LUZ ESPÍRITA
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:13 pm

Capítulo 26
O velório do pequeno Marcílio foi comovente, despertando tristeza em todos que por lá passavam. O caixãozinho fechado era alvo de comiseração.
Seu enterro provocou sentimentos de piedade e revolta.
Não houve quem não derramasse uma lágrima pelo menino, pelos pais e avós. A polícia teve de interditar parte da avenida que dava acesso ao cemitério, tamanho o contingente de parentes, amigos e curiosos que compartilhavam a mesma dor dos Vidigais.
Eduardo transformou-se numa sombra; suas olheiras eram visíveis, seu aspecto era desolador. Ficou mudo o tempo todo. Não conseguia articular palavra. Permaneceu grudado em Marines o tempo todo. Os avós, maternos e paternos, também não escondiam a dor e a revolta.
Maria Lúcia continuava sedada. Estava alheia aos acontecimentos. Os médicos acharam por bem que ela ficasse assim por mais uns dias. Receber uma notícia daquelas, naquele momento, poderia custar-lhe a vida.
Henrique permaneceu no hospital. Tinha horror a velório, enterro, cemitério. Preferiu ficar ao lado de Maria Lúcia.
Foi terminantemente proibido de dizer a ela uma palavra sobre a morte de Marcílio. No momento certo, a família contaria. Osvaldo já havia solicitado à psicóloga da maternidade que estivesse presente no momento da conversa.
Henrique procurava conter a ansiedade. Tinha dificuldade enorme em guardar segredos. E esse, em particular, estava difícil de conservar. Ele olhava para Maria Lúcia e tinha vontade de beliscá-la, acordá-la e gritar que ela tinha perdido o filho.
"Como eu gostaria de ser o primeiro a dar a notícia!
'Maria Lúcia, o pequeno Marcílio está no escuro eterno. ‘Não, não! Melhor seria: 'Maria Lúcia, lembra-se de Marcílio? Pois é! Ele foi desta para melhor'."
Henrique pensava e repensava o assunto. Queria muito gritar para Maria Lúcia que o filho dela e de Gaspar tinha descido os sete palmos...
"Seu plano foi por água abaixo, querida. Seu filho morreu e agora não há mais vínculos entre você e Gaspar Mendonça. Acabou. Você vai ter de aturar sua filhinha. Gasparzinho virou fantasma de verdade... Ha ha ha!"
Henrique estava fora de si. Os sintomas de abuso de drogas faziam-se presentes. Seu raciocínio dava sinais de que a droga, aos poucos, destruía seus neurónios.
"Chorar por uma criança morta! Deviam dar graças aos céus! Um coitado a menos no mundo. De que adianta viver? Para sofrer? A vida é cruel, as pessoas não prestam.
Uma criança indefesa hoje, um adulto sem escrúpulos e infeliz amanhã. Ainda bem que o menino se foi."
Henrique estava divagando em pensamentos perniciosos quando Maria Lúcia finalmente acordou.
- Onde estou?
- Na maternidade.
- O que aconteceu?
- Você passou mal e trouxeram-na para cá.
- Há quanto tempo estou aqui?
- Há três dias.
- Como? - Maria Lúcia fez força para se situar.
- Não vai dizer que perdi a festa de meu filho. Perdi?
Henrique deu uma risadinha ordinária.
- Perdeu. Ah, Maria Lúcia, a festa foi tão linda!
- É mesmo?
- Você tinha de ver a decoração! Não podia ser mais original: coroas de flores, velas, um monte assim de gente.
- E Marcílio? Usou que roupa?
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:14 pm

