LUZ ESPÍRITA
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 24, 2024 8:51 pm

- Pode continuar levando essa vida dupla.
- Isso é errado. Não quero magoar minha mulher, meus filhos. Preciso tomar um rumo. Você me ajuda? Fica do meu lado?
Henrique sentiu um arrepio. Não gostava de se envolver afectivamente com as pessoas. Tinha um comportamento autodestrutivo, não se aceitava, não gostava de si mesmo. Como podia sentir afeição, gostar de alguém? Maria Lúcia foi a única na vida por quem ele sentiu algum carinho, mesmo assim misturado a muito, muito interesse. Nunca se dera bem com a avó.
Assim era Henrique. Uma pessoa desprovida de qualquer sentimento nobre. O amor, para ele, só existia em filmes ou novelas. Sentimento de amizade e fraternidade era pura utopia. O que valia a pena na vida, segundo ele, era tirar vantagem das pessoas, tal qual Maria Lúcia fazia.
Mal começara a planejar um modo de conquistar Clóvis, e agora Túlio queria compromisso sério? Aquilo era o cúmulo!
Estava fora de cogitação.
A história de "amar e ser amado" era uma grande balela, e, entre homossexuais, então, era pior. Para começar, eram homens que transavam com homens, bicho que transava com bicho. Não havia a sensibilidade feminina equilibrando esse jogo de sedução. Eram dois iguais procurando se saciar. Essa era a visão de Henrique.
Ele esboçou um sorriso. Não deixava de ser engraçado. Ali à sua frente estava aquele homenzarrão de quase dois metros, bem apessoado. Túlio era do tipo que nunca despertaria suspeitas. No entanto, ele estava ali, cabisbaixo, impotente, implorando-lhe ajuda. Aquilo cheirava a romance. E romance Henrique não queria com ninguém.
Mas precisava ser cauteloso. Túlio era bonachão, mas às vezes revelava um temperamento estouvado. Era melhor não arriscar enfurecê-lo. Procurando dissimular a contrariedade, Henrique passou delicadamente sua mão no queixo do brutamontes.
- Compreendo sua aflição. Conheço homens que deram cabo da própria vida por causa da sexualidade. Isso é bobagem. Se eu fosse você, continuava assim, levando a vida do mesmo jeito.
- E minha consciência?
- Que consciência, Túlio? Bobagem! Vá levando sua mulher na lábia, e, quando pintar a vontade, é só ir à caça.
Nesta cidade há muito homem disponível e com as mesmas vontades que nós.
- Eu sei. Sexo encontra-se em qualquer lugar. Mas não é disso que estou falando. A convivência com você me mostrou que é possível dois homens viverem juntos.
Henrique sentiu o ar faltar-lhe. Túlio estava mais envolvido do que podia imaginar. Precisava ser deveras cauteloso.
- A gente vai acertar isso mais cedo ou mais tarde.
Túlio abraçou-o, mas Henrique sentiu repulsa. Estava achando enfadonha toda aquela cena.
Repentinamente, Túlio ajeitou-se rápido no sofá e disse, com olhos brilhantes:
- Ei, quer viajar comigo?
- Viajar? Para onde?
- Não sei, Vamos para uma praia qualquer. O que acha de Ilhabela?
Henrique fez muxoxo.
- Muito mosquito. Não dá para ser um lugar mais badalado? Poderíamos ir ao Rio de Janeiro.
- Não posso. É que conheço uma pousada em Ilhabela. Podemos ficar lá uns dias.
- Assim, sem mais nem menos?
- Consegui uns dias de licença, por conta das horas extras. Inventei para Matilde que tenho trabalho fora da cidade. Temos uma semana. Só não quis ir hoje por causa do aniversário de meu filho. Henrique, preciso viajar, tirar uns dias a seu lado. Tenho certeza de que essa viagem vai ser decisiva para o que planeio.
- O que planeia?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 24, 2024 8:51 pm

- Se tudo correr bem, se nos dermos bem, longe de tudo e de todos, gostaria de viver a seu lado.
Henrique torceu o nariz. Passar uma semana ao lado daquele bolha? Nunca! Viver com um chiclete como aquele?
Jamais! Precisava agir rápido, inventar algo, em questão de segundos.
- Maria Lúcia está para dar à luz. Não posso me ausentar.
- Ela tem marido, tem família.
- Está louco, Túlio? Sou assistente dela; não posso sair assim, sem mais nem menos. Quem mandou inventar sem me consultar?
- Queria lhe fazer uma surpresa - disse, abaixando a cabeça, tristonho.
- Você e essa mania de surpresas. Não posso. Não dá.
- E o que faço? Gostaria que você fosse viajar comigo.
- Sinto muito. Viaje só. Acho que é até melhor. Espaireça, reflicta, veja o que é bom para você. Está muito dividido, não sabe direito o que quer da vida. Quando voltar de viagem, conversaremos. Agora, por favor, estou atrasado.
Maria Lúcia me espera.
- A esta hora?
Henrique irritou-se.
- A hora que ela quiser. Que foi? Vai ficar me vigiando?
Pensa que sou a boba da Matilde? Vá, saia logo!
- Como pode ser tão grosso? Estávamos bem até agora.
- Você me tira do sério.
Túlio sentiu-se constrangido. Estava alimentando esperanças de ser compreendido, talvez até amado. Havia feito planos enquanto ia para o apartamento de Henrique.
Pensara com carinho na pousada, nos caminhos à beira da praia, nos momentos de prazer que poderiam desfrutar juntos. E agora estava nítido que Henrique não seria a pessoa certa para lhe ajudar com seus problemas. Mostrava-se um indivíduo egoísta, mesquinho, sem escrúpulos.
Túlio vestiu-se rapidamente.
- Estou desorientado... Vou para casa. Depois nos falamos.
- Está bem. Boa festinha.
Túlio virou-se, abriu a porta e partiu. Henrique serviu-se de um uísque.
"Preciso impedir a entrada de Túlio aqui no prédio.
Ainda bem que o enrustido desorientado vai viajar uns dias.
Tenho tempo de sobra para arquitectar e pôr em prática meus planos, sem interferências. Ele não me serve mais. Está apaixonado. Imbecil! Fraco! Não gosto desses tipos."
Perambulou pelo apartamento. Precisava sair. A conversa de Túlio irritara-o.
"Quer saber de uma coisa? Vou até o Dops conversar com Medeiros. Preciso esquecer as besteiras que ouvi de Túlio. Está na hora de pregar um susto em Marines."
Ele riu. Procurou lembrar-se de como estava vestido no dia em que Medeiros não conseguia tirar os olhos de cima dele.
- Ah, já sei!
Tomou banho caprichado. Vestiu um elegante blazer, perfumou-se, pegou uma sacolinha e saiu. Dentro do carro, dizia para si:
- Vamos até o Largo General Osório. Faz tempo que não apareço no Café Mocambo. Estou com saudade do delegado Medeiros. Preciso de um grande favor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 24, 2024 8:52 pm

Capítulo 15
Henrique estacionou o carro defronte ao prédio do Dops, na região da Luz, pegou a sacola e indagou a um sentinela:
- Olá . O dr. Medeiros se encontra?
- Segundo andar, terceira sala à esquerda.
Henrique subiu as escadas e rumou até o local indicado. Ajeitou os cabelos, respirou fundo, pigarreou. Bateu levemente na porta.
- Pode entrar.
- Doutor Medeiros?
O delegado fitou-o de cima a baixo.
- Ora, ora, Henrique. Que surpresa agradável!
Medeiros aproximou-se e abraçou-o.
- Quanto tempo! Está namorando?
- Não, doutor. Estive ocupado com muito trabalho.
- Não precisa me chamar de doutor. Sou Medeiros, mais nada.
Henrique sorriu.
- Está certo, Medeiros.
Era evidente a cobiça estampada nos olhos do delegado. Não poderia receber visita mais agradável àquela hora da noite.
- Posso prender um minuto de sua atenção?
- Claro! Por favor, feche a porta, sim?
Henrique fechou a porta e ficou parado em frente ao delegado.
- Sente-se. Quer um café?
- Não, obrigado.
- O que o traz por estas bandas?
O rapaz pigarreou. Torceu as mãos e por fim disparou:
- Sabe, doutor, sou um cidadão brasileiro acima de qualquer suspeita. Nunca me envolvi com manifestações: estudantis, com política. Sempre me dediquei à família, ao trabalho, a meu país.
Medeiros gostou da maneira como Henrique falava.
O jovem continuou:
- Tenho pavor à guerrilha urbana. Essas pessoas merecem ser torturadas e mortas. Onde já se viu? Assalto a Banco, sequestro de embaixador... Que imagem estão fazendo do Brasil lá fora? Sou contra comunismo, amo a pátria, sou verde-amarelo.
— Gostei. Se todos os jovens pensassem como você, teríamos menos problemas. Mas o que podemos fazer? Combater, combater...
— Já que tocamos nesse assunto... O que aconteceu àquela comunista de araque?
- Aquela que você nos entregou de bandeja? A que fingia ser cabeleireira?
- Ela mesma.
Henrique era diabólico. Sabia que Medeiros metera as mãos na moça. Estremeceu de prazer no dia em que a polícia invadiu o salão e achou as provas incriminatórias no quartinho dos fundos. Os vizinhos ficaram aterrorizados.
Estela havia viajado com Gaspar. Dois delegados e três policiais ficaram à paisana, esperando. Obviamente, Henrique avisara o dia e horário próximos de chegada, pois sondara Gaspar. Assim que chegaram de viagem e Gaspar a deixou na porta de casa, eles a pegaram. Mas Henrique queria saber mais, queria ouvir, com crueza de detalhes, o triste fim da pobre moça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 24, 2024 8:52 pm

