LUZ ESPÍRITA
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:16 pm

Quando o médico informou ao velho Genaro de que a filha poderia salvar-se, mas ficaria perturbada do cérebro, ou então aleijada para o resto da vida, os efeitos do vinho logo desapareceram e ele ensopou o lenço de lágrimas sentidas.
Mas a filha querida era moça vigorosa, com o viço do bom sangue europeu e contrariou o prognóstico médico sobrevivendo sem qualquer lesão cerebral, embora com o braço esquerdo defeituoso.
Sucediam-se os meses e ela sofria, decepcionada, porque não se manifestava nenhum prenúncio de gravidez que a faria tão feliz.
Submeteu-se a toda sorte de "testes" ginecológicos e exames apropriados ao caso, e foi informada de que não poderia procriar, porquanto a meningite havia lhe afectada os elementos e genes responsáveis pela concepção.
Depois de dois anos de esterilidade, ela e Jamur decidiram-se a adoptar uma criança e escolheram na "Maternidade Victor do Amaral", um robusto menino com alguns dias de vida.
Don Genaro, fanatizado pelo "bel canto", escolheu para o neto adoptivo o nome de Manrico, em honra do personagem principal de "Il Trovatore".
O menino cresceu robusto, de rara beleza e afável de génio, singularmente parecido com Cristina, que punha nele toda ternura e amor.
Infelizmente, ao retornarem de uma festinha íntima de família, em noite escura, fria e desagradável, sob forte garoa própria do mês frígido de junho, Manrico apanhou grave pneumonia.
Malgrado todos os esforços médicos e recursos terapêuticos da época, ele expirou, deixando Cristina enlouquecida de dor e Jamur verdadeiramente atarantado sob a sina tão cruel.
A desolação habitou aquele lar por uns dois anos; depois, superexcitada no seu amor materno, Cristina sentiu necessidade de preencher novamente o vazio deixado pela morte de Manrico.
Consultou Jamur e resolveram adoptar outro menino a fim de compensar a dor e a ausência do primeiro filho adoptivo desaparecido tão prematuramente.
Trouxeram para o lar outro recém-nascido, extraordinariamente semelhante a Manrico.
Mas desta vez Cristina deu-lhe o nome bem brasileiro de Eduardo, contrariando a preferência de Don Genaro, que já havia cogitado de homenagear outro personagem de ópera.
Novamente eles viram o segundo filho adoptivo crescer robusto e vivaz, mostrando-se tão terno e dócil quanto fora Manrico.
Quando Eduardinho completou quatro anos de idade, a sua festa de aniversário coincidiu com um domingo esplêndido e ensolarado.
A criançada miúda corria espevitada pelo jardim.
Na mesa do aniversariante e em torno de um artístico bolo simulando um castelo com 4 velas de "açúcar-candi", distribuíam-se todos os tipos de doces e guloseimas; brigadeiros, língua de sogra, canudinhos, beijinhos de côco, cajuzinhos, pastéiszinhos, empadas e queijadinhas.
As travessas estavam fartas de presuntos, fatias de queijo, azeitonas, "frios" e "pickles", além das formas caprichosas com as tortas de pêssego, maçã e uva.
Cristina movia-se, feliz, por entre os convidados, amigos e vizinhos, agradecendo os cumprimentos pelo quarto aniversário do menino garrulo e de temperamento bom, querido da vizinhança.
Eram quase seis horas da tarde e o Sol descia no poente, despedindo seus raios chamejantes e escondendo-se atrás do casario a fazer sombras pelas ruas calçadas com paralelepípedos.
Jamur retornava do encontro desportivo do seu clube predilecto e descia do ônibus, duas quadras além de sua residência.
De lá ele viu os meninos correndo buliçosos pelo jardim e pelas calçadas, e acenou para Eduardinho, como o fazia habitualmente.
O menino, num gesto impetuoso e entusiasta, arremessou-se ao encontro do pai adoptivo, o rosto corado, lábios entreabertos e as mãos erguidas pelo alvoroço.
Jamur curvou-se, à entrada da ponte de cimento que cobria o riacho Tibagí, no centro da rua, à meia quadra da residência, e abriu os braços para receber Eduardinho no seu impacto afectivo.
Mas, de súbito, num grito alucinado, Jamur saltou para a frente; porém era tarde!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:16 pm

Eduardinho, na ânsia de correr para ele e abraçá-lo, ao sair das sombras das casas, recebeu os raios solares, que o cegaram por um momento, fazendo-o errar por dois palmos a ponte cimentada, indo espatifar a cabeça no leito pedregoso do pequeno rio a três metros abaixo.
Quando Jamur saltou num desespero louco e ergueu-o, Eduardinho estava nos últimos estertores de vida.
Não havia se afogado, pois ali corria pouca água; mas partira o crânio de encontro às pedras.
A água continuava a correr, tranquila, mas agora manchada de sangue e de alguns fragmentos de miolos do gentil menino.
A gritaria da criançada atraiu Cristina que correu desabaladamente para a ponte e ali estacou, de olhos enxutos, sem soltar uma só lágrima, ante o quadro trágico de Jamur caminhando pelo leito do rio raso, com o cadáver de Eduardinho nos braços e manchado de sangue.
Ela apenas levou a mão ao peito e desmaiou, e dali atingiu um estado de- coma nervosa que ameaçou-lhe a vida por alguns dias.
Então a existência de Cristina foi uma desventura e ela nunca se conformou com a impiedosa fatalidade do destino.
Perdeu o gosto pela vida e tornou-se apática às emoções mais excitantes.
Malgrado todo o esforço de Jamur para consolá-la, Cristina transformou-se numa companheira desolada, embora sem negar-lhe o afecto justo de esposa.
Três anos após, tentando despertar-lhe algum interesse pela vida, Jamur, Don Genaro e outros familiares engendraram uma peça; puseram-lhe à porta, em noite alta, um menino que haviam retirado de uma creche espírita.
Cristina rejeitou, de início, a possibilidade de criar mais um filho adoptivo; porém, em face de sua própria afeição materna despertada pelo amor materno aos dois primeiros filhos, ela não resistiu e acedeu ao apelo de Jamur.
Vibrava-lhe na alma, novamente, o instinto de mãe, fazendo-a compreender que jamais viveria tranquila se não pudesse tributar o sentimento materno a alguém.
Desta vez Jamur deu ao menino o nome de Elias, em memória do seu avô paterno.
Ele teve uma infância comum a todos os demais meninos, com as preocupações decorrentes da dentição, da coqueluche e do sarampo, cujas condições dolorosas parecem adestrar o espírito encarnado para as dores piores do futuro.
Infelizmente, bem cedo, Elias revelou-se um menino genioso; irritante e destruidor, sem qualquer semelhança com a bondade e a ternura de Manrico e Eduardinho.
Além de mau carácter, ele se fazia cada vez mais antipático à vizinhança, pois esbordoava cães e gatos, liquidava pássaros que caíam ao seu alcance e destruía ninhos, insectos e vermes.
Comprazia-se em arrancar os botões das flores e os frutos verdes.
Quebrava os brinquedos dos companheiros e deprezava enfeites e bijuterias.
Era brusco, intolerante e obstinado em suas façanhas malévolas.
Aos treze anos mostrava-se adverso ao pai e mal se continha diante das suaves advertências de Cristina.
Jamur mobilizou toda sua inteligência, fez mil promessas de recompensas para induzir Elias a estudar e trabalhar.
Mas tudo era em vão, pois o menino era vadio, inepto e cultivava as piores amizades do seu bairro. Quando ele atingiu os dezoito anos, os pais adoptivos tinham a alma estigmatizada por dolorosas cicatrizes e sentiam-se completamente exauridos pelo esforço desditoso de criar aquele filho bruto, indócil e inescrupuloso.
Cristina vendera todas as jóias para cobrir inúmeras falcatruas e cheques falsos de Elias, enquanto Jamur havia empenhado alguns salários a fim de evitar a prisão infamante do filho adoptivo.
Elias, sem qualquer escrúpulo, apossava-se de todos os valores e bens dos pais, para os consumir em noitadas festivas nos prostíbulos mais reles da cidade!
Finalmente, em "dia aziago", ele descobriu que não era filho legítimo de Cristina e Jamur; isso deixou-o furioso e revoltado.
Aproveitando-se da ausência deles, Elias apossou-se de objectos, utensílios e valores que pôde carregar, fugindo em companhia de mulher de má fama para o Norte do Paraná.
Lá passou a cometer toda sorte de tropelias e vigarices até ser processado por estelionato e condenado a 5 anos de prisão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:17 pm

Cristina, a mulher belíssima de olhos de jabuticaba e pele sedosa dos primeiros anos de casada, transformou-se numa criatura de faces macilentas, cabelos esbranquiçados a coroar-lhe um rosto fatigado e triste.
Deixara-se arrasar por uma dor invencível e imensurável.
Sua alma obstinava-se descrente de tudo, num protesto mudo e doloroso ao mundo que lhe traíra os sonhos mais venturosos.
Ninguém mais viu-a cantar com sua voz doce e cristalina, as deliciosas canções de "Maggio de Ammore" ou "Soto La Luna"; ou mesmo rir, como antes o fazia tão facilmente.
A Lei Espiritual, que é magnânima, por isso proporcionou o esclarecimento a Cristina no momento oportuno.
Certa noite de turbulenta tempestade, ela fora obrigada a pernoitar na residência de Nilza, sua irmã casada com Dagoberto — ardoroso espírita —, justamente quando deviam realizar tradicional sessão mediúnica semanal.
Embora constrangida e desinteressada daquela reunião espírita, ela se viu obrigada a assisti-la por consideração e educação, além da amizade à irmã.
Salustiano, o espírito mentor dos trabalhos mediúnicos da casa, depois de transmitir sua mensagem inicial, dirigiu-se à Cristina; fui encarregado de proporcionar-vos algum consolo e esclarecimento sobre os motivos de vossa vida e dores no mundo terreno.
Neste momento, alguns amigos desencarnados ministram-vos fluidos sedativos e avivam vossa memória espiritual do passado, a fim de compreenderdes a significação da história que irei expor.
Malgrado sua descrença, Cristina sentiu-se reanimada pela primeira vez, após anos de sofrimento cruciante.
Depois de mais algumas palavras afectuosas Salustiano prosseguiu:
— No século passado, em Catânia, cidade da província de Sicília, na Itália, uma bela jovem chamada Angelita casou-se com Marcelo, moço pobre, honesto, laborioso e criatura de alma excelente.
Cinco anos depois eles já possuíam alguns bens em jóias e títulos, cujos valores esperavam transaccioná-los para construírem o lar sonhado.
Mas entre os dois cônjuges acentuava-se dia a dia a visível diferença emotiva e espiritual, pois enquanto Marcelo adorava o aconchego do lar e o entretenimento com os filhos, Angelita, temperamento inconformado e indócil, rebelava-se contra os deveres prosaicos domésticos tendendo dia a dia para uma vida fútil e improdutiva.
Ausentava-se a miúde de casa na companhia de vizinhas volúveis, buscando divertimentos tolos e perigosos, olvidando o carinho materno aos filhos, ou interpretando como timidez e servilismo a tolerância espiritual do esposo.
Irritava-se frequentemente, procurando justificativas inconsistentes para os desmazelos e imprudência de sua vida.
Nessa época, instalou-se em Catânia uma companhia de espectáculos de variedades onde se destacava um jovem intérprete de "canzonettas" regionais.
Era um rapagão de porte vistoso, muito preocupado com a aparência física.
Maneiroso nos gestos e esforçando-se para impressionar favoravelmente as moças casadoiras do vilarejo.
Não possuía voz incomum ou de louvável timbre musical, mas a habilidade em combinar a mímica aos trechos mais românticos, distinguiam-no em alguns dias felizes comovendo a plateia feminina.
Entretanto, o cantor não gozava de boa fama; acoimavam-no de mulherengo, atrevido e responsável por muitas frustrações nos corações de moças imprudentes.
Angelita, inconformada com a existência apagada junto dos filhos incómodos e do esposo excessivamente caseiro, não deu crédito às notícias desairosas a respeito do cantor.
Ansiosa por se libertar dos deveres humilhantes e prosaicos do lar, passou a lhe corresponder ao assédio galanteador e capcioso.
Ele via nela excelente presa para explorar.
Num dia infeliz, Angelita valendo-se da ausência do esposo apanhou todas as jóias e haveres fáceis de conduzir, para fugir de Catânia em companhia do galã inescrupuloso.
Ele viveu com Angelita apenas o tempo suficiente para lhe dissipar a pequena fortuna roubada ao esposo.
Em seguida abandonou-a em cidade estranha e distante.
Desesperada e na miséria, Angelita findou-se aos poucos, na prostituição, arrependida da falta de amor materno aos filhos e da traição ao esposo amigo e fiel!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:17 pm

