LUZ ESPÍRITA
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 3 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:46 pm

Não conseguia uma voz capacitada para interpretar os seu; arranjos musicais.
Entretanto, as coisas devem acontecer de acordo com a vontade do Governo Oculto do mundo.
Frei Benito caminhava apressadamente pelo comprido varandão do convento, a meditar sobre o problema do novo solista, quando estacou, surpreso, ao ouvir uma voz de menino, suave e de agradável sonoridade, interpretando com ânimo e ternura a "Ave Maria" de Schubert, justamente a melodia mais ensaiada pelos seus pupilos e escolhida como a peça de abertura do programa sacro.
Frei Benito correu à janela, alvoroçado, mas não viu o misterioso cantorzinho.
Aguçou os ouvidos e parecia-lhe que a voz, inexplicavelmente, vinha do porão da sacristia.
Desceu as escadas de pedra, excitado, mas lentamente, sem fazer qualquer ruido, estacando, perplexo, ao identificar o coroinha Rosalino, que arrumava caixotes vazios, enquanto cantava.
Frei Benito sentiu os olhos cheios de lágrimas e uma dor apertada no coração, rogando perdão a Deus pelo remorso de não ter experimentado no seu conjunto coral aquele menino tímido e quieto.
Entre as arcadas do porão, aquela voz infantil ecoava sonora, harmoniosa, com belo efeito de acústica e sem qualquer ressonância.
O frade subiu as escadas dominado por profunda emoção; ajoelhou-se diante do Senhor Bom Jesus e agradeceu-lhe a dádiva de poder estrear o seu coral de meninos no dia aprazado.
Em seguida, do alto da escada, chamou Rosalino, num brado forte e cordial e pôs-se a indagar da sua qualidade apreciável de cantor precoce.
O menino acanhado, e desculpando-se pela sua ousadia, contou que depois de assistir os ensaios, descia ao porão e ali repetia os trechos mais fáceis e comuns, porque somente gostava de cantar.
Jamais tencionava tomar o lugar de qualquer outro menino do coro.
E que sabe você cantar, além da "Ave Maria" de Schubert? — indagou Frei Benito um tanto aflito, por verificar que faltavam só quinze dias para o ensaio geral.
—Bem! — respondeu Rosalino, encabulado.
Eu acho que sei mais ou menos aquelas músicas que o senhor chama de cantatas e oratórios...
—De Bach, Hayden, Mozart e Beethoven? — indagou o frei, num espanto feliz.
—Acho que é, Frei Benito, se é estes os nomes das músicas que o senhor fazia os meninos cantarem.
E depois de uma pausa, enquanto Frei Benito ia até à janela disfarçar as lágrimas, Rosalino acrescentou:
—Também acho que sei aquelas outras duas "ave marias" ...
—De Verdi, Bach-Gnoud? — rejubilou-se Frei Bento, erguendo as mãos para o alto diante do Bom Jesus, num sorriso aberto e lavado de lágrimas.
— Obrigado! Obrigado, Senhor!
Estamos salvos! — E esquecendo o menino, saiu a correr varandão afora, a fim de dar a notícia alvissareira aos outros frades.
Frei Benito devotou-se de corpo e alma a educar a voz de Rosalino, o qual, muito dócil, receptivo e atencioso, assimilou-lhe as recomendações com incrível facilidade.
Aprendeu a respiração disciplinada entre os hiatos das longas frases melódicas; a empostar a voz de modo que o ar fluísse pela garganta, em vez de comprimi-la, e a aliviar a tensão dos músculos occipitais, evitando a voz nasal muito comum no espasmo vocal!
Em poucos dias mostrava-se o cantor de voz afinada, comovente e expressiva.
A sua participação no "Coral dos Meninos do Bom Jesus" foi um sucesso interminável e ele empolgava os fiéis na transcrição musical dos oratórios, cantatas e páginas sacras arranjadas por Frei Benito.
A igreja ficava superlotada.
Dizia-se que muitos anti-clericais e ateus a frequentavam, só para assistir ao canto angélico de Rosalino acompanhado pelo murmúrio doce ou pela sonoridade mais grave do "coral" dos meninos, numa suave mistura mística de sons e da fragrância do incenso e do odor peculiar das velas de cera!
Rosalino cresceu.
Sua voz melhorou de timbre e volume.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:47 pm

Ficou mais nítida e sonora.
Em breve, ele se sentia desafogado na vida de pobre e pôde realizar o velho sonho de criança; aprendeu a tocar violão!
Agora já podia compensar os dias em que ficava boquiaberto admirando o preto Jerónimo, quando ponteava as cordas do "pinho" com maestria nunca vista.
Tornou-se um cantor de fama nacional; passou a cantar em rádios, gravou milhares de discos e sua fama atravessou as fronteiras do Brasil.
Em breve, ganhava rios de dinheiro podendo coordenar sua vida de modo venturoso.
Casou-se, mas por circunstâncias inexplicáveis, jamais o seu lar teve a graça de um falho.
Talvez foi esse o motivo do desacerto com a esposa, a qual já vivia algo contrariada pelas suas actividades de cantor sempre obrigado às noitadas boémias e à prodigalidade de gastos com os "fans".
Nessa época ele conheceu Lumila, jovem de rara beleza e mãe solteira de dois filhos pequeninos, frutos da união comum de um companheiro falecido.
Rosalino sentiu-se atraído por ela e chegou a crer tê-la conhecido alhures.
Separado espiritual e fisicamente da esposa, ele resolveu enfrentar a opinião pública.
Montou casa para Lumila e passou a viver com ela.
A nova companheira, tolerante e meiga, talvez por força da condição insegura de amásia de Rosalino, tributava-lhe carinhoso afecto e sem adverti-lo ou irritar-se pela vida boémia que levava.
Assim, Rosalino resolveu os problemas de ordem afectiva, pois já os tinha resolvido os de condição financeira.
A vida transcorria-lhe num "mar de rosas", como diz o adágio de senso comum.
Era um dos cantores mais bem pagos do Brasil e proporcionava à nova companheira e aos dois falhos adoptivos uma vida regalada.
No entanto, algo lhe ensombrava a vida — o fogo!
Pare-eia tolice ou fobia, mas quando apanhava uma revista onde colorido da rotogravura lhe mostrava incêndios, desastres de aviões, explosões ou automóveis em chamas, ele se sentia tomado por inesperado temor a se reflectir no brilho febril dos olhos.
Essa fobia agravava-se dia a dia.
Numa reacção quase infantil, ele evitava assistir aos filmes cinematográficos, cujo enredo mostrava o fogo na sua faina destruidora.
Jamais embarcava num avião ou se arriscava a quaisquer empreendimentos em que o fogo estivesse por perto.
—Rosalino, você não acha melhor consultar um médico sobre esse nervosismo que sente diante do fogo?
Deus faça que isso não o deixe enfermo! — aconselhava-lhe á companheira.
—Não! Isso é algum complexo ou recalque de infância, e que eu mesmo terei de resolver! — respondia Rosalino, sem esconder sua preocupação.
—Não sei realmente o que se passa comigo, mas diante do fogo ou das chamas de qualquer espécie, sejam em pinturas ou fotografias, eu me sinto angustiado!
O fogo me horroriza!
E voltando-se para Lumila, acrescentou.
— Lembra-se você, quando irrompeu o incêndio no "Edifício Oriente", diante de nossa casa?
O fogo violento lambia os caixilhos das janelas!
Fiquei tão atemorizado que precisei tomar calmantes para os nervos!
Rosalino ainda continuou cismando, vendo através da janela as riscas luminosas do asfalto molhado convergirem todas entre si e a se fundirem num feixe de luz amarela, esbranquiçada, para em seguida transformarem-se em chamas vermelhas, a dançarem entre veículos velozes.
Fechou a cortina, desassossegado, e voltou a sentar-se.
—Por que você não consulta os espíritas? — lembrou a companheira.
—Já consultei.
Disseram-me que deve ser recalque de vida passada, quando fui queimado em algum incêndio.
Por isso, associo o fogo às minhas lembranças do pretérito, sentindo-me aflito ante a sensação de perigo iminente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:47 pm

Silenciou, preocupado, para dizer num tom dramático.
—Everaldo, médium espírita e meu amigo, acha que eu fui queimado nas fogueiras da Inquisição, noutra encarnação, pelo pecado da heresia.
No entanto, desde pequenino, eu sempre senti a mais terna devoção pela Igreja Católica, e, às vezes, chego a lamentar porque não sou um bispo ou padre, cujas vestes clericais tanto me fascinam.
Nenhum menino sentiu-se tão jubiloso como eu a envergar as vestes de coroinha da Igreja do Bom Jesus.
Parece-me bem incoerente essa hipótese de ter sido um herege queimado nas fogueiras da Inquisição, quando sinto a mais ardente devoção e amor ao Catolicismo.
— Bem, Rosalino, — insistia a companheira — alguma coisa deve ter fundamento da parte dos espíritas. Se você não encontra outro motivo para justificar o nervosismo contra o fogo?
Acredito que deve ser mesmo alguma coisa de outra existência, como dizem eles!
Rosalino completava os cinquenta anos de idade, sempre afável, generoso, paciente e simpático.
Não era egoísta nem ganancioso.
Semeava venturas, atendia necessitados, fazia donativos às instituições caritativas e ajudava muitos amigos a solucionarem os seus problemas financeiros, graças à sua grande fortuna.
Era cantor de respeito.
Amava a própria terra e punha todo o coração naquilo que cantava.
Escolhia as mais belas canções, eliminando o que era torpe. fescenino e desagradável.
Preferia cantar estrofes sem malícia e evitava as gírias antipáticas.
Cantava certo e limpo, além de tocar com arte o violão.
Certa noite chuvosa e fria, no aconchego do lar, Rosalino sentiu-se dominado pelas recordações de sua infância, comovendo-se pelas lembranças de Frei Tibúrcio, Frei Benito e Frei Barnabé, os três frades humildes, bondosos e santificados, que o haviam ajudado na gloriosa carreira de cantor famoso.
Enternecido ao evocar a f pura dos meninos que foram seus companheiros no célebre "Coral do Bom Jesus", pôs-se a lembrar da luz mortiça das velas, do odor agradável do incenso e da quietude das imagens dos santos nos altares, com enfeites dourados sobre as toalhas alvíssimas e imaculadas.
Gostaria de fazer algo em favor de alguma instituição de caridade.
No dia seguinte fez um contrato vultoso com a companhia produtora de discos, e gravou como solista entre o "Coral de Meninos da Igreja de S. Francisco", cuja renda seria toda em favor das crianças pobres.
O disco foi um sucesso incomum, arrecadando excelentes proventos para os garotos.
Aquela gravação fora também o cântico de cisne de Rosalino.
No dia seguinte, ao retornar da gravadora situada no Rio, o seu automóvel chocou-se violentamente contra a trazeira de um ônibus na "via-Dutra", e caiu grota abaixo, perecendo Rosalino preso entre as ferragens e completamente carbonizado.
O fogo, que ele tanto temia o havia apanhado na forma daquela morte trágica!
O terrível presságio se realizara fatalmente!
Mas enquanto as chamas violentas lambiam os destroços do automóvel, Rosalino era assistido no "outro lado" da vida por uma singular equipa de espíritos, vestidos de branco.
Eles o envolviam numa densa nuvem de gás esbranquiçado com fluorescências azuis, que lhe penetrava pelos poros perispirituais.
Ela provinha de um aparelho semelhante aos extintores de incêndios da Terra.
As criaturas encarnadas que tentavam arrancá-lo , das ferragens ainda quentes, não poderiam supor que o espírito já se achava livre do seu corpo físico torrado pelo fogo!
Os homens de branco o afastaram dali e deitaram-no numa rede macia revestida de uma espécie de pó muito parecido ao talco, e que produzia reflexos luminosos.
Em seguida, puseram-se a caminho, em marcha disciplinada para além da zona do desastre.
Rosalino tinha os dentes cerrados, as sobrancelhas arqueadas num espasmo nervoso e seu perispírito sacudia-se num tremor convulsivo, como a fugir de algo horroroso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:47 pm