O combate à guerrilha urbana e a seus simpatizantes era feito à custa de caça de informações, e aí se abriu caminho para a tortura. Realizada em larga escala no período de 1969 a 1975, transformou siglas como Dops e DOI-Codi em sinónimos de violência contra o indivíduo desarmado.
Tudo em prol da "segurança nacional", e, por esta razão, a tortura era justificada. Estela tornou-se mais uma simpatizante que mereceu ser interrogada e torturada até morrer.
Cada vez mais a máquina montada pelos militares e policiais actuava sem piedade, prendendo, interrogando, torturando e, como no caso de Estela, matando.
Medeiros riu alto.
- A polícia estava de olho em Estela, mas, quando ela começou a sair com aquele seu amigo, logo desistiram de continuar investigando a moça; concluíram que ela não oferecia perigo. Então eu e você nos encontramos naquele bar, você me contou tudo que sabia, que o salão de cabeleireiro era pura fachada... Foi um deus nos acuda aqui na delegacia.
Aquela vigarista nos deu trabalho. Demorou para morrer.
Está enterrada em alguma vala, num cemitério qualquer.
- Teve o que mereceu.
- Sem dúvida.
- Eu gostaria de colaborar mais uma vez. Sinto-me no dever de ajudar o país a banir esse bando de comunistas inconsequentes.
- Outra colaboração? Depois daqueles elementos de acusação contra a comunista, você é tido em alta conta aqui dentro.
- Obrigado, Medeiros. Foi meu dever de cidadão, nada mais. Tenho aqui em mãos provas irrefutáveis de que uma conhecida está ligada à guerrilha urbana. Anda solta e mal desperta suspeitas.
Medeiros remexeu-se na cadeira, nervoso. Tinha ódio daquela gente, daqueles comunistas. Henrique percebeu o brilho odioso no olhar do delegado e ajuntou:
- É só uma suspeita.
Medeiros arregalou os olhos de prazer.
- Mas você tem o nome? Alguma prova?
- Sim.
- O que tem aí?
Henrique pegou a blusa, uma cópia da identidade de Marines, as fotos. O documento original foi parar na bolsa dela no dia seguinte, com a ajuda de Maria Lúcia, que deu um jeito de colocar o documento na bolsa da irmã. Marines nada percebeu, como também não se dera conta da blusa que sumira.
Henrique era muito bem informado. Lia jornais e revistas. O governo, quando derrubava um aparelho, local onde os guerrilheiros se escondiam, fazia questão de que
os jornais publicassem a matéria, com fotos dos presos, do esconderijo. Faziam grande alarde, justificando à populaça os métodos truculentos de combate aos opositores à ditadura. Sabendo que um esconderijo havia sido recentemente descoberto, Henrique arriscou:
— Soube, pelos jornais, que um aparelho foi desarmado recentemente na Lapa.
Medeiros entrou na conversa. Foi categórico:
— Isso é verdade. Mas não encontramos nada. Reviramos a casa toda: nem uma pista.
- Aí você se engana. Olhe o que estava atrás da grade de protecção da geladeira.
Medeiros pegou a blusa, a identidade, as fotos. Por seus olhos passou um brilho sinistro. Mesmo assim, inquiriu:
- Tem certeza?
Henrique não sabia o que dizer. Medeiros estava fazendo perguntas demais, e isso não estava em seus planos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 24, 2024 8:52 pm

Achava que era fácil plantar provas contra qualquer pessoa.
Afinal, eles não estavam loucos atrás dos combatentes?
Precisava mudar o rumo da conversa e usar seu charme.
Aquilo tudo era só para dar um sustinho em Marines, nada de mais. Pensou rápido e soltou:
— Acha que trouxe esses elementos sem fundamento algum?
-Tentaram fazer isso algumas vezes. Alguns policiais plantaram provas contra desafectos. Isso é perigoso. Dessa forma perdemos o controlo, e isso não pode acontecer.
Henrique engoliu em seco. Mudou o tom de voz.
— Confie em mim. Estou fazendo minha parte como cidadão. Minha consciência está tranquila.
— Bem, se tudo isso estava na casa arrombada na Lapa, essa moça está encrencada.
— Confie em mim, doutor.
— Se for engano, posso perder meu posto. E, se isso vier a acontecer, você pode se meter numa grande encrenca.
Henrique encarou Medeiros nos olhos. O delegado excitou-se com tamanha carga de sedução. Subitamente esqueceu-se daquelas provas, porque denúncias desse tipo chegavam todos os dias. Passou a língua pelos lábios.
— O que vai fazer agora? Tem compromisso?
- Tenho.
- Que pena!
- Vou sair com um delegado e fazer com que ele tenha uma das noites mais inesquecíveis de sua vida.
Medeiros meneou a cabeça para os lados. Adorava aqueles garotões atrevidos, que iam directo ao assunto. Gostava particularmente de Henrique, que conhecia intimamente.
- Agora não posso sair. Saio às duas da manhã. Muito tarde?
- De jeito algum - Henrique tirou um cartão do bolso do paletó. - Este é meu endereço. Às duas e meia está bom para você?
- Está.
Henrique levantou-se e apertou a mão do delegado.
Encostou deliberadamente seu rosto no dele.
- Aguardo você logo mais. Prometo que não vai se arrepender.
- Você nunca me decepcionou.
Medeiros sentiu uma onda percorrer seu corpo.
Aquele rapaz tinha um forte magnetismo, pensou, excitado. Henrique despediu-se e saiu. Ganhou a rua e entrou no carro, sorridente.
"Pronto. Só quero ver o susto que Marines vai levar.
Ela me paga. Agora estamos quites. Só um susto..."
Ele deu partida no carro e saiu cantarolando, contente.
Sombras escuras abraçavam-se a ele, sugando sua energia, alimentando-se de seus pensamentos sórdidos.
Henrique consultou o relógio.
"A esta hora, Clóvis já está na Galeria Metrópole.
Óptimo. Preciso atender dois caras esta noite. Tenho de cronometrar o tempo com precisão. Preciso arrastar a bichinha do Clóvis até em casa e dispensá-lo até as duas da manhã. A casa precisa estar bem arrumadinha para receber o delegado todo-poderoso."
Ele estacionou o carro na garagem e correu até a galeria, lá perto. No caminho foi flertando com rapazes, em sua maioria prostitutos, conhecidos como garotos de programa ou michês, que frequentavam a região buscando uns trocados por sexo rápido. Ele gostava de pagar os rapazes para ter sexo com ele. Henrique sentia-se poderoso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:51 am

Algumas vezes subjugava os meninos, porque ele pagava e eles tinham de fazer o que ele bem entendesse.
Um michê veterano e conhecido por dar safanões em alguns clientes aproximou-se. Marcos tinha dado uma grande surra num cliente tempos atrás, e isso afectará sua reputação. Muitos tinham medo de fazer sexo com ele, temendo que algo pior pudesse acontecer. Henrique gostava de Marcos de uma maneira especial. Aquele jeito bruto, de dar tapas e ser nervosinho, excitava-o.
Marcos abordou-o:
- E aí, vamos fazer um programa?
- Hoje não vai dar, Marcos. Tenho compromisso.
- Se o problema for preço, a gente discute depois.
Você é freguês antigo. Dou desconto.
Henrique consultou novamente o relógio.
- Outra hora. Tenho compromisso e estou atrasado.
- Até a próxima, então. Vou ficar no aguardo. Você é especial para mim.
Henrique deu uma risadinha. Adorava fazer sexo com Marcos. Ele o dominava, era do tipo fortão. Valia a pena. Ele correu e entrou na galeria. Não demorou muito e encontrou um grupo de conhecidos. Cumprimentou as pessoas e dirigiu-se até Clóvis.
- Como vai?
- Tudo bem?
- Tudo, Clóvis. Como andam as coisas?
- Não estou escutando você direito. Muita bagunça aqui.
- Também não o escuto.
- Só vim porque era festinha de Dalton. Não gosto de frequentar esses lugares.
- Entendo. Eu também não gosto.
- Não estou ouvindo.
Henrique convidou:
- Quer ir até em casa? Acho lá mais tranquilo. Comprei um disco de Julie London, fora de catálogo, que estava procurando fazia muito tempo.
Clóvis animou-se:
- Você gosta de Julie London?
- E por que o espanto?
- Por nada... É que... É tão difícil gostarem dela. Fez muito sucesso nos anos cinquenta.
- Uma das cantoras americanas de voz mais aveludada...
Henrique fez-se de bobo. Havia colado em Dalton para arrancar informações acerca de Clóvis. Fizera um questionário, querendo saber gostos, preferências, o que gostava de ouvir, de comer, lugares que frequentava. Feito o interrogatório, começou a bolar como conquistar o moço. Durante os dois encontros anteriores, ficou estudando o comportamento do jovem. Conforme se encontravam, mais Clóvis lhe parecia bobinho, romântico, bem fácil de ser enganado.
- Moro aqui do lado. Vamos, eu lhe sirvo um drymartini e conversamos ao som de Julie.
- Você também gosta de drymartini? Não acredito!
Que coincidência!
- É, vai saber o que o destino nos reserva... - Henrique continuava com as tiradas certeiras.
- Qual seu signo?
- Câncer. Mas não me diga o seu.
- Por quê?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:51 am

