívio:
—Doutor, eu estava desassossegado e confuso, sem saber onde me encontro.
E depois riu, num desabafo quase infantil.
— Creia, doutor; eu cheguei a imaginar que havia morrido!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:39 pm

Por favor, pode me dizer onde fui hospitalizado depois do desastre, e o que é feito do meu pessoal?
O senhor idoso, malgrado a sua fisionomia severa, deixou transparecer no rosto uma expressão travessa, e fitando Gurmercino bem dentro dos olhos, fazendo-o estremecer sob a energia crepitante que lhe penetrava no cérebro e descia-lhe pela coluna vertebral, avivava-lhe a mente despertando-lhe imagens e recordações longínquas.
Gumercino, espantado, identificava ambientes, revia criaturas estranhas e conhecidas em lugares que lhe eram familiares, mas não se lembrava de tê-los visto em toda sua existência.
Em vez da paisagem bucólica de Itaparica e as ribanceiras do rio das Pedras, ele só percebia um terreno montanhoso atravessado por estrada branquíssima, feita de pedras talhadas entre jazidas de mármore.
Atónito, sentia-se outro homem movendo-se na paisagem diferente; reconhecia-se a si mesmo, porém, nada tinha a ver com Gumercino!
Ainda sob a força magnética projectada pelo senhor de olhos chamejantes e sobrancelhas hirsutas, ele teve um sobressalto, um verdadeiro estalido no cérebro, e sem qualquer peia, exclamou num tom de profundo espanto:
—Santo Deus! Morri?!
E ante o aceno afirmativo do seu interlocutor, perguntou, surpreso:
—Dom Giovanni?
—Sim, Gumercino, sim caro Pietro, "il Consentino"; eu sou Dom Giovanni!
Gumercino abriu a boca, embaraçado, baixou a cabeça, pois tudo se aclarara na sua mente, quanto ao pretérito.
Traindo extrema humilhação, indagou, confrangido:
—Morreram todos?
—Quinze! Não eram quinze?
—Sim! Como isso aconteceu tão rapidamente, dom Giovanni?
Ainda me sinto em Consenza, namorando o mar Jónio, Tirreno e o pico Polino!
E num longo suspiro:
— Parece que foi ontem; aceitamos o seu conselho e o programa de recuperação.
Não foi assim?
Impulsionado por rápida lembrança, acentuou.
— Que pena! Carleto fugiu à prova?
—Não! — redarguiu Dom Giovanni.
Carleto também estava presente no desastre.
Conseguimos burlar a vontade dele e encaminhamo-lo para a Terra, no devido tempo.
É certo que não lhe cabe o mérito da escolha!
—Quem era ele?
—Bonifácio — elucidou o mentor.
E acrescentou:
— A Lei é severa mas justa!
Nenhum estranho sofreu no acontecimento trágico, porquanto foram afastados, à última hora, quem nada tinha a ver com a prova.
Os sobreviventes feridos em breve prosseguirão na sua existência educativa, ainda mais fortalecidos para o futuro.
- Hum! — fez Gurmercino sacudindo a cabeça.
Estaríamos quites com a Lei?
Dom Giovanni não respondeu, mas encaminhou-se à janela e de um só lance abriu as cortinas, desvendando formosa calina envolta per uma ténue nuvem luminosa, em cujo sopé se via modesta vivenda esbranquiçada sobressaindo-se entre flores e arbustos delicados.
Bandos de pássaros voejavam como flocos de luz viva, em bela policromia, pousando ora nos ramos das árvores, ora se rejubilando no frescor de deliciosa fonte de água cristalina.
Gumercino sentiu a alma bafejada por inefável gozo espiritual, e num impacto, quase infantil, inquiriu, algo suplicante:
—Virgínia?
—Espera-o para o repouso sideral no devido tempo.
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 2 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:39 pm

Vocês começarão o programa ideado a séculos e agora já podem auxiliar os retardatários.
Virgínia empenhou-se a seu favor; e por isso você está aqui bem assistido.
Malgrado o seu pretérito violento, a existência simples na figura de Gurmercino, serviu-lhe bastante para a recuperação espiritual.
Antes a singeleza de uma vida laboriosa e prestativa de um caboclo brasileiro, do que a indesejável fortuna de Pietro, "Il Consentino", não é assim?
Enquanto Dom Giovanni também parecia evocar suas lembranças amargas na sucessão dos séculos findos, Gumercino fechou os olhos e se viu, outra vez, na figura daquele célebre Pietro "II Consentino", mentor de uma quadrilha de bandoleiros chefiados por Carletto, que assaltavam os viajantes ricos e diante de qualquer reacção os lançavam com as próprias carruagens, encosta abaixo, fazendo-os estatelarem-se nos abismos insondáveis da Calábria, na Itália.
Suas reminiscências foram interrompidas pela voz severa e fraterna de Dom Giovanni:
— Primeiramente o erro! Depois a dor!
E, finalmente, a recuperação!
Agora cabe-lhe "reiniciar" o curso educativo, pois só o amor, o bem e o estudo é que realmente fazem o espírito progredir!
Reflectindo, acentuou.
— A dor e o sofrimento não fazem evoluir; mas apenas rectificam!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:40 pm

6 - ASSIM ESTAVA ESCRITO.
Eram duas horas da madrugada. A noite estava quente e abafadiça.
As mariposas e os besouros dançavam alvoroçados ao redor das lâmpadas eléctricas da praça.
Os bancos estavam vazios e ouvia-se os grunhidos de algum bêbedo tentando encontrar o rumo de casa.
As vezes, o silêncio da noite era quebrado repentinamente pelo barulho dos carros de padeiros fazendo bulha nas pedras da rua, ou pelo latido de algum cão noctívago.
Ali, junto ao meio-fio, estacionavam dois automóveis de aluguel.
Os choferes dormiam, esparramados sobre os assentos e gozando de rápido sono, enquanto não lhes apareciam fregueses.
Das sombras saiu um vulto de mulher pequena que, em movimentos rápidos, esgueirou-se por trás de um renque de cedros e pequenos arbustos da praça; atenta à qualquer movimento exterior, ela evitava mostrar-se à luz das lâmpadas.
Movia-se aos pulinhos, como os pássaros; surgia, de relance, recortando o seu vulto na claridade difusa e depois era sumida pelas sebes e pelos arbustos compactos.
Súbito, parou, indecisa.
Orientou-se no meio da escuridão, aproximou-se .com passos cuidadosos, perto dos automóveis estacionados.
Cautelosamente ela se certificou de que os choferes dormiam.
Em seguida, tomou de um embrulho, e, num gesto furtivo e rápido, que mal lhe desenhou a silhueta sob a réstia de luz, largou-o sobre o colector de lixo, junto ao banco de cimento e sumiu-se definitivamente tragada pela escuridão.
Tudo continuou quieto como se nada tivesse acontecido; mas a quietude logo foi quebrada por uma voz masculina e vigorosa:
— Olá, Waldemar! Acorda, homem!
O passageiro bateu fortemente no vidro da porta do automóvel.
O chofer' acordou-se, sonolento, esticou os braços num movimento de aliviar a tensão do corpo e deu conta do que acontecia.
Abriu, rápido, a porta do veículo para o freguês noctívago.
Neste instante, ambos ouviram, ali perto, um choro abafado, que os fez mover a cabeça, num gesto unânime de surpresa em direcção ao colector de lixo.
—Ué! — interveio o passageiro, desistindo de entrar no automóvel.
Ali há coisa!
O chofer saiu do carro, rodeou-o, curvando-se sobre o embrulho deixado pela mulher misteriosa no colector de lixo.
Livre dos panos que o oprimiam, o recém nascido entrou num choro convulso e interminável.
—Ora; mais essa? — exclamou o chofer, perplexo, erguendo o boné e coçando o cimo da cabeça.
Caminhou para o outro veículo e bateu forte na porta, arrancando o colega do sono gostoso:
—Armando! ... Armando!
Acorda, homem! Temos coisa por aqui!
E quando o companheiro achegou-se, ainda esfregando os olhos e mal acordado, mostrou-lhe o bebé a berrar sobre o banco de cimento, e mofou, num tom chocarreiro:
—Olha aí teu filho, homem!
Eu bem que desconfiava!
—O que?! — exclamou o outro, atarantado, enquanto o passageiro ria alto e considerava depois:
—É um ser humano, não é?
Acho que devemos levá-lo à Polícia, para ela dar um jeito!
E num gesto familiar.
—A não ser que um de vocês queira adoptá-lo!
—Eu?! — fez o segundo chofer.
Mal dou conta das minhas cinco bocas em casa!
—Quanta a mim sou solteiro.
Não tenho jeito para ama-seca! — desculpou-se o primeiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:40 pm