Nesses momentos, os homens trajados com macacões branquíssimos e ajustados até os tornozelos, submetiam-no a fluidos sedativos.
O cantor se acalmava e dali a minutos a fisionomia desenrugava-se, os lábios descerravam-se acusando repouso.
Esse processo socorrista parecia exigir muita paciência e abnegação, pois os "homens de branco", em sucessivas etapas, ficaram o dia e a noite aliviando Rosalino das angústias e prováveis pesadelos que ocorriam na sua mente recém-liberta do corpo físico.
Decorrida uma semana, certa manhã, em que o Sol punha-se a vaporizar o orvalho cintilante pousado na grama verdejante, e fazia escorrer a umidade dos telhados das casas, surgiu à porta do posto socorrista, "Os Samaritanos", onde se encontrava Rosalino, um senhor vestindo um traje de túnica e calças brancas, bem elegante e uri tanto faceiro, cujo rosto corado e alegre, e a maleta que conduzia, traía a figura de um médico experimentado.
O seu cabelo mostrava algumas estrias prateadas, dando-lhe o ar de respeito e venerabilidade.
—Então, meus amigos? — exclamou ele, num gesto longo e afectuoso, espalmando as mãos para cima.
Qual é o problema?
O chefe da expedição espiritual dos "homens brancos", Domício, respondeu à indagação:
—Mandei-o chamar, irmão Cristiano, porque Rosalino acusa sinais de despertamento de sua consciência espiritual.
O seu espírito, talvez já se livrou das imagens aterradoras do fogo e das aflições dos seus últimos momentos de vida carnal, mas percebemos a interferência de algumas ideias reflexas de existências anteriores, associadas na sua mente excitada e capazes de causarem-lhe alguma confusão mental ao despertar em nossa esfera.
Creio que ele precisaria cingir-se apenas aos quadros educativos da última vida carnal, de cantor, para melhor ajustar-se à actual vigília espiritual.
Sem dúvida, o nosso trabalho socorrista foi muito beneficiado pelas vibrações sedativas transmitidas da Terra pelas preces enviadas pelos seus conterrâneos e dezenas de beneficiados.
Isso reduziu bastante o período aflitivo, peculiar a esse tipo de desencarnação violenta, além de ajudá-lo a se reajustar na sua verdadeira condição espiritual de vida no além-túmulo.
Irmão Cristiano sentou-se ao lado do leito de campanha revestido com lençóis alvíssimos e sedosos.
Concentrou os olhos como duas lentes a convergirem sobre a região do hipotálamo de Rosalino.
Os demais companheiros mantinham-se silenciosos e expectativos.
Depois daquela concentração vigorosa, activa e minuciosa, ele exclamou, satisfeito:
—A recuperação de Rosalino é excelente!
E levantando-se, num gesto de quem deseja aliviar a musculatura perispiritual, acrescentou:
—Embora estigmatizado pela prova rectificadora do fogo, a qual ele pressentia incessantemente na vida carnal, Rosalino retorna para nós em condições melhores do que muitos desencarnados comuns.
Ele se preparou bastante antes de descer à carne e solucionar suas dívidas cármicas de Sevilha, Portugal e Lombardia.
A sua nova disposição espiritual de meiguice, bondade, desprendimento, generosidade e honestidade, elevou-lhe o padrão sidério a ponto de imunizá-lo na desencarnação contra os efeitos estigmatizantes de sua contextura perispiritual.
Merece, portanto, a messe de orações transmitidas da Terra por seus amigos, parentes, beneficiados e pelo povo que o amava, amenizando-lhe as angústias da partida violenta da matéria.
Irmão Cristiano, olhou, comovido, para Rosalino, imóvel, aduzindo:
—São decorridos apenas seis dias e ele está quase recuperado!
Naquele momento penetravam pelo aposento flocos luminosos, parecidos a escamas de peixe transparentes e, dum colorido entre o lilás suave e o róseo puro.
Pousavam na zona cerebral de Rosalino e ali se desfaziam em pulverizações cintilantes.
Em seguida, ele desenrugava a fronte contraída e os pulmões pareciam elevar-se num ritmo suave e repousante.
Os encarnados jamais poderão imaginar o poder da prece amorosa produzida pelos corações plenos de gratidão, cuja natureza benfeitora e energética tanto fertiliza os fracos como balsamiza os sofredores! — comentou Cristiano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:47 pm

Depois dessa apreciação, ele pôs a mão no queixo e fitando demoradamente o rosto tranquilo de Rosalino, acrescentou:
—O cântico também é uma prece!Rosalino, apesar de ter sido apenas um cançonetista popular, no Brasil, soube escolher o assunto que cantava.
Além de sua voz sonora e cativante, ele também sabia atrair pelas estrofes ternas e respeitosas das canções afectivas, catalisando as melhores vibrações dos sentimentos humanos dos ouvintes, em louvor à pátria, ao lar, aos amigos, à família, à criança e à paz!
Pousou a mão direita sobre a fronte e a esquerda na parte posterior da cabeça de Rosalino, depois ergueu os olhos para o Alto e numa voz tranquila, profundamente afectuosa, orou:
"Senhor da Vida!
Fortalece-nos, para transmitirmos ao nosso irmão Rosalino as energias mentais de equilíbrio e harmonia, de poder e controle, para ele se reajustar ao ambiente de nossa vigília espiritual.
Senhor, ajuda-nos, porque já aprendemos a confiar no vosso Amor e na Vossa Sabedoria!"
Logo a seguir, o halo de luz que circundava a cabeça do espírito de Cristiano, apresentando uma cor verde-seda ou verde-palha das folhas tenras, foi-se esmaecendo substituído por um matiz amarelo claríssimo, atraente e respigado de tons de bronze velho a diluir-se rapidamente para um amarelo dourado translúcido.(1)
Através dos braços da venerável entidade fluía até suas mãos, colocadas em concha sobre a cabeça de Rosalino, aquele tom amarelo vivo esmaecendo nas extremidades.
Alguns minutos depois Cristiano mostrou-se satisfeito e bem recompensado do labor espiritual, quando verificou que o amarelo dourado transferido pelas suas mãos, também se polarizava em torno da cabeça do paciente, formando um halo amarelo, menos brilhante, mas tarjado de nuanças lilases e fulgurações violetas. (2)
—Bela recuperação espiritual! — repetiu Cristiano, algo emocionado.
Alguns séculos de contradições, egoísmos, frieza, fanatismo, cobiça e Rosalino os resgatou em meio século de sua existência humana, conseguindo o desligamento cármico pela renúncia, ternura, humildade e filantropia.
E, louvavelmente, ainda partiu da carne com as credenciais de benfeitor!
Em seguida, o espírito de Cristiano caminhou para a porta e fazendo um aceno cordial com a mão direita, despediu-se de todos, acrescentando, jovialmente:
—Helo, Rosalino! Podem acordá-lo; ele alcançará "Mansão Esmeralda" com as próprias forças! Tenho certeza!
Domício, o chefe dos "homens brancos", estendeu os braços sobre o corpo imóvel de Rosalino e pôs-se a fazer-lhe passes longitudinais, demorando-se um pouco em cada plexo perispiritual, e gastando mais tempo à altura do ventre na região do plexo solar. Depois prosseguiu lentamente, até os pés, fechando as mãos e recuando num gesto de desligar-se da corrente magnética na técnica da polarização.
Dali há poucos minutos, Rosalino manifestava estremecimentos nas pontas das mãos e dos pés.
Os lábios mexeram-se.
Contraiu as pálpebras, serpenteando-lhe pelo corpo um movimento de vida a superar o repouso demorado.
—A circulação perispiritual se restabelece, — explicou o passista, voltando-se para os demais amigos e aduzindo:
—Como disse irmão Cristiano, a recuperação de Rosalino é uma coisa surpreendente!
Assim dá gosto da gente trabalhar!
Ergueram-lhe um pouco a cabeça no travesseiro minúsculo e outro assistente enfiou-lhe nos lábios uma chupeta ligada a um frasco parecido com as mamadeiras dos recém-nascidos e apertou-o, como se fosse de plástico, fazendo Rosalino ingerir o tradicional líquido, que eu já me acostumara a observar em certos casos, cuja cor de morango ou cereja mostrava sempre uma aura radioactiva.
Decorreu certo tempo, quando ele abriu os olhos, calmamente, e volvendo-os em torno, mostrou-se um pouco surpreso ao defrontar-se com os espíritos sorridentes e até mesmo divertidos que o cercavam em torno do leito.
Depois também sorriu, bastante lúcido em sua consciência espiritual, pois franziu a testa, num esforço memorativo e a fisionomia inundou-se de júbilo.
—Estou na "Mansão Esmeralda?" — indagou, emocionado.
—Ainda não, irmão Rosalino; mas vamos para lá! — redarguiu Domício, gentil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:48 pm

— E vocês são a "Equipe Branca"?
— Para o servir, companheiro!
E todos curvaram-se delicadamente, num gesto de extrema cortesia.
Rosalino sentou-se no leito de campanha, envergou um caprichoso traje cinza-claro, que lhe estendeu um companheiro.
A um sinal do chefe, a caravana, sem muita hesitação e dramaticidade, pôs-se em movimento rente à superfície da Crosta, até alcançar um "posto socorrista" junto à orla de uma praia santista.
Ali viviam diversos tarefeiros do reino vegetal, dirigidos por um espírito de aspecto rude, alto, robusto e majestoso, contudo cordial e serviçal, que os atendeu:
—Mestre Guaciro! — exclamou Domício, cujo tratamento especial e lisonjeiro pareceu agradar bastante ao interpelado.
Quer ter a bondade de manipular alguma cota de energia vital de mamoeiro, abacateiro ou mangueira, para revitalização do irmão Rosalino, porque daqui iremos num voo longo e energético até "Mansão Esmeralda"? (3)
—Com todo o prazer! — retrucou a entidade de aspecto primário, vestido com traje simples, em cor verde-mar, o que não conseguia disfarçar-lhe o porte imponente do cacique brasileiro.
O interpelado reuniu meia dúzia de selvícolas e todos desapareceram por entre as frondes das árvores frutíferas da propriedade terrena, onde se situava o posto espiritual socorrista denominado "Mestre Guaciro".
—Repousemos um pouco, enquanto nossos irmãos cooperadores do reino vegetal preparam o "tónico vital" pela extracção das emanações abençoadas das árvores frutíferas criadas pelo Pai.
Convidou Domício, sentando-se na grama verdejante, cujo toque perispiritual activou os eflúvios luminosos do "éter físico" a fluir por entre as folhinhas tenras.
Reparando na atitude de Rosalino e pressentindo-lhe as elucubrações mentais ou memorizações do passado, disse-lhe, num tom afectuoso e conselheiro:
—Aproveite esse hiato, irmão Rosalino, para fazer a catarse das lembranças confrangedoras que tumultuam-lhe a mente.
Limpe-a o melhor possível para chegar à "Mansão Esmeralda" liberto do pretérito e ensejar uma vida sadia e venturosa no futuro.
Extinga as sombras obscuras do espírito e a nossa volição será mais segura e mais rápida.
Rosalino agradeceu com o olhar compreensivo.
Recostou-se num belo tronco de magnólia, entrecerrou os olhos mergulhando no mar revolto das imagens agitadas na mente pela sua hipersensibilidade perispiritual.
Sob o poder fabuloso do espírito, senhor da memória sideral de todos os gestos, pensamentos e actos pregressos, ele regressou ao passado fixando-se no momento em que teve início aquele débito espinhoso na contabilidade divina.
Viu-se sentado junto à pesada mesa de mogno e investido nas funções de monsenhor Domingos Serrano, um dos juízes do Santo Ofício da Inquisição de Sevilha, no século XV, sob o reinado dos reis católicos, Fernando e Isabel.
Ele também havia sentenciado hereges, judeus, renegados e relapsos católicos às fogueiras estorricantes, em nome da Justiça de Deus!
A adquirira o terrível "carma do fogo", naquela existência clerical, onde confundira a devoção, a fé e o sentimento religioso, com as próprias paixões de cobiça, ambição, fanatismo e vinganças políticas.
Exausto das vidas pregressas tumultuosas e censuráveis, saturado da companhia de inúmeros comparsas que o instigavam das Sombras, deixou-se tocar pela inspiração divina do espírito que lhe fora mãe carnal e curvou-se, submisso, ao programa cruciante de purgação dos tóxicos nocivos perispirituais.
Rosalino sofreu por quatro vezes a tortura das fogueiras da Inquisição, às quais ele condenara diversas criaturas, sendo queimado em Aragão, Lisboa e Sevilha.
Na penúltima existência, encarnando-se na Itália, em Lombardia, na figura de um belo e famoso cantor de estradas, cuja voz encantava nas trovas amorosas, ele, ainda, se deixou tentar pela cobiça e falsidade.
Uniu-se à uma jovem aldeã, herdeira de excelente fortuna, mas em vez de cumprir a promessa de união conjugal, não só a abandonou num dia infeliz, com dois filhos espúrios, como despojou-a dos bens mais valiosos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:48 pm