Henrique fez ar misterioso.
- Adoro descobrir signos. Deixe-me ver... — Por fim disparou: — Você só pode ser de Sagitário.
Clóvis sobressaltou-se:
- Não é possível! Você entende de astrologia?
- Um pouco.
- Como adivinhou meu signo?
- Porque você parece querer alargar a visão, conhecer outros lugares, outras culturas. É necessidade sua conhecer países e pessoas diferentes de onde nasceu. É justiceiro, luta pelos fracos e oprimidos...
- Nossa, como pode saber tanto a meu respeito?
Esse é nosso terceiro encontro, e nos outros dois você mal falou comigo.
- A vida é cheia de surpresas.
Clóvis sorriu. Despediram-se do grupo, que não deixou de fazer comentários e brincadeirinhas com ele e Henrique.
Ganharam a calçada. Henrique continuou:
- Sei que você é especializado em história da arte.
- Fiz especialização na Sorbonne, em Paris.
— Eu queria aprender tanto algumas coisas. Será que esse sagitariano lindo poderia me ensinar?
Clóvis passou seu braço pela cintura de Henrique.
— Posso lhe ensinar tudo que quiser.
Henrique abraçou-o, sorriu e pensou:
"Meu Deus, que bicha mais tonta! Caiu feito um patinho. Nunca pensei que fosse tão fácil. Em todo caso, preciso ser rápido." Consultou o relógio. "É, preciso fazer trabalho de Hércules esta noite. Vou tratar deste aqui primeiro.
Antes das duas já o faço descer e aguardo o delegado. Vou
conseguir tudo que quero dessas bichas. Tudinho..."
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:51 am

Capítulo 16
Na noite seguinte, passava das onze e nada de Marines chegar em casa. Iolanda andava de um lado para o outro da sala, torcendo as mãos, demonstrando nervosismo. Floriano tentava acalmá-la:
— Logo teremos notícias.
— Não é possível. Marines nunca foi de se atrasar, e, quando o fez, sempre nos ligou. Tem certeza de que ela não está na casa de Gaspar?
— Celeste ficou de nos avisar caso Marines aparecesse.
— Estou sentindo um aperto no peito sem igual, Floriano. Tenho um pressentimento de que nossa filha não está bem.
Floriano fez com que a mulher se sentasse e abraçou-a.
Procurou acalmá-la:
— Vai dar tudo certo. Nossa filha logo vai estar em casa.
— Por favor, faça-me uma gentileza.
— O que é?
— Poderia chamar Alzira?
— Está tarde. Não devemos perturbá-la.
— Mas trata-se de nossa filha, Floriano. Estou aflita.
Meu coração de mãe não se engana: Marines está correndo perigo. Não estou louca, acredite em mim.
Floriano ia replicar, mas o som da campainha desviou sua concentração. Ele e Iolanda tiveram um sobressalto.
Seria alguém trazendo notícias? Iolanda não conseguiu levantar-se. Floriano correu até a porta.
— Deixe que eu atendo.
Girou a chave e abriu a porta ansioso.
— Boa noite, Floriano.
— Que susto! Pensei que fosse alguém trazendo notícia desagradável.- Sei o que se passa.
- Estávamos relutando em ligar para você. Está tarde.
Alzira cumprimentou-o e foi entrando.
- Recebi um comunicado dos amigos do astral. Vim por causa de Marines.
Iolanda quase desfaleceu. Indagou aflita:
- Não minta para mim, Alzira, por favor. Você tem alguma notícia dela? Os espíritos disseram algo?
- Calma! - Alzira virou-se para Floriano: - Traga um copo de água com açúcar, por favor.
Imediatamente Floriano foi até a cozinha. Voltou em seguida, e Alzira fez Iolanda tomar a água vagarosamente.
- Sente-se mais calma?
- Um pouco. Essa dor no peito me mata.
- Coisa de mãe.
- Eu sinto, não sei explicar... Sabe, é como se minha filha corresse risco de morte.
- O s amigos espirituais pediram para que tenhamos fé, que oremos e vibremos em favor de Marines. Algo desagradável lhe ocorreu, e vamos precisar de muito equilíbrio para que ela volte logo para casa.
- O que mais eles disseram? Onde está minha filha?
Iolanda não suportava tamanha aflição. O pranto corria solto pelas faces. Marines era sua filha adorada, amiga de todas as horas, tão diferente de Maria Lúcia, que os abandonara assim que se casou. Marines era diferente:
possuía boa índole, tinha carisma, era simpática e adorada pelas pessoas. Nunca havia feito nada de ruim; então por que estaria passando por maus bocados?
- Alzira, minha filha é uma pedra preciosa, um anjo que sempre esteve a meu lado, trazendo somente alegrias.
- Marines é forte, vai superar isso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:51 am

- Mas onde ela está?
- Não importa onde esteja. Vim lhe dar conforto, dizer que logo ela vai estar entre nós.
- Como Deus pôde ser tão injusto?
- Deus não é injusto, Iolanda. A vida tem suas leis e sabe o que faz. As forças universais sempre trabalham em nosso favor, mesmo que a situação que estejamos experienciando seja interpretada como ruim ou desagradável.
— Mas e minha filha? Será que foi assaltada, currada?
O que pode ter acontecido a Marines? Isso me aflige muito mais. Floriano ligou para hospitais, prontos-socorros, delegacias, e nada. Só faltou... - Ela fez uma pausa, respirou fundo e por fim disse emocionada: — Só faltou o Instituto Médico Legal.
Alzira passou a mão por seus cabelos.
— Marines não morreu.
— Como pode dizer com tamanha certeza?
— Não confia em mim?
Iolanda fez sinal positivo com a cabeça.
— Preciso de concentração.
— Para quê?
— Você e Floriano poderiam me ajudar?
— Claro! O que devemos fazer?
— Fiquem a meu lado e dêem-se as mãos. Firmem o pensamento em Marines, fazendo o tempo todo uma imagem positiva dela.
— Desculpe, Alzira - interrompeu Floriano. - Eu não sei fazer essas coisas. Não sei se vou poder ajudar.
— É simples. Feche os olhos e imagine Marines rindo, alegre, falando sobre as aulas interessantes da faculdade, sobre seus projectos. É difícil?
— Não, de maneira alguma. Imaginar minha menina rindo é fácil. Ela só ri.
— Então, sente-se a meu lado. Iolanda, chegue mais perto.
Eles prontamente se acercaram da vizinha. A médium solicitou que o casal esticasse os braços e se desse as mãos, de forma que ela ficasse entre os dois. Feita a corrente, Alzira ordenou que ambos fechassem os olhos e pensassem em Marines bem-disposta, feliz, alegre. Alzira fechou os olhos e logo depois sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
— Continuem vibrando. Imaginem-na bem. Os espíritos vão me mostrar o local onde ela se encontra.
O casal permaneceu de olhos fechados fazendo o que fora solicitado. Após alguns instantes, os espíritos mostraram a Alzira onde Marines se encontrava. A médium assentiu com a cabeça e agradeceu aos amigos espirituais. Respirou fundo e tornou:
- Pronto. Podem desfazer a corrente e abrir os olhos.
Iolanda continuava aflita.
- E então? O que você viu ou ouviu?
Floriano e Iolanda não desgrudavam os olhos de Alzira, tamanha aflição.
- Marines encontra-se numa delegacia.
- Numa delegacia! - exclamaram os dois ao mesmo tempo.
- Não pode ser! O que Marines estaria fazendo numa delegacia? Foi assaltada? - perguntou Floriano.
- Está prestando depoimentos.
- Impossível. Floriano ligou para várias delegacias, e nada.
- Ela está num outro tipo de delegacia. Marines está no Dops.
Iolanda sentiu o ar faltar-lhe. Permaneceu imóvel, sem reacção, tamanho o choque.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:52 am