O guia Salustiano fez uma pausa em sua narrativa, parecendo medir o efeito das palavras seguintes:
— O espírito de Angelita retornou à Terra, encarnando-se na cidade de Curitiba, a fim de se ressarcir do passado delituoso e despertar o sentimento materno atrofiado no pretérito.
Sob a regência da própria Lei Cármica preparando-lhe a rectificação espiritual, Angelita foi acometida de meningite na própria noite do casamento e assim ficou impedida de procriar os filhos, a cuja graça não fizera jus na vida anterior.
Desolada pela falta de filhos no lar tristemente vazio, ela foi à maternidade e adoptou uma criança atraente, que avivou-lhe os sentimentos de mãe e próprios da mulher.
Mas se a Lei é justa também é implacável, e levou-lhe o filho aos três anos de idade, vitimado por uma enfermidade pulmonar incurável.
Malgrado à dor irrecuperável devido à perda do menino, porém excitada na sua primeira experiência maternal, Angelita adoptou outra criança semelhante ao primeiro filho falecido.
Infelizmente, o segundo filho também findou tragicamente no dia do seu quarto aniversário, depois de adestrá-la no sentimento materno cada vez mais intenso, e prepará-la para o vento cármico tormentoso de criar o terceiro filho ignóbil, inescrupuloso e ingrato.
Os dois primeiros filhos, belos, bons e generosos, activaram-lhe a paixão de mãe até o estoicismo dela poder suportar e criar o terceiro adoptivo desclassificado.
Salustiano interrompeu sua narrativa, enquanto Cristina sentia-se profundamente abalada no recesso do ser.
Malgrado alguma descrença, ela indagou sem vacilação:
— Porventura os dois primeiros filhos dessa Angelita deveriam morrer prematuramente, só para que sua mãe fosse castigada dos pecados da vida pregressa?
— É conveniente lembrarmos, querida irmã, que não há castigo no processo de rectificação cármica, mas apenas reeducação dos nossos sentimentos no sentido de recuperarmos a ventura perdida através de nossa inteligência espiritual.
Os dois meninos desencarnados prematuramente eram encarnações de um mesmo espírito, que através de poucos anos de vida física descera à carne para processar a "descarga" dos fluidos tóxicos aderidos ao seu perispírito e transferi-los para o "mata-borrão" do corpo terreno.
Era uma entidade amiga de Angelita, que havia aceitado o encargo de incentivar o sentimento materno da mãe adoptiva, para a ajudar no bom êxito da prova cármica de reajuste espiritual.
— Porventura o esposo de Angelita, nessa existência, também não sofreu a prova dolorosa de perder os filhos adoptivos, quando não lhe cabia a responsabilidade do adestramento materno da esposa?
— Irmã Cristina, não há injustiça na pedagogia espiritual, pois o esposo de Angelita, nesse transe doloroso, também resgatou suas mazelas espirituais do passado e devido a culpas semelhantes.
Cristina silenciou alguns momentos, ainda confusa pela imperícia de julgar o que lhe era desconhecido, mas traía certo abalo espiritual, ante a clareza e a lógica daquela história absolutamente igual ao seu próprio drama terreno.
— E por que só sobreviveu o terceiro filho vadio, cruel e inescrupuloso, ao invés dos dois primeiros filhos, belo; bons e gratos?
Salustiano parecia meditar profundamente antes de responder.
Depois decidiu-se, esclarecendo num tom de profunda advertência espiritual:
— Em nossa romagem terrena não somos obrigados a ligar-nos com espíritos imperfeitos, primários e sem discernimento; mas seremos irremediavelmente imantados às criaturas inferiores atraídas para a nossa órbita espiritual, seja por um interesse menos digno ou imprudência.
Escolhemos os companheiros e teremos de suportar pacientemente as ingratidões, mazelas e tropelias próprias do padrão espiritual inferior das almas as quais jungimos aos nossos destinos.
E depois de ansiosa expectativa, Salustiano arrematou, resoluto:
— O terceiro filho de Angelita, inescrupuloso, vadio e cruel, era o cantor de Catânia, que no passado ela imprudentemente o ligou à sua vida, quando abandonou o marido fiel e os filhos amorosos.
Espírito primário e defeituoso que a prejudicara no pretérito, pela sedução física, fê-la sofrer novamente na actual existência, atraído pela lei de que a "semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória"!
Enquanto Salustiano quedava-se, comovido, Cristina não conseguia suster duas lágrimas, que depois rolaram pelo seu rosto torturado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 27, 2021 7:17 pm

13 – HEI-DE SER RICO
Desde criança, Clementino sentia um horror natural pela pobreza e vivia inconformado com a desdita dos pais serem arrasadoramente pobres.
E o pior de tudo:
eles se mostravam bovinamente conformados com a miséria!
Simples ajudante de pedreiro e metido o dia todo no meio da lama viscosa das valas dos alicerces, Marcolino Vieira Guedes, o pai nunca se arriscava à mais singela aventura para sair daquela situação precária.
Era preferível roubar, pensava Clementino decidido, do que viver entre trapos comendo alguns pedaços de xarque velho misturados à passoca de farinha no caldo de feijão ralo.
Imaginava-se frequentemente em aposentos luxuosos revestidos de poltronas de veludo, tapetes macios e valiosos quadros de pintura nas paredes finamente decoradas de aristocrática residência.
Aquilo estava no seu sangue.
Sentia-se eufórico e familiarizado no seio da riqueza.
Divagava longo tempo imaginando essa vida agradável.
Via-se diante da mesa de imbuis com entalhes artísticos e coberta por finíssima toalha de linho toda rendada.
Do forro pendia um rico candelabro pejado de lavores cristalinos e dezenas de velas coloridas.
A luz iluminava jarras de vinho, taças de champagne, pratos de porcelana e talheres de prata.
O criado aparecia de casaca de veludo encarnado e calções de seda branca, como se via frequentemente nos filmes franceses.
Em seguida, ele destampava a terrina fumegante e servia-lhe apetitosa sopa de lentilhas, com muito queijo ralado, acompanhada de pãezinhos frescos e cheirosos.
Depois vinha a "maionese" de salmão rosado, como fazia dona Dora, a esposa do dentista, servindo-se das latas de conserva.
O frango ou leitão assado apareciam enfeitados com farofa de ovos, azeitonas e alfaces, rodeados pelas travessas de "spaghetti" ao molho de tomate e fácil da gente enrolar no garfo.
Na sua imaginação fértil, Clementino estendia-se epicuristicamente a outros pratos dos restaurantes "chies", vistos por ele quando vendia jornais aos fregueses.
Havia "risoto" de camarão ou de galinha, talharim ou "ravioli", sempre acompanhados de saladas coloridas de tomates, alface, couve-flor, vagem, pepino em conservas, nacos de limão e tudo isso nadando num legítimo azeite italiano.
Em sua mente fértil os criados hábeis e treinados, prosseguiam retirando travessas, pratos e talheres, enquanto Marcolino, seu pai, recostava-se no espaldar da poltrona de veludo verde-garrafa, palitando os dentes e bebendo vinho rosado na taça de cristal transparente.
A ceia, farta terminava na imaginação de Clementino, substituída pela sobremesa em pratinhos de porcelana floreada, com muito pêssego ou nacos de abacaxi em calda, além da fartura de uvas, peras, maçãs, morangos e bananas!
Ah! bananas!.
Ele detestava bananas, pois era o alimento habitual dos pobres e às vezes o seu único almoço com um pedaço de pão velho!
Súbito, caía em si, despertando do devaneio tão agradável, pela voz imperiosa e irritada da mãe:
— Clementino!
Deixe de imaginar coisas e almoce, duma vez, antes que a. comida esfrie!
Ele baixava a cabeça para o prato, revoltado da realidade detestável e metia com raiva o garfo de cabo de pau no virado feito de feijão e couve esmolada de dona Malvina, a vizinha, cuja gentileza caritativa tanto o humilhava.
— Ainda hei de ser rico! Hei de ser rico! — obstinava-se, dia a dia, com veemência esotérica.
Não fora feito para aquela vida miserável.
Precisaria ser rico de qualquer forma!
A noite, antes de dormir, punha os braços debaixo da cabeça e fitava o forro de tábuas de pinho, sem pintura e cheias de nós, deixando-se enlevar novamente pela fantasia optimista.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:11 pm

Em sua imaginação exaltada, a enxerga de cetim surrado, o lençol encardido e o cobertor ordinário comprado na "cooperativa", logo se transformavam num leito alvo, emoldurado por travesseiros de fronhas rendadas sobre o colchão bojudo de setim encarnado e crina vegetal.(1)
Clementino espreguiçava-se, contente, antes de vestir o seu pijama de seda azul-claro, rescendendo ao cheiro exótico da "naftalina".
Depois deitava-se, feliz, no leito confortável e tomava o chocolate quentinho, que o criado já devia ter deixado sobre a mesinha de cabeceira.
Em seguida, num gozo inefável, apagava mentalmente as velas perfumadas e cobria-se até o pescoço.
Mas, um olhar mais demorado em redor e o sonho estava desfeito; então fechava os olhos mal curtindo a revolta, para não ver os trapos mal cheirosos da cama pobre!
Um dia, Clementino decidiu-se a realizar o seu sonho.
Deixou um bilhete lacónico sobre a mesa da cozinha, empacotou uma calça e camisa sobressalentes.
Vendeu por ninharia os apetrechos escolares e pondo a mão no bolso da calça do pai, arrebanhou uns minguados tostões.
No seu bilhete de despedida transparecia a desforra melodramática:
"Mãe e pai, vou por este mundo de Deus em busca de riqueza, pois é melhor a gente morrer do que ser pobre.
Me perdoem."
Meteu-se clandestinamente num trem de carga e depois de dois dias e uma noite de sacolejos, fome e sede, chegou a S. Paulo, em manhã triste de Inverno, já arrependido da fuga, mas não podia recuar e ferir o seu amor-próprio.
Naquele dia aziago alimentou-se com a odiosa banana e meio pão seco, guardando sobras para a noite, pois em seu bolso restavam apenas os dois mil réis de prata roubados do pai.
Talvez teria alimento para três dias; mas depois viria a dureza.
Clementino era menino obstinado no seu objectivo de enriquecer e por isso enfrentou o destino sem esmorecimento.
Carregou malas na estação ferroviária, vendeu jornais, revistas e bilhetes de loteria; engraxou sapatos, pôs banca de bicho e juntou pecúlio suficiente para montar pequeno bar em Perdizes.
Mourejando de madrugada à noite, como turco teimoso ou judeu especulador, conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar dois lotes de terrenos em Jaguaré.
Ao completar vinte e três anos de idade ele desposou Florinda, moça pobre e muito vistosa, que as más línguas não lhe atribuíam bons feitos pela sua peculiar volubilidade.
Clementino ainda não usufruía do luxo e da riqueza tão almejados na infância.
Porém, era de prever-se que em breve ele ficaria rico, porque, além de pertinaz no seu objectivo, era inescrupuloso nos negócios.
Entregava-se à sovinice e ninguém conseguia arrancar-lhe um tostão; no entanto, Florinda, a esposa, punha-se toda "coquete" e dramática, conseguindo arrancar-lhe bom dinheiro para consumir em sua existência vaidosa e fútil.
Um ano depois de casado nasciam duas gémeas.
Clementino viu-se obrigado a trabalhar de rijo e privava-se de qualquer diversão ou gasto supérfluo para sustentar o aumento da família.
A sorte ainda não se decidira a seu favor e semeava-lhe surpresas amargas.
Caíra num verdadeiro conto do vigário: os terrenos comprados em Jaguaré estavam hipotecados há tempo pelos vendedores inescrupulosos e sumidos da cidade.
Mal refeito desse prejuízo, enfrenta outro problema oneroso; Florinda estava enterrada de dívidas até o pescoço; em "magazines", lojas de bijuterias, cabeleireiros e ourivesarias, adquirindo tudo em nome do marido e pondo-lhe em perigo a estabilidade comercial de sua firma.
Clementino atolou-se em promissórias para cobrir a dívida vultosa e procurar tomar um fôlego.
Mas a borrasca aumentava e a má sorte o perseguia; a Prefeitura, em empreendimento conjugado com o departamento de água e esgoto, resolveu alargar a rua onde ele tinha a mercearia.
Em breve, a rua ficou toda esburacada, revolvida, atulhada de terra negra e viscosa, entremeada de canos, pedras, esteios, bombas hidráulicas, escavadeiras, caminhões e operários, movimentando-se em todos os sentidos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:12 pm