Entretanto, o "carma do fogo" sob a implacabilidade da Lei estava à espreita, e o trovador Rosalino, como também se chamava naquela existência, foi saqueado por bandidos que o limparam de jóias, ouro, moedas e valores roubados da companheira infelicitada.
Ao procurarem dar sumiço à prova do roubo, os salteadores espancaram-no, atearam-lhe fogo ao corpo, atirando-o semi-vivo grota abaixo.
Rosalino ao terminar a evocação pretérita suspirou longamente, compreendendo o motivo porque o fogo sempre angustiava-lhe a alma.
Ele temia o fogo como inimigo e algoz, certo de que seria enlaçado por suas línguas coruscantes e destruidoras, ante o primeiro descuido.
Fugia dele!
Enervava-se ante a sua imagem mesmo pintada ou fotografada.
Assustava-se com o clarão dos relâmpagos, das luzes súbitas dos faróis de automóveis ou da ideia de aviões em chamas.
Mas agora sentia-se calmo e venturoso.
Gozava de inefável paz de espírito, com a esperança de ter cumprido o destino tormentoso e conseguido boa nota espiritual.
Aliás, também resgatara a dívida que contraíra com Lumila e os dois filhos adoptivos, tendo-lhes devolvido, através do canto, a fortuna surripiada na Itália, quando era um belo rapagão de alaúde em punho a cantar trovas românticas.
Oxalá, estivesse definitivamente liberto da angústia do fogo e pudesse viver em futuras existências educativas na carne, sem esse recalque atemorizante.
Súbito, sem poder dominar o fenómeno ideoplástico mental, Rosalino viu-se inexplicavelmente diante de línguas de fogo serpenteantes a crescer em sua direcção.
Surpreso, porém, não assustado, ficou espiando tranquilamente o fogaréu, quase divertido com as volutas chamejantes.
Jubiloso e desafogado, verificou que o fogo já não se mostrava seu adversário ou algoz.
Era o amigo purificador na própria lei, de que "os semelhantes curam os semelhantes"!
Nesse momento, Mestre Guaciro retornou.
A sua silhueta recortava-se contra o sol da tarde, traindo o porte de um gigantesco tupinambá à paisana.
Trazia a preciosa substância vital extraída das emanações "etéreo-físicas" das árvores frutíferas.
Sob a técnica e o conselho de Domício, Rosalino fez-se bastante receptivo para absorver pelos poros do perispírito e pela respiração, a carga energética do "tónus-vegetal" que lhe era ministrada numa operação sem similitude na matéria.
Dali a pouco, a caravana chefiada por Domício volitava segura, sustentada pela energia mental originária da jubilosa sincronia espiritual.
O céu estava claro, de um azul translúcido.
A superfície da Crosta terráquea matizara-se de tons verde-escuro das florestas e verde-claro dos campos.
O litoral surgia emoldurado pelo beije das praias arenosas e recortado pelo oceano banhando as orlas de Santos, S. Vicente e Guarujá.
Rosalino sentia-se a ave feliz de retorno ao ninho querido situado entre flores siderais.
Algum tempo depois ele divisou ao longe, como preciosa jóia suspensa no Espaço, a silhueta da "Mansão Esmeralda", estância espiritual venturosa a refulgir luminosa entre o arminho do éter multicor.
Ali naquela comunidade espiritual transitória, verdadeiro "oásis" de repouso às almas fatigadas pela ascensão na busca da consciência cósmica, Rosalino também estagiara algum tempo, quer aprimorando sentimentos e treinando bons propósitos, quer haurindo energias espirituais necessárias para o êxito da prova cármica no Brasil.
Logo à frente, surgiu munificente portal recortado num azul suave e emoldurado por um halo lilás delicadíssimo.
Quatro colunas confeccionadas de um alabastro refulgente suportavam a arcada, cujo tom azulado pendia para um verde de folha nova.
A luz interior revelava nitidamente os rendilha angélica.
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 3 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:48 pm

Encantadora cortina de lilás-róseo e de pingentes prateados, balouçava as dobras sob o impulso de misteriosa brisa carregada de perfumes e combinações odorantes, que faziam lembrar os lírios, narcisos e jasmins da Terra.
Rosalino, profundamente enternecido, não pôde conter as lágrimas a lhe aflorar aos olhos diante do pouso edénico da comunidade espiritual, de tão grata recordação antes de reencarnar-se no Brasil.
Em seguida, ele ouviu um conjunto de vozes infantis cantando sublime melodia e ficou mais comovido ao reconhecer o primeiro verso da "Nona Sinfonia", de Beethoven, quando as vozes humanas misturam-se com a orquestra e atingem o primeiro "clímax", na canção, "E o Querubim está diante de Deus",(4) cuja melodia era a saudação tradicional da "Mansão Esmeralda", aos filhos que retornavam da carne libertos do processo de rectificação cármica.
A cortina de lilás-róseo abriu-se, de chofre, Rosalino sentiu vibrar todas as fibras da alma, ante as frondes formosas dos arvoredos, dos caminhos polvilhados de areia fina e sedosa, que se abriam para a formosa estância de repouso espiritual e preparo reencarnatório.
A mansão estendia-se através de inúmeros pavilhões decorados ao gosto oriental, submersos entre flores e vegetação encantadora envolta na musicalidade dos pássaros multicores, semelhantes aos pintassilgos, sabiás, azulões, rouxinóis e rolinhas brasileiras. Ele pousou os joelhos no solo aveludado e beijou-o com ternura e afecto.
O filho retornara à pátria querida, depois de longo período de ausência.
Nesse momento, esplendorosa mulher nimbada de luz solferina e filigranada de focos prateados, achegou-se a Rosalino e o atraiu para si, num amplexo amoroso, dizendo-lhe satisfeita:
— Rosalino, meu filho, seja bem-vindo ao lar!
Enquanto isso, ele aconchegava-se em doce quietude no seio daquela alma benfeitora, que algumas vezes fora sua mãe carnal, na Terra, e o convencera de se libertar dos pecados pretéritos aceitando o sofrimento rectificador.
Eis que, também, se aproxima dele um grupo de "querubins" vestidos de sobrepeliza rósea e saiote azul-claro, oferecendo-lhe um buquê de violetas e rosinhas miúdas de suave fragrância.
Rosalino enterneceu-se diante dos coroinhas do céu que lembravam-lhe o saudoso "Coro dos Meninos da Igreja do Bom Jesus", naquela gentil oferenda de flores simbólicas da saudade e do amor.
De repente, arregalou os olhos sob deliciosa suspeita, quando viu de costas para si, e empunhando a batuta de regente, um espírito ladeado por infinidade de focos de luzes verde-claro, pontilhados de raios azuis e brancos, dirigindo o coral de meninos à sua frente. Rosalino, quase nas pontas dos pés, deu a volta e pôs-se diante daquela entidade tão refulgente; e ali ficou, boquiaberto, fitando-a com indizível espanto.
Frei Benito, rosto alvo e a barba de capuchinho, estava metido num magnífico hábito branco, de mangas largas e cordões de um carmim puro.
Sorriu jubiloso, sem disfarçar sua emoção angélica e exclamou, espalmando a mão direita num aceno cordial:
—Olá, Rosalino!
Erguendo a batuta e rodeando-a no ar, como era costume fazer na Igreja do Bom Jesus, na Terra, então comandou com voz angélica, ao mesmo tempo afectiva:
—Vamos, menino; é a sua vez de fazer o solo!
Enquanto o coral dos meninos mais semelhantes a serafins rosados iniciava um murmúrio caricioso e encantador, Rosalino elevava a voz cristalina e atraente, pronunciando as primeiras frases musicais da terníssima "Ave Maria" de Schubert.

(1) O amarelo dourado representa na cromosofia astral os efeitos da' mente; o tom claro e translúcido define objectivos intelectuais elevados e os matizes escuros ou oleosos, quando se trata de criaturas que subvertem esse poder para fins egocêntricos.
(2) Os matizes lilases e violeta definem a humildade, a resignação o doçura.
(3) Aconselhamos o leitor a compulsar o capítulo "Entre Arvores", da obra "Os Mensageiros" e o final do capítulo "Cidadão do Nosso Lar", da obra "Nosso Lar", ambas descrevendo acontecimentos semelhantes e ditados pelo espírito de André Luiz a Chico Xavier. Edições da "Livraria da Federação Espirita Brasileira".
(4) Hino com orquestra e coro da Coral beethoviniana, cantada em alemão: "Under Cherub steht vor Gott".
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:50 pm

9 - A SERRARIA
Mês de junho. O Sol resplandecia num céu azul-claro,. prateando num toque mágico as nuvens dispersas.
Os telhadas brilhavam e escorria o orvalho da noite, pois, embora estivesse bastante frio, ainda quase não geara.
O barracão da serraria estava na encosta da colina suave, firmado sobre esteios de toros compridos e cortados de pinheiros finos, que ainda deixavam à mostra os nós resinosos.
Os grotões mais profundos despareciam sob as toneladas de serragem de um fofo pardacento, que a locomóvel não pudera consumir.
A chaminé da casa da máquina soltava um fumo preto, enovelado, de começo de fogo.
Os operários saíam das casas, alguns agasalhados por blusões de flanela, outros tiritando de frio.
Quando falavam ou tossiam soltavam vapores dos lábios a confundir-se com a fumaça azulada dos cigarros.
Ouvia-se o mugir dos bois ao serem atrelados nos carretões de puxar toras do matão.
A estrada para a mata subia escorregadia por entre os barrancos de capim amarelecido, e, depois, se perdia, lá ao longe, no meio dos bosques ricos de pinheiros, canelas, imbuías e perobas.
Súbito, ouviu-se um silvo longo e sonoro, respondido• pelo eco a morrer longínquo nas encostas.
Era o apito habitual de todas as manhãs, apressando gentes para os serviços,. fazendo outros acertarem os relógios nas choupanas pobres ou. nas vivendas ricas.
No alto do morro o sino da capelinha convidava os mais folgados à missa das seis.
Os caminhões, começaram a esquentar os motores e a vida a se fazer.
O ar enchia-se do pio de galinhas, grito de aves, papagaios, grunhidos de porcos, mugir de bois, balidos de ovelhas e pelo grasnar rachado dos marrecos.
Era um atropelo entre eles, às bicadas e mordidas, deixando o terreiro em desassossego.
A tudo isso. misturava-se o grito dos boiadeiros e as ordens estentóricas; dos capatazes.
Leonardo, maquinista improvisado por força da morte do velho Gustavo, a quem antes ajudava na limpeza da máquina e cuidava do fogo, examinava o manómetro da "Wolff", locomóvel moderna, que ele tratava melhor do que sua mulher, pois, dizia; "ela só falta falar".
O dorso de ferro cintilante estava luzidio.
Os corrimões niquelados faiscavam bem como os dourados das cintas, dos êmbolos e dos frisos das portinholas.
A máquina resfolegava, satisfeita, numa respiração tranquila, enquanto os seus pulmões de aço expiravam o vapor usado, pela chaminé comprida e segura pelos cabos de aço.
De vez em quando, Leonardo abria a fornalha económica, adquirida Ultimamente pela firma "Indústria e Comércio Irmãos Cardoso Ltda.", e jogava para dentro da boca chamejante algumas pás de serragem avivando o fogo e aumentando a fumaça em cima.
Estopa na mão, limpa aqui, esfrega ali, lustra acolá, ele pensava no rumo descolorido de sua vida naqueles confins.
As dificuldades humanas cresciam cada mês.
Chegara aos quarenta anos, bom de saúde e forte de corpo; mas já havia falido duas vezes nas empreitadas de toras no mato, ora devido ao excesso de chuvas, ora em virtude da mesquinharia do velho Cardoso.
Ainda seria simples ajudante de caminhão, ou empilhador de madeiras, se o velho Gustavo não o tivesse aceito como ajudante de maquinista.
Quando ele esticou os gambitos, Leonardo passou de foguista a manobrar a "Wolff", cuja tarefa lhe era bastante familiar, pois há tempos substituía o velho Gustavo nos seus porres compridos.
Contudo, os sovinas dos patrões fingiam não perceber a mudança e deixaram tudo correr sem lhe dar o aumento de ordenado correspondente à nova responsabilidade.
Decorriam três anos e Leonardo continuava a assinar a folha de pagamento com o salário de um simples empilhador de madeiras.
Tinha de começar o fogo pela madrugada, a fim de tocar a serra "Tissot" às sete horas no inverno, e às seis horas no verão.
Além disso, era o último a sair, e quando havia serão ele dormia ali mesmo, na casa da máquina, atento ao despontar da madrugada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jun 24, 2021 6:50 pm