Floriano respirou fundo e levantou-se, nervoso:
-O que nossa filha estaria fazendo no Dops? Ela nunca se meteu com política ou com grupos de esquerda. Tem certeza, Alzira?
- Foi o que pude ver. Os espíritos me mostraram a placa na porta da delegacia e Marines sendo interrogada numa sala, mais nada. Rogaram que procuremos o dr. Osvaldo Vidigal.
- O pai de Eduardo?
- Ele mesmo.
- Por quê?
- Foi a informação que recebi.
- Mas o que o pai de Eduardo tem a ver com isso tudo?
- Floriano, estou transmitindo o que os amigos do astral me pediram. Precisamos agir muito rápido.
- Mesmo?
- Confiam em mim?
Iolanda voltou a concatenar as ideias.
- Eu confio. Você sempre nos ajudou. Nunca levei o estudo da mediunidade a serio, mas, se estamos recebendo ajuda espiritual para minha filha sair dessa enrascada, juro que vou me dedicar ao estudo da espiritualidade.
- Não prometa nada, minha amiga. Estuda quem quer, quem tem vontade. Não se obrigue a nada. Faça o que seu coração quiser. Há espíritos do astral superior, espíritos do bem, que estimam muito Marines. Ela mereceu ajuda. Depois conversaremos mais a respeito. Primeiro precisamos ligar para Eduardo. Ele terá de nos ajudar.
- Já deixei dois recados para Maria Lúcia e não obtive nenhum retorno. Acho que não estão em casa.
- Tentem de novo. Maria Lúcia não quer atendê-los.
Peça à empregada para falar com Eduardo.
Floriano correu até o telefone e fez o que Alzira pediu.
Em instantes, do outro lado da linha, Eduardo era colocado a par do acontecido. Ao pousar o fone no gancho, ele correu até o quarto, colérico.
- Maria Lúcia, por que não quis atender seus pais?
- Não estava com a mínima vontade de falar com minha mãe. Desde que nos casamos, perdi o interesse.
- São seus pais.
- Danem-se. A única pessoa que presta naquela casa é meu pai. Mas, quando ele liga de casa, minha mãe sempre quer dar uma palavrinha, saber do bebê. Não tenho paciência para conversar com ela. Você sabe disso.
- Sua irmã foi detida.
- O que disse?
- Marines foi presa.
- E daí?
Maria Lúcia permanecia imperturbável, recostada na cama. Aquilo deixou Eduardo em estado apopléctico.
- Como, e daí? É sua Irmã.
- Quanto drama!
- Ela corre risco de morte.
- Azar o dela. Nunca nos demos bem. Quero mais que ela morra.
Eduardo quase perdeu o equilíbrio. Levantou a mão, e por multo pouco não esbofeteou a mulher. Ficou sustentando a mão no ar, olhos injectados de fúria. Maria Lúcia tinha a capacidade de descontrolá-lo. Ela reagiu, colérica:
- Bata!
Eduardo não respondeu. Baixou a mão e respirou fundo.
- Bata, vamos!
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:52 am

- Você não merece meu tapa.
- Covarde! Bater numa mulher grávida...
- Você me tira do sério.
- Você se preocupa mais com minha irmã do que comigo. Estou prestes a dar à luz e você nem se importa.
- Vou ajudar sua irmã.
- Sei muito bem de suas intenções.
- Se você não sente nada por ela, eu sinto.
- Ah, então admite?
- Admite o quê?
- Bem que Henrique me falou - bramiu ela, colérica.
- Falou o quê?
- Que você sempre olhou Marines com outros olhos.
- Intriga desse futriqueiro de araque. Ele enche sua cabeça de besteiras.
- Henrique está certo. É só olhar para sua cara quando fala nela. Você gosta de Marines.
- Claro, é minha cunhada.
- Não, não! Gosta como homem, com desejo. Que sujeitinho mais imundo!
- Cale a boca, Maria Lúcia! Está me tirando do sério.
Pare!
- Cobiçar a cunhada...
- Pare, por favor!
- Isso está parecendo conto de Nelson Rodrigues.
Eduardo levantou a mão e desferiu violento tapa no rosto de Maria Lúcia.
- Você não presta!
Ela permaneceu imóvel. Eduardo explodiu:
- Você não tem sentimentos por ninguém a não ser por você mesma. É fria, egoísta. Sim, eu olho para sua irmã com outros olhos.
- Então admite, desgraçado?
- Na verdade, deveria ter me casado com ela, nunca com você.
Os olhos de Maria Lúcia ficaram vermelhos de tanto ódio. Ela avançou sobre Eduardo e começou a baterem seu peito e a gritar ensandecida. Eduardo ignorou-a:
- Desta vez não vai conseguir. Chega de me tratar feito lixo.
- Maldito! Traidor!
Maria Lúcia continuou esmurrando-lhe o peito. Ele tentava defender-se. Num lance rápido, jogou a mulher sobre a cama.
- Vou salvar sua Irmã dessa enrascada.
- Você não vai.
- Vou, sim. E chega! Depois conversaremos.
Maria Lúcia teve impulso de gritar, de falar a verdade.
Queria atirar na cara de Eduardo que o filho que ela carregava em seu ventre era de outro, que aquela barriga que ele tanto acariciava...
Abriu a boca para falar, mas uma frieza descomunal impediu-a. Maria Lúcia respirou fundo. Pegou o copo ao lado da cama. Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Disse para si mesma:
- É melhor eu me segurar. Agora não é o momento.
Preciso esperar o nascimento do bebê.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:53 am

Passou um pouco de água no rosto. Encheu o copo na torneira, abriu o armarinho e pegou um analgésico. Ao fechar o armarinho viu sua imagem reflectida no espelho.
Metade de seu rosto estava vermelha; podia ver nitidamente as marcas dos dedos de Eduardo.
"Maldito! Você ousou me bater. Estela fez o mesmo e levou o troco. Gaspar vai levar o troco no tempo certo. Você não perde por esperar, Eduardo. Quando esta criança completar um ano de vida, eu conto tudo. Quero ver sua reacção.
Eu vou esperar. Preciso manter o equilíbrio."
Ela ajeitou os cabelos, depois os escovou. Tomou o analgésico, voltou para o quarto e ligou para Henrique.
- Venha para cá.
- Agora? Estou namorando.
- Largue seu namorado e venha. É urgente.
- Mas, Maria Lúcia...
- Eduardo saiu daqui atrás de Marines. Estou uma pilha.
Henrique animou-se:
- Como é que é?
- Parece que ela está detida, sei lá.
- Amanhã apareço por aí.
- Henrique, não estou em meus melhores dias. Não discuta.
Henrique desligou o telefone, eufórico. Clóvis remexeu-se na cama.
- Algum problema?
- Maria Lúcia não está bem. Precisa de mim, coitada.
- Algo grave?
Henrique esboçou um sorriso sinistro. Tinha certeza de que Marines fora pega. A noite anterior que passara com Medeiros rendera-lhe bons frutos. O velho era nojento, babava, mal mantinha a erecção. Henrique odiava aqueles encontros, mas fazer o quê? Tinha de fazer o sacrifício. O rapaz teve de representar, fazer esforço enorme e agradar aquele velho asqueroso. Mas implorara tanto para que ele desse um jeito em Marines...
Medeiros cumprira o prometido. Quem sabe, àquela altura, Marines não estaria sendo interrogada e, por que não, torturada? A esse pensamento Henrique teve um espasmo de felicidade. Clóvis cutucou-o:
- O que foi? Que cara feliz é essa?
- Hã?
- Você disse que Maria Lúcia não está bem. Por que o sorriso?
Henrique voltou à realidade.
- Nada, amorzinho. Estava pensando aqui com meus botões: como Deus foi generoso em colocar você em meu caminho!
***
Eduardo saiu correndo do quarto. No hall, pegou o telefone e ligou para o pai.
- Preciso de um favor seu.
- A esta hora?
- Foi uma amiga que pediu, dizendo que você pode nos ajudar.
- Do que se trata, filho?
- Pai, antes de mais nada, responda-me outra pergunta.
- Mande.
- Você esconde alguma coisa de mim?
- Não, por quê?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:53 am

- Sempre me contou tudo, nunca escondeu nada?
Nem lá na empresa?
- Nunca. Por que tanta pergunta estranha a esta hora da noite?
- Você conhece o pessoal do Dops?
O outro lado da linha ficou mudo. Eduardo repetiu a pergunta.
- Conhece o pessoal do Dops?
- Mais ou menos, quer dizer... Co... Conheço - balbuciou Osvaldo.
- Não me interessa como se envolveu com esse pessoal, mas preciso de um favor especial, urgente, pelo amor de Deus.
Eduardo contou o que acontecera: o sumiço de Marines, o desespero dos pais. Não omitiu o recado dado a Alzira pelos espíritos, que afirmaram que Osvaldo poderia ajudá-los no caso. O pai achou tudo fantasioso.
- Quem é essa mulher?
- Você não conhece. Eu, também não. É vizinha e amiga de d. Iolanda.
- Ela é de confiança?
- Não sei, pai. Mas, se ela disse tudo isso...
Osvaldo nunca se envolvera com política, mas, para continuar expandindo seus laboratórios pelo país todo, foi obrigado a contribuir com grossa quantia em dinheiro para financiar e manter á Oban. Criada com o intuito de coordenar o trabalho de diversos grupos, subordinando oficiais de órgãos de informação do exército e policiais militares, a Oban era comandada pelo delegado da polícia civil Sérgio Paranhos Fleury. Esse órgão contava com mecanismos próprios de financiamento, vindo sobretudo de doações, nem sempre espontâneas, de empresários, industriais e homens de negócios assustados com a crescente agitação da esquerda.
A operação Bandeirante foi responsável pela captura e morte de Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional e o precursor da guerrilha urbana no país. A Oban serviria de embrião para o surgimento do DOI-Codi e a reestruturação do Dops.
Osvaldo parecia viver um inferno. Tinha horror a tudo aquilo, e havia um bom tempo não mais contribuía, mesmo porque o País vivia o auge da época do milagre económico e a luta armada chegava ao fim. Estava boquiaberto do outro lado da linha. Ninguém, nem mesmo outros directores da companhia, sabiam dessa ligação.
Como uma mulher com quem jamais tivera contacto na vida podia saber de sua conexão, mesmo que forçada, com os órgãos repressores? Tanto o pessoal desses órgãos quanto os empresários que os financiavam usavam apelidos.
O de Osvaldo era Matos.
Osvaldo sentiu a boca secar, a saliva sumir. Não gostava de pedir favores àquela gente, queria distância, mas, diante da insistência e desespero do filho, ligou pessoalmente a Sérgio Paranhos Fleury, o homem mais poderoso da polícia naqueles anos de chumbo.
* * *
Enquanto Osvaldo tentava a todo custo localizar o delegado Fleury, Marines era interrogada por um grupo de investigadores. Um deles, truculento ao extremo, foi escolhido a dedo pelo delegado Medeiros.
- Pare de mentir! A identidade e a blusa foram encontradas no local. Você é integrante da quadrilha, não é?
Marines estava nervosa. Sentia-se arfante, mas pediu o tempo todo por ajuda espiritual. Embora com medo, ela foi incisiva:
- Alguém plantou isso. Se eu fosse ligada a algum grupo, se eu fosse militante de verdade, jamais usaria documentos verdadeiros. O senhor pode verificar minha ficha, ver meus antecedentes. Sou limpa, nunca tive envolvimento com nada. Sou apenas uma estudante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:53 am