A água vertia incessantemente do solo e as calçadas estavam imundas, desviando os melhores fregueses. Os operários lambuzavam os pisos de ladrilhos e os balcões de mosaico, na hora do "lanche".
Além disso caía uma chuva miúda e persistente, que retardava a rectificação da rua.
Quando Clementino deu conta de si estava enterrado com dívidas e duplicatas atrasadas, além dos prejuízos provenientes das mercadorias deterioradas pela falta de substituição.
No limiar da falência, ele reuniu todos os credores e transferiu-lhes a mercearia, acrescida de alguns bens domésticos para a cobertura do débito gravoso.
Sem qualquer reserva disponível e desempregado, ele tentou corretagem de seguros, venda de terrenos, troca de automóveis, colocação de títulos patrimoniais de associações desportivas e campestres, enfrentando uma luta desesperada para sobreviver e evitar a escravidão dos empregos assalariados.
Infelizmente, exaurido e fracassando nessas actividades insuficientes para manter o lar com três filhos, pois já havia nascido Hilário, e faltando-lhe a cooperação da mulher cada vez mais entregue à vida mundana e fácil, ele se viu obrigado a procurar emprego de horário fixo.
Então Clementino curvou-se ao destino fatal e aceitou o emprego de montador de fogões em importante metalúrgica paulista, embora o salário minguado mal lhe permitisse alimentar os filhos esfomeados.
Certa noite, ele sonhou que o "Tinhoso", um tipo popular muito conhecido em S. Paulo, chamava-lhe a atenção para um cartaz onde figurava vistoso milhar.
Acordou-se, pela manhã, bastante excitado e recordando perfeitamente o milhar entrevisto no sonho, resolvido a arriscar uma "fèzinha" no bicho, à hora do almoço.
Entretanto, a excitação aumentou, quando percebeu que o número da série do primeiro fogão, montado naquela manhã, era exactamente o do milhar entrevisto em sonho.
Clementino ficou perplexo e o coração a bater precipitadamente no peito, após a coincidência tão singular.
A sorte parecia procurá-lo; e o mais certo seria adquirir um bilhete de loteria da sorte grande para o mesmo dia, pois assim resolveria em definitivo toda a sua preocupação financeira. Sem dúvida, ele agora seria rico, muito rico, concretizando o obstinado sonho alimentado desde a infância!
Incapaz de controlar a sua excitação emotiva, alegou enfermidade na família e saiu à procura do velho Euclides, espécie de abutre que emprestava dinheiro a juros escorchantes para os empregados da metalúrgica.
Finalmente, conseguiu o dinheiro suficiente para comprar um bilhete inteiro.
Sentia-se aflito e o estômago em espasmo, ante a perspectiva de não encontrar o bilhete desejado.
A sorte parecia ajudá-lo pois descobriu que o bilhete fora distribuído à certa agência de Pinheiros.
Clementino alugou um táxi e horas depois, descrente da realidade, acariciava em suas mãos, inteirinho, o bilhete com o milhar exacto.
Retornando ao centro da cidade, acomodou-se no bar da avenida Ipiranga, bem defronte à "Casa da Sorte", e ali ficou, das 12 às 14 horas, fazendo ligeira refeição e namorando a lousa preta, que à tarde deveria expor o resultado da extracção da grande loteria paulista.
As quatorze horas, viu o povo aglomerar-se junto à lousa para conferir os seus "gasparinhos".
Clementino engoliu mais um trago de pinga, e, lentamente, como o jogador epicurista, que chora as cartas no carteado de alta banca, foi-se aproximando, devagar, sem olhar de chofre para os números ali expostos.
Parou, respirou fundo antevendo a sua emoção.
Depois, lentamente, correu os olhos de alto a baixo e de baixo para cima, na lousa negra.
Não! Não era possível!
De princípio ficou surpreso, meio aparvalhado, sem poder dominar o gosto amargo da boca, o aperto no coração.
Fazia o bilhete sacudir-se nas mãos trémulas.
Conferiu novamente a data de extracção do bilhete, comparou o milhar com os números inscritos na tabela.
Devia haver algum engano ou confusão.
Algo estava errado, pois o seu bilhete estava branco, branquíssimo!
Não poderia recuperar nem o mesmo dinheiro!
Custou a se convencer de que não fora premiado, tomado de intensa fraqueza e tremenda sensação de fracasso.
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 5 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:12 pm

Tinha uma vontade imensa de morrer.
Fugir do mundo!
Esconder-se nas montanhas.
Queria ficar quieto, afrouxar os músculos e deixar a cabeça vazia.
O "Tinhoso" havia judiado dele, gozado de sua ambição e candura!
No dia seguinte, comparecia ao emprego, meio febril e zonzo pelo excesso de pinga que ingerira para fugir à realidade e amortecer o desespero, prosseguindo na tarefa inglória de montar fogões.
Dois anos depois, Arminda, a caçula, fazia onze anos de idade, e o major Rodrigues, seu padrinho e muito amigo de Florinda, deu-lhe de presente uma caixa de "bombons" e um envelope fechado com um bilhete inteiro para a sorte grande da lotaria paulista.
Clementino enfrentava situação grave.
Em certos dias não conseguia os proventos necessários para alimentar os filhos.
Florinda dormia até as onze horas, almoçava em algum lugar, fugindo ao cumprimento dos seus deveres conjugais, graças à conformação bovina de Clementino.
No dia da extracção, ele prontificou-se a conferir o bilhete de Arminda, e quando fazia um rápido lanche de pastéis e aperitivos no bar do Português, apareceu o Cardoso, velho amigo do tempo da mercearia e abastado proprietário de inúmeras casas de aluguer.
Conversaram um pouco e Clementino, como precisasse de dinheiro, lembrou-se do bilhete de loteria presenteado a Arminda, e, retirando-o do bolso, numa decisão súbita, estendeu-o para o amigo, fazendo-lhe amistoso convite:
— Cardoso, quer associar comigo na sorte grande, para amanhã?
O amigo pegou o bilhete, mirou-o de cima para baixo e depois retorquiu, num tom surpreso, mas imperativo:
— Sabe, Clementino, é muita coincidência você oferecer justamente o final que eu ando perseguindo há algum tempo!
E devolvendo-lhe o bilhete, considerou num sorriso matreiro.
— Eu acho que a sorte é para um e não para dois; por isso não compro bilhetes de sociedade com ninguém.
Se o sócio estiver de azar, eu também vou no arrastão, não acha?
— Ora, Cardoso; vamos supor que nós dois estamos com sorte?
Eu jogo com a metade e você com a outra metade, e cada um ganha um dinheirão!
— Agradeço, Clementino!
Ë do meu feitio não fazer sociedade em bilhete de lotaria com ninguém.
Ë como diz o ditado: "a sorte não se reparte."
E levantando-se, despediu-se do amigo.
Clementino estava muito necessitado de dinheiro e o valor do bilhete, na época, era boa importância.
Lembrou-se do sonho tão claro e nítido frustrado há dois anos atrás.
Isso fê-lo decidir-se.
Cardoso! — chamou Clementino, fazendo o amigo voltar-se, curioso.
Quer ficar com o bilhete inteiro?
Dou-lhe dez por cento de abatimento, pois a mim não me interessa e prefiro o dinheiro seguro, antes da sorte madrasta.
Quer ficar?
Cardoso apanhando o bilhete, examinou-o outra vez, revendo o número com o final de sua predilecção.
Pensou alguns momentos e depois exclamou:
-- Homem!
Acho que vou ficar.
Sempre andei atrás desse final e parece que o danado agora anda atrás de mim!
Clementino embolsou o dinheiro, satisfeito.
Que lhe adiantaria tentar a sorte no bicho ou na loteria?
Sempre fora de azar e além disso tivera aquela lição amarga, quando o número entrevisto em sonho e confirmado pela série do primeiro fogão montado no dia não lhe dera nem o mesmo dinheiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:12 pm

Sorriu, aliviado, apalpando o dinheiro no bolso:
"mais valia um pássaro na mão do que dois voando".
No outro dia, ele se entretinha na montagem dos fogões para a entrega regular, quando o garoto da seção de mostruário abriu a porta da oficina, gritando para dentro:
— "Seu" Clementino!
Querem falar com o senhor aqui na loja!
Ele subiu os cinco degraus, que separavam a loja da oficina e sob a claridade do Sol a descambar no poente, reconheceu o vulto encorpado do amigo Cardoso junto ao balcão, a assobiar uma valsa romântica, fazendo o acompanhamento.
Com a ponta da bengala batendo no assoalho.
Ao ver Clementino, sua fisionomia iluminou-se num farto sorriso, e abrindo os braços avançou lépido e festivo , dizendo sob intenso entusiasmo:
— Clementino, meu velho!
Já estava nervoso para dar-lhe a boa nova e também cumprir o meu dever!
Meteu a mão no bolso interno do paletó e retirando um envelope, tipo comercial, deu a Clementino, acrescentando-lhe num gesto desenvolto e profundamente cordial.
— Você me deu sorte, homem!
Isso é a sua comissão de agente, meu velho!
Eu não seria tão egoísta de o esquecer!
E batendo-lhe no ombro, jubiloso, exclamou.
— Ganhei a sorte grande com o bilhete que você me vendeu!
Depois saiu apressado e feliz, fazendo acenos amigos para Clementino, que surpreso e atarantado, abriu o envelope e encontrou uma nota de mil cruzeiros: sua comissão de "agente"!
Sentiu tudo rodar em torno de si, uma vontade doida de morrer, atirar-se debaixo do primeiro automóvel ou beber até cair.
Voltou para a oficina, cabisbaixo, sem ver ninguém, sentindo o coração oprimido por um espasmo sufocante e odiosa revolta contra Deus e o mundo.
Apanhou o paletó do armário, e jogando-o sobre o ombro saiu da oficina,
sem dar satisfações ao chefe, que lhe indagava, surpreendido:
— Clementino?! Que há? Homem de Deus!
Entrou no bar do Português e pediu ao garçon, resoluto:
— Traz uma garrafa de "Sussuarana" e um copo!
Encheu o copo de líquido e engoliu a metade num sorvo, encolhendo os ombros para a frente e careteando a valer sob o ardor doloroso da pinga.
Dali por diante sua vida desandou.
Mudava de emprego assim como certas mulheres mudam a cor do cabelo.
Quando deu ciência de si, já era muito tarde para consertar a vida.
Dorinha, a filha mais velha, abandonara o amásio, um cabo da Polícia paulista, e juntamente com Otília, a outra gémea, associaram-se à conhecido proxeneta, montando disfarçado prostíbulo, onde passaram a explorar as jovens incautas.
Meses depois, Arminda, a caçula, juntava-se às irmãs mais velhas na mesma profissão infamante.
Clementino resistiu ao choque, resignado, porquanto ainda vivia preso a ideia fixa e obstinada — ser rico!
Sem dúvida, dera pouca atenção aos filhos, deixando-os lutar desesperadamente para sobreviverem, e isso devia ter-lhes enfraquecido o carácter, desviando-lhes o rumo da vida.
Restavam-lhe os dois filhos homens; Virgílio, com vinte anos e Hilário com vinte e três.
Mas notava serem rapazes astuciosos e cínicos, sempre metidos em negócios embaraçosos e cheirando a contrabando, num trabalho de especulação ou vigarice com outros espertos.
Clementino completara 63 anos de idade.
Estava pobre, reumático, desiludido da família e extremamente envelhecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:12 pm