Leonardo compensava' a falta de interesse dos patrões tratando bem a locomóvel, aquela "diaba" de ferro, aço e metal cromado, — confidente silenciosa de alguns anos de suas queixas e lamentos.
Precisava ganhar mais, porém, estremecia ante a ideia de enfrentar o velho Cardoso, seu patrão, português usurário e capaz de roer as unhas para não gastar, reclamando de tudo e de todos.
Uma onda de azar amargava-lhe a vida.
O salário magro da serraria sumia-se na comida e nas doenças de casa.
A situação era desesperadora, quando Leonardo soube que o velho Joaquim Cardoso havia melhorado alguns operários, que ameaçavam trabalhar na fábrica de pasta mecânica de Tijucas; então encheu-se de coragem e resolveu tentar a sorte pedindo aumento de ordenado.
Espionou uma semana os passos do velho Cardoso; queria pegá-lo de boa-maré.
Viu-o sentado no escritório, a sós, remexendo em papéis sobre a escrivaninha.
Leonardo acendeu um cigarro, concentrou suas energias mentais e entrou no escritório rústico, feito de tábuas de pinho de terceira qualidade pintadas a cal.
Achegou-se ao balcãozinho de ferro paulista, pôs o chapéu no canto, mirando, de esguelha, o patrão todo absorvido a examinar romaneios, notas fiscais e papéis do serviço do guarda-livros Waldemar, que fora almoçar mais cedo.
Cardoso, como se fosse tomado por um mau presságio, ergueu os olhos do "pince-nez" sujo de pó de serragem, e sem mesmo esconder a sua antipatia indagou, cauteloso e frio:
—Que é que há, seu Leonardo?
Ele sentiu o sangue fugir-lhe das veias.
A respiração afogueou-se e não podia compreender porque ficava gelado e temeroso diante daquele homem velho, obeso e desumano, mas fácil de ser batido com um soco do braço musculoso. Decidido e brusco, largou a bomba:
—Eu queria pedir um aumento, seu Cardoso.
As coisas andam cada vez mais ruins lá em casa.
Estou com a mulher doente e os guris encrencados.
O senhor sabe; vai um dinheirão prós médicos!
Cardoso nem pestanejou.
Continuou remexendo papéis, impassível e alheio à aflição de Leonardo.
Depois, num gesto de protesto, voz mansa e seca, advertiu:
—Leonardo, o senhor escolheu a pior época do ano para pedir aumento.
A crise vem aí e faz a gente até pensar em acabar com a firma.
Leonardo coçou-se, desajeitado.
—Bem. Bastava o senhor dar o salário de maquinista e algumas horas extras, para me deixar servido e satisfeito.
Acho que não é pedir muito!
Desta vez Cardoso largou a papelada e fitou o empregado, com um ar sério e mal-humorado:
—Raios! Homem de Deus!
Então não basta a confiança que depositamos no senhor?
Alguém lhe tirou a máquina, desde que morreu o velho Gustavo?
Bem, — gaguejou Leonardo, indeciso — mas acontece que o serviço aumentou.
Antes eu era ajudante, agora trabalho como maquinista responsável.
Tenho feito serão e madrugadas para dar conta do recado!
—Se for para a firma lhe pagar salário especial, então •é melhor contratar um maquinista de longa prática; que saiba poupar a "Wolff".
E depois de um pigarro cronicificado pelo fumo mal cheiroso, o velho acrescentou, significativo.
—Não tivemos parados dois dias, em fevereiro, só porque o senhor não conseguiu desentupir as válvulas?
—Bem, seu Cardoso; as válvulas entupiram naqueles dias, porque é preciso limpar a locomóvel todo o mês, com gasolina e ar comprimido.
Ela trabalha de sol a sol sem parari
—O caso é que o senhor é o responsável, não eu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:04 pm

Podia fazer isso muito bem num domingo sim e noutro não.
E num gesto de censura:
— O que fica fazendo aos domingos, aí nesses matos?
Jogando truque, bebendo pinga, atirando castanholas?
Eu aproveito o domingo para pôr muitas coisas em dia..
— Bem, a gente vai para a casa da sogra, tem de visitar os parentes ou precisa ir à uma festa, de vez em quando, pois somos mortais!
Cardoso mostrava-se inquieto e não ajeitava a papelada na mesa; entretanto, parecia desmanchar o serviço feito.
Havia necessidade de anular aquele impulso oneroso para a firma.
Doía-lhe fazer concessões.
Sem saber porquê, alguma coisa estranha o fazia até sentir prazer em negar favores a Leonardo.
—Outra vez a "Wolff" não começou a patinar, caindo a produção e esquentando as juntas? E daí?
—A locomóvel patinou, só por falta de breu nas correias; mas a culpa foi do almoxarifado, que deixou acabar o stoque velho sem fazer pedido.
Cardoso afastou a cadeira, puxou a calça caída abaixo do umbigo, movendo o corpo obeso e atarracado entre a mesa e o balcão, apanhou a cuia de chimarrão fumegante, que o servente aprontara no fogareiro a álcool, ajeitando a bomba de metal com relevos de prata.
Súbito, num gesto de cordialidade estendeu-a em direcção a Leonardo, oferecendo-lhe:
—Aceita?
Era o único elo de aproximação humana, que às vezes se fazia entre o patrão e os empregados mais velhos e importantes, pois ele os considerava matéria-prima tão incolor e útil corno suas toras e tábuas.
—Aceito! — acedeu Leonardo com esperança de amolecer o velho na troca cordial do chimarrão.
Enquanto durava o silêncio, apenas interrompido pelos goles de água fervente e esverdeada da erva-mate, que Leonardo chupava, ele reflectia:
"O velho Cardoso era o exemplo de dureza, sovinice e egoísmo.
Ficara cada vez mais rico.
Era o tipo do madeireiro muito comum naquelas bandas.
Sempre inconformado com as leis fiscais e imposto de renda.
Lamentava o tempo, a chuva, a carestia, as quebras dos caminhões, o caruncho nas madeiras e os aumentos de salários.
Conforme suas queixas incessantes, jamais tivera lucros na indústria; no entanto, derrubara a casa velha e erguera no lugar ampla vivenda sobre pisos de cimento e áreas de lajotas "S. Caetano".
Comprava terrenos, imbuías, pinheiros e perobas, possuindo reserva de madeira para serrar cinquenta anos sem parar.
De seis em seis meses trocava as juntas de bois por outras luzidias e fortes.
No fim do ano chorava os prejuízos dos gastos nos caminhões velhos, todavia os trocava por uma frota nova e mais possante.
Abria estradas no mato recheado de árvores para o corte.
Ampliara a afiação e pusera trilhos "decauville" para os vagonetes transportarem madeiras dentro da serraria, do pátio para o monturo de serragem.
Quando tudo parecia de mal a pior, eis que chegou a "Wolff", toda empinada num carretão e descida em Curitiba, para substituir a velha locomóvel "Lincoln".
—Quem é que tem coragem de aumentar sua indústria, com essa política errada do Governo, cujos afilhados roubam como ratos nos celeiros?
Se não fosse a família, há muito tempo eu teria desistido de tudo isso!
E Cardoso fez um gesto largo com a mão num círculo precário, tentando abarcar toda a vasta propriedade espalhada por quilómetros e quilómetros.
Curvando a cabeça, meio calva, apontou os cabelos desbotados, dizendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

— Olhe aqui; perdi meus cabelos nessa empreitada só de sacrifício!
Encheu a cuia de chimarrão e estendeu outra vez a Leonardo:
—Vai mais uma?
—Vai!
"A família do Cardoso", pensava Leonardo, sorvendo outra vez a água quente esverdeada, "tinha do bom e do melhor.
Os filhos estudavam na cidade; um deles seria médico naquele ano, outro engenheiro e o mais moço cursava direito.
Os dois mais velhos, filhos da primeira mulher, gerenciavam o escritório de exportação, em Curitiba, e a casa de despachos no porto de Paranaguá.
Os genros cuidavam do entreposto de tabuado, em Jaguaré, S. Paulo.
Quando vinham visitar o velho, quase sempre traziam automóveis do último tipo, num esbanjamento de dinheiro.
Os "Irmãos Cardoso" exportavam imbuía para a Alemanha e serravam toras para as laminadoras da Capital.
Aproveitavam os quadradinhos das costaneiras de pinho e faziam cabos de primeira qualidade para os Estados Unidos e as sobras vendiam no mercado interno de Si Paulo.
As tábuas de terceira e quarta qualidade entravam nas cotas do Instituto do Pinho, sendo exportadas para a Argentina."
Leonardo terminou de chupar o chimarrão e de pensar.
Passou a cuia e disse, reagindo às queixas do patrão:
— O senhor está feito na vida; mas desta vez preciso de aumento. Já nem é aumento, porém caridade!
Minha mulher está esperando o quinto filho, e, falando com franqueza, não posso comprar as roupinhas dele, quanto mais pagar a parteira!
A voz dramática de Leonardo quase fez estremecer a bomba pulsante que o velho tinha no lugar do coração.
Agora ele estava à janela, meio abstracto, olhando para o pátio, onde os carretões despejavam excelentes toras de pinho provindas das matas da Tijuca.
—Leonardo! — interrompeu ele, meio amuado.
Não me julgue mal, sinceramente, sinto não poder atendê-lo, devido à crise, às novas leis do imposto de renda, fiscalizações arbitrárias, taxas de exportação e as despesas do porto de Paranaguá, cada vez mais escorchantes!
Garanto a você:
nenhum serrador, nestas redondezas; vai poder aumentar os seus empregados.
Ah! Isso não vai!
Sabe quanto por cento aumentaram os fretes, impostos de vendas e consignações, imposto de consumo por cabos beneficiados? Sabe?
Leonardo não sabia; apenas pôde balbuciar sem convicção:
—Desta vez necessito de melhora, seu Cardoso!
O negócio é sério mesmo!
Cardoso não ouviu-lhe a nova solicitação.
Inflamado pelo protesto contra a carestia e o roubo nos impostos, enfiou as mãos nos bolsos da calça, e num tom quase profético e desesperador, aduziu:
—Ontem, ainda falei com o Zenatto, o feitor, e trocamos ideias para demitir os empregados mais novos, porque segundo vão as coisas, teremos grandes prejuízos, ou vamos trabalhar só de graça.
E num arremate filosófico, onde pôs toda a força verbal e veemência:
"Então o negócio vai ser nessa base:
vamos trocar "seis" por "meia dúzia"!
Leonardo estava desesperado.
A mãe envelhecida e reumática morando com ele.
A mulher escarrando sangue e pondo em perigo as crianças, sem poder lavar roupa para fora num bom adjutório.
O segundo filho era um infeliz retardado, a olhar para o forro do quarto o dia todo, no fundo da cama, paralítico.
A sogra que o ajudara um pouco e vivia da renda de uma Chacrinha na colónia Muricy, mudara-se para Curitiba, escrevendo para ele vender o terreninho, a fim dela viver os últimos dias sem passar fome.
—É! A vida de operário é miséria mesmo! — falou num tom vago e desconsolado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