Os investigadores entreolhavam-se. Marinho, o truculento, olhava-a desconfiado; Peixoto, inspirado pelo plano espiritual, sentia que ela estava sendo sincera, pois ele mesmo havia estado no aparelho da Lapa, revirara o imóvel pelo avesso e não tinha encontrado nada. Coçou o queixo, pensativo.
- Vamos liberá-la. Alarme falso.
Marinho, envolvido por sombras que se alimentavam de seu instinto violento, deu estrondoso soco sobre a mesa.
- Está louco? Foi o próprio dr. Medeiros que solicitou este aperto. Deixe de ser maricas, Peixoto.
Antes de Peixoto dizer alguma coisa, Marinho ordenou a dois policiais, tomado por uma fúria incontrolável:
- Leve-a para a sala de choques.
Marines sentiu o sangue gelar. Suas mãos começaram a suar. Intimamente orou e pediu protecção aos amigos invisíveis. Peixoto interveio:
- Por favor, isso não é necessário.
- Se se meter de novo, juro que o mando para a mesma sala - respondeu Marinho, ensandecido.
- Você não seria capaz. Nem pode.
- Ah, não? Então me provoque.
Marinho falava com brilho horripilante no olhar. Peixoto gelou. Meneou a cabeça para os lados, impotente. Ele precisava ajudar aquela moça.
"Ela não vai escapar do choque, mas pode escapar da morte", pensou.
O investigador saiu a toda brida pelos corredores.
Procurou pelo delegado Medeiros, mas este havia ido embora. Peixoto não sabia o que fazer. Pensou, pensou e, num gesto desesperado, arriscou:
"Só mesmo o dr. Fleury!".
Enquanto isso, os policiais a mando de Marinho cercaram Marines, colocaram-lhe um capuz e cada um postou-se a seu lado. Levaram-na até a sala de choques. Era um cubículo de dois metros quadrados, sem janelas, escuro, abafado e húmido; o chão, completamente molhado. Num canto, uma cadeira e dois fios descascados ligados a pequeno aparelho de descarga de voltagem.
Os policiais fizeram-na sentar-se, tiraram seus sapatos e molharam seus pés. Amarraram suas mãos e pernas com panos também molhados. Um deles rasgou a parte de baixo de seu vestido e arrancou-lhe a calcinha. Marines sentiu o suor escorrer pela testa. Ao encostarem os fios descascados e energizados em suas partes íntimas, Marines deu um grito desesperado. Repetiram o acto mais duas vezes. Os gritos eram terríveis, demonstrando a dor pela qual ela estava passando. Seu corpo não aguentou tantas cargas e ela desfaleceu. O cheiro de carne queimada era nauseante.
Peixoto entrou no recinto afoito e ordenou:
- Parem já com isso!
Os policiais permaneceram imóveis, assustados. Marinho, retrucou, irado:
- Como, parar? Mal começamos.
- O dr. Fleury ordenou que parassem com o interrogatório. Se descobrir que começaram a torturá-la, nem sei o que ele é capaz de fazer.
- Conversa fiada!
- Está vindo para cá - tornou Peixoto.
- Ele está vindo para cá?
- Sim. Eu lhe disse que essa moça não era culpada de nada.
- Que sorte a dela! Tem costas quentes.
- Desamarrem-na e me ajudem a levá-la até a sala de curativos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 10:53 am

O investigador Peixoto virou-se em direcção à porta e saiu, aliviado.
"Ainda bem que está viva!", suspirou.
Marinho, revoltado pela suspensão da tortura, perdeu o juízo. Empurrou violentamente os dois policiais e avançou sobre Marines, desferindo-lhe violentos chutes no baixo ventre. Bateu com tamanha força, que assustou os policiais. Um deles correu até Peixoto.
- Ele perdeu a cabeça. Vai matara moça. Faça alguma coisa, seu Peixoto.
O investigador correu em disparada. Pulou sobre Marinho e ambos rolaram pelo chão.
- Desgraçado! Assassino! Vou contar tudo ao Dr. Fleury. Espero que você vá para o pau-de-arara.
Marinho não respondeu; desenvencilhou-se de Peixoto e saiu cambaleante.
Os amigos espirituais acompanhavam tudo. Para amenizar a dor física, assim que Marines desmaiou na sala de choque eles deslocaram seu corpo astral, processo semelhante ao ocorrido nos casos de anestesia geral.
Uma grande quantidade de sangue começou a correr por entre suas pernas. Peixoto desesperou-se:
- Ajudem-me a levá-la até o Hospital das Clínicas. O tempo urge. Se demorarmos, ela não vai aguentar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:35 pm

Capítulo 17
Henrique estava esparramado numa poltrona colada à cama de Maria Lúcia. Segurava um copo de uísque.
- Então Eduardo saiu atrás da cunhadinha? Não me diga!
- Achei que você estava delirando, mas pude perceber como Eduardo é ligado nela.
- Eu a alertei. Marines se faz de sonsa, mas fisgou seu marido por debaixo dos panos.
- Isso é muito baixo.
- Eu falei. Ela, de santa, não tem nada.
- Você aprontou alguma, não?
- Fiz o que meu pobre coração mandou — disse ele, rindo.
- Como conseguiu meter Marines em tamanha enrascada?
- Contactos, minha querida, contactos.
- Henrique, você é fogo! Vou morrer sua amiga.
- Não se preocupe. Você vai ser sempre minha protegida. Nunca vou sacaneá-la.
- Assim espero!
- Bom, já dei o susto em sua irmã. No fim acabou tudo bem. Ela deve estar em casa, tristinha, mas está viva e se borrando toda. Era o que eu queria.
- Mas Eduardo pode se condoer. E se isso os aproximar?
- Qual o problema?
- Não sei...
-Maria Lúcia, preste atenção: você já conseguiu o que queria. Ganhou sobrenome de família rica. Está prestes a dar à luz, e com isso vai garantir herança e outros direitos. Com um filho a tiracolo, vai se separar com dinheiro suficiente para torrar pelo resto da vida.
- É o que mais quero.
- Se você amasse Eduardo, vá lá. Mas não acha um alívio?
- Alívio?
- Você sente repulsa por ele. Vai ficar livre de vê-lo, de se deitar com ele.
- Isso é verdade.
- E vai ser desquitada, livre e rica. Quer mais?
Maria Lúcia sorriu.
- É verdade. Nunca pensei por esse ângulo.
- E esse barrigão?
Ela passava delicadamente as mãos sobre o ventre dilatado.
- Sei que vou ficar flácida e nunca mais terei o corpo de agora. Mas não posso negar que estou muito feliz com essa gravidez.
- Para cima de mim, Maria Lúcia? Estamos sozinhos no quarto, não precisa fingir.
- Mas é verdade! Ultimamente tenho me sentido estranha. Sem perceber, estou fazendo carinho na barriga, conversando com o bebê. É como se eu já o conhecesse.
- Delírio de grávida.
- Pode ser, mas, conforme vai se aproximando a hora do parto, sinto-me mais envolvida por esse ser.
Henrique não tinha paciência para aquele tipo de conversa. Mudou de assunto:
- Se for uma menina...
Maria Lúcia cortou-o secamente.
- Menina, nunca! Vai ser um menino. Lindo como o pai.
- Realmente, Eduardo é um belo homem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:35 pm