Na "Delegacia de Ordem Social", o suplente da noite tirou uma baforada de fumo do cigarro, e sem qualquer emotividade, considerou:
—Naturalmente isso é de alguma vagabunda.
Elas enchem a barriga e chutam o filho para os outros criarem!
Isso é muito comum.
Essa teve algum remorso ou escrúpulo, pois se renegou o filho não o matou.
E depois de uma pausa, coçando a cabeça, aventou uma solução:
—Não podemos obrigar uma sem-vergonha a criar os filhos.
Quanto a isso nada posso fazer, nem abrir um inquérito ou qualquer punição.
Talvez esse diabo aí esteja com fome.
Não pára de berrar.
Olhe, vou dar a vocês uma recomendação para gente minha conhecida, e que já tem me "quebrado uns galhos" como este!
E apontando o enjeitado, indagou.
—É menino ou menina?
—Menina! — redarguiu o chofer.
O suplente sentou-se, puxou da caneta e redigiu um rápido bilhete, entregando aos choferes:
— Levem isso à "Casa Madalena", dos espíritas, e digam à dona Lavínia para recolher essa enjeitada até amanhã.
Mais tarde, eu passo por lá e darei uma solução definitiva.
Contem como a acharam numa lata de lixo!
A "Casa Madalena" era um edifício novo, amplo e de estilo moderno.
Fruto de doações generosas dos espíritas e destinada exclusivamente ao amparo das meninas órfãs e enjeitadas, podia abrigar cinquenta crianças.
Entretanto, ali se internavam 65 meninas.
Malgrado as alegações justas de dona Lavínia, mulher laboriosa e responsável pela vida quotidiana da instituição, ela se viu obrigada a aceitar a menina, para não a deixar ao relento e também atender ao suplente amigo e cooperador da casa.
Marilda, assim escolheram o nome para a enjeitada, cresceu entre as demais meninas, quase todas da mesma idade, pois a "Casa Madalena" fora fundada há pouco tempo e amparava a primeira leva de órfãs abandonadas.
Apesar dos subsídios precários do governo, sempre de má vontade, para com as instituições espíritas benfeitoras, e bastante atencioso e pródigo para as realizações do Clero Católico, que lhe dá o apoio político, foi possível terminar a obra filantrópica, graças aos donativos pródigos de alguns confrades magnânimos.
Felizmente, a instituição possuía todas as condições necessárias para proporcionar às abrigadas o conforto e o amparo desejável.
A casa erguia-se no centro de florido jardim emoldurado por delicado tapete de grama esverdescente, verdadeiro veludo vegetal.
As roseiras, em grupos isolados, estavam pensas de flores e coloriam o ambiente de matizes "bordeaux", gema de ovo, branco, rosa quase lilás e um vermelho tijolo.
Circundava todo o edifício uma espaçosa varanda onde as meninas bordavam, estudavam ou palestravam acomodadas em confortáveis poltronas e espreguiçadeiras.
Aos domingos ensolarados conduzidas pelo ônibus da própria instituição, elas desciam à praia ou se rejubilavam em excursões aos lugares mais pitorescos.
A "Casa Madalena" lutava com falta de mentores adequados para o seu generoso labor, como sói acontecer à maioria das instituições espíritas.
Lavínia, mulher abnegada e seu Morales, espírita da velha guarda e bom carácter, mal podiam atender às necessidades físicas das internadas, em número superior ao que fora previsto no programa filantrópico.
Não lhes sobejava tempo suficiente para cuidarem dos problemas emotivos e de esclarecimento espiritual; tudo era feito às pressas e ambos se davam por felizes quando, à noite, podiam orar convictos de haverem cumprido o seu dever.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:40 pm

Sem dúvida, a magnanimidade dos espíritas havia contribuído para oferecer o bom e o melhor às enjeitadas pelo mundo.
A cozinha era até luxuosa com o chão de mosaico sempre lustroso.
As mesas de imbuía lavrada e tampos de mármore polido.
Os fogões a gás, sempre luzidios e limpos, decorados com panelas de pressão cintilantes.
Os talheres de alpaca e os pratos de porcelana fina garantiam a higiene desejável na alimentação colectiva.
As próprias cadeiras estofadas de gobelim, proporcionavam agradável conforto durante às refeições.
Os quartos eram limpos e claros, acortinados de veludo e seda, em harmonia com os leitos guarnecidos de colchões de molas, cobertos de lençóis alvíssimos e colchas rendilhadas sob os macios travesseiros de espuma.
Pequeninos tapetes com delicados desenhos floridos, preservavam as meninas de um contacto desagradável com o assoalho gélido nos meses de inverno.
Sob a direcção inteligente dos directores da "Casa Madalena", não se despersonalizava as internas, coisa comum em instituições semelhantes.
As meninas trajavam de modo diferente, entre si, demonstrando o gosto individual até no corte do cabelo.
Quando saíam à rua moviam-se jubilosas, em grupos afins, rindo venturosas.
Não manifestavam aquele aspecto de rebanho de outras organizações religiosas ou de assistência pública, que passam pelas ruas em compridas procissões, na fusão descolorida do mesmo uniforme, sapatos, meias, gorros e tipo de cabelos.
Os próprios quartos eram diferentes e permitiam um certo toque pessoal; variavam o estilo do abajur, o colorido dos tapetes e o bordado das colchas!
Os salões eram amplos e bem decorados em estilo moderno.
O principal divertimento era o rádio, mas alguns anos depois a direcção conseguira um aparelho de cinematografia projectando filmes como distracção.
Ultimamente, elas haviam sido presenteadas com excelente aparelho de televisão.
********
Marilda crescia neste ambiente amigo, confortável e prazenteiro.
Entretanto, não demorou a mostrar o temperamento obstinado, rebelde e desobediente, sempre inconformada com a disciplina e as obrigações que Dona Lavínia viu-se obrigada a lhe fazer severas advertências, além das admoestações de "seu" Morales, homem brusco, incisivo, justo e coerente.
Malgrado as concessões afectivas e tratamento amistoso, e até ameaças de reclusão, Marilda transformava-se dia a dia num problema sério e espinhoso para a "Casa Madalena", porque o seu mau comportamento também semeava exemplos nocivos.
Ela desfazia, irritada, todo o bem que lhe proporcionavam, caso não lhe permitissem agir discricionariamente.
Mal iniciou a puberdade, ela se punha de rosto sombrio e amuada, quando os responsáveis pela instituição impediam-na de "flertar" junto aos portões de ferro, onde alguns rapazes ociosos burlavam a vigilância dos zeladores em acenos galanteadores às internas.
Sónia, outra moçoila de procedimento leviano, aliou-se Incondicionalmente à Marilda na- tarefa inglória de contrariar os zeladores, procurando encontros furtivos à noite.
Finalmente, Lavínia e Morales consultaram a directoria da instituição, solicitando prerrogativas para agirem com mais rigor e evitarem consequências piores, pois ambas as moças já atingiam os dezasseis anos de idade, e se mostravam completamente contrárias à disciplina da casa.
Além disso, tiveram de ser isoladas das outras, ante a descoberta de revistas galantes e perniciosas, que elas contrabandeavam de fora.
Apesar da mais severa vigilância e do segregamento disciplinador, certa manhã, dona Lavínia quase desfaleceu arrasada pela amarga notícia: Marilda estava grávida!
Morales e Lavínia, feridos no zelo e devotamento às internas, não puderam esconder a dor e frustração incalculável pelo fracasso na função educativa de menores.
Qual seriam os motivos daquele evento e da ingratidão de Marilda, sempre tratada com carinho e submetida somente a correctivos suaves, malgrado suas freqüentes rebeldias?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:40 pm