Numa tentativa algo estratégica, fruto do desespero, aventurou-se:
—Acho que tenho de mudar o rumo de minha vida!
Devia me meter com qualquer coisa por aí, para ganhar um pouco mais.
Assim não é possível, pois a gente fica marcando passo e as coisas piorando!
Cardoso nem tugiu, nem mugiu, fazendo ouvidos moucos ao tom lacrimoso do interlocutor.
Impassível, calculou rapidamente o tempo de serviço de Leonardo; quase nove anos de registro e perto da perigosa estabilidade com indenização dupla.
Seus olhinhos miúdos piscaram atrás do "pince-nez", e a voz se fez algo acariciadora:
—Eu não costumo segurar os meus empregados.
Quero que eles progridam, embora eu sinta a sua ausência!
Um dia, eu também abandonei um emprego sem futuro e tentei trabalhar por minha conta!
É certo que fui um boi dia e noite sem descanso!
Mas, se tenho alguma coisa, devo a essa minha decisão: me libertar de emprego!
Depois de uma pausa, acertando a mira do fuzil para o tiro final, exclamou com disfarçado desinteresse:
— O Travassos, maquinista dos "Irmãos Prevedelo" ainda na semana passada me pediu emprego.
Ele tem um sitiozinho aqui por perto e quer que os filhos façam plantação.
Eu só não me interessei por ele, para não deixar você sem emprego.
Encolheu os ombros, encheu a cuia de água fervente e estendeu-a novamente para Leonardo:
—Vai mais uma?
—Não! Obrigado! — replicou Leonardo, agora sem interesse de aproveitar aquela circunstância cordial, mas inútil.
Vendo-se ameaçado longinquamente de deixar o emprego, Leonardo olhou para a chaminé da locomóvel, e num gesto desolado alegou:
—Bem; vou aumentar o fogo na fornalha, acho que está no fim.
E saiu do escritório como um cão surrado.
Junto à "Wolff" ele se desabafou:
— É, minha velha!
Esse mundo é uma infelicidade mesmo; os patrões ficam podres de ricos e choram miséria chupando o sangue da gente!
Num longo suspiro, arrematou:
— Mas Deus é grande!
A vida do infeliz Leonardo piorou dia a dia.
O quinto filho nasceu com os membros atrofiados e terrível infecção no couro cabeludo.
Marquito, guri vivo e solerte, quebrou o braço ao cair de uma guabirobeira, e devia ir a Curitiba consultar um especialista.
Belinda, a mulher, tentou fazer alguns acolchoados de penas de ganso para vendê-los em S. José; mas alguém malévolo contou que era tuberculosa e ninguém comprou-lhe a produção modesta.
Chegou o dia em que ele ficou em pânico e atordoado.
O médico exigiu o internamento imediato da mulher atacada por tuberculose miliar, em adiantado estado.
O caso era sério, grave e perigoso, e sobretudo contagioso.
Leonardo não teve outra solução, iria falar com o patrão de qualquer forma.
Achegou-se a ele, mais uma vez, arrasado e nervoso:
.— Seu Cardoso!
O senhor sabe que estou numa urucuubaca danada!
—É! Eu soube!
A doença estraga a nossa vida.
Eu mesmo não me sinto bem ultimamente.
Tenho uma dores que não me deixam dormir direito.
Botou as mãos sobre os quadris à altura dos rins, acrescentando num tom confrangedor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

— Creio que são os rins, não é?
—Deve ser. — Grunhiu Leonardo, com os olhos fixos nas tábuas do soalho.
Eu preciso de um empréstimo, para descontar em seis vezes.
Estou arruinado com as doenças!
Só dando um tiro no ouvido eu mudava a situação!
Cardoso mal continha a sua ira, pois era homem que perdia a cabeça, quando alguém tentava arrancar-lhe dinheiro com motivos sólidos, que não podia negar.
Uma tempestade rugia sob os seus nervos tensos.
Restos de decoro humano ainda o impediam de emergir à periferia o seu carácter mesquinho, sórdido e duro.
Então desabafou numa voz de censura e advertência:
— Leonardo, eu não sei trabalhar assim, com empregado em volta de mim a pedir aumento, adjutório e empréstimo!
Raios! Preciso ter a "cabeça fria" para dirigir isso aqui, pagar as dívidas e os compromissos em dias certos!
Se vocês trabalham e ganham o pão de casa, é porque sofro as preocupações, nessa teimosia de tocar a indústria para a frente e sem resultado compensador.
Sei que suas despesas aumentaram, porém, que diabo faz você dos seus salários?
Por que não faz economia?
Não guardou algum dinheiro para essas horas de apuro?
E num gesto, quase heróico:
— Já pensou o que seria de mim, se não fosse económico, com a família que tenho?
Leonardo estava alheio a tudo, preso à uma ideia fixa.
— Se não precisasse não pedia, seu Cardoso.
Mas desta vez apelo para o seu coração.
Sei que não vai me deixar perecer; tenho certeza.
Eu lhe pago; nem que tenha de trabalhar dia e noite, mas preciso internar Belinda no hospital com toda urgência.
É um perigo para as crianças.
O senhor já pensou na tuberculose dela espalhando-se pelos filhos?
Cardoso já havia previsto aquilo e há tempos preparava-se para ouvir os argumentos do maquinista.
Não tinha diplomas académicos, contudo sentia-se talentoso e mais eficiente do que muitos homens de "cultura".
Defendia-se do mundo pela couraça de obstinação, método e acima de tudo a avareza.
Não era homem de ajudar ninguém e nunca faria um negócio sem "ganhar"!
Isso era próprio de sua estrutura egocêntrica e da estranha volúpia que sentia ao levar a melhor numa especulação.
Ninguém havia de rir às suas costas, nem pôr dúvida à sua sagacidade, astúcia, capacidade e segurança financeira.
Ele não cedia empréstimos, e, também, não os pedia.
Nunca se ajoelhara diante de gerentes de bancos.
Pagava tudo em dia, com desconto.
No silêncio da noite louvava-se pela habilidade e o proveito do dia findo.
Ali estava seu empregado, com um motivo sólido e pungente.
Seria capaz de comover uma fera e arrancar-lhe o dinheiro.
Mas Leonardo já era um caso perdido, estava afundado em tudo e significava-lhe um "mau" negócio!
Um negócio perdido, falido!
Isso deixava Cardoso frenético e apopléctico pela ira surda.
Tentavam quebrar-lhe a linha rígida de vida, perturbar-lhe o seu modo tradicional de viver, progredir, comandar e lucrar!
Não poderia "perder" ou "ceder", cujos verbos soavam-lhe numa língua estranha, porquanto era unicamente habituado a exprimir o verbo "ganhar".
Sua alma vil e avara fazia cálculos velozes.
Súbito, animou-se percebendo uma solução, onde poderia conjugar tanto o negócio como o adjutório.
—Leonardo, empréstimo não posso fazer.
Jamais farei uma coisa contrária aos meus hábitos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

Você sabe, não dou dinheiro emprestado; mas também não peço a ninguém.
Não quero abrir precedente na firma.
Encarou o infeliz empregado, e num ar de expectativa, indagou, maciamente:
—Quanto tempo você trabalha na firma?
—Bem. Trabalhar mesmo, trabalho há mais de dez anos.
O Waldemar é que sabe direito.
Não preciso indagar ao Waldemar, redarguiu Cardoso, num tom amistoso.
— Confio em você. Sempre confiei.
Escuta, Leonardo.
Quer fazer um negócio que vai ajudar a resolver seus problemas e você não precisa ficar devendo favor?
Leonardo tornou-se inquieto e apreensivo.
A proposta cheirava vantagens para o patrão.
— Depende, seu Cardoso, da proposta.
—Quanto era o empréstimo que você queria?
—Vinte mil cruzeiros.
Menos não adianta.
—Você está louco, homem!?
Vinte mil cruzeiros?
E pagar como??
—Desconto uns dois mil por mês.
—E iria viver só com mil e seiscentos, fora o desconto do IAPI?
Se você não consegue se equilibrar com o salário de três mil e seiscentos, como vai viver com menor?
—Pois é, seu Cardoso.
Eu não tenho culpa.
É falta de sorte que me persegue.
Cardoso foi à janela, avaliou a situação e fez cálculos rápidos e frios, sem emoção ou complacência.
Leonardo significava-lhe apenas um negócio.
Poderia lhe dar lucro ou prejuízo.
Voltou-se, decidido, propondo:
—Se você pedir demissão, pago metade da indenização e metade das férias.
Assim você resolve a situação, recebe uns quinze mil cruzeiros e fica sem dívidas!
Que tal?
Leonardo mostrou-se aflito e uma revolta subiu-lhe pelo peito.
Sentiu um asco enorme daquele homem obeso e viscoso, cujos, olhos miúdos, atrás do "pince-nez", tinham a expressão das aves de rapina.
A sua indenização exacta, contando aviso-prévio, duas férias completas e nove anos de serviço registado, dariam uns 45.000 cruzeiros, conforme lhe dissera o advogado do sindicato, em Curitiba.
— Tenho uns 45.000,00 para receber de indenização, incluindo 2 férias, nove anos de firma e aviso-prévio de lei!
O senhor me paga 30.000, eu topo a parada.
Saio até já!
Cardoso nem pestanejou; e ficou descontrolado, sem esconder a ira.
— Nada feito, Leonardo!
Eu não o despachei, entendeu?
Ofereci-lhe a oportunidade de resolver a sua situação sem fazer dívidas!
E encolheu os ombros, agastado.
— Você aceita se quiser!
Moveu-se agitado, pelo escritório, arrumando o tinteiro, mexendo em papéis ou armários.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