Ela deu uma gargalhada.
- Depois do que aprontou para Marines, devo lhe ser grata. E vou lhe confidenciar um segredo.
Os olhos de Henrique brilharam.
- Segredo? Adoro segredos.
- Segredo de Estado.
- Conte logo, senão eu morro de curiosidade.
- O filho que carrego aqui no ventre não é de Eduardo.
Henrique abriu e fechou a boca sem articular palavra.
- Não posso crer! Não está grávida de Eduardo?
- Não.
- E de quem... Espere aí... Não vai me dizer que...
- Isso mesmo. Seu raciocínio continua perfeito.
- Gaspar!
-A resposta está certa. O próprio.
- Maria Lúcia, você é pior do que eu. Muito mais vil.
Ambos riram a valer.
- Esse será meu trunfo.
- O que pretende fazer?
- Quando meu filho completar um ano de vida, vou contar a verdade a Eduardo.
- Você é muito forte. Haja sacrifício! Mais um ano casada com esse chato!
- O que posso fazer? Preciso ter paciência para dar novo rumo à minha vida.
- Gaspar vai ficar sabendo?
- No momento certo. Ele não quis ser meu amante, então não o será de nenhuma outra mulher. Enquanto eu viver, ele vai ficar só.
- Acho meio difícil aquele monumento ficar solteiro.
- Faço escândalo na porta da igreja, com meu filho, aliás, nosso filho, nos braços.
- Você é diabólica, maravilhosa, um exemplo a ser seguido por aqueles que querem se dar bem na vida.
Maria Lúcia acariciou a barriga.
- Este menino vai nascer em berço de ouro. Vai ter sobrenome de peso. Garanti o futuro dele. E, pensando bem, gostei do que você me disse.
- Sobre?
- Deixar que Eduardo se aproxime de Marines. Melhor para mim. Imagine que ele não queira me dar o desquite. É uma possibilidade; remota, mas concreta. Vou torcer para ele se apaixonar por ela.
- Pelo que sei, ela ia sofrer um pouquinho, talvez levar uns choques. Se Eduardo gostar de torresminho, vai se esbaldar com sua irmã.
Eles gargalhavam sem parar. Tripudiavam sobre a dor de Marines, sobre os sentimentos de Eduardo; não havia limites para os dois. Maria Lúcia e Henrique não respeitavam ninguém, tinham total desprezo às pessoas.
Henrique sentou-se beirada da cama.
- E se Eduardo não der a separação?
- Ele vai dar, de qualquer jeito.
- Ele não vai permitir que você leve o filho. Eduardo sonha com o nascimento do bastardinho.
- Ele vai concordar. Se quiser se casar com a Torresminho, vai ter de abrir mão do filho.
- Pelo jeito, você já tem todo o plano arquitectado.
- Está tudo certo. - Ela falava e acariciava a barriga.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:36 pm


— Tenho certeza de que este filho me trará muita sorte, felicidade. Serei uma excelente mãe, você vai ver.
- Tenho certeza disso.
- E não o chame de bastardo.
- Estou brincando.
- Ninguém pode saber. Bico calado.
- Gasparzinho...
Maria Lúcia pegou um travesseiro e jogou-o contra Henrique.
- Você não presta! Adora colocar apelidos.
- Mas a brincadeira é boa, não é? Quem diria que naquela noite você fosse capaz de engravidar de Gaspar.
- Leis do destino.
- Você é poderosa!
Continuaram entabulando conversação, até que num determinado momento Maria Lúcia, ajeitando os travesseiros atrás das costas, indagou curiosa:
- Como vai a amizade com Clóvis? Tem algo mais para me ensinar?
- Tenho tanta coisa - disse ele rindo e "quebrando" os pulsos. — Ele está comendo em minha mão. Tão sensível!
Tão bobo! Estou sugando o que posso: todo o conhecimento, dicas, livros, boas maneiras, tudo, tudo.
- Depois eu é que sou terrível. Não tem crise de consciência?
- Você, perguntando-me isso? Está louca, Maria Lúcia?
Eu lá vou ter crise? De maneira alguma! Quero que ele se dane! As pessoas estão no mundo para serem usadas, sugadas. Depois que conseguimos o que queremos, jogamos fora. As pessoas não valem nada. E Clóvis merece ser feito de idiota, porque ele é um idiota. Uma bicha tola, deslumbrada. Acha que pode encontrar um homem e se apaixonar. Acredita nessas besteiras de "até que a morte os separe", sabe?
- É presa fácil. E o enrustido?
- Qual deles?
- Aquele grandão, casado com Matilde Mendes Azevedo.
-Túlio? Menina, que chiclete! Graças aos céus, o brutamontes debilóide sumiu.
- Não sente saudade? Você dizia que ele era tão quente!
- Mas há outros tão quentes quanto ele. Preciso parar de me envolver com esses casados problemáticos, cheios de culpa. São muito chatos.
- Túlio era assim? Tão fortão...
- O tamanho engana muito. Túlio é problemático.
Entrou numa crise brava: não sabia se continuava enrustido e casado ou se assumia sua homossexualidade. Você acha que vou ter saco para aguentar esses caras indecisos, inseguros? Já me esbaldei o suficiente com ele. Usei e descartei; agora não preciso mais dele. O que não falta no mundo é homem.
- Isso é verdade. Mas não sente nem um pingo de saudade? Nada?
- Nada, menina, absolutamente nada.
Continuaram a conversa, até que Eduardo apareceu na soleira da porta, semblante transtornado.
- Sua irmã foi encaminhada para o Hospital das Clínicas. Seu estado é grave.
Maria Lúcia fingiu-se preocupada:
- E o que podemos fazer?
- Vou para lá agora. Seu Floriano e d. Iolanda estão no hospital. Ligaram agora há pouco. Quer me acompanhar?
- Não. Estou grávida, e hospital não é local apropriado para mim. Vou ficar aqui com Henrique rezando por ela, torcendo para que fique boa logo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:36 pm

Eduardo balançou a cabeça para os lados, exalou suspiro dolorido e saiu. Maria Lúcia levantou-se com dificuldade, andou na ponta dos pés e trancou a porta. Baixou o tom de voz:
- Será que maltrataram tanto a coitadinha?
Henrique sentiu um brando calor invadir-lhe o peito.
Uma sensação sinistra, macabra.
- As pessoas sempre gostam de exagerar. Não acredite nessa história de "estado grave". Ela só levou uns choquinhos, tenho certeza.
- Como sabe?
- O delegado Medeiros me garantiu que ia solicitar uma interrogação e depois um choquinho, mais nada.
Ela bateu palmas e riu alto. Henrique indagou, falsamente:
- Não está chateada?
- Eu?! Está maluco? Claro que não! Por mim, Marines podia bem era morrer. Não faria falta.
Henrique jogou-se na cama, sorrindo feliz.
- Vinguei-me de sua irmã. Agora posso dormir em paz. Não ia sossegar enquanto não lhe desse o troco.
- Então compreende quão sacrificioso é para mim manter a boca fechada sobre a paternidade deste bebê.
- Não sei se eu aguentaria. E seu marido, menina?
Viu só a cara de preocupação?
- O imbecil está mesmo caidinho por Marines.
- Maria Lúcia, acho que você vai se livrar de Eduardo mais rápido do que imaginava.
- Viu como a vida está a nosso favor? Por isso não acredito em Deus, ou bobagens como reencarnação e vida após a morte. Coisa de gente com cabecinha fraca.
- Nem eu. Ha ha ha!
Os dois caíram na risada. Gargalhavam sem parar.
***
No hospital, Floriano e Iolanda estavam apreensivos.
Eduardo já havia chegado e tinha ido conversar com um dos médicos que recebeu Marines. Ao chegar à sala de espera, seu semblante não era dos mais agradáveis. Iolanda levantou-se visivelmente perturbada.
- O que foi? Ela ainda corre risco de morte?
Eduardo procurou acalmá-la.
- Fique sossegada. Está tudo bem. Logo o médico virá conversar connosco. Está amanhecendo; a senhora não quer se deitar e tirar um cochilo? Eu providencio uma poltrona, qualquer coisa.
- Não. Preciso ficar acordada. Enquanto não receber notícias, não vou sossegar.
Gaspar chegou em seguida. Ele e Eduardo nunca haviam se encontrado antes. Quando Floriano fez as apresentações, ambos se olharam de cima a baixo. Gaspar respirou fundo e apertou a mão de Eduardo.
- Prazer.
- O prazer é meu. Ouvi falar de você. Namorou Maria
Lúcia por bastante tempo.
- É verdade. Brigamos muito mais do que namoramos. Terminamos umas duas vezes, mas ela voltava atrás. Acho que ficávamos juntos por carência, imaturidade, sei lá. Mas uma coisa lhe digo: não era amor.
- Não sente mais nada por ela?
Gaspar recordou-se da noite fatídica em que Maria Lúcia lhe propusera serem amantes. Ele afastou aquela cena funesta de sua mente. Procurou responder com tranquilidade:
- Gostei, mas, agora, não mais. Descobri com os anos que na verdade nunca a amei e...
Ele disfarçou, pigarreou. Ia falar coisas desagradáveis sobre Maria Lúcia, mas estava em frente ao marido dela.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:36 pm