O autor da desgraça de Marilda fora o próprio condutor de ônibus da instituição, que arrependido assumiu plena responsabilidade do ato e o casamento foi realizado na própria "Casa Madalena".
Lavínia e Morales não conseguiam livrar-se do ressentimento que lhes feria o espírito amargurado.
Dali por diante, ambos modificaram o tratamento habitual para as demais moças, e passaram a agir com o máximo rigor e vigilância, alegando terem sido advertidos severamente quanto ao futuro.
Restringiram os divertimentos, excursões e passeios tão comuns.
Tornaram-se sisudos e bruscos, alegando que Marilda prevalecera-se do excesso de carinho e condescendência deles para agir de modo ignóbil.
As moças tinham de se recolher mais cedo e as visitas, afora de parentes, foram praticamente proibidas.
As imprudentes que se aproximassem dos portões de ferro, seriam imediatamente reclusas e proibidas de assistir televisão.
Quando Sónia foi denunciada como a principal alcoviteira de Marilda, caiu-lhe em cima toda mágoa e desforra de Lavinha e Morales.
Dali por diante ela foi seguida em todos os passos, e vigiavam-na minuto a minuto, vasculhando-lhe todos os armários, as bolsas e rouparia, à cata de revistas censuráveis ou bilhetes de namoricos.
Sob qualquer pretexto segregavam-na de todo divertimento.
Sónia era moça astuta e dissimulada.
Seu espírito matreiro encouraçava-se numa silenciosa ofensiva contra os zeladores, e pouco se preocupava com as ameaças de expulsão, se tentasse qualquer ligação com o exterior.
Ela aceitava tranquilamente as reprimendas antecipadas por aquilo que "poderia fazer" de errado, mas seus olhos não escondiam o sarcasmo e a desforra arquitectada dia a dia no âmago da alma.
Certa manhã fria e chuvosa, Lavínia e Morales foram surpreendidos com a chocante notícia; Sónia fugira alta noite, com um jovem aprendiz de carpintaria, auxiliada por diversas companheiras ocultas sob anonimato.
Porém, o pior viera depois: o sedutor era casado!
Lavínia e Morales ameaçaram de castigo severo todas as internas, até serem denunciadas as alcoviteiras de Sónia.
Contudo ninguém fez qualquer denúncia, mas os zeladores perceberam nos olhos e nos gestos das moças a zombaria e a desforra.
Passaram a irritá-los dali por diante e o ambiente cordial foi substituído pelo temor e a tristeza tomou conta do ar.
Transcorrido pouco mais de um ano, os responsáveis pela instituição sofreram novo e duro golpe.
Marilda e Sónia, portadoras de um mesmo temperamento indócil e irresponsável, tornaram-se amigas inseparáveis no mundo profano e profundamente desajustadas e inexperientes para enfrentar a responsabilidade e as lutas de um lar pobre, revoltaram-se contra a vida conjugal, e sob o espanto dos vizinhos, um dia mudaram-se para o mais baixo meretrício da cidade!
Lavínia e Morales, que haviam se mostrado recuperados de sua amargura e ressentimentos anteriores, desta vez quebrantaram-se completamente frustrados.
O destino inglório das moças pesava-lhes nos ombros para sempre.
Não podiam compreender os motivos daquela decisão condenável, após tanto carinho, instrução e mesa farta proporcionados na "Casa Madalena".
Ademais, sabia-se que os companheiros de Sónia e Marilda, embora modestos operários, viviam contentes e sustentavam razoavelmente a casa, felizes com o primeiro filho.
Não podiam explicar os motivos daquela queda moral e espiritual das moças.
Onde o equívoco de Lavínia e Morales?
Onde as falhas da instituição no amparo às meninas sem lar?
Dali a dias, alegando a inutilidade do amor e do bem às criaturas imperfeitas e de má fé, Morales demitiu-se em sinal de protesto ao seu amor próprio ferido!
A directoria da "Casa Madalena" mostrava-se bastante hesitante, no tocante à responsabilidade, temendo a falência dos esforços caritativos para o futuro de renovação espiritual das internas e integração à sociedade.
Conviria prosseguir na obra?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:40 pm

A implacabilidade da Lei Cármica parecia negar propositadamente o lar amigo a essas criaturas desamparadas.
Sónia e Marilda podiam ser uma caso excepcional de meninas de mau caracter e que se haviam unido através da afinidade de sentimentos censuráveis.
Como distinguir, futuramente, quais seriam as órfãs de "bom" ou "mau" carácter acolhidas pela instituição?
Entre 63 abrigadas, quantas Marildas e Sónias ainda existiam em potencial e capazes de repetir a façanha deplorável?
Sem dúvida, era profundamente doloroso comprovar-se que os sacrifícios, as preocupações e o ideal esposados pelos espíritas no advento benfeitor da "Casa Madalena", terminassem num fracasso inglório!
Duas sementes vivas, plantadas ali naquele jardim submetido ao melhor adubo para a alma, transformaram-se em frutos apodrecidos na maturidade.
Entre as primeiras jovens chegadas à idade adulta, depois de acariciadas e educadas sob os preceitos espirituais sadios, elas haviam optado pelo prostíbulo, negando os preceitos aprendidos.
Após comovente reunião dos directores, ficou resolvido de se consultar a entidade Abelardo, mentor da casa e sempre atencioso em auxiliar na solução de problemas de ordem espiritual.
Em noite tranquila, com a presença de Lavínia e de todos os componentes da instituição, fez-se a reunião destinada a ouvir as considerações do Alto.
Feita a leitura do Evangelho, capítulo "Buscai e Achareis" (Mateus, VII vs. 7 e 11), Abelardo pôs-se à disposição dos companheiros encarnados, actuando através de Agostinho, médium de bom quilate espiritual.
Lavínia, mulher decidida e acostumada ao mando, mal podendo conter a tortura que lhe ia na alma, indagou, logo, de modo intempestivo:
— Irmão Abelardo; creio que conheceis os motivos desta reunião mediúnica, pois fomos seriamente abalados em nossos labores assistenciais na "Casa Madalena", onde abrigamos dezenas de meninas órfãs.
O nosso carinho, desinteresse e abnegação tributados às internas, talvez as forças maléficas interferiram para subverter os objectivos benfeitores e cristãos.
Fazendo uma pausa, aumentando a expectativa dos presentes, Lavínia inquiriu, nervosa e até desesperada:
—Por que, essas meninas, Marilda e Sónia, destruíram tantos anos de afecto e benefício, a ponto de prevaricarem como qualquer moçoila leviana criada nas favelas e cortiços, sem afecto e sem bom trato no mundo?
Qual o nosso equívoco?
Qual a causa desse fracasso?
Abelardo, calmo e atencioso, a transparecer na fisionomia do médium um vislumbre inteligente, respondeu:
—Meus queridos irmãos, a própria terra depois de lavrada não oferece exclusividade de vegetais e frutos sadios, mas também fecunda ervas daninhas.
Planta-se o trigo e o joio existente na terra nasce junto.
Nem podemos separá-los.
É certo que sob o carinho, o discernimento e a perseverança do lavrador, em breve o solo torna-se cada vez mais fértil e a messe melhor.
Obviamente, nós só podemos aguardar a segurança dos frutos sazonados, depois de dominarmos as surpresas da plantação e ultrapassarmos o período da experimentação sáfara.
Algo semelhante também pode acontecer convosco na direcção filantrópica da "Casa Madalena", cujo terreno ainda se mostra inculto e agreste.
Talvez, faltam-vos conhecimentos psicológicos e freudianos, experiências e métodos modernos de educação.
Melhor controlo emotivo e discernimento de educadores para vos aperceber melhor da índole e das reacções desses espíritos comprometidos espiritualmente na prova cármica da orfandade bastarda.
Considerando-se a não existência da injustiça no seio da Divindade, é evidente que essas criaturas atiradas em portas de igrejas ou latas de lixo, desprezaram seus pais, preceptores ou benfeitores noutras existências.
São espíritos primários e egoístas, presos às sensações inferiores do sexo.
Se depois disso elas ainda viessem a encarnar-se em lares pródigos, afectivos ou venturosos, então a lei de rectificação espiritual seria apenas uma fantasia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:41 pm