E num ímpeto decisivo, quase agressivo, exclamou:
— Para liquidar o caso; dou-lhe 20.000 cruzeiros, nem mais um tostão!
Virou as costas e deu por findo o negócio.
No dia seguinte, Leonardo aceitou os vinte mil do Cardoso.
Estava desesperado.
Assinou os papéis de demissão, mandou a mulher para o hospital e pagou as dívidas mais urgentes, inclusive o médico para o Marqueito.
E à noite quis beber uma pinga, no polaco, e verificou, surpreso, já estava sem dinheiro!
Sem dinheiro e sem trabalho!
Uma semana depois voltava a ser ajudante do empreiteiro de mato Juvenal, com salário minguado e serviço mais duro do que tocar a "Wolff"!
As despesas da casa passavam de 4.000 cruzeiros; e ele agora só recebia uns 2.000 cruzeiros, na subempreitada do corte de pinheiros.
Enterrou-se na venda do polaco.
Acabou-se o medicamento para o filho paralítico, que dali por diante foi atendido pela vizinhança desde a comida.
Marqueito e Onofre, menores, ficaram dispersos pela redondeza.
O recém-nascido encostado na casa dos padrinhos, até solução melhor.
Belinda tinha os dias contados no hospital, em Curitiba, onde faleceu numa tarde triste e nevoenta.
Leonardo pusera-se a beber e jogava toda culpa de sua desgraça naquele velho sovina, completamente arrependido do gesto impensado em aceitar a injusta indenização.
Uma ideia fixa tomou-lhe a mente; a sua desgraça chamava-se Cardoso!
Dominava-o a gana mórbida e destruidora de que o velho patrão devia ser responsabilizado por todo o seu sofrimento!
E sua cólera ainda aumentava sob o potencial do álcool a que se entregava cada vez mais frequentemente.
O filho nascera-lhe paralítico e o outro quebrara o braço, ficando defeituoso.
A mulher morrera tuberculosa e o caçula também sucumbira só pele e osso.
Morte, tragédia, dor e pranto ele os atribuía à sovinice, astúcia e esperteza do velho Cardoso, que o pegara num dia infeliz e o fizera abandonar o emprego, iludindo-o com miserável indenização.
Agora todos estavam na miséria.
Os dois menores, aos trapos, viviam de expedientes censuráveis, furtando das vendas e dos caminhões nas estradas.
Hilário, o mais velho, com dezoito anos, entrou à noite no almoxarifado da serraria dos Cardosos e roubou um jogo de facas de plaina, duas engrenagens de tupia e duas circulares de oito polegadas, vendendo-as por preço de banana na serraria dos Prevedelos.
Quando Leonardo soube disso, o filho encontrava-se encarcerado em S. José, devido à queixa apresentada pelo velho Cardoso, que estimou o roubo de dois mil cruzeiros, em mais de vinte mil, "só para aliviar o imposto de renda", como lhe disse o guarda-livros Waldemar, numa roda de pinga.
Foi o estopim dos acontecimentos.
Leonardo mergulhou definitivamente na cachaça e aos tombos pelos carreiros do mato, gritava como louco, que iria incendiar a serraria dos Irmãos Cardoso e liquidar aquela raça infame.
E nas bebedeiras sem controle, na ira exacerbada pelo instinto animal, uma dia, ele armou-se de um cacete de cabriúva e pôs-se a bater furiosamente na porta da casa do antigo patrão.
Quebrou-lhe os vidros das janelas, os vasos da área, fazendo estrepolias, enquanto o pessoal alvoroçado abandonava os leitos em trajes íntimos.
Depois de muita luta conseguiram dominar Leonardo, que se debatia aos pontapés e soltava os nomes mais indecorosos, dando vasão à violência mal contida em sua alma.
Um empregado pegou o "Ford" e dali a pouco trazia o cabo e os soldados do destacamento .
Quando Leonardo acordou-se, na manhã seguinte, os olhos em brasa e a cabeça a romper-se pelos vapores alcoólicos, viu-se, surpreso, na miserável enxerga da cadeia local.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:05 pm

Levantou-se, atarantado e olhou pelas grades da prisão; ao longe, um caminhão carregado de tábuas de pinho roncava na subida do morro da Pitanga, rumo à Capital.
A manhã estava quieta e fria, emoldurada por céu cinzento escuro.
As casas de madeira, em grupos espaçados, derramavam-se pelas margens da estrada e pareciam subir, de lado, acompanhando o caminhão.
Passava um cavaleiro de chapéu de couro, grande e virado na frente, caindo-lhe o cordão bordado até o ombro; ia num trote largo, quase rente à cadeia.
As crianças, de aventais, pareciam manchinhas brancas movendo-se pela estrada nos carreiros que sulcavam o campo em direcção à escola de dona Cotinha.
Leonardo achegou-se mais à janela gradeada e espichou o pescoço para a esquerda; lá estava a serraria dos Cardosos.
A chaminé da "Wolff" soltando o fumo preto sob a competência do Fontana.
O novo maquinista, conforme diziam, ganhava um ordenadão.
Chegava até ele o eco do grito dos boiadeiros empurrando os carretões pela encosta do mato.
No silêncio da alma, o coração de ferro da locomóvel parecia pulsar junto do peito, avivando-lhe o saudade daquela irreparável separação.
Tudo aquilo entrou fundo na alma de Leonardo; ele sentiu um gosto amargo na boca e um espasmo angustioso na garganta.
Lembrou-se de sua mocidade; fora sempre um rapaz alegre, forte e disposto, que se metia nas empreitadas fatigantes e no futebol do clube dos italianos, em Curitiba.
Era assíduo frequentador de todos os bailes do seu subúrbio e gozava da simpatia das moças.
Casara-se com Belinda.
Foi um festão, de dois dias, quando os pais dela ainda não tinham falido no armazém.
Era moça bonita, atenciosa e trabalhadeira, embora sempre sentisse fraqueza, queixando-se de cansaço por coisa a tôa.
Lembrava a alegria do primeiro filho, — Hilário —, agora preso em S. José e acusado de um roubo vultoso pelo miserável do velho Cardoso, que havia exagerado o montante do valor surripiado.
Indubitavelmente, o velho infame fora o autor de sua infelicidade, o verdadeiro responsável pela sua desdita!
— Saindo daqui hei de matar aquele malvado! — clamou impelido por um pensamento de vingança.
Recostou-se na parede da cadeia e pôs-se a pensar em como liquidar o velho sovina!
Arma de fogo?
Mas comprá-la sem dinheiro?
Uma piada? Mas podia só tontear e não matar o velho!
Ah! Havia coisa mais fácil; uma "peixeira", daquelas facas pernambucanas que o Hilário costumava usar!
Enfim, Leonardo, homem sem coragem para exigir o salário a que tinha direito, reuniu todas as energias disponíveis e delineou o plano definitivo, para meter vinte centímetros de aço cortante na barriga do velho Cardoso!...
As mãos crispadas nas grades, os olhos injectados pelo ódio, o peito a arfar e a raiva extravasando por todos os poros, antegozava, antegozava, antecipadamente, os estertores da agonia do ex-patrão!
Matá-lo-ia como a um porco!
No dia seguinte, todo o lugarejo alvoroçou-se com a notícia trágica; ao abrir a porta da cadeia, para soltar Leonardo curtido do porre da noite anterior, o cabo de polícia encontrou-o enforcado com uma cinta de couro numa trave do forro!
* * *
Um pesadelo medonho tomou conta do espírito de Leonardo.
Ele se sentiu num torvelinho diabólico, arrastado para grotões, onde o ar revoluteava impregnado por uma poeira grossa de fuligem sufocante.
As vezes ele submergia num terreno pantanoso e subia-lhe até às narinas o cheiro nauseante de animais putrefactos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:06 pm

Doutra feita, quase perdia os sentidos batendo contra rochedos invisíveis, que lhe maceravam as carnes e enchiam-no de dores cruciantes, principalmente na região do pescoço, onde acreditava que a cinta teria arrebentado e frustrado o suicídio.
Fazia um esforço tremendo para se ajustar aos acontecimentos; mas uma substância qualquer, impetuosa e incontrolável saía de dentro de si mesmo, aos borbotões, fluindo-lhe pelas narinas, olhos e boca, com um cheiro acre e gosto amargo, que o descontrolava.
Causava-lhe ânsia, sufocava-lhe, deixando-lhe a fortidão da amêndoa amarga!
Precisava fugir, fugir para algum outro lugar!
Abria os olhos, desmesuradamente, procurando enxergar em torno de si: o aposento, as grades e a paisagem.
Entretanto, não lobrigava nada além daquele ar fuliginoso.
Súbito, a estranha força o impelia para grotões, pântanos nauseabundos ou túneis pegajosos cortados por um vento frio e uivante!
As vezes entrevia clarões vermelhos e silhuetas negras, sarcásticas e ferozes, que passavam junto dele numa procissão grotesca, como as árvores em fila parecendo correr velozmente ao passarem pela janela de um trem em movimento.
Ouvia vozes insultuosas, palavras bárbaras, sussurros macabros, uivos de lobos e risos sinistros.
Algumas vezes formavam-se frases completas, revelando queixas, brados de socorro, ais dolorosos e clamores desesperados, gargalhadas loucas, cantorias obscenas e ignóbeis, que o deixavam alarmado.
Punha-se quieto, auscultando aparvalhado, sem poder atinar a origem daquilo.
Súbito, recebia bofetadas ou saraivada de socos, que o deixavam exausto, atirado no chão viscoso e duro, cabendo-lhe a vez de gemer e gritar de dor e desespero.
Quanto tempo durou isso?
Leonardo não tinha consciência do tempo, mas precisava acordar de pesadelo tão tormentoso!
Um dia sentiu algo diferente.
Era o amainar da tempestade que o feria tanto de fora, como na própria alma.
Achava-se num estado de coma vital, grudado ao solo, quando julgou ouvir uma voz familiar, que lhe dizia no âmago do ser, fazendo-lhe o coração vibrar de esperança:
— Leonardo; o recurso mais eficiente, para o homem unir-se a Deus é a oração!
Ore sem preocupações ou interesses pessoais, semelhante às crianças quando recitam o "Pai Nosso" antes de dormir!
Não é preciso rebuscar palavras apropriadas, basta a confiança no Criador e o desejo sincero de ser amparado!
Vamos! Peça a Deus que dê a você a paz e o alívio para o seu espírito atribulado!
Abra clareiras de luz na alma, para podermos ajudá-lo!
Ele ainda ficou à escuta, alguns momentos, e abrindo os olhos percebeu ligeira claridade fosca a lhe impregnar o ambiente pela primeira vez silencioso e de estranha expectativa.
Desaparecera a fuligem horrorosa, embora a pressentisse revolutear ao longe.
Também se aliviara um pouco o peso bárbaro que lhe esmagava o corpo exausto e a dor na região cervical.
Afrouxou os nervos e regressou em pensamento à infância, quando sua mãe, dona Miloca, mulher simples e laboriosa, fazia-o ajoelhar-se sobre o leito pobre, e depois lhe recomendava, tímida:
— Agora vamos rezar, para o Papai do Céu cuidar de você e dar-lhe bons sonhos!
Que estranha era sua vida, e como a voz que lhe soava no interior, também, era tão parecida com a de dona Miloca.
Leonardo, mentalmente de joelhos e esquecendo a sua personalidade humana, conseguiu juntar as mãos em concha, como o menino sem problemas.
Com a ternura de uma criança abandonada no mundo e suplicando o socorro divino, ele começou o "pai nosso"!
Deveria ter dormido inesperadamente, pois quando abriu os olhos o Sol entrava aos jorros para dentro da cabana onde se encontrava.
O Sol?
Aquilo era uma luz tão radiosa e parecia vir de todos os cantos da cabana.
Penetrava dentro dele mesmo, ou vinha da própria alma!
Seu coração acelerou-se, quando ouviu o canto longínquo da rola de peito azulado e do sabiá, na sua cavatina modulada como o ranger suave do carretão subindo a encosta!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:06 pm