Não seria elegante de sua parte.
- E... - Eduardo estava interessado e queria ouvir mais.
Afinal, Gaspar namorara Maria Lúcia por três anos. Será que Gaspar percebera quão insensível era aquela mulher?
- Não tenho mais nada a ver com Maria Lúcia. Você é o marido dela. Não quero fazer comentários.
- Que comentários?
- Desculpe, eu não vou...
- Por favor, conte. Preciso ouvir.
Eduardo puxou Henrique para um canto, longe de Floriano e Iolanda. Baixou a voz:
- Você foi namorado dela, sabe de seu temperamento.
Estou ficando maluco; nosso casamento vai de mau a pior.
- Maria Lúcia é bem estouvada.
- Bote estouvada nisso. Temperamental ao extremo.
- Bem, ela não sabe amar. Talvez aprenda com os anos.
- Acho difícil.
- Quem sabe, agora, que vai ser mãe, aprenda.
- Ela está levando a gravidez praticamente arrastada.
Reclama o tempo todo: uma hora são as dores nas costas, outra hora as dores nas pernas, o corpo inchado e deformado, enjoa vinte e quatro horas por dia. Nunca vi igual.
- Pelo que sei, a gravidez afecta bastante o estado emocional da gestante. Afinal de contas, Maria Lúcia carrega um ser na barriga, com desejos e vontades.
- Um feto pode ter vontade? Essa é boa!
- Estudei bastante sobre a vida espiritual. Acha mesmo que há somente um corpinho frágil e indefeso sendo gerado? Não acredito que seja só isso. Um espírito bastante experiente, com muitas passagens pela Terra, habita aquele corpinho.
- De onde vem esse conhecimento?
- De d. Alzira, a mesma que ligou para sua casa e pediu para que seu pai intercedesse a favor de Marines.
Eduardo abriu e fechou a boca. Estava cada vez mais interessado em conhecer aquela senhora. Ele iria lançar nova pergunta, quando o médico se aproximou.
- O senhor é marido dela?
Eduardo sentiu um calor percorrer-lhe todo o corpo.
Queria gritar que sim, que amava Marines, que ela era a mulher de sua vida, que faria tudo que estivesse a seu alcance para que ela ficasse bem. Mas, diante da realidade e da situação, procurou conter-se.
- Ela não é casada.
- O senhor é parente?
- Sou cunhado dela.
- Preciso conversar com os pais ou irmãos.
- O que aconteceu, doutor? - indagou Floriano, visivelmente perturbado. - Sou pai dela.
- Lamento, mas preciso de autorização para uma cirurgia em carácter de urgência.
- Cirurgia de quê?
- Ela sofreu traumatismo seguido de forte hemorragia na região do baixo ventre. Teremos de, imediatamente, retirar útero, trompas...
Iolanda gritou em desespero:
- Isso, não! Minha filha não pode ficar estéril. Ela tem o direito de ser feliz, de ser mãe.
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:36 pm

Floriano abraçou-a. Em lágrimas, disse com voz amável:
- Isso não é nada, meu amor. Pelo que passou, ela poderia ter sequelas muito piores. Se Marines quiser ser mãe, poderá adoptar uma criança. Não é o fim do mundo.
Iolanda afastou-se do marido. Chorava copiosamente.
- Você não sabe o que é isso para uma mulher. É uma mutilação. Não poder gerar um filho é o fracasso de uma mulher. Você não entende, não entende...
Ela se deixou cair numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos, num pranto comovido. Gaspar abraçou-se a ela.
- Calma, d. Iolanda. Vai dar tudo certo.
Floriano olhou para Eduardo, suplicando ajuda. Este perguntou ao médico:
- É a única maneira?
- Sim. Ela perdeu muito sangue, os órgãos estão muito machucados, as trompas praticamente dilaceradas.
Teremos depois de fazer uma cirurgia plástica reparadora na região genital, por conta das queimaduras no local. Mas não podemos demorar; preciso da autorização dos pais agora para operá-la o mais rápido possível.
- Se não há jeito, doutor, vamos aos papéis. Assinamos.
Floriano assinou os papéis. Iolanda hesitou por instantes, mas o bom senso a fez assiná-los também. Eduardo sentou-se a seu lado.
- Não fique assim, d. Iolanda. Logo Marines vai se recuperar e tudo voltará a ser como antes.
- Não me diga isso. Nada será como antes. Ela nunca poderá ser mãe. Que homem vai querer se casar com ela?
Um aproveitador? Minha filha nunca vai poder arrumar um bom partido.
— Engano seu. Muitos homens querem se casar e ter filhos. Mas muitos homens também querem se casar sem o intuito de constituir família. Há todo tipo de propostas hoje em dia.
— Será que existem tais homens?
Eduardo queria dizer que havia um pretendente bem na frente dela, mas resignou-se.
- Dona Iolanda, muitos querem apenas compartilhar, viver juntos; ter filhos acaba não sendo uma prioridade. Não conhece casais que por opção não tiveram filhos?
Ela assentiu com a cabeça.
- Marines também pode se casar com um homem desquitado, viúvo, que já seja pai, tenha filhos. Ou, como disse seu marido, poderá adoptar uma criança. Tudo é possível na vida.
- Será? Temo por Marines. Ela tem um jeito tão meigo com as crianças! É tão sensível, tão amorosa! Como Deus pôde ser tão injusto? Minha filha não merecia isso. Não acredito em mais nada.
Gaspar interveio:
— A senhora está nervosa, d. Iolanda. É natural. Mas, graças ao auxílio de d. Alzira, salvamos Marines. Se ela não tivesse recebido ajuda espiritual, poderia estar... A senhora sabe.
— Eu sei. Jamais vou esquecer o que Alzira fez por nós. Ela, o Sr. Osvaldo, Eduardo e você - disse, passando a mão pelo queixo de Gaspar.
— Então não pense em mais nada a não ser no bem-estar de sua filha.
- Vou fazer isso. Mas por que Marines? Por quê?
Gaspar não sabia o que responder. Pousou seu braço nos ombros de Iolanda, e ele também, intimamente, perguntava o porquê de Marines ter experimentado tamanha brutalidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:37 pm

Capítulo 18
Osvaldo sentiu peso na consciência. Embora não tivesse envolvimento directo com os órgão repressores do governo, sentia-se um pouco culpado com o que acontecera a Marines.
"Apesar de pressionado e sem alternativa, ajudei esse bando, dei comida a esses monstros. Eles cresceram, e veja o que fizeram com a pobre moça. Imagino quantos outros inocentes não estão sendo torturados e mortos", disse a si mesmo, em tom de profunda angústia.
Resolveu prestar solidariedade à família e ir pessoalmente visitar Marines no hospital. Com o passar dos dias, foi simpatizando com a garota. Marines, embora houvesse passado por situação tão traumática, mostrava ânimo, disposição para se recuperar, superar o episódio. Ninguém tocava no assunto da esterilidade.
Após visitá-la algumas vezes, Osvaldo procurou o filho no escritório para uma conversa.
- O que sabe de Marines?
Eduardo estremeceu. Será que o pai percebera algo?
Procurou disfarçar.
- Como assim? Saber o quê?
- O que faz da vida, namora, coisas do tipo.
- Ela estuda arquitectura na USP. Está no primeiro ano, se não me engano.
- Trabalha?
-Trabalhava num Banco no centro da cidade. Quando entrou para a universidade, pediu demissão. Dedica-se somente aos estudos. Mas é aplicada, fala dois idiomas.
- Parece culta, inteligente.
- Por que tanta pergunta, papai? Está interessado nela? Osvaldo balançou a cabeça para os lados.
- O que é isso, Eduardo? Perdeu o juízo?
- Fazendo tantas perguntas... Onde quer chegar?
- Sinto-me culpado, em parte, pelo que aconteceu a ela.
— Você não tem nada a ver com aquele pessoal. Foi coagido anos atrás, ajudou e pronto. Assunto encerrado.
- Mas gostaria de fazer algo para compensá-la.
Sinto-me mal com tudo isso.
Eduardo aproximou-se do pai e passou o braço pelo seu ombro.
— Tire isso da cabeça. O pior já passou. Marines está se recuperando muito bem. Logo voltará a estudar e retomará a vida.
— Sabe, filho, gosto muito de Marines.
Eduardo esboçou leve sorriso. Osvaldo perguntou:
— Você a tem visitado?
— Fui à casa dela só uma vez. Maria Lúcia não dá sossego; cada vez mais enjoada, não para de ter ânsia.
Osvaldo deu uns tapinhas nas costas do filho.
- Logo, logo, vou ser avô. Não é uma beleza?
- É, sim.
O telefone tocou e a recepcionista informou a chegada de Adelaide e Sónia. Osvaldo pousou o fone no gancho.
— Teremos companhia para almoçar. Sua mãe e sua irmã estão subindo.
Pouco depois, as duas entraram com pacotes. Após os cumprimentos, ambas deixaram-se cair no sofá, exaustas.
- Fazer compras na rua Augusta cansa muito. Descer é bom, mas subir... — reclamou Adelaide.
— Compramos roupinhas para o bebê.
- É mesmo? Eduardo procurou animar-se.
— Sim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:37 pm