Além da assistência material e do amparo físico tendes de desenvolver a habilidade, a experiência e o estoicismo espiritual nessas criaturas, a fim delas superarem os impulsos animais, as frustrações e os óbices que inevitavelmente irão defrontar, quando forem devolvidas ao mundo profano.
Isto acontece com o lavrador; ele arranca violentamente as ervas daninhas, fere a planta sadia na poda rectificadora.
Usa o insecticida mortal no extermínio dos insectos nocivos, para obter a planta resistente e sazonada.
—Naturalmente, referi-vos à nossa inexperiência no programa assistencial às órfãs, não é assim? — interveio um dos directores da instituição.
—Sem qualquer laivo de censura ou crítica estéril, reconhecemos que as instituições espíritas filantrópicas, no momento, defrontam com a falta de preceptores para o bom êxito e a segurança dos programas benfeitores.
Há muitos servidores de boa vontade para atender as exigências humanas dos deserdados da sorte, mas é bem reduzida a "equipe" de preceptores para esclarecê-los e ensiná-los a enfrentar as vicissitudes da vida! (1)
Repito, não basta ao lavrador apenas plantar as mudas ou sementes em bom terreno, preservá-las dos insectos daninhos, da chuva torrencial, da aspereza das geadas ou da violência dos tufões.
Embora o solo esteja bem adubado e as espécies bem amparadas, é preciso podar as vergônteas nocivas no "tempo certo" e quando tenras, dando condições ao vegetal para sobreviver naturalmente.
E Abelardo arrematou o esclarecimento numa voz conciliadora e cordial:
—Assim como a "qualidade" da muda da laranjeira superior deve predominar sobre a rudeza violenta da laranjeira brava, apesar de presa ao "caule selvagem", a qualidade superior do espírito humano também precisa sobrepujar a "tendência" inferior do instinto animal da carne!
—E que deveríamos fazer, caro irmão Abelardo, se depois de mobilizarmos esforços, capacidade, recursos e inteligência para melhor solução de nossos problemas assistenciais, ainda fracassamos pela imprevisão? — solicitou o presidente da mesa.
—Trabalhar e prosseguir!
Cada fracasso, inexperiência, imprevisão e prejuízo, significam novas advertências e ensinamentos para o êxito futuro.
O mundo em que viveis também não é perfeito e está cheio de desilusões; mas o Pai continua a trabalhar para o nosso eterno Bem!
—Não seria mais coerente deixarmos os "enjeitados" cumprirem o carma sob a espontaneidade própria da vida?
Que podemos fazer, perante à Lei Espiritual, que os obriga a sofrerem os efeitos das actividades nocivas do passado?
—Em primeiro lugar, ao fazermos o bem ao próximo só estamos "fazendo aos outros", exactamente, o nosso próprio bem.
Amar é evoluir.
Ademais, se essas almas forem lançadas desde cedo a uma vida sem lar e sem rumo, embora meninas impúberes, elas serão transformadas em matéria prima carnal para a exploração prazenteira de criaturas inescrupulosas e perversas, que as prostituiriam desde crianças, não lhes dando oportunidade de redenção.
A infelicidade a começar de tenra infância, aumenta-lhes a revolta contra o Criador.
A cooperação amorosa e benfeitora de mulheres e homens, como Lavínia e Morales, no ambiente sadio de instituições socorristas, proporciona-lhes agasalho, alimentação farta, diversão e amizades, e se mesmo assim se prostituírem pela força das paixões inferiores, elas jamais poderão esquecer o bem recebido.
Mas se forem atiradas desde cedo no mundo, não ficam devendo obrigações à humanidade.
Mas não esqueçamos que o Pai procura redimir pelo amor e não pela dor, pois esta é solução drástica quando falham todas as inspirações superiores!
Sob o acolhimento de instituições benfeitoras, não poderão odiar o mundo que lhe é benfeitor desde os seus primeiros dias de vida.
Abelardo cessou de falar, como era de seu costume, antes de emitir qualquer conceito final às suas explanações:
—Em verdade, queridos irmãos — prosseguiu ele, depois,
ninguém odeia em sã consciência o bem recebido, mas sempre há de se arrepender dos benefícios que destruir pela própria maldade.
Marilda e Sónia devem odiar os homens que as tornaram infelizes, porém não podem prolongar esse ódio à "Casa Madalena", onde viveram momentos felizes, tanto na infância como na mocidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:41 pm

—É aconselhável prosseguirmos uma obra como "Casa Madalena", embora antevendo certos fracassos no futuro? —interrogou o tesoureiro da instituição.
—Depende da disposição espiritual dos irmãos, — redarguiu Abelardo.
—Gostaríamos de ser melhor esclarecidos!
—Caso pretendam realmente ajudar o próximo, sem qualquer preocupação de glória, lucro ou posse de algum título no Paraíso, eu recomendo o mesmo conselho transmitido daqui por outra entidade espiritual através de excelente médium, e que assim recomendou:
"Ajude e Passe" (2).
Deste modo, a caridade será absolutamente desinteressada e exclusiva do Bem pelo Bem, sem indagações sobre resultados ou recompensas.
—E os nossos sentimentos magnânimos, porventura não influíam nos deserdados pelos quais somos responsáveis? — Lavínia.
—Apesar de mobilizarmos os mais puros sentimentos de amor e abnegação aos nossos irmãos infelizes, jamais poderemos livrá-los da rectificação espiritual pelos seus erros pregressos.
O anjo não é produto de fabricação em massa, mas conquista real e gradativa do próprio ser.
Cada um de nós terá de progredir perante o processo geral que estimula e reajusta, impulsiona e corrige, cruenta e gradua.
Os espíritas, principalmente, sabem que a Lei Sideral não se modifica nem se desvia em seu ritmo educativo para atender privilégios e sentimentalismos humanos.
"Quem semeia urzes colhe espinhos e não morangos", pois se a "semeadura é livre a colheita é obrigatória."
Mudando o tom de sua prosa, Abelardo prosseguiu, novamente:
—Jamais poderíamos olvidar a renúncia, o afecto e a acção benfeitora de todos os batalhadores da "Casa Madalena".
Meditemos, porém, sobre a natureza e a qualidade espiritual de criaturas que não mereceram um lar.
Por quê?
Sob a lógica da lei cármica, são almas atrasadas que em vidas anteriores desprezaram os pais e os lares pelos prazeres materiais.
Egoístas, levianas, sensuais, ociosas ou revoltadas, cuidaram somente de si e fizeram da vida humana uma incessante diversão.
Pagaram todo o bem recebido com a mais fria ingratidão.
Entretanto, a pedagogia espiritual preconiza que "o espírito será beneficiado segundo suas obras" e não conforme o "amor alheio".
Embora amparadas, elas teriam de efectivar a colheita boa ou má de sementeira pretérita.
Abelardo fez nova pausa, deixando pressentir que alinhava premissas para a sua conclusão final:
Marilda e Sónia desceram à carne para cumprir uma prova de desventuras esquematizadas pelas imprudências de outrora.
Sem dúvida, a Lei Cármica marcou-as com a orfandade, sem o direito do lar amigo, que já haviam conspurcado ou desprezado antes.
Planificaram a actual existência conforme linhas de forças espirituais geradas cármicamente, que não lhes davam o direito ao berço quente e amigo.
Graças aos sentimentos generosos de criaturas bondosas, elas foram ternamente acolhidas na 'Casa Madalena" e passaram a usufruir de conforto, prazeres e estima ou favores, a que ainda não tinham direito.
Todavia, a Lei Espiritual, que não é punitiva, porém educativa, aguardou a regeneração de ambas nessa oportunidade e só voltou a agir, quando verificou que elas, incautas, continuaram a repetir os erros passados, cedendo novamente aos impulsos animais inferiores.
Almas primárias, reagiram iradas e insatisfeitas contra a primeira advertência justa e disciplina correctiva.
Embora materialmente amparadas não estavam suficientemente esclarecidas para enfrentar as dificuldades e os sofrimentos próprios da vida cotidiana e foram atraídas para a prostituição, pelas tendências ancestrais pregressas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:41 pm