Sentia a mensagem agreste da natureza tocando-lhe as narinas, misto do odor da casca do pinhão novo e de serragem húmida das toras resinosas.
Tivera um pesadelo tenebroso!
Pensava ter se enforcado na cadeia de Pitanga, mas decerto falhara no gesto impensado, tendo sonhado todas aquelas coisas tão desagradáveis.
Decerto bebera demais, outra vez, refugiara-se naquela cabana, dormindo sacudido por estranhos sonhos e detestáveis quadros mentais próprios dos pesadelos.
Sentia-se bem disposto, sem os efeitos tormentosos da ressaca.
Súbito, percebeu estar deitado numa "cama de vento", tendo ao lado uma mesinha de madeira tosca, com um jarro de água de um azul esverdeado, transparente e quase luminosa, além de uns biscoitos miúdos, parecidos às amêndoas natalinas.
Quem teria sido o generoso hospedeiro?
Sob um impulso incontrolável, apanhou o copinho junto à jarra e o encheu com a água esmeraldina e translúcida, bebericando, aos poucos, com indizível prazer, a ingerir os biscoitos que se fundiam na boca, como flocos de neve, deixando-lhe realmente o gostoso sabor de amêndoas ou avelãs.
Generosa vitalidade tomava-lhe o corpo cansado, quase o induzindo a caminhar, trabalhar, fazer ginástica ou espreguiçar-se.
Esfregou as mãos com vigor, surpreendendo-se por algumas faíscas que julgou brilhar nas pontas dos dedos.
Experimentou novamente e aquilo repetia-se, embora de maneira muito subtil.
Agora distinguia melhor o cântico dos sabiás, das rolas, dos pintassilgos, azulões e o ritmo acelerado dos canários.
Havia no ar um odor de canelas bravas, pitangueiras e guabirobeiras, misturado com o cheiro picante e adstringente do araçá do campo.
Reconheceu o grito efusivo dos periquitos, em bandos festivos, quase à porta da cabana e o barulho que faziam na folhagem seca mexida no solo.
Sentou-se à beira da lona que lhe servia de colchão e pôs os pés fora do leito, ali ficando, um pouco, num balanço gostoso e doido para ver e ouvir o que se fazia lá fora.
Foi nesse momento que a claridade reinante na cabana, feita de costaneiras de pinho, acentuou-se, e ele pôde ver encostado no umbral da porta, um homem robusto, com um chapéu grande e quebrado na frente.
Ele usava botas de fole, castanhas e lustrosas, uma bombacha de gaúcho, blusão xadrez, preto e salmão; um lenço de seda branco salpicado de desenhos cor de vinho, envolvia o pescoço e caía num laço vistoso sobre o peito.
Na mão direita ele tinha uma chibata, que batia, de leve, no cano da bota esquerda.
O rosto era redondo, gordo e largo; os olhos mostravam um ar de confraternização tão pura, que Leonardo nem esperou ele falar:
— Bom dia, moço!
— Bom dia, mano!
— Acho que é o dono desta cabana, não é?
— Não; sou apenas um dos zeladores do lugar!
E sorriu abertamente, sem esconder um ar divertido nos olhos.
— Puxa! — disse Leonardo, coçando a cabeça.
Como vim parar aqui?
Abusei demais da pinga!
E baixou a cabeça, meio envergonhado.
— Nós trouxemos vaçumecê há dias, para aqui.
Esclareceu o visitante que traía no seu aspecto a figura do gaúcho.
Recebemos ordens de lá!
E apontou para o alto, enquanto Leonardo franzia o cenho, sem entender.
— Bem; quero me apresentar.
Sou conhecido por Nhô Pedro e comando uma patrulha de "recolhimento de almas" em dificuldades nas regiões de lama e purgatoriais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:06 pm

Somos treinados há séculos nisso e sempre que volto da carne para cá, regresso ao velho serviço de minha especialidade.
Ê a vício da gente! — E riu mostrando os dentes perfeitos.
Foi uma luta para recolher vaçumecê, pois como se debatia! Santo Deus!
Estendeu a mão, num gesto cordial, concluindo:
— Minha parte está feita; o resto é aí com o seu parente!
As ordens, seu Leonardo!
E recuando para fora desapareceu, enquanto Leonardo, de boca aberta e julgando-se vítima de uma alucinação, viu à porta da cabana o padrinho Jerónimo, falecido há muito tempo.
Olhos arregalados, agachado como quem pretende saltar de improviso, contudo ficou paralisado vendo o padrinho aproximar-se num aceno cordial e abrindo as faces rejuvenescidas num vasto sorriso.
— Não se perturbe, Leonardo!
Agora você pode saber a verdade!
E batendo-lhe no ombro, fazendo-o recuar meio assustado, esclareceu sem qualquer outra atenuante.
— Você actualmente é um "morto", um "falecido" como eu, entende?
O pior já passou.
Agradeça a Deus e aos bons samaritanos desta região, que o ajudaram a sair do umbral e entrar em contacto connosco!
Leonardo não era espírito primário, pois em existências passadas havia participado de instituições com avançada cultura e religiosidade.
A sua memória sideral era bastante flexível quanto ao entendimento espiritual, malgrado na última existência haver sofrido apreciável "redução intelectiva", a fim de não fugir à prova cármica da humilhação e tolerância.
A luz estranha da cabana, as palavras do gaúcho, do padrinho e a leveza de corpo fizeram-no despertar à condição de espírito imortal.
Bateu a mão na testa a recordar-se de tudo, soltando um imenso suspiro de alívio, como o escravo alforriado do cativeiro atrós.
Lentamente, gaguejante, indagou com profunda timidez:
— Padrinho, suicidei-me, não foi?
— Hum! Hum!
— Na cadeia?
— Sim! Mas não regresse às lembranças mórbidas do passado.
Concentre todas as energias dispersas, a fim de nos acompanhar na volição até à colónia "Mirim".
— Creio que o atenderei sem me perturbar, e pressinto ter feito isso outras vezes.
E pondo-se de pé, inquiriu:
— Devo ter sido arrastado para os charcos, onde o frio e os horrores infernais.
Quanto tempo estive lá?
Jerónimo reflectiu e depois acrescentou:
— Mais ou menos doze anos do calendário terreno, portanto você reencarnou-se com um esquema biológico de vida física previsto para cinquenta e quatro anos de idade.
Suicidou-se aos quarenta e dois, isto é, cortou o "fio da vida" doze anos antes do tempo fixado no seu programa biológico!
Em consequência, teve de sofrer tormentos e martírios nas regiões purgatoriais correspondentes ao período de regresso antecipado e na qualidade de rebelde espiritual.
— Estou aqui há quanto tempo? — indagou Leonardo, apontando a cabana.
— Neste entreposto socorrista você entrou em estado de coma perispiritual há trinta dias, mais ou menos, trazido pelos volantes de Nhô Pedro, esse valoroso espírito, que esconde sua torrente de luz naquele corpo de gaúcho e se priva de viver em regiões venturosas, para recolher seus irmãos infelizes derrubados nos purgatórios do Além-túmulo.
Jerónimo foi até à porta e convidou Leonardo a sair para fora, ambos mergulhando no seio fragrante da natureza esplendente de cores, oxigénio e vida palpitante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:06 pm

Depois que ele suspirou a longos haustos o vitalismo daquela manhã radiante, surpreendia-se ao ver passar por dentro de si mesmo ,os pássaros em voos rasteiros e festivos
— Bem, caro afilhado! — interrompeu Jerónimo, afável.
Concentre suas energias, nivele o pensamento às regiões superiores e ponha-se em prece, para não pesar na volição.
Pressinto que os nossos companheiros se aproximam!
Leonardo deu dois passos, e, numa voz súplice, indagou:
— Posso clarear o meu esquema cármico, antes de seguir, a fim de neutralizar quaisquer ressentimentos contra os que me "lixaram" na carne?(1)
— Sim. — Respondeu Jerónimo num encolher de ombros.
— Por exemplo, o velho Cardoso?
Que signifiquei eu para ele?
Jerónimo sorriu, procurando sintetizar a resposta em poucas palavras.
— No século passado, vivia riquíssimo proprietário rural -em Lisboa, Portugal, conhecido por comendador Henrique Paiva Azevedo, o qual se apoiava desaforadamente na política da época.
Era um homem sovina, coração empedernido, inescrupuloso, egoísta e insaciável.
Sua fortuna e propriedades cresciam dia a dia através de processos maquiavélicos contra os mais desvalidos, num roubo sistemático de terras dos ingénuos.
Explorava os aldeões, sequestrando-lhes os bens com documentos viciados, responsável por muitos desesperos e fugas das vítimas espoliadas.
— Esse homem fui eu, não é assim? — interrompeu Leonardo, afoito.
— Não! Esse homem foi o velho Cardoso da última existência!
E conforme você mesmo pôde avaliar, ele quase nada progrediu como madeireiro sovina no Brasil!
— Mas, então, porque situei-me junto dele, sofrendo-lhe as sovinices e perturbando-me devido à sua impiedade?
Por que deixou-me à míngua, impassível, ante a ruiva do lar e a .desgraça de meus filhos?
Jerónimo ficou silencioso, reflectindo no que devia dizer, e parecia usufruir do odor delicioso das pitangueiras e guabirobeiras, cheias de pardais e pintassilgos sacudindo-lhes os frutos vermelhos e dourados.
Depois falou:
— Henrique Paiva de Azevedo não poderia efectivar quaisquer empreendimentos inescrupulosos e assaltos ao património alheio, se não dispusesse de instrumentos vivos capazes de lhe assegurarem a cobertura dos seus propósitos desonestos.
Para esse fim, ele contava com a fidelidade canina do capitão Lamontano e cinco soldados, indivíduos inescrupulosos, bem pagos e protegidos pela política local.
Leonardo teve um pressentimento.
— Como se chamou esse capitão em nova existência. carnal?
Jerónimo riu, sem malícia, dizendo significativamente:
— Não devemos dramatizar as, consequências que nos proporcionam a ventura espiritual, mas o capitão Lamontano retornou à Terra na figura de um tal Leonardo, e os praças que tanto o ajudavam em suas proezas inescrupulosas, nasceram-lhe como filhos: Marqueito, Odilon, Hilário e Leontino, o caçula.
Aliás, Lamontano, cujo espírito despertava em consciência, às vezes sentia remorsos e decidia-se a abandonar a vida censurável; entretanto, havia Carmela, sua amante, mulher ociosa e bonita, que o estimulava a proceder assim, para se manter na fartura e no luxo.
Não importava àquela mulher tola e vaidosa, a fome e a miséria dos outros, desde que ela pudesse aproveitar a vida e ostentar suas pedrarias e jóias valiosas, ou participar dos banquetes e festividades junto ao seu "capitão"!
Quantas moças haviam se prostituído ou se desgraçado, só para ela acrescentar mais rubis aos anéis, mais diamantes aos brincos ou pérolas aos colares?
Leonardo olhou demoradamente para Jerónimo, fez um gesto de compreensão e aduziu:
— Belinda, não é?
— Hum! Hum! — fez Jerónimo assentindo com a cabeça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:07 pm

— O velho Cardoso, então foi minha "lixa" da última vez?
Contudo, eu não era seu amigo, no passado?
— A Lei imantou você junto dele, porém, desta vez em situação de penúria e súplica, e o fez conhecer e sentir na própria pele, o efeito do egoísmo, da sovinice e maldade do. astuto comparsa do passado!
— Bem, eu comprometi-me com a Lei e fui "lixado' pelo próprio espírito daninho a que servi fielmente no pretérito;. mas porque isso também não ocorreu com ele, ex-Henrique.
Paiva de Azevedo, transformado posteriormente em Joaquim. Cardoso?
Jerónimo fixou o olhar sobre uma pequena elevação a uns 50 metros distantes e Leonardo também pôde distinguir alguns espíritos, que ali pareciam ter pousado naquele momento.
— Você já possui mais sensibilidade para entender e aproveitar com certa consciência o curso rectificador espiritual; assim, poderia sofrer mais em seu próprio benefício cármico.
O velho Cardoso, espírito bastante "compacto" (2) ainda não poderia elucidar-se espiritualmente nas próprias vicissitudes e dores morais.
Por enquanto, ele vai mobilizando as energias animalizadas e o egoísmo do "eu" inferior, no sentido de compensar os males praticados contra seus irmãos, desenvolvendo, acumulando e pagando com juros o que explorou e se apossou dos outros.
E fazendo um sinal amistoso aos recém-chegados, Jerónimo acrescentou:
— O velho Cardoso trabalhou como um mouro, na última existência, privando-se até de pequenas alegrias pessoais, castigado pela sua própria sovinice, calculando e recalculando a fortuna fabulosa que terá de deixar para 47 descendentes, como filhos, filhas, noras, genros e netos, devolvendo a essas vítimas do passado, uma boa percentagem do que lhes roubou em Lisboa, quando era o avarento e corrupto Henrique Paiva de Azevedo!
Dando a mão a Leonardo e à outra entidade mais próxima, Jerónimo ordenou ao grupo formado por oito espíritos:
— Vamos, meus amigos!
A segurança e o êxito de nossa volição depende fundamentalmente da harmonia de pensamentos e confiança recíproca.
Num impulso mental evolutivo, todos alçaram-se acima do solo terráqueo e momentos depois desapareceram no seio da cortina etérea iluminada pelo Sol no firmamento cerúleo, levando mais um filho que a Lei fizera resgatar através da dor e vicissitude o seu débito contraído com o próprio planeta!