Vivia das migalhas que os filhos enviavam-lhe dos negócios escusos.
Florinda tinha perdido suas amizades pródigas e vivia desacorçoada, pondo toda culpa de sua desventura no marido.
Certa manhã de julho, ele tiritava de frio junto ao fogão, enfiado num cobertor de lã, esfarrapado, que o cobria dos ombros aos pés, quando Florinda chegou do vendeiro e sem qualquer palavra atirou-lhe sobre os joelhos o jornal da manhã.
Apontando uma notícia ali destacada na primeira página, exclamou, sardónica:
— Leia! Isso talvez faça você mexer-se nessa vida de miséria!
Clementino leu a manchete sem mover um músculo e sentindo o olhar inquisidor da mulher.
Em seguida, num desabafo mórbido, exclamou:
--- Eu já esperava por isso!
A mim é que eles não puxaram!
— Obrigada pelo insulto, seu vagabundo! — clamou Florinda, raivosa e saiu batendo a porta.
Clementino baixou os olhos para o jornal e leu demoradamente todo o tópico acusativo, onde mais uma vez o seu nome era motivo de escândalo.
Suas três filhas eram prostitutas, e de vez em quando viravam notícias de jornal, quando havia conflito e bebedeira nos seus lupanares.(2)
Por quê Hilário e Virgílio, os filhos, também não poderiam ser da mesma tara da mãe?
Lá estava a manchete escandalosa; ambos haviam sido presos pelo crime de "tráfico" e exploração de jovens inexperientes, como proxenetas do mais baixo calado e traficantes de escravas brancas.
Sua vida estava acabada.
Pensou em desistir de tudo; mas havia aquela esperança a lhe palpitar na alma!
Dominava lhe, air da, a ideia fixa alimentada desde a infância; hei de ser rico! Hei de ser rico!
Passaram-se onze anos, após os acontecimentos anteriormente narrados.
Tudo fora esquecido, como acontece na vida de todos os homens.
O Criador, em sua bondade, passa a esponja do esquecimento sobre as dores e alegrias da humanidade, até libertá-la das ilusões do mundo transitório e conduzi-la à verdadeira vida de espirito imortal.
A dor, a decepção, o fracasso e a amargura da Existência humana, terminam por desanimar os homens sempre curvados para o solo, fazendo-os buscarem o alívio e a paz de espírito no céu!
Era uma noite abafadiça.
O prédio espaçoso, construído de alvenaria, de forma rectangular, estava regularmente iluminado na fachada, enquanto as alas compridas e crivadas de janelas, em ambos os lados, mergulhavam na escuridão da noite.
Tratava-se do "Asilo S. Francisco de Assis", edificado no meio de um jardim moderno, pródigo de rosas, cravos, verbenas e dálias, proporcionando suave perfume naquela noite quente.
As mariposas rodopiavam alucinadas em torno das lâmpadas eléctricas e os besouros, zumbindo, desciam em voo picado até a grama do jardim ou das lajotas do caminho, e ali se esparramavam de barriga para cima, movendo inutilmente as patas.
Ali naquele edifício abrigavam-se sessenta velhinhos protegidos pela caridade pública, cujas risadas finas fugiam pelas janelas, lembrando vagamente o balido de ovelhas.
Diversas pessoas sentavam-se defronte às casas.
As janelas estavam escancaradas, devido ao calor excessivo.
Muitas crianças faziam algazarra e corriam pelas calçadas, numa gritaria ensurdecedora.
Mas ninguém percebeu, pelos sentidos físicos, quando surgiram quatro flocos de luzes multicores a flutuarem no Espaço, uns três metros acima do solo.
Os quatro flocos de luz, invisíveis para a visão carnal dos encarnados sem a faculdade de vidência espiritual, logo definiram os seus contornos de espíritos desencarnados, que pousaram delicadamente na grama do jardim, próximo à escadaria, em movimentos graciosos.
Suas auras refulgiam nos matizes lilás, safirino e até um verde-claro suave respingados de formosa fulgência prateada.
Mal chegaram ao solo, o mais idoso dirigiu-se aos outros...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:12 pm

— Deve ser nove horas nos relógios da Terra; isso permite-nos dispor de algum tempo para procedermos a pesquisa "psíco-física" entre os velhinhos do asilo e fazermos o relatório à "Mansuetude".
E continuou num tom explicativo.
— Em face do esgotamento vital do velho Clementino, acredito que não teremos problemas inesperados na sua desencarnação.
— Irmão Luciano, — indagou outra entidade bem moça —depois de Clementino desligado do corpo físico, iremos directamente para "Mansuetude", conforme solicitou-nos irmã Severiana, não é assim?
Luciano passou a mão refulgente sobre os cabelos radiosos, considerando alguns segundos depois:
— Tudo dependerá da reacção "psíco-vital" de Clementino, após o "corte"!
Desconheço a sua especificidade magnética perispiritual!(3)
É evidente que não podemos arrastá-lo até a metrópole "Mansuetude", caso ele se apresente demasiadamente compacto, tornando-se um fardo oneroso.
— E nesse caso, que faremos?
— Vamos deixá-lo no "Agrupamento de Frei Estevam", no Limiar(4) e só voltaremos a buscá-lo depois dele sofrer o expurgo da carga magnética ou "toxicose residual" atractiva dos charcos,(5) no processo técnico disciplinado que o dispense da terapêutica lodosa do astral inferior.
— Aliás, não sei se Clementino possuiu créditos suficientes para merecer uma drenação amistosa! (6)
Luciano ainda reflectiu, um momento, para depois acrescentar:
— Bem! O pedido é de irmã Severiana, e o crédito dela é vultoso na contabilidade divina!
Entretanto, Clementino já não é um ancião exaurido da vitalidade "etéreo-física"? — indagou outro espírito de vasta cabeleira alourada.
— Depende da atracção dele à matéria, pois, em geral, os .velhos são mais renitentes na operação de desencarne do que os jovens, cujo espíritos pendem mais para "cá", pelo menor tempo de encarnados e maior fuga vibratória ao mundo físico.
Oxalá, Clementino não esteja "colado" ao organismo físico, pois se isso acontecer, a sua liberação vai ser de amargar!
Bem, vamos entrar no asilo e cumprirmos nossas tarefas!
Subiram os cinco degraus de pedras do asilo, passando lentamente pela porta, sem abri-la, a qual se iluminou nos relevos do "duplo-etérico".
Logo lhes surgiu à visão perispiritual um longo corredor sob fraca iluminação e ladeado de portas de ambos os lados.
Quase no final, Luciano examinou o número de uma porta, dizendo, categórico:
— É aqui o aposento de Clementino!
Penetraram num quarto modesto e bastante asseado, deparando, num leito simples e confortável, com um velhinho encarquilhado, cuja cabeça, de uma cor castanha desbotada, era emoldurada por um restolho de penugem branca.
Recostava-se nos travesseiros, e arfava bastante fatigado ao respirar, distraindo-se com um rádio transístor colocado sobre a mesinha, junto ao leito e perto de uma campainha ao alcance da mão.
Ele arregalou os olhos, mostrando-se inquieto e auscultando em torno, como se pressentisse a presença dos espíritos luminosos no quarto.
Luciano curvou-se sobre o velhinho e pôs-se a examinar atentamente as irradiações "etéreo-físicas" que lhe fluíam pelo duplo etérico combalido, cujos centros de forças se mostravam bastante apagados, vibrando em cores escuras e diâmetros reduzidos.
Apalpou-lhe os plexos nervosos, correspondentes aos centros de forças perispirituais; desde o frontal até o solar ou abdominal, demorando-se ali num toque profissional.
Tocou-lhe nas pontas dos dedos avivando algumas fulgurações, que logo se apagavam.
Após breve concentração, estendeu as mãos à altura da nuca do velhinho.
Sob a acção do choque imponderável, ele se moveu rápido e desconfiado.
— Não há dúvida, o "insubmisso" Clementino está na hora de partir! — glosou Luciano, o chefe da caravana espiritual.
Encontra-se a caminho da atonia vital e para breve obscurecimento mental. Mas está agarradinho ao corpo!
— Insubmisso? — estranhou, espantado, um dos amigos desencarnados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:13 pm

— Sim, Clementino já fez 73 anos de idade, e, a meu ver,. todo o espírito que teima em permanecer aderido à carne, depois dos setenta anos, é um "insubmisso"!
— Mas não seria pior o suicídio?
Não convém passar dos setenta anos?
— Não me refiro à rebeldia ou fuga deliberada da carne; mas ao "medo" e "agarramento" dos nossos irmãos à "caveira" transitória, como crianças prezas às guloseimas da rua, mas resistindo em voltar para casa, cuja mesa é farta e nutritiva.
— Bem, nós também já vivemos na carne, irmão Luciano, e sabemos que isso só acontece devido à nossa proverbial ignorância da realidade espiritual — comentou outro espírito idoso, de fisionomia morena e queimada pelo Sol.
— Sem dúvida, só a ignorância prende-nos à carne, mesmo depois de massacrados pelo infortúnio e sem qualquer alívio ou recuperação futura.
A libertação benfeitora, pela desintegração orgânica, infunde-nos o pavor do ignoto.
Eis um exemplo: nosso irmão Clementino está com 73 anos de idade, encarquilhado, feio, careca, desdentado, combalido, prezo ao leito por reumatismo e vivendo de caldinhos de gorduras intragáveis.
Na existência física foi ludibriado pela esposa inescrupulosa.
As filhas prostituíram-se e os filhos foram condenados como proxenetas e traficantes de mulheres.
Ele se finda asilado pela caridade alheia, exausto e espoliado na luta inglória de ser rico!
A vida foi-lhe um incessante purgatório, frustrando-lhe os sonhos mais simples e negando-lhe as mínimas alegrias.
Luciano, o venerável espírito, cuja fisionomia maravilhosamente ascética sempre revelava um quê de humorismo sadio, fitou por algum tempo Clementino, a gemer sob o menor esforço físico, acrescentando, apiedado:
— Vocês crêem que, apesar do sofrimento, o velho Clementino deseja abandonar o purgatório terreno e transladar-se, venturoso, para um mundo agradável e repousar da azáfama física?
Bem, então verifiquemos qual é a sua deliberação a esse respeito.
Mobilizando certos fluidos grosseiros, captados no ambiente, Luciano projectou-se num só influxo à altura dos pulmões e do coração do velhinho, endereçando-os simultaneamente à região do "chacra cardíaco" e "laríngeo".
Clementino arfou o peito, angustiado pela falta de ar e esgazeando os olhos aterrorizado.
Num esforço heróico e soltando grunhidos de dor e desespero, pôs-se a bater freneticamente na campainha sobre o criado mudo.
Quando a enfermeira abriu a porta, displicente e acostumada a tais cenas, ele gritou, entre estertores:
-- Socorro! Socorro !
Estou morrendo!
Ai, Jesus! Me acudam, pelo amor de Deus!
A enfermeira aproximou-se e retirando um tubo da gaveta da cómoda, dissolveu um comprimido sedativo em meio copo d'água; ajudou Clementino a tomar e afastou-se, indiferente, deixando-o mais calmo entre .gemidos abafados.
— Dores, tristezas, desenganos, ingratidões, abandono, miséria, falência; sem filhos e sem rumo! — comentou Luciano.
Todavia, o velho Clementino de modo algum deseja trocar o purgatório terrícola pelo Paraíso!
— Achegou-se mais ao enfermo, pousou ternamente as mãos sobre os derradeiros fios de cabelos e numa projecção vigorosa, ideoplástica, associou-lhe imagens à mente, sugerindo-lhe "morrer para descansar"!
Os olhos de Clementino arregalaram-se, outra vez, deixando-o inquieto e desconfiado, com o braço novamente estendido para a campainha.
- Clementino, o "insubmisso", está aterrorizado com a presença da patrulha sideral que o procura! — exclamou Luciano, com um sorriso e aceno cordial.
O pior é que a patrulha o encontrou! — concluiu, num tom divertido, fazendo todos rirem.
Os ponteiros do relógio haviam se cruzado na meia-noite, quando os mesmos espíritos retornaram da visita feita aos demais aposentos dos velhinhos ali recolhidos.
O silêncio era total.
Os asilados dormiam, salvo alguns enfermos tomados de achaques, que perturbavam o cochilo das enfermeiras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:13 pm