Lavínia mostrou-se inquieta e nervosa, interpelando o guia:
—Porventura, irmão Abelardo, ainda fomos insuficientes a essas órfãs?
—Em verdade, não faltou amor nem protecção às jovens frustradas, porém, esclarecimento de modo a superar as ciladas da vida profana. — Insistiu Abelardo cordialmente.
— Não se pode culpar os integrantes da "Casa Madalena" por essa omissão involuntária, quando os seus servidores mal conseguem atender às necessidades materiais das internas.
E Abelardo completou, num sorriso fraterno:
—Aliás, isso já aconteceu a todos nós!
—Não compreendo! — redarguiu Lavínia, algo confusa.
—Criaturas como Sónia e Marilda, ainda não conseguem dominar 'os desejos, as tentações e dificuldades da vida humana, enquanto não forem convenientemente educadas espiritualmente.
Até as almas de melhor padrão espiritual, por vezes fracassam no intercâmbio com as paixões humanas.
Espíritos primários, reagem voluntariamente ante a primeira contrariedade, magoam-se pela diferença de tratamento alheio e revoltam-se quando lhes impedem a realização imediata dos seus desejos.
—Mas isso é suficiente para justificar-lhes a prostituição? — insistiu Lavínia, inconformada.
—Cinjo-me apenas aos fatos já ocorridos, sem examinar sentimentos ou tecer críticas à vossa boa intenção.
Embora a ternura, o devotamento e a renúncia sejam virtudes que vos glorificam perante Deus, nem por isso elas modificam a aplicação correta e educativa da Lei do Carma sobre os espíritos falidos!
Examinamos "friamente" a vida agradável e sem obrigação onerosa de Marilda e Sónia transcorrida na "Casa Madalena" até os dezassete anos de idade, em comparação com os contrastes que ambas defrontaram no trabalho penoso de mulheres casadas com homens pobres.
Na "Casa Madalena" elas andavam sobre assoalhos de "parquete" encerado, repousavam em poltronas fofas e aveludadas, dormiam em colchões de molas, macios e confortáveis, guarnecidos de lençóis alvíssimos e cálidos acolchoados.
Viviam despreocupadas e alegres, assistindo filmes cinematográficos e programas de televisão.
Aos domingos excursionavam às praias e outros lugares pitorescos.
Durante o Inverno eram protegidas pelos aquecedores e no Verão dormiam tranquilamente em aposentos amplos e de boa ventilação.
Em suas dores e incómodos, sempre tiveram assistência médica carinhosa.
Cumpriam as tarefas escolares entre jardins floridos e alimentavam-se fartamente, acrescidas de gostosas sobremesas.
Durante o Natal e a Páscoa, os espíritas ofereciam-lhes presentes e bombons de chocolate, ou então festejavam-lhes os aniversários em comemorações joviais em torno dos simbólicos bolos de velas.
Infelizmente, devido ao seu primarismo espiritual e cegas pelo egoísmo e amor-próprio, elas atingiram a mocidade sem desenvolver a paciência, resignação, coragem e estoicismo, virtudes necessárias às mulheres oneradas com a pobreza.
Sem dúvida, julgando vingar-se dos benfeitores, terminaram cavando a própria ruína na rebeldia contra a disciplina e os estatutos da "Casa Madalena", e depois não puderam superar os "contrastes violentos" e óbices imprevistos encontrados no mundo.
— Agradeceríamos ao irmão Abelardo suas considerações de modo a nos elucidar quanto a esses "contrastes violentos", que Sónia e Marilda defrontaram ao deixar nossa instituição4 — solicitou o director da casa.
— De início, devemos examinar os motivos psicológicos que minaram a resistência espiritai dessas moças desventuradas e assim obtermos ilações proveitosas para o futuro.
Talvez elas sobrevivessem num ambiente de conforto, prazer e amparo, que já haviam usufruído na "Casa Madalena"; mas em face do seu passado delituoso, a Lei Espiritual não lhes permitiu outros favores além de um lar pobre e companheiros incertos e modestos.
A infância e a mocidade de Sónia e Marilda, na vossa instituição, foi um prémio antecipado a que elas ainda não faziam jus.
Entre a vivência agradável anterior e a vida repleta de obrigações próprias de mulheres casadas, formou-se um profundo abismo que não puderam transpor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:41 pm

Os salários deficientes dos companheiros só lhes permitiam existência difícil, ateando-lhe o fogo da revolta nas almas débeis.
O choque ou o contraste, entre a vida benfeitora anteriormente vivida na "Casa Madalena" e a situação da vida real, foi de mudança demasiadamente violenta, um "salto" psicológico violento e imprevisto do "bom" para o "ruim", da "ociosidade" para a "responsabilidade", do "conforto" para a "miséria", da "alegria" para a "tristeza"!
Tudo mudou para pior; o chão de parquete, sempre limpo
encerado da "Casa Madalena"', foi substituído pelas tábuas de um assoalho encardido de pinho, no barracão de subúrbio onde foram habitar; o fogão a gás e os utensílios polidos da cozinha moderna, transformaram-se numa trempe fumarenta aquecendo panelas de barro e de ferro; a enxerga de capim mal cheiroso ficou no lugar do colchão de molas confortável.
O antigo aposento luxuoso, amplo e claro, todo acortinado de seda e veludo onde elas passaram a infância, jamais poderia comparar-se ao quarto escuro e desbotado, cujas janelas eram decoradas com panos de algodão à guisa de cortinas.
O banheiro moderno e as instalações limpas e coloridas da instituição, nada tinham a ver com aquela guarita sanitária de tábuas bolorentas.
Durante o Inverno rigoroso, Marilda e Sónia levantavam-se alta madrugada a fim de aprontarem o café e o lanche dos companheiros madrugadores.
A alegria da televisão e o divertimento da cinematografia desapareceram mal substituídos por um rádio guinchante; a mesa sempre farta de alimentos, guloseimas e frutas de antigamente, depois mal podia oferecer o feijão aguado com pedaço de carne na refeição pobre de modestos operários.
O primeiro Natal que ambas comemoraram depois de casadas, foi sem festas e sem presentes; da Páscoa nem se aperceberam, vazia dos tradicionais "bombons" de chocolate.
Além disso, a pequena economia do lar consumiu-se nas doenças dos filhos de poucos meses, agravando-lhes a revolta, a frustração e o desespero numa existência repleta de vicissitudes e sofrimentos.
Em consequência, sob a força da animalidade fustigante e pela debilidade espiritual, elas julgaram se desforrar daquele destino odioso de pobreza e responsabilidade, preferindo o meretrício em troca das preocupações e dos deveres onerosos do lar!
Alebardo fez um longo silêncio, deixando perceber que havia terminado o assunto principal de sua prelecção.
Então Lavínia, num desabafo, cuja voz mal conseguia disfarçar o protesto e a decepção de sua alma, inquiriu, quase ríspida:
—Então pouco vale o nosso amor e a nossa dedicação aos deserdados da sorte, se além de não podermos salvá-los de suas infelicidades, ainda assumimos a culpa dos seus deslises e frustrações?
Abelardo tomou o médium, novamente, e num voz terna, mas significativa, esclareceu:
—Meus irmãos, sem dúvida a vossa generosidade e renúncia em favor dos infelizes são sentimentos sublimes que vos elevam perante Deus, ratificando as virtudes superiores da Vida Imortal!
E numa síntese, onde ele resumia todo o seu pensamento fraterno, então concluiu:
—Mas a verdade, meus caros irmãos, é que "ninguém ajuda ao próximo", porém, "só ajuda a si mesmo"!
Mensagem de Humberto de Campos, por Chico Xavier, extraída da revista "O REFORMADOR", de julho de 1965.