- Aquele terninho do baptizado.
- Ele gostou da festa?
- Acho que sim. Não deu um pio.
Henrique se continha para não rir. Iria continuar com aquele discurso, tripudiando sobre a situação. Floriano chegou, abatidíssimo. O rapaz remexeu-se na cadeira e fingiu preocupação.
- Como vai, filha?
- Paizão, por que estou na maternidade? O que aconteceu?
- Foram as contracções, meu bem. Tiveram de fazer uma cesariana de emergência.
- E o bebê?
- O quadro clínico dela inspira cuidados, mas está fora de perigo.
Ela teve vontade de gritar, de espernear, mas não tinha forças. Então o monstro nasceu! O desgraçado conseguiu vir ao mundo! Uma lágrima caiu pelo canto de seu olho.
- Ele venceu... - disse desolada.
Floriano retrucou.
- Ela venceu. É por isso que Eduardo vai chamá-la Vitória.
- Eu tive uma filha?
- Sim.
Aquilo não alterava em nada o que Maria Lúcia sentia.
Fosse menino, fosse menina, nada iria arrancar o sentimento de ódio que alimentara todos aqueles meses. Parecia que sempre odiara aquela criança, a infeliz que arruinara seus planos. Fez força e esboçou um sorriso amarelo.
- Quando vamos para casa?
- Você vai ser liberada logo mais. Vitória somente irá para casa daqui a alguns dias.
- Por quê?
- Parto prematuro. Ela está na incubadora. Você poderá vê-la mais tarde.
- Mais tarde...
- Aguente um pouco mais, filha.
Maria Lúcia baixou os olhos, mordiscou os lábios.
Como Deus pôde sertão injusto? Aquela criança não poderia viver. Naquele momento ela desejou que alguém tropeçasse num fio e derrubasse a incubadora, ou mesmo que alguma enfermeira menos atenta aplicasse no bebê uma medicação errada e fatal. Vibrava para que Vitória não saísse do hospital com vida.
- Estou cansada. Quero ir para casa, quero meu filho.
Henrique disse há pouco que a festa de Marcílio foi linda, com coroas de flores...
Floriano lançou olhar fulminante ao rapaz.
- Acho que pode ir agora. Vou ficar com minha filha.
Henrique levantou-se, aliviado.
- Obrigado, seu Floriano. Volto outra hora. - Aproximou-se de Maria Lúcia: — Até mais, querida. Assim que se recuperar, ligue-me.
Ela assentiu com a cabeça. Henrique despediu-se de Floriano e saiu.
- Pai?
— O que é?
— Estou com saudade de Marcílio. Não vejo a hora de tê-lo em meus braços.
Floriano fez o possível para conter as lágrimas. Era-lhe penoso saber que sua filha predilecta iria sofrer. Ele nunca perdera um filho; não tinha a menor ideia do que isso pudesse despertar num pai. Floriano estava indignado, revoltado mesmo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:14 pm

Aquilo não era natural; um pai jamais enterra o próprio filho.
Os filhos crescem, os pais envelhecem, adoecem. Os filhos enterram os pais; isso, sim, é natural.
Floriano sentia uma dor no peito sem igual. Ver o pequeno neto inerte no caixãozinho era uma cena que nunca mais tiraria da mente. Aquilo o feriu profundamente. De onde, então, tirana forças para dar a notícia à filha? Osvaldo e Adelaide não queriam participar. Sónia colocara-se à disposição, mas fazia tempo que estava afastada de Maria Lúcia. Marines e Iolanda também se dispuseram a conversar com ela, mas a relação entre elas era conflituosa, e Maria Lúcia jamais aceitaria ouvir da mãe ou da irmã algo tão terrível. Eduardo, por ora, não tinha condições de conversar com a mulher.
A Floriano cabia a difícil tarefa de informar à filha sobre a partida de Marcílio.
***
Henrique chegou em casa ansioso por encontrar
Marcos. Precisava fazer amor, aliviar a tensão. Acostumara-se tanto com o michê, que, no dia anterior, havia lhe dado a cópia da chave de casa.
Abriu a porta do apartamento. Estava escuro. Marcos deveria estar dormindo, deduziu.
"Não gosto de cheiro de hospital."
Fez uma careta e foi tirando as roupas. Dirigiu-se ao banheiro. Após demorado banho, enxugou-se e foi nu para o quarto. Acendeu um cigarro. Em seguida Marcos apareceu, drogado além do habitual. Uma baba esbranquiçada escorria pelo canto da boca. Parecia outra pessoa.
Henrique já se acostumara com o aspecto levemente dementado do prostituto.
- Onde estava? - indagou Henrique.
- Fui pegar uns papelotes. Quer?
- Quero, sim.
Mesmo com a consciência alterada, Marcos abriu um dos papelotes, despejou o conteúdo num pratinho e fez algumas carreirinhas de pó. Henrique, que não conseguia mais viver sem cocaína, cheirou as carreiras com sofreguidão.
Marcos fez o mesmo.
- Isso me excita.
- Tire a roupa, Marcos.
- Agora?
- É. Quero você.
- Agora, não. Quero cheirar mais um pouco.
- Quero transar agora. É uma ordem.
- Não quero.
- Aqui quem manda sou eu.
Marcos deu-lhe um empurrão.
- Já disse que não! Estou sem vontade.
Henrique bateu com as costas na parede. Ficou furioso.
- Aqui é minha casa. Ou transa comigo ou vai para a rua.
- É uma ameaça?
- Você escolhe.
Marcos fungou de raiva. Sentou-se na cama, fez nova carreira de pó e cheirou. Respirou fundo e massageou freneticamente as narinas com os dedos.
- Acho que você se deu mal.
- Eu?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:14 pm