Lá fora cessara o barulho das crianças pelas calçadas e os moradores entregavam-se ao sono confortador.
Clementino tinha a respiração entrecortada e estremecia, por vezes, em movimentos convulsivos.
Os quatro espíritos penetraram no quarto e Luciano o examinou, novamente, exclamando, depois:
— Bem, passa da meia-noite e por isso já se amainou a agitação mental desta casa e adjacência.
Isso nos proporciona o clima favorável para o processo calmo desencarnatório.
Distribuiu os três companheiros em torno do leito.
O mais idoso ficou junto à cabeça de Clementino e pôs-lhe as mãos sobre a fronte e o occipital.
Um deles se aproximou dos pés e o outro, afastando-se uns dois metros, ali ficou à guisa de um transformador espiritual, elevando o pensamento numa prece fervorosa.
Súbito, Clementino acordou-se, estremunhado, egresso de algum sonhe aflitivo ou pressentindo em espírito as providências desencarnatórias processadas em redor dele.
Mobilizando tremendo esforço, quis recostar-se nos travesseiros e tentou accionar a campainha da cabeceira; mas Luciano já efectuava uma série de operações magnéticas longitudinais, concentrando energias libertadoras nos principais plexos nervosos e adjacências dos "centros etéricos".
Logo começou a fluir da organização carnal do velhinho uma tessitura de fios magnéticos e o luminescentes, cujo entrelaçamento singular lembrava uma rede de malhas finíssimas, interrompida por alguns pontos obscuros.
Enquanto emergia aquela rede semelhante a um lençol de gaze brilhante, num tom róseo esbranquiçado,(7) fracamente luminoso e emitindo algumas chispas argênteas, Clementino esgazeava os olhos sentindo incalculável terror nas faces amarfanhadas.
A mão paralisada não alcançou a campainha. Impelido pelo instinto inato de libertação, o seu duplo etérico(8) oscilava num vai e vem de balão inflado de ar quente, prestes a partir e aguçando os sentidos do velhinho.(9)
Os chacras esplénico e umbilical desregulavam-se num desperdício cada vez mais acentuado de "éter-físico".
O baço e os órgãos da região abdominal mostravam-se perturbados pela dificuldade de Clementino controlar-lhes a dinâmica vital.
Da cintura para baixo o corpo de carne pesou sobre o leito, quando Luciano fez extravasar o "tónus-vital" à superfície do baço e do ventre, desorganizando o ritmo vorticoso do chacra esplénico.
O sistema organogénico descontrolou-se por completo.
Fígado, intestinos, rins, pâncreas e o baço passaram a funcionar desordenadamente, em pânico, num esforço inútil para recuperar o domínio das funções habituais.
Mas estava alerta a mente de Clementino e emitia poderosos jactos de energia catalisada pelo medo e vontade poderosa de permanecer encarnado.
Clementino se agarrava à carne com unhas e dentes e a luta prosseguia veemente.
O duplo etérico forcejava pela libertação energética, pois emergia, oscilava e recuava, espichando-se além dos poros da carne.
A exaustão vital do velhinho mantinha-lhe o corpo no leito, sem poder movê-lo; porém, ele reunia todas as forças mentais disponíveis para bradar por socorro.
— Arquimedes! — ordenou Luciano, precipite.
Use só a destra na fronte de Clementino e lhe transmita sugestões e impulsos favoráveis ao seu desdobramento.
Ele mobiliza energias mentais para gritar, pondo em polvorosa este asilo!
Chame-o para nossa esfera espiritual; convença-o da necessidade de libertar o espírito de sua vida tão tormentosa e desejar existência benfeitora no Além.
A sua mente está demasiadamente apegada ao corpo.
Clementino goza de forte comando sobre os chacras cardíacos e laríngeo, podendo explodir emoções violentas e descontrole da fala, prolongando a sua agonia com.. sérios prejuízos para a nossa tarefa.
Não posso desliga-lo do sistema astral-emotivo, ou impedir-lhe a manifestação da voz, enquanto não se efectuar a descarga residual mais compacta pelo "chacra laríngeo".
Precisamos enfraquecer-lhe o, controle mental e evitar a consequente regressão do corpo vital.
Afaste-o da Terra, distraia-o de qualquer modo e o convide a peregrinar em direcção ao céu!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:13 pm

Vamos, Arquimedes!
Arquimedes cerrou os olhos elevando o pensamento à fonte da vida eterna.
Em breve, ondas de inspiração superior fluíam-lhe na forma de pequenos feixes luminosos impregnados de fagulhas e centelhas, que se desfaziam no mais fascinante matiz róseo emoldurado por suave carmim.
Lembravam milhares de abelhas microscópicas a revolutear, sumindo-se depois pelo cérebro perispiritual de Clementino, cujos pensamentos melhoraram nesse pequeno hiato.
Realmente, sentiu-se fatigado da existência física, deixando-se influenciar pelos eflúvios sedativos e pelas sugestões angélicas de Arquimedes.
Abriram-se clareiras de luz na sua mente perturbada e ele se descuidou um momento do energismo mental firmado..
no impacto vigoroso de permanecer na carne.
Luciano aproveitou-se desse lapso de passividade mental e acelerou os passes longitudinais, demorando-se, agora, na região pré-cordial até à altura da laringe, onde passou a actuar com intensa actividade.
O duplo etérico, que emergia do abdómen para baixo e alguns centímetros sobre o corpo carnal, sofreu um impulso de fuga da cintura para cima e definiu-se, rapidamente, na configuração vital-energética de Clementino, mais ampla em seus contornos.(10)
Nessa libertação do duplo etérico, os chacras aumentam o diâmetro e o ritmo de acção, passando a extravasar o conteúdo do éter-físico.
Clementino, completamente afogueado, sem cor e perdendo o controle mental no comando do corpo físico vitalmente exaurido, fez um esforço desesperado para concentrar uma derradeira carga energética de ondas mentais e atrair o duplo etérico à sua velha moradia.
O chacra laríngeo, sob a acção desse reforço vital, reduziu o diâmetro ficando mais compacto e houve momentânea coordenação das forças etéreo-físicas em sincronia com as cordas vocais de Clementino.
Sob o pavor da morte, ele conseguiu, num último assomo de vida, emitir um longo e estridente grito, sucumbindo logo em estertores e gemidos.
Diante dessa momentânea revitalização orgânica, o maravilhoso equipo endocrínico recuperou um pouco sua autonomia sobre o baço, o pâncreas e as supra-renais, passando a agir celeremente, como um general que procura reunir à última hora as forças desordenadas para uma defesa desesperada.
Luciano, então, fez subir um jorro magnético à altura do ventre do velhinho, e depois voltou-se para o companheiro do lado, dizendo-lhe, rapidamente:
Agora, Dagoberto! Corte!
O companheiro moveu com exímia habilidade diminuta tesoura parecida a um pequeno podador de parreiras, a despedir chispas iguais a fagulhas eléctricas, e seccionou, de um só golpe, o cordão fluídico à altura do chacra umbilical.
Clementino, cansado pela evasão de energias que se processava através do chacra esplénico, desta vez ficou imóvel e rígido.
Da região onde anteriormente pulsava o chacra umbilical subia singular substância leitosa pairando à altura do ventre e formando um cone ou figura muito parecida com a tradicional árvore de Natal.
Clementino, completamente aterrorizado pela gelidez dos membros inferiores ou do popular "frio da morte", projectava-se perispiritualmente da cintura para cima, numa fuga incontrolável, enquanto sentia-se colado ao leito de enfermo.
Algumas luzes acendiam-se nos quartos adjacentes e se ouviam vozes assustadas acompanhadas de exclamações temerosas.
Luciano não desperdiçou o tempo.
Mobilizou energias na exaustiva operação de enfeixamento, compressão ou torcimento do fluxo de energias etéreo-físicas agrupadas no ambiente.(11)
Depois ele projectou a carga astralina sobre o chacra laríngeo, fazendo expluir milhares de centelhas.
Aquele centro energético importante do "duplo etérico" extravasou toda sua carga vorticosa e a voz de Clementino findou-se em estertores incompreensíveis.
Clementino atingia a fase agónica tradicionalmente conhecida na Terra como a "sororoca", quando o povo sabiamente prenuncia a morte para breve.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:13 pm

Fazendo um gesto de quem limpa o suor da testa, Luciano arfou o peito num longo suspiro de alívio.
Acomodou-se, num canto, dizendo bastante fatigado:
— Felizmente, Clementino está num asilo e longe dos familiares, quase sempre ignorantes da realidade espiritual, e que costumam prender magneticamente os agonizantes durante o processo desencarnatório.(12)
Fitando o velhinho na fase de completa desintegração etéreo-física, ele comentou.
— Lutamos há mais de uma hora para efectuar uma desencarnação prognosticada para dez minutos!
Que desejo de viver na carne demonstrou o velho Clementino, agarrando-se à caveira como o carrapato gruda-se ao animal parasitado.
Momentos depois o perispírito de Clementino pairava nítido, mais ou menos três palmos acima do campo orgânico, e formando perfeita cópia de sua figura física em posição horizontal.
Estava envolto por uma ténue cerração cintilante provinda da substância do duplo etérico disperso pelo ambiente.
Porém, ele estava ligado, reciprocamente, por um cordão prateado(13) à altura do cerebelo, que estremecia sob o impulso de alguma carga energética fluindo pelo interior.
— Bem, antes de seccionarmos o cordão perispiritual, aguardemos a drenação tóxica para o corpo físico.
Clementino, neste momento, vive a síntese regressiva da própria vida material desde a infância.
Sente, analisa, sofre ou se alegra conforme a acção e o pensamento bom ou ruim movimentado na Crosta terrena.
Nesse ínterim, a porta do quarto abriu-se dando passagem a um rapaz espigado e ossudo, em companhia de uma enfermeira de olhos sonolentos.
Ambos auscultaram o coração de Clementino, e o apalparam dos pés à cabeça, examinando-lhe a pupila dos olhos, num ritual habitual e indiferente.
Sem alarde e bastante acostumados a tais acontecimentos semelhantes, e freqüentes no asilo de velhos, a enfermeira pôs as mãos na cintura, dizendo ao companheiro:
— Gabriel, vá chamar o doutor Morais, pois o velho Clementino morreu!
O rapaz magro saiu do quarto, aos bamboleios e assoviando levemente, pondo-se a caminhar pelo corredor, sem grande pressa.
Alguns velhinhos assustados enfiaram os rostos pelas portas entreabertas, numa só indagação atemorizada.
— Que foi que aconteceu, seu Gabriel?
— Nada de grave, minha gente!
Foi o velho Clementino que fez um barulhão antes de "bater os gambitos"!
E desapareceu na primeira curva do corredor, deixando os velhinhos desconcertados.
No dia seguinte, à tarde, o sol iluminava os quartos do asilo situados à oeste e penetrava risonho pelo "vitraux" singelo e colorido da capelinha.
A luz clareava o corpo de Clementino deitado num caixão de pinho revestido de fazenda roxa e emoldurado com fitas de gorgorão amarelo.
Na fisionomia do morto, imóvel e cerácea, perceber-se-ia os traços fugitivos da luta inglória contra a morte.
O perispírito estava ali, ao lado do caixão, preso pelo cordão luminoso perispiritual à altura do cerebelo, e balouçava-se, de vez em quando, impelido por alguma força oculta.
Clementino, em espírito, oscilava lentamente como um grande pêndulo de relógio; mas, às vezes, traía tal agitação, que obrigava os espíritos ali reunidos a o acalmarem através de passes sedativos.
— Velhinho indócil! — disse Luciano, mostrando certo enfado na fisionomia.
Algum tempo depois falou seriamente aos demais companheiros:
Creio que não podemos esperar mais tempo pela drenação.
O sepultamento está próximo e se não o desligarmos Clementino acabaria sentindo a própria decomposição cadavérica.
Temos ordem de Severiana para não o deixar sofrer tal processo.
Aliás, não nos cabe a culpa dele não expurgar completamente no prazo comum o conteúdo tóxico etéreo-físico, sem conseguir a leveza perispiritual necessária para atingir "Mansuetude".
Luciano auscultou o perispírito e o cadáver de Clementino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:13 pm