(1) N. do Médium: — Em face de coincidir bastante o pensamento do espírito de Abelardo, com idêntico assunto traçado pelo irmão X, pseudónimo e Humberto de Campos, quanto à diferença notável entre "amparar" e "esclarecer" transcrevemos "Lição nas Trevas", no final deste conto.
(2) N. do médium: — Conceito do espirito de André Luiz, por intermédio de Chico Xavier, inserto em "Agenda Cristã".
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:42 pm

LIÇÃO NAS TREVAS

Irmão X
No vale das trevas, delirava a legião de Espíritos infelizes.
Rixas, obscenidades, doestos, baldões.
Planejavam-se assaltos, maquinavam-se crimes.
O Espírito Benfeitor penetrou a caverna, apaziguando e abençoando...
Aqui, abraçava um desventurado, apartando-o da malta, de modo a entregá-lo, mais tarde, a equipes socorristas; mais adiante, .aliviava com suave magnetismo a cabeça atormentada de entidades em desvario...
O serviço assistencial seguia difícil, quando enfurecido mandante da crueldade, ao descobri-lo, se aquietou em súbita acalmia e, impondo respeitosa serenidade à chusma de loucos, declinou-lhe a nobre condição.
Que os companheiros rebelados se acomodassem, deixando livre passagem àquele que reconhecia por missionário do bem.
—Conheces-me? — interrogou o recém-chegado, entre espantado e agradecido.
—Sim — disse o rude empreiteiro da sombra —, eu era um doente na Terra e curaste meu corpo que a moléstia desfigurava.
Lembro-me perfeitamente de teu cuidado ao lavar-me as feridas...
Os circunstantes entraram na conversação de improviso e um deles, de dura carranca, apontou o visitador e clamou para o amigo:
—Que mais te fez este homem no mundo para que sejamos forçados à deferência?
—Deu-me tecto e agasalho.
Outro inquiriu:
—Que mais?
—Supriu minha casa de pão e roupa, libertando-nos, a mim e a família, da nudez e da fome...
Outro ainda perguntou com ironia:
— Mais nada?
Muitas vezes, dividia comigo o que trazia na bolsa, entregando-me abençoado dinheiro para que a penúria não me arrasasse...
Estabelecido o silêncio, o Espírito Benfeitor, encorajado pelo que ouvia, indagou com humildade:
—Meu irmão, nada fiz senão cumprir o dever que a fraternidade me impunha; entretanto, se te mostras tão generoso para comigo, em tuas manifestações de reconhecimento e de amor que reconheço não merecer, porque te entregas, assim, à obsessão e à delinquência?! ...
O interpelado pareceu sensibilizar-se, meneou tristemente a cabeça e explicou:
—Em verdade, és bom e amparaste a minha vida, mas não me ensinaste a viver!...
Espíritas, irmãos!
Cultivemos a divulgação da Doutrina Renovadora que nos esclarece e reúne!
Com o pão do corpo, estendamos a luz da alma que nos habilite a aprender e compreender, raciocinar e servir.


(Mensagem recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jun 23, 2021 8:42 pm

7 - INQUISIÇÃO MODERNA
Giordano Alencastro atingira os vinte e dois anos, pródigo de vida e belo de formas.
Tinha consciência de sua exuberante vitalidade; usufruía a gostosa volúpia de se sentir um rapagão admirado na cidade, cujo corpo fremia nos movimentos amplos e arrogantes.
A Natureza exagerara; dera-lhe fartura de viço e perfeição de formas!
Sua alma transbordava de felicidade, desconhecendo a dor ou a frustração comuns à vida humana.
Tudo nele era em excesso; suas mãos embora vigorosas e decididas mostravam certa graça nos movimentos sinuosos e sensuais.
Giordano ria, de lábios vermelhos, mostrando os dentes tão regulares e branquíssimos, que fariam inveja a muita mulher bonita.
Não temia qualquer esforço ao erguer caixotes pesados, pranchas, tábuas e fardos de materiais, para colocá-los sobre os veículos da firma paterna.
Jamais precisaria fazer aquilo, nem substituir empregados; mas ele o fazia por desafio e vaidade, provando na prodigalidade do gesto a sua força extraordinária.
—Deixa disso, seu Giordano! — censurava o preto Solano, servente de caminhão.
Giordano batia de leve, nas costas de Solano, satisfeito:
—Eu preciso de exercício, Solano!
Dê graças a Deus que eu te ajude, pois isso para mim é ninharia.
E comprovando o seu dizer, ajustava a rede de nervos e músculos sob o róseo da pele, erguendo um fardo de azulejos que dois homens mal podiam mexê-lo.
E depois o recolocava, mansamente, no solo, fazendo cair o beiço de Solano ante a façanha.
O preto admirava o ritmo, a proporção e a coordenação segura dos movimentos de Giordano, que se esmerava incentivando-lhe o culto ingénuo ao seu corpo sadio e poderoso.
Depois ria, satisfeito e zombeteiro, ao ver o negro coçar a cabeça, surpreso, e repetir a mesma frase de sempre:
Santo Deus, seu Giordano!
Vaçumecê inté parece guindaste de osso e carne!
Dona Bianca, mãe de Giordano, mulher de grande beleza, cuja cor dos cabelos mudava ao sabor da moda volúvel, atraente e sensual, vivia feliz pela dádiva de Giordano, o filho preferido.
Durvalino, o outro filho, era uma antítese perfeita do primeiro; fraco, exaurindo-se ao mínimo esforço.
Tinha os olhos tristes e camuflados pelos óculos espessos.
Os seus gestos eram tímidos, e quase pedia desculpas ante a figura de escandalosa vitalidade do irmão mais jovem.
Mas Durvalino, além de ser simples e laborioso, era dócil e boníssimo.
Tudo o que lhe faltava em vitalidade e atracção física, sobejava-lhe na riqueza espiritual.
A mente dele era aguçada e perspicaz, raciocinava com precisão e rapidamente.
Enquanto Giordano abandonou o ginásio, na primeira série, Durvalino formou-se em Direito e ainda cursava Filosofia.
Inexplicavelmente, Dona Bianca não escondia sua frustração diante daquele filho modesto e descolorido.
Durvalino não se sentia à vontade diante da mãe, como se ela lhe fosse estranha; por isso deixava todo o espaço livre para ela cultuar o filho magnífico, embora Giordano fosse glutão, sádico e sarcástico.
No entanto, ele se afinizava admiravelmente com Don Camilo, — o pai, — espanhol eufórico, estouvado e ruidoso, que se acertava às mil maravilhas com o filho sisudo, calado e ordeiro até para apontar um lápis.
Malgrado a diferença de temperamento, ambos eram justos e bondosos, além de hábeis e prudentes na direcção da indústria de madeiras constituída depois de intensa luta e perseverança.
Giordano, ao contrário, abusava dos proventos da firma, consumindo grandes somas nos antros de vício de S. Paulo e Rio de Janeiro, acobertado sempre pelo beneplácito imprudente de dona Bianca.
Ante qualquer advertência de Durvalino sobre o procedimento negligente de Giordano, dona Bianca enfurecia-se e fitava-o de modo hostil e insultuoso:
— Ponha-se no seu lugar, Durvalino! — exclamava sob intensa ira.
O que você faz em cinco anos, Giordano realiza num dia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:45 pm