(1) N. de Atanagildo: — Lixar, termo muito usado no Espaço, para definir o polimento cármico que se processa entre desafectos ou adversários do passado, quando defrontados em existências posteriores.
(2) Termo usado no Espaço no sentido de nomear-se o espírito "não vibrátil" às injunções da consciência espiritual.
É a entidade primária e inconsciente, muito subjugada pelo automatismo instintivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:07 pm

10 - UM MAU NEGÓCIO
Claudionor recostava-se na janela do vagão luxuoso da "Central do Brasil", e olhava o rio que acompanhava teimosamente a linha férrea e as vezes parecia querer beijar a ponta dos dormentes.
O rio sumia-se atrás dos morros, para surgir numa curva imprevista, debaixo dos pontilhões de cimento, ou se mostrava entre as clareiras dos bosques.
Havia próximo à estrada casas esbranquiçadas, casebres de madeira polida, ou caprichosas vivendas entre jardins floridos.
As árvores, à margem dos trilhos de ferro, corriam rapidamente em sentido contrário ao comboio, numa fuga veloz.
A paisagem também ia se modificando, pouco a pouco, cada vez mais limpa de arvoredos e pontilhada de pequeninos regatos entre as pedras polidas, à medida que a serpente de aço descia a serra avançando para o litoral carioca e deixando à retaguarda punhados de fumaça escura como novelos de lã suja.
Ao longe despontava Guaratinguetá, mostrando as torres brancas de suas igrejas, o casario espalhado à beira do rio e a ponte de cimento, comprida e de pernas esguias.
Claudionor embevecia-se, venturoso, à perspectiva de chegar ao Rio, a Cidade Maravilhosa.
Ansiava conhecer o mundo de sonhos, de cores, de luzes, e de Copacabana, a praia mais linda do mundo e o recanto das mulheres mais formosas.
Ele fremia, impaciente, só à perspectiva de se defrontar com as louras cobreadas Sol ou as morenas alouradas, cujos corpos ondulantes e quase" despidos descansariam dos guarda-sóis coloridos.
Tinha dezassete anos e o pai, Eduardo Pereira Benevides, tipo de industrial feito por si mesmo" e emigrado criança de Portugal, possuía uma das grandes fortunas paulistas.
Ele mandara o filho cursar direito no Rio de Janeiro, pois a seu ver, um advogado formado na Capital Federal valia mais do que qualquer outro diplomado em S. Paulo.
Benevides, sovina e desleixado, um mouro a trabalhar dia e noite, dono do bastante para viver quinhentos anos, fazia questão de que o último filho fosse "doutor".
Infelizmente, na luta fatigante para vencer na vida, ele não pudera proporcionar a mesma coisa aos dois filhos mais velhos, Camilo e Cristiano, casados e gerentes das filiais de Sorocaba e Campinas, homens feitos e de responsabilidade.
Tereza, a única filha, havia-se casado muito bem com Don Marqueito, um dos melhores fornecedores de matéria-prima às indústrias de artefactos metálicos.
Restava só Claudionor, nascido em "berço esplêndido" e destinado a enfeitar a família Benevides com a indefectível moldura académica.
— Este menino não puxou a família — dizia Benevides, sorridente.
Ah! Isso não!
Claudionor é de outra têmpera; um rapaz inteligente!
Muito inteligente!
E num largo gesto, espalmando as mãos, completava a frase ingénua:
— Quem haveria ele de puxar?
A mim, que fugi da escola no segundo ano primário?
Ou a ti, Margarida, que és uma analfabeta?
— Obrigada pela parte que me toca! — respondia a esposa num tom conformado.
Camilo, o mais velho, não era homem de estudos ou cultura; mas tinha espírito aguçado, irónico e interferia:
— Claudionor inteligente?
Bondade sua, pai!
O senhor confunde esperteza com inteligência, por que ele já nasceu filho de pai rico!
Queria vê-lo trabalhar no duro, de madrugada a noite alta, como nós o fizemos!
E depois de levantar-se da mesa, vendo o pai na espreguiçadeira, as calças abaixo do umbigo e a esgravatar os dentes de modo fragoroso, Camilo acrescentava, gozador:
— Claudionor, mal botou calças compridas, disparou atrás de toda saia que passava pela rua!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:07 pm

Pelo menos, aí nesse caso, ele deve ter puxado alguém da família!
Isso eu garanto!
E riu de um modo sacudido e cínico.
— Seu indecente; pensa que ando atrás das mulheres?
Que seria capaz de me deixar explorar por essas serigaitas? — respondia Benevides, de olhos fuzilando.
Chegado ao Rio, Claudionor fez questão de se hospedar num hotel modesto, na proximidade de Copacabana, reservando o dinheiro economizado para as despesas do transporte de bonde até o centro a cidade.
Adiou a matrícula por mais alguns dias e fez questão de primeiramente conhecer os lugares mais pitorescos, num reconhecimento antecipado à campanha de prazeres e divertimentos, que já havia programado.
Deliciava-se ante a forma exuberante das moças cariocas esparramadas pela areia branca de Copacabana, num festival de carnes e cores vistosas.
Tudo lhe era novidade e movimentava-se como um príncipe num reino encantado e mal se continha de apregoar ao mulherio que ele era o filho de Benevides, um dos mais ricos industriais paulistas.
Todavia, franzia o nariz, aborrecido, ao se lembrar da faculdade de Direito, onde deveria ficar retido pela manhã na tarefa inglória de estudar para ser o primeiro doutor na família.
Não sentia propensão para o estudo, pois arrastara-se no curso ginasial simulando doenças para justificar ao velho as reprovações freqüentes.
Não precisava se preocupar com o futuro, pois a fortuna a ser herdada pela morte do pai, dar-lhe-ia para viver folgadamente o resto da existência, sobrando-lhe fartura de tempo para a caça de mulheres.
Claudionor, um mês depois de estagiar no Rio, já era conhecido como filho de rico industrial de metalúrgica paulista cursando Direito.
Isso o tornava um centro de atracção dos olhares cobiçosos das moças casadoiras, quando frequentava a residência dos colegas mais abastados.
Mostrava-se cortês, recatado e maneiroso, aparentando conduta exemplar; mas à noite sumia-se para o outro extremo do bairro em companhia de colegas mais tarimbados, em busca de farras nas boates e orgias nos apartamentos de reuniões clandestinas.
No entanto saturou-se dos excessos prazenteiros, além das severas admoestações que recebia do velho Benevides em face da prodigalidade de gastos nas aventuras menos dignas.
Claudionor logo reconheceu a necessidade de um hiato em sua vida dissoluta, necessitando de um repouso para o corpo fatigado pelos excessos censuráveis.
Foi nessa época que ele conheceu Lucília, numa festividade campestre, em Niterói.
Chamou-lhe atenção os traços finos de um rosto seráfico, a revelar alma terna e boa, num semblante sereno e recatado.
Lucília surgia-lhe como um refrigério abafando o calor de suas paixões agitadas.
Era o sedativo almejado para uma juventude inquieta e neurótica!
Moça tranquila, de linguagem simples e elevada, sem os cacoetes das jovens modernas e as histerias pelos cantores hermafroditas, significava a fonte de água pura a mitigar-lhe a sede insatisfeita na água poluída do mundo!
Ele sentiu por ela estranha paixão, reconhecendo-se cansado do cinismo, do primarismo e do deboche das mulheres pervertidas!
Ela descendia de família pobre, mas de bom renome.
Seu pai falecera num desastre da Central do Brasil, onde chefiava comboios, enquanto sua mãe, professora do curso secundário, conseguira criar a filha de modo digno e diplomá-la em Filosofia.
Claudionor não era bonito, embora simpático e muito jovial.
Robusto e atarracado, de olhos miúdos e piscantes num rosto amorenado, tinha os lábios cheios e traía nos gestos uma agressividade sensual.
Lucília, percebendo-lhe o desejo ardente, pôs-se instintivamente em guarda, como a sensitiva ante o toque estranho.
Não o repudiava, movida por qualquer impulso ou sentimento hostil, e às vezes chegou a crer tê-lo conhecido alhures.
Claudionor mobilizou todas as energias, astúcia e eloquência para conquistar a moça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 25, 2021 7:07 pm

Nenhum homem foi mais cortês, atencioso e respeitoso do que ele em assediá-la por todos os meios.
Enviava-lhe flores em belos estojos sob os mais simples pretextos.
Presenteava-lhe com livros raros de poesia e obras de boa literatura, que lhe tocavam o coração.
Jamais retornava de S. Paulo sem trazer lembranças delicadas ou presentes valiosos.
Finalmente, insinuou-se na amizade de dona Helena, mãe de Lucília, convocando a cooperação materna a seu favor.
Movimentou colegas e incentivou amigos, que se encarregaram de fazer chegar até Lucília as melhores referências a seu respeito.
Cursava o terceiro ano de Direito e atirou-se ao estudo com ânimo e dedicação, certo de que isso também contribuiria para elevá-lo no conceito da jovem amada!
Dona Helena, extasiada pela generosidade e a afeição de Claudionor, passou a influir de modo persistente no ânimo da filha, louvando sempre os excelentes predicados do moço paulista.
— Lucília! — dizia ela, num tom conselheiro — Claudionor é um moço recatado, ajuizado e sensato, alimentando os mais belos propósitos de vida.
Não sou eu quem o diz, mas esta é a opinião de todos que o conhecem.
Aliás, ele devota a você a mais sublime idolatria e exalta suas qualidades de moça acima das ilusões e futilidades do mundo.
— Mãe! — retorquia Lucília.
Não tenho motivos plausíveis para antipatizar-me com Claudionor, porque ele sempre me tratou com gentileza e respeito.
No entanto, fico angustiada e sob estranho temor, só por imaginar-me sua noiva!
Por que esse presságio desagradável, mãe?
— Filha! Todos nós tememos o futuro, o qual só a Deus pertence.
Qualquer perspectiva de modificação em nossa vida, desperta-nos uma série de pressentimentos bons ou maus.
Isso, as vezes, não passa de um excesso da imaginação ou talvez de um pessimismo injustificável.
Não quero influir no seu destino, mas acredito:
Claudionor faria você muito feliz!
A sugestão materna, suave mas convincente e a pintura sempre generosa de Claudionor por parte dos amigos e conhecidos, asseguraram-lhe um alto gabarito moral e terminaram por vencer a resistência de Lucília, que passou a aceitar-lhe a côrte.
Meses depois, então Lucília principiou a viver uma onda de passeios, teatros, festividades, cinemas, bailes e ceias nos melhores restaurantes da cidade.
Claudionor, felicíssimo, despendia todas as horas disponíveis no doce aconchego da amizade pura de dona Helena e do amor suave de Lucília!
Ele se encontrava no quinto ano de Direito e contrariando os protestos da família Benevides, que não o queriam casado com "moça pobre", noivou e marcou os esponsais para em seguida do término do curso de Bacharel.
Assim, à custa de assédios calculados, obséquios inumeráveis e influência dos amigos junto ao objecto de sua paixão, Claudionor não somente conquistara Lucília, como ainda conseguira neutralizar o mais sério rival: Odílio.
Moço de excelentes qualidades morais, anteriormente gozara a perspectiva de ser o eleito do coração de Lucília.
Findava o ano de 1930 e Claudionor colava grau de Bacharel em atraente festividade no Teatro Municipal.
Dias depois, os novos bacharéis solicitaram auxílio ao governo a fim de visitarem Buenos Aires, numa caravana para efectivar melhor contacto com a cultura e instituições jurídicas portenhas.
Antes de viajar, sempre gentil e atencioso, Claudionor elaborou longa lista de todos os apetrechos que deveriam compor o enxoval de Lucília, submetendo sua escolha à orientação de dona Helena, que protestava, surpresa, pela sumptuosidade das peças a serem encomendadas.
— Querida Lucília, — dizia ele, jovial, — o melhor e o mais formoso do mundo ainda é muito pouco para você!
Quero fazê-la a mulher mais feliz do mundo.
Chegara o dia da festiva excursão; o navio pintado de branco, afastou-se, lentamente, do cais "Pharoux", singrando leve as águas da Guanabara, e deixando um rendilhado de espumas.
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