Examinando-os minuciosamente através das pequeninas auras de energias plúmbeas e viscosas, que se condensavam nas suturas dos cordões fluídicos em ambos os extremos.
Em seguida, aplicou na região descrita pequenino aparelho muito semelhante a um manómetro, acompanhando o movimento da agulha oca e transparente, a oscilar para a esquerda e a se imobilizar num dos símbolos vermelhos existentes no painel graduado.
Inevitavelmente, Clementino fará estágio no "Agrupamento de Frei Estêvão" para a drenação residual sob a competência da equipe técnica de Herculano.
É muito densa a especificidade magnética do seu perispírito, pois ele agarrou-se demais à vida humana e lutou furiosamente à hora da morte, com lastimável retenção de tóxicos perniciosos à volição.
O desespero, o pavor e a obstinação petrificaram resíduos nocivos à contextura delicada do perispírito, e não podem ser drenados espontaneamente até a hora do sepultamento (14).
Irmã Severiana há de compreender as nossas dificuldades, porque não poderíamos arrastar carga tão pesada até "Mansuetude", nem dispender energias vultosas só para favorecer espíritos teimosos!
E num desabafo conciliador, Luciana aduziu.
— Salvo se encontrarmos algum guindaste de asas no Limiar! ...
Alguns momentos eram transcorridos e ele iniciou outra série de operações em teimo do cérebro perispiritual de Clementino, surgindo, em seguida, magnífica chama violácea a, emitir formosas fulgurações ou revérberos dourados.
Iluminava-lhe toda a configuração craniana, esbatendo-se num rosa-lilás e retocando suavemente os traços obstinados do rosto pálido pela morte.
Ali se mostrava em toda a beleza, estranha duplicata perispiritual da glândula epífise, regente do campo mental do ser.
Estação maravilhosa, interpreta e transmite a vontade do espírito ao comando do cérebro físico.
Na base intracraniana, onde se fazia a sutura do cordão prateado, a cintilação era mais luminosa e adelgaçava-se como delicada lâmina de celofane transparente.
Luciano fez um aceno rápido ao espírito de Dagoberto e este aproximou-se com outro delicado instrumento, cor de alumínio, ligado à minúscula bateria, o qual crepitava suavemente à semelhança de um contador "Geiger".
— Corte, Dagoberto! — comandou Luciano, precipite.
O espírito de Dagoberto fez um movimento rápido e seccionou o cordão à altura do cerebelo, de cuja ponta despedia-se o "tónus-vital" em fulgurações brilhantes, como pingos luminescentes de fogos de artifícios.
Enquanto o perispírito absorvia com presteza o fragmento do cordão fluídico seccionado na base, o cadáver também incorporava outra parte na sua contextura carnal.
Um halo diferente, num leve tom rosa esbranquiçado, passou a evolar-se no ar e se adelgaçava corno bolhas de sabão, dissolvendo-se no quimismo etérico do meio-ambiente.
Minutos depois o corpo de Clementino já apresentava sinais de putrefacção, em face da retirada da matriz perispiritual sustentadora da forma humana.
As colectividades microbianas famélicas assumiam a sua característica individual e principiavam a decomposição molecular cadavérica.
Mais tarde, os quatro espíritos volitavam com muita dificuldade, à baixa altura, rente a crosta terráquea, amparando Clementino inconsciente.
Não chegavam a voejar duzentos metros e faziam o dobro do percurso em marcha avançada, como os encarnados.
A carga pesava-lhes na transladação e só o devotamento e o amor ao próximo, dava-lhes o ânimo e a energia suficientes para prosseguir na tarefa exaustiva e dificultosa.
Em meio caminho do "Agrupamento de Frei Estêvão", o próprio Luciano, sem esconder a fadiga energética, determinou um repouso mais longo.
Escolheram uma clareira de mato, onde saltitava um regato de água cristalina lançando revérberos na face líquida iluminada pelo Sol descambando no poente.
Através de processos técnicos desconhecidos aos encarnados, eles extraíram boa cota de fluidos das árvores frutíferas, aplicando-os depois no perispírito combalido de Clementino, o qual suspirou aliviado de alguma dor interna.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:14 pm

— Irmão Luciano, — inquiriu Dagoberto, enquanto se recostava bastante fatigado num tufo de vegetação exuberante, buscando repouso — porventura seríamos indiscretos, indagando quais os motivos que delinearam o curso cármico da vida de Clementino?
— Não há mistérios na vida de Clementino que não possam ser conhecidos! — redarguiu Luciano, descansando o corpo na vegetação farta.
Ele viveu existência comum e peculiar a milhares de outros espíritos encarnados, cuja faixa vibratória é a escravidão ao "ego" inferior.
Clementino passou pela Terra sem deixar qualquer ensinamento proveitoso ou alguma réstia de luz na alma de alguém.
Viveu tanto quanto possível, plantando o seu pé de couve para comê-lo no dia seguinte.
Nada semeou em benefício para o futuro do próximo.
Desde menino fixou-se obstinadamente num objectivo pessoal e ferrenho: ser rico!
Convergiu todos sentimentos e ideias para enriquecer, sem pensar no próximo; aliás, esqueceu a própria família!
No entanto, se fosse rico, nem por isso o mundo seria mais feliz!
As crianças continuariam esfomeadas a seu lado, as mulheres decaídas ficariam sem lar na velhice infeliz, os doentes sem hospital e sem medicamentos.
A riqueza de Clementino não ajudaria nem Jesus a ser mais conhecido na face da Terra entre os homens, pois ele queria ser rico cinicamente para a satisfação dos prazeres da vida física.
— Então foi por isso que a Lei negou-lhe a fortuna tão ambicionada?
— Não! Clementino apenas colheu os frutos das sementes daninhas que semeou no passado.
Em existência pregressa ele acumulou, em Portugal, vultosa fortuna à custa de contrabandos, especulações ilícitas e empreendimentos astuciosos, praticando subornos de autoridades públicas e extorquindo terras de infelizes e ingénuos aldeões.
Clementino era rico, porém, avaro, egoísta, inescrupuloso e gozador da vida.
Por isso, no Brasil, ele teceu sonhos de riqueza desde a infância de menino pobre, evocando através da memória perispiritual, o luxo, o conforto e a prodigalidade usufruída no passado, quando o dinheiro só servia-lhe para desencaminhar meninas pobres e livrá-lo das punições justas através de régios presentes às autoridades. _
— Daí a prostituição das filhas e a delinquência dos filhos nesta existência? — indagou uma entidade.
— Florinda, Dorinha, Otília e Arminda, eram espíritos que se prostituiriam em qualquer clima social ou condição financeira, pois se tratava de almas primárias e escravas do desregramento sexual, além de submissas ao comando de entidades gozadoras das Trevas.
Luxuriosas, fesceninas e impiedosas de corpo e alma, desencaminhavam as companheiras mais ingénuas e fracas de carácter, arregimentando "repastos vivos"(15) para a satisfação da detestável organização diabólica que opera no mundo oculto.
Elas sempre terminariam prostituídas, quer vivendo ou não com Clementino.
— Poderíamos supor que Clementino foi de "má sorte", ao atrair esses espíritos para esposa, filhas e filhos? — interpelou Romualdo, espírito recentemente desencarnado no Rio.
— Clementino atraiu esse tipo de espíritos sexuais e inescrupulosos, porque ele também já havia se servido deles em vidas anteriores no usufruto de sensações indignas.
Ademais, não merecia cercar-se de almas nobres e laboriosas, na última existência, uma vez que fora um ególatra explorador do próximo.
— E os filhos? — insistiu Dagoberto.
— Hilário e Virgílio eram espíritos irresponsáveis que haviam sido hábeis agentes de Clementino, ajudando-o a satisfazer a ambição de riquezas e os prazeres condenáveis.
Sob a lei:
"os semelhantes atraem os semelhantes", ele os atraiu novamente para a nova existência no Brasil, através da própria obsessão de "ser riço"!
Cabe-lhe a culpa de não os ter protegido pela educação religiosa ou doutrina espiritualista, que muito poderia ajudá-los no domínio dos impulsos inferiores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:14 pm

Sem dúvida, "quem semeia urzes só pode colher espinhos".
Na ambição cega de enriquecer, Clementino não sentiu na alma egoísta a prevaricação dos filhos.
Quantos séculos ele ainda terá de carregar a bagagem inferior dos espíritos das filhas e dos filhos, quando nada fez para os beneficiar?
Almas débeis, ignorantes, entontecidas pelas paixões e seduções falazes do mundo material, elas viveram apenas os impulsos desordenados do instinto animal como "receptores" dos espíritos gozadores das Sombras.
Funcionaram iguais a verdadeiras "lixas" vivas junto de Clementino, ao qual haviam servido no passado para satisfazer os apetites censuráveis.
Por isso, ainda não merecem encarnar-se nos lares dignos e equilibrados, mas, também, farão o progresso ombro a ombro com os próprios comparsas pregressos, participando-lhes das vicissitudes e sofrimentos cármicos e recebendo ajuda e esclarecimentos dos mais evoluídos.
Depois de alguns minutos de silêncio, Luciano levantou-se dizendo, num gesto de comando:
— Vamos!
O grupo outra vez volitava, com dificuldade, levando a carga do perispírito muito denso de Clementino.
A região era cada vez mais nevoenta e tiveram de caminhar rente à Crosta, como se fossem realmente encarnados e incapazes de empreender o voo numa atmosfera demasiadamente densa.
Luciano orientava-se por uma bússola magnética com sinais coloridos.
Algum tempo depois divisaram o vulto de enorme barracão de material estranho, emergindo entre a cerração sombria.
Estava todo cercado e protegido por cercas de arame .trançado, como os alambrados do mundo, além de uma espécie de funis de cobre que se sobressaiam dos postes, de 2 em 2 metros, provavelmente um sistema de defesa sob o processo de bombardeios magnéticos.(16)
Em cada um dos ângulos do edifício rudimentar, ardiam enormes archotes.
A vegetação em torno era rasteira e espinhosa, recortada por atalhos de terra preta e viscosa, d'onde emergia um vapor oleoso e morno.
Mal os espíritos chefiados por Luciano aproximaram-se do portão principal, duplamente revestidos de pontas aceradas, eles foram reconhecidos pelos vigilantes e assinalados favoravelmente pela sua graduação espiritual superior.
Após os cumprimentos cordiais e abraços comovidos, penetraram na instituição, onde se verificava uma actividade incessante, pelo número de criaturas que se moviam apressadas para todos os lados.
Foram introduzidos num pequeno aposento.
Logo surgiu-lhes à porta um frade capuchinho, de barbas brancas e de poucos cabelos, mas de hábito azul-escuro e um cinto branco trançado, de cujas pontas pendiam dois tubos de metal lembrando as lanterninhas eléctricas modernas.
Depois de abraços efusivos e palavras carinhosas entre todos, Frei Estevam indagou:
— Então, caro Luciano; a que devo a visita dos bons amigos de "Mansuetude"?
— Trouxemos um irmão liberado recentemente da Crosta, cujo Serviço desencarnatório atendemos em nome de irmã Severiana.
— Ah! — fez o capuchinho, curvando-se, cortesãmente.
Severiana, nossa gentil colaboradora?
— Sim. Era nossa intenção levarmos esse irmão até "Mansuetude", mas o prazo "post-mortem" foi insuficiente para se processar a drenação tóxica para o corpo físico e a consequente sanidade perispiritual.
Vimo-nos obrigados a seccionar o "prateado" já próximo do sepultamento e sem completar-se a purgação.
O perispírito dele está muito denso e arrasta-se em vez de acompanhar-nos no processo favorável de volição.
Precisaríamos deixá-lo aqui no agrupamento, para uma drenação técnica, ou aguardarmos ordens superiores.
Prometemos a irmã Severiana deixarmos o seu pupilo protegido dos charcos, e não queríamos decepcioná-la!
Que nos diz, Frei Estevam?
O frade velhinho mostrou grande preocupação na fisionomia bondosa, antes de responder.
— Não poderei recusar qualquer pedido de irmã Severiana, em face das vultosas obrigações que lhe devemos; mas o agrupamento está lotado além de sua capacidade socorrista e da segurança vibratória de permanência nesta zona tão primitiva.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:14 pm

Já estamos funcionando sob a protecção dos "mercenários" do Umbral, em troca de favores muito onerosos para o futuro.
São compromissos inaconselhados; mas, que fazer?
Frei Estevam levantou as mãos para o alto dizendo suspiroso:
— Graças á esses renegados conseguimos livrar-nos de dois assaltos perigosos às nossas instituições socorristas, além de evitarmos uma fuga desairosa e abandonarmos muitos asilados ainda em estado de coma perispiritual.
Fala-se em próximo assalto das hostes das crateras, atendendo pedidos de vingança do comando das sombras, a fim de sequestrarem três entidades que estão asiladas em nosso agrupamento.
Batendo suavemente no ombro de Luciano, o bondoso capuchinho aduziu:
— Mas comuniquem à irmã Severiana, que o seu protegido ficará aqui até se mostrar dinâmico à volição ou até que possa transferir-se para região mais amena!
Quem é ele?
— Clementino, o insubmisso! — riu Luciano, pondo um toque humorístico na voz.
— Setenta e... ? — glosou Frei Estavam, aliviando o rosto preocupado.
— Setenta e três! — confirmou Luciano, num gesto de censura cordial.
— Pois bem, o "insubmisso" ficará no meu próprio aposento, o único lugar disponível, no momento .
Luciano agradeceu ao venerável espírito e dali a momentos, com os demais companheiros, desapareciam na cerração fumarenta, ruma à colónia espiritual de "Mansuetude".