Não se intrometa na vida dele, que é rapaz adulto e sabe se governar!
Durvalino, constrangido, baixava os olhos.
A mãe voltava-lhe as costas e subia, para o quarto, batendo a porta desaforadamente.
Não havia afinidade entre os irmãos; um ébrio de força e saúde, cinismo e orgulho; o outro mobilizando todas as reservas de energias precárias para sobreviver.
Giordano, ruidoso e desabusado, traindo um gosto pela malvadeza; Durvalino quieto, sisudo e desviando o curso dos passos para não destruir um insecto imprudente.
Durvalino recusava-se a assistir a morte de uma galinha; Giordano ria-se, escandalosamente e fazia a ave demorar na morte pelo estrangulamento sádico.
Uma noite, a horas avançadas, Don Camilo despertou com o chamado urgente pelo telefone interurbano de S. Paulo.
Dona Bianca acendera a luz, apreensiva e temerosa de alguma complicação amorosa de Giordano.
Talvez nem fosse coisa de se preocupar; apenas um pedido de dinheiro para cobrir algum gasto mas vultoso, fruto da vida boémia e tão natural a um moço tão saudável.
Don Camilo escutava, ao telefone, com profundo vinco entre os supercílios; lentamente levou a mão ao lenço e enxugou o suor que lhe porejava à testa.
—Sei, sei! Sigo já, de auto, até aí.
Não: ele nunca teve tal coisa.
Eu é que agradeço, doutor; o senhor fez o que devia fazer e tem minha total aprovação.
Não há dúvida; deixo tudo a seu critério profissional.
Assentou o fone no gancho, olhou incisivamente para dona Bianca, e, pela primeira vez, seus olhos brilharam severamente diante dela.
—Eu sabia que isso iria acontecer!
Levantou-se, lépido e pôs-se a mudar a roupa, ordenando:
—Mude-se, duma vez, Bianca.
Não adianta olhar-me com esse ar de mártir.
O seu excesso de mimos estragou nosso filho.
E num tom incisivo:
— Giordano está à morte, num hospital de S. Paulo, depois de uma farra brutal!
Chegados à capital bandeirante, na tarde outonal do dia seguinte, Dona Bianca e Don Camilo, acabrunhados e nervosos, penetraram no saguão do Hospital de Beneficência Portuguesa.
Logo foram encaminhados até o quarto, enquanto um cheiro forte e enjoativo de medicamentos entrou-lhes pelas narinas.
Aos poucos eles distinguiram Giordano sobre o leito alvíssimo; ele tinha os olhos cerrados e o queixo erguido fortemente, num espasmo nervoso e incómodo devido a sofrimentos atrozes.
Dona Bianca sentiu as pernas dobrarem-se, desamparadas e o sangue afluir-lhe à cabeça, deixando-a entontecida, tudo a rodar-lhe em torno.
Don Camilo, a princípio, ficou confuso, dominado por estranhas recordações que lhe afloravam à mente diante do quadro doloroso.
Não amava profundamente aquele filho, mas não podia compreender o estranho sentimento que o fazia ter aversão a ele.
No entanto, as fibras paternas vibraram instintivamente, ante a possibilidade de perder o filho.
O médico não demora; o moço está inconsciente há dois dias — informou o enfermeiro, com impassibilidade profissional.
— O companheiro de quarto dele é que notou as mãos roxas, o rosto congesto e a respiração dificultosa.
Se não fosse isso, talvez, o moço já estaria liquidado.
—Mas qual é o diagnóstico dos médicos? — indagou Don Camilo, estranhando a própria frieza.
—Só o doutor Loureiro é que poderá dizer-lhe o diagnóstico exacto.
O moço foi operado de um tumor muito perigoso no lado direito da cabeça!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:46 pm

Mais tarde, o médico responsável pelo caso confirmou o que o enfermeiro havia dito.
Dona Bianca estava desesperada, e, realmente, recordava-se das dores de cabeça, de que Giordano queixava-se frequentemente nos últimos meses.
Sentia-se até ferida no seu amor próprio, perante os componentes daquele hospital, que habituados aos dramas cotidianos da vida humana, falavam de um modo impessoal e objectivo, desinteressados de sua dor pungente.
Finalmente, veio a pior notícia, quando os médicos comunicaram a Don Camilo a realidade trágica — o rapaz era portador de um câncer avançado no cérebro, à altura do osso parietal direito.
Os nervos motores estavam comprometidos e mesmo que ele sobrevivesse, ficaria cego, surdo, mudo e possivelmente imóvel para o resto da vida.
Alguns dias depois Don Camilo fretou um avião e conduziu o filho, inconsciente e imobilizado, para sua cidade no Rio Grande do Sul.
E ali iniciou-se o calvário interminável para toda a família, que passou a viver em torno do "cadáver vivo" do filho, cujos dias tormentosos sucediam-se sem qualquer solução.
Decorrido três meses daquela tortura constante, Giordano ainda mantinha-se imóvel, os olhos cerrados, a respiração opressa e com leves estremecimentos nas extremidades hirtas.
No lado direito do crânio trepanado via-se um curativo do qual tresandava um líquido fétido.
A pele, antes rosada e aveludada, escurecia aos poucos, num tom sépia e emurchecida; os traços apolíneos do corpo esplendoroso desfaziam-se ao impacto do sofrimento intenso.
Giordano era o centro convergente de complicado equipo de apetrechos e aparelhos médicos.
O dorso dos pés estavam espetados por agulhas injectando um líquido cor de café.
O soro gotejava-lhe nos braços entumecidos formando edemas que eram reabsorvidos à custa de compressas de água quente ou de aplicações de pomadas descongestivas.
O plasma sanguíneo filtrava-se com extrema dificuldade nos pulmões, enquanto o tórax arfava aspirando o oxigénio artificial.
Quando a morte se avizinhava, pela sufocação iminente, o enfermeiro acudia, lépido, accionando cruel aparelho, cujo tubo de metal nobre penetrava pela traqueia aberta, a insuflar e a sugar os pulmões quase em colapso.
Na família tudo era desolação.
Dona Bianca ainda resistia, algo rebelde, à fatalidade daquele destino inexplicável, mobilizando todas as reservas egocêntricas para não trair a sua desdita.
Por que Deus lhe dera um filho tão formoso e depois o destruía tão estupidamente?
Por que havia de ser Giordano, estuante de vida e saúde, e não Durvalino, débil, enfermiço e titubeante?
Os seus belos olhos perdiam o viço e se apagavam, pouco a pouco.
A vaidade abatia-se, impotente, ante a sina trágica de ser a espectadora de sua própria ruiva, vivida nas faces convulsas daquele filho adorado.
Desorientada, cobria-lhe mil vezes os pés perfurados e arrumava-lhe o macabro turbante de gazes, estremecendo, hesitante, quando suas mãos tacteavam a terrível depressão deixada pelo câncer junto na cabeça.
O calendário, implacável, marcava cento e quatro dias tormentosos e de lenta destruição de Giordano.
O enfermeiro fazia a sua ronda habitual; tomava-lhe a temperatura e a pressão, graduava o maquinário como hábil técnico, movendo-se pelo quarto como um verdugo moderno.
Mudava a seringa da veia do pé, e num gesto apático varava outro ponto da pele, mostrando certa satisfação profissional, quando percebia o êxito do seu labor.
As mãos de Giordano estavam frouxas, inertes e descarnadas.
A pele toda contundida pelas agulhas hipodérmicas e semeada de manchas roxas e azuis.
A traqueia edemaciada produzia o ronco longínquo dos brônquios lutando por um pouco de ar.
Os tubos de borracha oscilavam presos pelos esparadrapos e sob a pressão dos líquidos em convergência para o enfermo.
Um dia, Durvalino olhava pensativo para o irmão que se aniquilava e jamais lhe dera um momento de alegria ou conforto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:46 pm