— Por que não chamaram Maria Lúcia?
Sónia respondeu com ar desolado, triste:
- E porque iríamos chamá-la? Sua mulher não é mais minha amiga. Eu bem que desconfiei da súbita simpatia que Maria Lúcia passou a sentir por mim. Ela não me suportava na escola. Achei estranho quando ela voltou assim, sem mais nem menos, mas sempre acreditei na bondade das pessoas, na capacidade que elas têm de poder e querer mudar para melhor. Nunca imaginei que ela fosse tão... tão... - Ela se calou.
Eduardo encorajou-a:
- Diga, pode falar.
- Não tenho nada a ver com a vida de vocês. Às vezes me culpo por ter-lhe apresentado a ela.
- Nada disso! Sou adulto, sei me defender. Se me casei com ela, foi porque eu quis.
Adelaide levantou-se impaciente:
- Se não fosse a gravidez, você não teria se casado.
- Sou íntegro, mãe. Tenho princípios.
Sónia ajuntou:
-Todos nós sabemos que Maria Lúcia não o ama. Isso ninguém pode negar.
- Eu sei. Também percebi tarde demais que não a amava.
- Tarde demais, não! Lembra-se quinze dias antes da cerimónia? Lembra-se de nossa conversa?
- Fiquei aturdido, mãe. A gravidez inesperada de Maria Lúcia mexeu comigo.
- Então por que não se separam? Hoje é tão natural!
Você ainda é jovem, tem muito pela frente. Pode conhecer uma jovem por quem se apaixone de verdade, e assim poderá ser feliz. Não sabe quanto meu coração sofre por vê-lo assim, distante, sem brilho nos olhos.
- Sou um homem de brio, de princípios. Tenho responsabilidades. E meu filho, que vai nascer? Ele não tem culpa de nada. Eu não poderia deixar Maria Lúcia na mão.
O mundo pode estar mudando muito rápido, os conceitos, tudo o mais. Mas uma mulher grávida e solteira sempre será vista com olhos recriminadores pela sociedade. E ela não ficou grávida sozinha.
- Filho, nós podemos ajudar na criação dessa criança. Ninguém aqui está pedindo para abandoná-la, mas para se separar dessa mulher que não o ama e que você também não quer.
Osvaldo interveio:
- Jamais deixaríamos faltar alguma coisa tanto para Maria Lúcia quanto para seu filho. Somos pessoas decentes, de bem. Nunca deixaríamos de amar essa criança. Se fosse somente uma crise passageira, normal entre os casais, tudo bem. Mas entre vocês não há amor. E, sem amor, não há relação que perdure.
- Eu sempre disse que tínhamos de tomar cuidado com Maria Lúcia - redarguiu Adelaide.
Eduardo acercou-se da mãe.
- Tenho de reconhecer que sua intuição não falhou.
Fiquei confuso a princípio, achando que era implicância de sua parte, já que você sempre me quis a seu lado.
- Sempre fui apegada a você, mas jamais o privaria de conhecer uma boa moça, casar e ser feliz, como eu e seu pai somos até hoje.
Eduardo emocionou-se. Beijou a testa da mãe.
- Obrigado por me alertar.
Osvaldo ajuntou:
- Águas passadas. Não vamos mais tocar no assunto, por ora. Logo nosso neto vai nascer, e aí será uma nova fase.
Quem sabe Maria Lúcia não vai se tornar uma mãe exemplar?
Quem sabe vocês dois não vão se entrosar de novo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:37 pm

- Duvido - retrucou Adelaide. - Maria Lúcia sempre foi assim; nunca soube dissimular. - Virou-se para o filho:
- Puxa, se você ao menos tivesse se apaixonado pela irmã dela...
- O que foi que disse, mãe?
- Marines é a moça certa para você.
- De onde tirou uma ideia dessas?
- O que estou lhe falando não é nenhuma novidade.
Já comentei sobre isso antes. Desde aquele jantar de noivado fiquei com uma impressão tão positiva dessa moça!
Não sei explicar, mas gostei de Marines logo de cara. Uma moça tão diferente da irmã!
Osvaldo interveio:
- Estava conversando com Eduardo antes de chegarem. Durante as visitas no hospital, simpatizei muito com ela.
- Por que não vamos todos visitá-la depois do almoço?
— sugeriu Eduardo.
- Excelente ideia! - considerou Sónia, animada.
- Concordo — disse Adelaide. — Quero me aproximar mais de Iolanda. Afinal de contas, logo seremos avós, e teremos de compartilhar o carinho e a atenção de nosso neto... Ou neta.
Mãe e filha levantaram-se. Adelaide passou delicadamente seu braço no de Osvaldo, e Sónia fez o mesmo com Eduardo.
* * *
Iolanda tratava Marines com tamanho esmero, que Floriano às vezes tentava persuadi-la a descansar, visto que ela não parava um minuto.
- Podemos nos revezar, Iolanda.
- Quero cuidar direitinho dela. Os médicos disseram que a partir da semana que vem ela poderá dar longas caminhadas, voltar à vida normal. Graças a Deus, os amigos da faculdade estão ajudando. Trazem as solicitações dos professores, os trabalhos a fazer.
- O atestado médico abonou as faltas. Em breve nossa filhinha voltará à universidade.
- Tenho fé, Floriano.
- Assim espero.
A campainha tocou e Floriano foi atender. Era Alzira, que acabara de assar um bolo de chocolate, o preferido de Marines, e trouxe-lhe um pedaço.
- É o bolo que ela mais aprecia. Não podia deixar de trazer.
- Alzira, você é tão amável! Tem tantas actividades...
Trabalha no Centro Espírita, administra aquela creche, e ainda arruma tempo para assar um bolo para Marines? Só você mesmo, minha amiga!
Iolanda foi em sua direcção e deu-lhe caloroso abraço.
- Marines é como uma filha para mim.
Iolanda baixou os olhos, pesarosa.
- Sabe que Maria Lúcia não ligou uma única vez?
- É que ela está para dar à luz — defendeu Floriano.
- Veja, Alzira, nem numa hora como esta Floriano dá o braço a torcer. Maria Lúcia poderia pelo menos dar uma ligadinha, perguntar sobre o estado de saúde da irmã. Mas, nada! Tudo bem que esteja grávida, mas custava fazer uma ligação? Iria atrapalhar a gravidez? Não a vemos desde o casamento. Acha isso certo?
Alzira não respondeu. Sabia da dificuldade de relacionamento entre elas. Entregou o prato com o bolo para Iolanda e perguntou, amável:
- Gostaria de falar com Marines. Posso?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 25, 2024 8:37 pm

- Vá vera pobrezinha. Está repousando.
- Sua filha não é um bebê indefeso. Você a está mimando. Ela precisa reagir e continuar a viver. Você dificulta.
- Mas é difícil - defendeu-se Iolanda. - É duro, depois de tudo que ela passou. Coitada!
- A vida é rica em experiências. Cada um atrai o que precisa, seja agradável ou não. Marines sempre foi uma menina cheia de si, dona de suas vontades. E como ela andava nos últimos tempos? Fechada, apática, sem vontade de nada. Parecia que havia perdido a sede de viver.
- Isso é verdade. Ela quase trancou a matrícula na universidade - retrucou Floriano.
- Ela sempre sonhou em estudar arquitectura na USP.
Deu duro, trabalhou para pagar o cursinho. Por que de uma hora para outra iria trancar a matrícula?
Iolanda e Floriano não responderam. Alzira continuou:
- Ela mudou radicalmente a maneira de ser. Fechou-se, como se não quisesse mais sentir, como se não quisesse mais viver. Ela é um espírito evoluído, Inteligente; não precisava regredir. Não se esqueça, Iolanda: quanto mais sabemos, mais a vida nos cobra.
Iolanda deixou que uma lágrima escorresse pelo canto do olho.
- É duro admitir, mas minha consciência diz que você está com a razão. Vá conversar com ela. Suba até o quarto, por favor.
Alzira subiu as escadas e bateu levemente na porta.
- Posso entrar?
- Por favor, d. Alzira.
A simpática senhora aproximou-se e sentou-se ao pé da cama.
- Podemos conversar?
- Sim — respondeu Marines, com voz mecânica.
- Como se sente?
- Depois de tudo que aconteceu, como a senhora quer que eu me sinta? Um lixo.
- De nada vai adiantar a revolta.
Marines remexeu-se nervosamente na cama.
- Eu me animo, começo a melhorar, e então me lembro de tudo.
- Você sempre participou de sessões no Centro, sempre se interessou pela espiritualidade. Não acha que está negando tudo aquilo que aprendeu?
- Impediram-me de ser mãe. Sinto-me castrada, humilhada, a pior das mulheres.
- Se vai se lamentar, não tenho muito a fazer aqui.
Mas, antes de ir, gostaria de fazer-lhe uma pergunta.
Marines assentiu com a cabeça.
- Por que você se fechou tanto nos últimos tempos?
O que houve?
- Não houve nada.
- Como, não, minha filha? Sempre foi uma garota de bem com a vida, alegre, bem-humorada, falante, não parava quieta. Lutou para conseguir vaga numa das universidades mais prestigiadas e concorridas do país. Conseguiu o que queria e, de repente, sem mais nem menos, passou a andar comedida, calculando seus passos, gestos, atitudes. Por que se reprimiu tanto?
Marines estava em seu limite. Havia tentado ocultar o sentimento que nutria por Eduardo, mas em vão. A breve sessão de tortura, que a marcaria nesta existência, física e emocionalmente, arrasou-a por completo. Com lágrimas embaçando-lhe a visão, sussurrou num fio de voz:
- Não sei. Estou em conflito comigo mesma.
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