(1) N. Atanagildo: — Na época da infância de Clementina não havia colchão de molas; os ricos adquiriam o colchão de crina animal, o mais requintado.
(2) N. Atanagildo: — Ambas as filhas gémeas de Clementina, Dorinha e Otília, cujos nomes verdadeiros ocultamos por motivos óbvios, foram assassinadas nos seus prostíbulos, em noite de grossa desordem.
(3) N. Atanagildo: — Peso magnético, que faz o espírito baixar às regiões purgatoriais ou subir para os planos superiores.
(4) N. Atanagildo: — Onde começa o mundo astralino e termina a Crosta; conhecido por Umbral, região dos detritos decantados nas purgações dos espíritos com as vestes perispirituais intoxicadas.
(5) Os charcos absorvem as impurezas do perispírito, embora isso seja doloroso, até o momento da entidade sentir-se capacitada para ser socorrida e conduzida às colónias espirituais de tratamento após a drenagem.
(6) A drenação amistosa é intervenção de técnicos experimentados, que ajudam a entidade a libertar-se da cresta mais onerosa do perispírito, mas é preciso que goze de credenciais para isso e provenientes de actividades sacrificiais ao próximo.
(7) N. Atanagildo: — Vide o capítulo "Algumas Noções Sobre o Prana", da obra "Elucidações do Além", de Ramatis.
O prana físico é de cor branca em sua manifestação unitária, mas provém da associação de várias cores, onde predomina o róseo esbranquiçado.
(8) N. Atanagildo: — Vide o capítulo "Duplo Etérico e suas Funções", obra "Elucidações do Além", de Ramatis.
O duplo etérico é um corpo ou veículo provisório, espécie de mediador plástico ou elemento de ligação entre o perispírito e o corpo físico do homem e se compõe do "éter-físico" da Terra.
(9) A penetração do duplo etérico na região astral, em torno da Crosta, aguça os sentidos do espírito numa hipersensibilidade vital astralina.
(10) N. Atanagildo: — Os magos antigos usavam do exemplo do cocheiro, cavalo e o carro, para ensinar, respectivamente, a ideia do espírito, energia ou duplo etérico, e o corpo físico.
O espírito atua no duplo etérico, através do perispírito e consequente acção no corpo físico.
(11) N. Atanagildo: — Apenas tentamos dar uma ideia do processo inacessível ao entendimento dos encarnados, efectuado num campo vibratório sem analogia com acontecimentos materiais.
Num exemplo grosseiro, poderíamos considerar Luciano um hábil electricista enfeixando fios eléctricos num só cabo, que depois usaria como conduto de uma carga mais compacta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jun 28, 2021 7:14 pm

(12) N. Atanagildo: — Vide o capítulo "Companheiro Libertado", da obra "Obreiros da Vida Eterna", de André Luiz, por Chico Xavier, com excelentes esclarecimentos sobre a influência da mente encarnada sobre os parentes agonizantes e os prejuízos decorrentes de tal atitude.
(13) Eclesiastes, Bíblia: 12-6
(14) N. Atanagildo: — Não olvide o leitor de que estamos relatando um processo de desencarnação disciplinada e coerente, com os "cortes" dos cordões e cessação de actividades perispírito-carnal, no tempo certo e previsto.
Em casos de acidentes e mortes violentas, tais elementos se rompem e expluem o "tónus vital" num desperdício lastimável.
Há que distinguir, portanto, o rompimento de órgãos e tecidos proveniente de desastres e acidentes, aí na Terra, que depois exigem o socorro imediato, com as operações amparadas dos recursos preventivos e protectores do enfermo.
(15) Vide o capítulo "Como Servimos de Repastos Vivos aos Espíritos das Trevas", da obra "A Vida Além da Sepultura", de Atanagildo e Ramatis.
(16) Vide o capítulo "O Fogo purificador", da obra "Obreiros da Vida Eterna", de André Luiz e por intermédio de Chico Xavier.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 29, 2021 6:29 pm

14 - A VIDA CONTRA A VIDA.
Zelita era loura e bonita.
Olhos azuis límpidos, grandes e emoldurados pelos cílios longos e sedosos.
A pele do rosto era de um tom pérola e aveludado, realçando um róseo natural.
Os lábios carnudos e sensuais, da cor de cereja madura, corpo bem proporcionado, faziam dela o tipo de mulher atraente e desejada por todos os homens.
Ela sabia pintar-se com suavidade, o baton transparente, quase despercebido e sem artificializar-lhe a beleza natural.
Usava os cabelos enfeixados no alto da cabeça, lembrando um encantador turbante a irradiar reflexos dourados.
Sabia escolher as cores dos seus vestidos de acordo com o seu padrão feminino, numa combinação simples e de bom gosto.
Apreciava emoldurar-se num traje de seda japonesa verde-malva, adornado de enfeites de um creme amanteigado, o que lhe combinava com louro magnífico.
Havia nela uma faceirice inata, um ar constante de menina-moça, e um desejo ardente de viver; mas às vezes estranha ansiedade punha-lhe sombras na fisionomia atraente, e sentia faltar-lhe a respiração, caindo em profunda prostração.
Em outra ocasião, quedava-se séria e preocupada, como a pressagiar algo desagradável nos seus instantes mais venturosos.
Paradoxalmente, o seu todo belíssimo mostrava a saúde pletórica que parecia imunizá-la contra qualquer enfermidade.
Entretanto, às vezes as forças faltavam-lhe inexplicavelmente, e, momentos após, voltava-lhe a plenitude vital.
Era quase noiva de Valério, moço pobre, de bons antecedentes e que vivia exclusivamente para ela.
Mas não parecia amá-lo com a mesma veemência, a ponto dela mesma ter protelado o casamento, além de mostrar certa volubilidade para com outros jovens, cuja côrte apaixonada satisfazia a sua vaidade de mulher requestada.
O destino, um dia, fê-la conhecer Jobel — jovem engenheiro, — que ao vê-la numa festividade social, enamorou-se dela.
Não pôde mais esquecê-la!
Somente havia dali por diante uma solução na sua vida — o casamento!
Ela aceitou a côrte de Jobel, e, seis meses depois, casavam-se na Igreja de Sta. Terezinha.
Zelita foi a noiva mais linda a se consagrar naquele templo católico.
Jobel, ao terminar o curso, transferiu-se para populosa cidade no Norte do Brasil e lá assumiu a direcção de importante departamento de uma empresa de construção civil.
A mudança coincidiu com os primeiros sinais de gravidez de Zelita.
Foi uma gestação tormentosa e o feto prematuro e natimorto deixou a mãe exangue, apesar de toda a vitalidade habitual, anterior à concepção.
Os pais perderam as esperanças pelo advento de novo herdeiro.
Após novo período de ansiedade e Zelita perdeu outro filho aos cinco meses de gestação.
Em consequência, submeteu-se a toda sorte de exames, testes e tratamentos ginecológicos, sem que lhe fosse identificada qualquer anomalia no aparelho genital.
Os médicos só recomendaram-lhe o máximo repouso e tranquilidade durante a próxima gravidez, convictos de que isso bastaria para ajudá-la a ter o terceiro filho com êxito.
A Fatalidade perseguia Zelita de modo implacável, embora ela e Jobel pusessem toda sua vivência no desejo de um filho para completar a felicidade do lar.
No entanto, malgrado suas tentativas para tal ventura, todos os filhos nasceram-lhe mortos em consequência de abortos imprevisíveis entre três e seis meses.
Em sua vida predominava cruel ironia, pois os médicos gabavam-lhe a exuberância vital, no início da gestação, mas depois não conseguiam explicar os motivos dela exaurir-se assustadoramente, a ponto de guardar o leito, imóvel, até o momento do parto.
Finalmente, resignou-se evitando qualquer novo ensejo de procriação, certa de sua impossibilidade de ser mãe.
Alguns anos depois, em que o tempo cicatrizou as chagas das frustrações maternas, Zelita consultou curandeiros, "pais de santo", na Umbanda e abalizados ginecologistas modernos.
Nova esperança se fez, ante a unanimidade de todos lhe assegurarem absoluto sucesso num próximo parto!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 29, 2021 6:30 pm

Reanimada, ela entregou-se novamente à empreitada dolorosa de gerar outro descendente, agora fortalecida pelas afirmativas dos próprios espíritos desencarnados.
No entanto, o período gestativo foi terrivelmente atribulado e nove meses ela permaneceu no leito em situação aflitiva.
As faces tomaram uma cor cerácea, temia-se a eclâmpsia e sofria desmaios demorados.
As vezes ela ficava em estado de coma, os lábios rígidos e as mãos crispadas, tardando em tomar conhecimento do mundo exterior.
Graças à situação desafogada de Jobel, financeiramente, pôde manter uma equipe de médicos junto ao leito de Zelita atendendo-lhe a situação dolorosa.
Dr. Milani era o chefe da equipe médica e submetia a paciente constantemente a soros, vitaminas e até transfusão de sangue.
Mesmo assim, ela mal conseguia abrir os olhos e nos últimos dias de gestação já se mostrava algo inconsciente, os olhos esgazeados e com um ar de espanto na fisionomia atraente.
Os obstetras encarregados do caso, não viam qualquer probabilidade dela alcançar a "delivrance" em condições de sobreviver.
Haviam decidido sacrificar o nascituro e poupar a vida materna em perigo, e Jobel conformava-se mais uma vez com a desdita de não ser pai!
Ele vagava do quarto da esposa para o corredor do hospital, e, depois, retornava nessa "via-sacra" incessante, aflitiva e desesperada!
Finalmente, chegou a hora do parto ante receios dos médicos precisarem optar por uma cirurgia!
No entanto, espantavam-se pelos fenómenos que se sucediam, pois às vezes Zelita parecia inflada subitamente por uma energia imprevista, surgiam-lhe cores inesperadas nas faces, para, em seguida, esvair-se como se a sugassem vigorosamente.
É impossível salvá-la! — comentou o médico para Jobel, num tom fúnebre.
Vamos tentar a cesariana, mas é dificílimo que resista ao choque operatório.
Não dispomos de nenhuma alternativa a seu favor, nem do filho a nascer!
Jobel curvou a cabeça, num gesto de resignação desesperada e assentiu:
Doutor Milano, o senhor faça o que julgar acertado!
Aflito e incapaz de assistir à cirurgia que se mostrava de mau presságio, após um beijo comovente na esposa saiu do quarto, retornando ao corredor cismativo, a fitar o céu carregado de nuvens como sua própria alma.
Mas à medida que o médico fazia a incisão no ventre de Zelita, novamente se processava estranha transfusão de vitalidade e o rosto pálido, e a pele transparente e a pressão baixíssima modificavam-se com extraordinária rapidez, surgindo a cor sanguínea optimista e reanimando-se o ritmo cardíaco.
Depois, inesperadamente, faziam-se novos hiatos perigosíssimos e Zelita desfalecia deixando todos alarmados.
Jobel olhava o céu nublado e fumava cigarro atrás de cigarro.
A temperatura esfriara e começava a cair uma chuva finíssima, aumentando a sua dor e tristeza.
Talvez houvesse decorrido uma hora, quando à sua retaguarda abriu-se a porta da sala de cirurgia.
Ele voltou-se, sob profunda angústia, defrontando-se com a figura atarracada do Dr. Milani, a enxugar o suor do rosto, apesar da temperatura amena.
Em seguida, meteu a mão no bolsinho do avental e apanhando um cigarro "Liberty", acendeu-o num gesto impaciente de fumante inveterado.
Aproximou-se de Jobel, sem poder disfarçar a preocupação e intranquilidade nos seus gestos bruscos.
Parecia ensaiar as palavras, escolhê-las como um mensageiro portador de más notícias.
Bateu de leve, no ombro de Jobel, num gesto de solidariedade, dizendo-lhe num só impulso verbal.
Conforme-se, amigo! Nenhum de nós sabe o que pode acontecer amanhã; há coisas piores e...
Zelita morreu, não é doutor Milani? — atalhou Jobel, num tom de dolorosa resignação.
Não! — respondeu o médico, deixando-o boquiaberto.
Zelita não morreu? Mas, enfim, o que aconteceu de trágico, pela sua fisionomia tão constrangida?
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 5 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 29, 2021 6:30 pm