Nascido do mesmo ventre, nutrira-se com o mesmo sangue, e, contudo, sempre lhe fora um estranho hostil.
Súbito, movido por singular intuição, pediu silêncio a todos, e curvando-se sobre o ouvido de Giordano, falou-lhe incisivamente:
— Giordano! Giordano! Se estás nos escutando e tens consciência do que te acontece, faz um esforço; reúne todas as tuas energias dispersas e concentra-te de moda a moveres a pálpebra direita.
Somente a pálpebra direita!
Isso será um sinal convencionado para sabermos se estás consciente!
Se puderes, repitas o sinal outra vez!
Ante a surpresa dos presentes, curvados, ansiosos, sobre o enfermo torturado. eis que Giordano pareceu ficar mais quieto), mais hirto, numa coordenação propositada, enquanto lhe cessavam todos os tremores dos pés e das mãos e se moderaram os estertores dos pulmões.
Decorridos alguns segundos, após a expectativa dramática, a pálpebra esquerda(1) estremeceu fortemente, no único sinal de vida do corpo imóvel!
E ante o espanto de todos, repetiu mais duas vezes, atendendo ao propósitos de Durvalino.
Depois, como se o esforço hercúleo houvesse exterminado todas as energias, Giordano teve um estremecimento e recaiu na costumeira apatia.
—Misericórdia!
Ele ouviu-nos durante todo esse tempo! — bradou dona Bianca, entre soluços de dor e humilhação.
E completou numa voz pungente.
Só lhe demos notícias más e desesperadoras!
Levou a mão ao peito, e num gesto de angústia desfaleceu.
Mas naquele instante expirou na mulher todo o orgulho e à arrogância por ter gerado falho tão atraente e saudável.
Sob o impacto da vaidade ferida ela havia tombado ao solo; mas ao despertar, dona Bianca era sombra da figura ostensiva anterior.
Realmente, dolorosa era a verdade, pois se os familiares ignoravam o curso implacável e rectificador das leis espirituais, Giordano não estava inconsciente, porém, mentalmente desperto na sua trágica situação.
Malgrado a impotência motora, os sentidos estavam aguçados e o relacionavam com o mundo exterior.
Ele ouvia a voz inconformada da mãe, o choro silencioso dos seus parentes, os comentários funestos em torno do seu leito e a notícia sinistra do câncer.
Sofria o mais terrível suplício imaginado por um ser humano, sem poder libertar-se do corpo mortificante pelo benefício da morte!
Esperançado do recurso inteligível de Durvalino, quis gritar; um clamor interminável e potente, que pudesse ferir o ouvido de alguém na face da Terra!
Sua mente superexcitava-se sob o domínio de estranhas recordações, enquanto fluíam do seu corpo as derradeiras energias, que uniam sua alma ao organismo físico.
Ouvia gritos lancinantes, sentia-se diferente, estava distante de si mesmo, num delírio infernal!
Percebeu-se fora da carne hirta e massacrada, flutuando em lugar estranho, a ouvir alguém bradar:
—Mate-me, pelo amor de Deus!
Giordano sentiu-se aturdido e espantado, pois a voz era de Durvalino, que se debatia à sua frente, os braços e as pernas presos por fortes correias às tábuas de uma roldana de tortura.
Todavia, ele, Giordano, ordenava sem piedade:
"Aperte o torniquete! Aperte!"
E um homem de rosto bestial obedecia, torturando Durvalino, que, a seguir, diluiu-se numa nuvem esbranquiçada.
No seu lugar, para espanto de Giordano, surgiu Don Camilo, com farpas nas unhas dos pés e das mãos, o torniquete apertando-lhe o crânio e as carnes violáceas torturadas pelas tenazes aquecidas, também a clamar, num protesto heróico:
— Mate-me!
Jamais trairei companheiros!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:46 pm

Giordano enfureceu-se, preso de um ódio louco, quando Don Camilo, num assomo de desforra e talvez impelido pelo desejo de libertar-se da tortura pela morte, conseguiu cuspir-lhe no magnífico traje clerical de monsenhor.
Ainda sob o guante de intensa cólera, sua surpresa foi ao auge, quando a seu lado e sob os ricos trajes de abadessa, ele viu Dona Bianca, a sorrir-lhe de um modo sensual, dizendo-lhe:
— Monsenhor Valdez!
É inútil converter esses hereges tão endurecidos!
Não só perdeis o vosso precioso tempo, mas ainda perturbais a vossa calma habitual!
E numa expressão de cruel prazer, arrematou:
— Mande-os para a fogueira; eles precisam tanto de purificar seus pecados!
Depois de fitá-lo de modo esquisito e pecaminoso, a abadessa Dona Bianca beijou-o longamente.
Giordano sentiu-se encabulado, pois o beijo de sua mãe nada tinha de maternal, senão a avidez e o fogo de uma violenta paixão!
Em seguida ela também foi-se esfumaçando no traje de abadessa, ou sóror Conceição, cujo nome soava-lhe de modo insistente.
Aterrado, sentiu-se retornando para o seu martírio carnal, tomando contacto sensorial com os familiares, pois ouvia-lhes os passos e as vozes em torno do leito.
Mas isso tudo não passou de um rápido vislumbre.
Em seguida viu-se envolvido no vórtice de um turbilhão que tragava os últimos resquícios de consciência, enquanto ouvia a sentença venturosa do médico da Terra, junto ao seu corpo:
— Nada mais temos a fazer!
O senhor Giordano faleceu!

(1) N Atanagildo: Em face do avanço canceroso de Giordano, no lado direito da cabeça, ele só poderia mover a pálpebra esquerda, sob a acção reflexiva dos nervos motores.
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8 - O CANTOR
Rosalino Sampaio era um menino pobre, muito meigo e de bom génio.
Toda vez que ele ouvia o preto Jerónimo pontear o violão, com seus dedos compridos e ossudos a deslizarem velozmente sobre as cordas do instrumento, produzindo um cascatear de sons transformados sob a forma de chorinhos sapecas, maxixes, mazurcas aligeiradas e compridas valsas românticas, ele sonhava fazer aquilo um dia.
Seria muito admirado.
Atenderia convites para tocar nos baptizados, nas festinhas de amigos e parentes, como Jerónimo, em suas noites boémias
— Jerónimo — pedia frequentemente Rosalino — quer tocar a valsa "Abismo de Rosas"?
Enquanto o preto, sempre afável e sorridente, satisfazia-lhe o pedido executando com maestria aquelas passagens vivíssimas e rápidas pelo pescoço do violão até a sua base encordoada, Rosalino embevecia-se hipnotizado pela melodia romântica e saudosa.
Quando ele fez onze anos de idade, Padre Tibúrcio — vigário da Igreja do Senhor Bom Jesus — convidou-o para ser coroinha e ajudar a missa:
Rosalino sentiu-se feliz.
Saiu correndo para dar a notícia alvissareira à velha tia Nica —irmã de sua mãe — que o criara depois dele ficar órfão.
Alegre, ante a perspectiva de aparecer em público, vestiu a sobrepeliza branca e rendada, sobre o saiote de cetim vermelho de sacristão para ajudar Frei Tibúrcio a rezar a missa.
Era o coroinha mais compenetrado no serviço religioso; movia-se junto ao altar com a delicadeza de um beija-flor sobre perfumada flor!
Atencioso, mas tímido, sempre com aquele sorriso meigo aflorando-lhe ao rosto, Rosalino atravessava a nave com a bandeja de esmoler, agradecendo gentilmente com acenos de cabeça, toda vez que alguém doava moedas para ajudar o Senhor Bom Jesus.
As meninas sorriam enamoradas para ele, admirando-lhe o porte erecto, quase angélico, quando carregava a pequena cruz do Cristo nas procissões a preceder as "filhas de Maria", que cantavam a "Salve Rainha" com suas vozes encantadoras.
Algum tempo depois, a comunidade da Igreja do Bom Jesus resolveu organizar um coro de meninos, a fim de participar dos festejos da "Semana do Evangelho", com as demais associações religiosas dos municípios vizinhos.
Frei Benito, muito experiente na organização de coros desde sua juventude, na Itália, além de profundo conhecedor das composições musicais dos grandes clássicos como Bach, Haendel, Haydn, Mozart e outros especializados em peças sacras, visitou as famílias católicas mais nobres e pediu que mandassem seus filhos para ele organizar o conjunto coral da paróquia.
Após muitos ensaios, "testes" é de inúmeros candidatos, conseguiu seleccionar cinquenta meninos, que durante as primeiras horas da noite enchiam a nave com suas vozes cristalinas seguidas pela música suave do órgão tocado por Frei Barnabé.
Atendendo aos apelos de Frei Tibúrcio, as senhoras cristãs compuseram os trajes adequados ao conjunto coral.
Constituía-se numa túnica branca, de punhos rendados, com o emblema do Coração de Jesus e uni laço de fita vermelha na gola, completando o uniforme um saiote azul escuro todo de pregas.
O solista do coro infantil era o menino Gabriel, um dos melhores alunos do catecismo.
Sua voz, embora pouco sonora, um tanto aguda, não muito clara, era volumosa e assim ajustava-se às necessidades daquele encargo.
Aproximava-se a "Semana do Evangelho" e crescia a expectativa dos paroquianos para a estreia do "Coral dos Meninos do Bom Jesus".
O bispo viria especialmente para rezar a missa campal e fazer as crismas esperadas há mais de três anos.
Ao faltar vinte dias para os festejos, surgiu aflitivo contratempo; o tenorzinho Gabriel adoeceu com pneumonia, deixando Frei Benito perplexo e angustiado, pois era de .urgência encontrar outro substituto do enfermo.
Procurou aliciá-lo entre os demais meninos do coral, mas ficou decepcionado.
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