Doutor Milani sorveu uma longa baforada de fumo do cigarro e sem modificar a fisionomia, traindo profunda preocupação, exclamou, quase sem fitar Jobel:
Zelita salvou-se; nem sei explicar como isso aconteceu, pois tudo funcionou certo na hora do parto!
Jamais vi reacção tão fabulosa de uma gestante, que depois de irrecuperável colapso ainda se recuperou extraordinariamente!
E chegando-se à janela, fitando a chuva intermitente a batucar na janela, aduziu:
Isso nos ajudou bastante a salvar os gémeos!
Gémeos?! — exclamou Jobel, afoito.
Gémeos? Mas estão vivos?
Sim! — redarguiu o médico, entre duas baforadas de fumo, mas sem esconder o nervosismo.
Olhou para fora, percorrendo com seus olhos miúdos os edifícios lavados pela chuva.
Depois, num tom apressado de voz, voltou-se para Jobel e transmitiu-lhe a trágica notícia.
— São gémeos, Jobel; porém, paralíticos do pescoço para baixo!
Jobel ficou lívido; sua única reacção foi puxar um cigarro do bolso.
Ergueu os olhos para o médico, meio atarantado; fez menção de seguir para o quarto de Zelita, entretanto titubeou paralisado.
Queria ver a esposa e estremecia, aterrado, ante a figura tétrica dos filhos inertes, estirados sobre os lençóis alvíssimos como criaturas secas de vitalidade!
Não sabia o que fazer e só conseguiu lançar um olhar angustiado ao médico.
Jobel, meu amigo! — gaguejou doutor Milani, confrangido.
Deve haver alguma coisa certa em tudo isso.
Confiemos na Medicina, pois já se conseguiu solucionar casos bem piores!
Mas ele mesmo não conseguiu imprimir autenticidade nas suas palavras.
Elas soavam-lhe falsas e sabia, de antemão, que era um caso completamente irrecuperável.
Num aceno cordial e de escusas, Dr. Milano sumiu-se pelo corredor, deixando uma sensação de fuga.
Cinco anos depois, Jobel e Zelita contemplavam num berço forrado de seda e adornado de rendas, duas crianças perfeitamente semelhantes, que apenas moviam as cabeças, de um lado para outro, semelhantes ao movimento monótono e repetido do pêndulo de relógio.
Sabia-se que viviam pelos olhos que se agitavam nas órbitas fitando um mundo fantástico e mórbido.
O pior ainda viera depois; o médico certificara-se de que além de paralíticos, os dois meninos eram imbecilizados!
Os olhos febris, inquisidores, tristes, eram duas súplicas desesperadas pela libertação; olhavam para Jobel e Zelita, mas não os viam nem os reconheciam, malgrado a presença frequente deles junto ao berço.
Fugira-lhes a seiva do corpo, e, também, a seiva da alma!
O próprio cão reconhece o dono, mas eles não distinguiam os pais!
Quando Zelita e Jobel saíam de perto daquele berço rendado, também seus olhos estavam marejados de lágrimas e eles então se abraçavam, buscando amparo mútuo para o infortúnio comum.
Enquanto outros lares festejavam o advento de filhos robustos, belos e inteligentes, ambos concentravam a existência naqueles filhos tardos, feios e paralíticos!
Sem dúvida, trocariam todos os seus bens pela ventura de uma choupana com filhos sadios.
Humilhados por essa progénie enfermiça, desistiram de qualquer tentativa para procurar outro filho, temerosos de aumentarem a própria desgraça.
Jobel, pouco a pouco perdia o entusiasmo pela vida, deixando-se corroer por um desânimo desintegrador e sentia-se incapaz de sobreviver à desventura que lhe ferira a existência.
Alma boníssima e tolerante considerava-se culpado da infelicidade de Zelita, tão bela e afectiva, ex-noiva de Valério, que hoje era casado e pai de três filhos sadios e venturosos!
Mortificava-se continuamente num desgaste prematuro de energias enfraquecendo a própria resistência moral.
Os aperitivos inocentes, em breve foram substituídos pelas doses maciças de "whisky" ou "gim", solapando-lhe pouco a pouco o ânimo e fazendo-o descurar-se das obrigações profissionais.
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SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES - Página 5 Empty Re: SEMEANDO E COLHENDO - Atanagildo/HERCÍLIO MAES

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 29, 2021 6:30 pm

Infelizmente, dominado pelo torpor alcoólico tornou-se incompetente e inútil na firma onde fora admitido com todo o carinho e confiança.
Em breve, foi indemnizado, ficando sem emprego, enquanto as despesas cresciam reduzindo-lhe as economias.
Vencido pela embriagues e desencorajado de começar outra vez a profissão em ambiente estranho, Jobel consumiu-se entre os frascos de bebidas.
Zelita via sua vida desabar e desanimada sentia-se impotente antes as dificuldades domésticas, além das preocupações incessantes para com os filhos parvos e paralíticos.
Não era mulher adestrada para cumprir sozinha o destino de mãe de dois "mortos-vivos"!
Ela não sabia nenhum ofício nem possuía qualquer curso liberal para manter a subsistência do lar.
Fora criada com excesso de mimos e despreocupações por uma tia abastada.
Também não se sentia encorajada para aceitar tarefas grosseiras e humilhantes, a fim de sobreviver.
Além disso, extinguira-se o amor materno pelos filhos teratológicos, considerados os verdadeiros causadores da ruiva de sua vida.
Infelizmente, Jobel atingia o "clímax" alcoólico completamente embrutecido e apesar de tratamentos cuidadosos desencarnava dois meses depois.
Zelita atingira os trinta e oito anos de idade, e malgrado os sofrimentos ainda se mostrava atraente e mesmo bela.
Ansiava por viver, livrar-se daquela carga, enquanto moça.
Então ela recorreu a alguns amigos de Jobel e conseguiu internar os filhos numa instituição assistencial especializada.
Em seguida, pôs-se a desforrar-se daquele casamento amargurado.
Vendeu todos os bens domésticos que possuía, passando a se trajar com toda faceirice de uma jovem.
Meses depois tornava-se amante de Godofredo, antigo chefe de Jobel, que há anos vinha lhe tentando a côrte sem êxito.
Ele lhe montou luxuoso apartamento, malgrado o escândalo provocado pela sua família, proporcionando a Zelita uma vida faustosa e despreocupada.
Entretanto, o destino se obstinava contra ela.
Decorrido menos de um ano, Godofredo morria de síncope, fazendo-a sofrer os piores vexames da família dele, obrigada a restituir todos os bens não inscritos em seu nome.
Algumas vezes sentiu-se tentada ao suicídio, ante o seu desgaste cada vez mais acentuado, mas alguma alma amiga conseguia dissuadi-la desse recurso tão trágico.
Indiferente à sua sorte, entregou-se à detestável sina de substituir amantes num ciclo cada vez mais decrescente e inferior até findar sua existência inglória num prostíbulo.
Faltou-lhe o amparo amigo e confortador na hora dolorosa de sua decadência moral.
Desencarnou aos cinquenta anos de idade num triste hospital de indigentes assistida pela piedade de algumas irmãs de caridade.
Enquanto isso, do "outro lado" da vida, espíritos amigos e familiares tentavam ajudá-la a se desvencilhar do corpo de carne danificado numa vida tão cruel e desleixada.
Mas eles não puderam livrá-la de cair nos charcos depuradores do astral inferior, para onde ela foi atraída pela baixa carga magnética aderida ao perispírito devido à sua vida enfermiça de prostituta.
Zelita viveu algum tempo nos charcos,(1) sofrendo os desagradáveis tormentos da purificação perispiritual compulsória.
A região era pestilenta e sombria.
O ar escuro e pesado, sufocado num nevoeiro de fumo cristalizado.
Ela ouvia gritos, blasfémias, obscenidades e gargalhadas incessantes, a lhe martelar o cérebro dia e noite.
Vivia aterrorizada com as caras esbraseadas e sinistras que surgiam na tela enegrecida do ambiente, trazendo o rictus do mais repulsivo deboche.
Exausta e apavorada, não conseguia identificar a natureza dos pesadelos, nem lobrigar o motivo da vampirização de suas energias vitais.
Já não movia um dedo e sua alma tornava-se cada vez mais insensível aos próprios fenómenos apavorantes, que presenciava com frequência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jun 29, 2021 6:30 pm

Quanto tempo viveu aquele mau sonho, colada ao solo repugnante num estado irrecuperável de coma vital?
Não se lembrava.
Mas um dia seu coração vibrou sob o impulso de estranha voz oculta, cariciosa e branda, que lhe desatava as fibras amortecidas do espírito conturbado.
Sob essa terna inspiração, seus olhos lavaram-se de lágrimas refrescantes a rolar-lhe pelas faces, enquanto dominava-lhe estranha emoção.
Um desejo inexplicável de ser criança e orar como costumava proceder em menina, acompanhando as palavras amorosas da mãe e da tia querida.
Pensamentos limpos e emoções imaculadas voejavam em torno de sua alma, fazendo-a desejar uma existência serena e uma paz de espírito eterna.
Aos poucos, um suave calor tomou-lhe o corpo despertando-lhe sensações confortadoras, triunfando sobre o frio terrível que a atormentava sem cessar.
Naquela agradável quietude, percebeu uma luz suave a lhe penetrar o organismo, enquanto ouvia vozes amistosas modulando-lhe palavras de esperança e ânimo.
Não notava qualquer modificação na paisagem escura, porém, sentia-se levitar, num impulso ascensional que lhe reduzia o peso estranho que lhe comprimia o corpo contra o solo frio e nauseabundo.
Perdeu a consciência de tudo o que lhe acontecia, mas foi grande a surpresa ao perceber-se num leito pobre, de lençóis alvos e reconfortantes, em vez do ambiente tétrico anterior.
Em torno de si fluía suave claridade rósea-lilás, iluminando um aposento singelo e agradável.
Ela, ainda, experimentava grande exaustão, mas já podia raciocinar mais lúcida, mover os olhos e sentir o arfar débil dos pulmões.
Sentia-se enfraquecida para falar e incapaz de fazer qualquer gesto mais vivo, entretanto, pela primeira vez sua alma era feliz e gozava de inefável paz de espírito!
Dali a pouco percebeu que a porta se abria dando passagem a alguém; distinguiu uma senhora idosa, de fisionomia clara e vivaz, adornada por uns olhos severos, mas cordiais, a se curvar sobre o leito.
Ela trajava um vestido cinza-claro, com decote alto e o corpo modelado por um cinto largo e brilhante, cor de pêssego novo, ajustado por um broche de pedrinhas faiscantes.
Junto dela estavam dois jovens de ar tímido, fisionomia triste e olhos ainda ensombrados por alguma recordação pungente.
Zelita quase jurava tê-los visto alhures e quando a senhora voltou-se para eles, ambos tinham os olhos marejados de lágrimas e se mostravam bastante pálidos.
— Controlem-se, meus queridos!
Lembrem-se das recordações essenciais.
Nós só podemos servir o próximo equilibrando nossas emoções e esquecendo o passado! — disse ela num tom severo.
Depois ordenou, algo decidida:
— Vamos ao trabalho.
Então um dos jovens enfermeiros ajustou um tubo leitoso e aparentemente plástico a um bujão de material cristalino cor de ametista refulgente, enquanto o companheiro fixava na outra ponta uma espécie de farolete traseiro de automóvel, cujo vidro ou coisa parecida era do mais vivo tom alaranjado.
A senhora curvou-se e delicadamente voltou Zelita de bruços no leito alvo, enquanto os dois jovens ajustavam o exótico aparelho à distância de cinco centímetros da região do bulbo e do cerebelo.
Em seguida, accionaram um minúsculo botão de contacto e resplandeceu um feixe de fluidos cor de laranja madura a filtrar-se pelo vidro, o qual parecia pequenina tela tecida por mil fios cintilantes.
O jacto alaranjado e suavemente crepitante fluía sobre a região posterior do crânio de Zelita e era absorvido celeremente.
A cabeça passou a apresentar um halo de luz ténue, que se irradiava pela coluna vertebral.
A luminosidade ora aumentava, ora diminuía, ressaltando em caprichoso desenho a configuração brilhante do sistema nervoso.
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