- É, sim. A bicha tá botando muita ordem.
- Ah, é?
- Estou de saco cheio de tanta panca - rosnou Marcos.
- Eu o pago para isso. E me excito ainda mais. Adoro quando você vira passivo; acho degradante para um michê.
Fere sua virilidade.
- Até dando eu sou macho.
Henrique deu uma gargalhada.
- Deixe de besteira. Você é veado como eu. Pare de botar banca!
- Não me insulte. Faço isso para ganhar a vida.
- Sei... Mas eu vi seus olhinhos rodando de prazer...
- Mentira!
- Mentira, nada! Aceite que é veado como eu. Não é macho nem aqui nem na China.
- Não!
Marcos deu um berro e saltou para cima de Henrique.
Estava completamente fora de si.
- Desgraçado! Você me tira do sério.
- Calma! Só estava brincando! — contemporizou Henrique, percebendo o perigo.
- Se me chamar de veado de novo, juro que mato você.
- Desculpe. Não quis ofendê-lo.
- Estou cansado de você.
- Prometo que vou mudar.
- Quero dinheiro.
- Então me solte.
Marcos desgrudou-se do rapaz. Henrique respirou aliviado. Pensou que fosse morrer.
- Vá! Abra o cofre. Quero dinheiro.
- Que cofre? Não tenho cofre.
- Sei que você tem. E fica aqui no quarto.
- De onde tirou uma ideia tão disparatada?
- Não sou bobo, Henrique.
- Acha que eu ia ter dinheiro guardado em casa?
- E aquele dia que pagou as ervas do aborto? Você veio para o quarto e depois me deu os dólares. Estou drogado, alterado, mas não sou retardado.
Henrique empalideceu. Havia cometido um deslize, mas suspeitava que Marcos não tivesse desconfiado. Infelizmente, o michê era mais esperto do que ele supunha.
Precisava arrumar uma desculpa à altura.
- Eu tenho uma jaqueta... Sempre guardo uns dólares para emergências.
- Essa não colou. Você e essas bichas todas são mentirosas.
- Bom, isso é verdade — anuiu Henrique, para não alterá-lo.
- Mas a mim vocês não enganam.
Marcos andava de um lado para o outro do quarto.
Estava descontrolado. Henrique sentiu medo como havia muito não sentia.
- Vou arrumar dinheiro, está bem?
- Vai querer me enganar.
- Não vou. Prometo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:14 pm

- Está falando como aquele empresário. É o mesmo discurso.
- Que empresário?
- O da fábrica de alumínio.
- O que tem ele a ver com isso?
- Pensa que aquele empresário morreu por quê? - bramiu Marcos. - Ele tinha dinheiro e mentiu para mim.
Era só repartir. Mas a bicha foi fominha. Não quis dividir o dinheiro e...
Henrique gelou. Lembrou-se imediatamente da misteriosa morte daquele empresário. Fora estrangulado e esfaqueado. A polícia arquivou o caso, por falta de provas.
Agora não havia dúvidas de que Marcos tivesse participado ou mesmo cometido o crime. Henrique estava com um assassino à sua frente. Precisava ganhar tempo.
- Vou me vestir. Estou com frio.
- Sem delongas. Quero o dinheiro.
- Mas que mania! Não tenho dinheiro nenhum, porra!
Marcou não o esperou terminar de falar. Deu-lhe violento soco no nariz. Henrique desequilibrou-se. O michê partiu para cima dele e deu-lhe uma gravata. Henrique caiu na cama, desfalecido.
-Teimoso! — retrucou Marcos.
O michê aproveitou e revirou o quarto todo. Abriu gavetas, armários, vasculhou cada milímetro do aposento, fez nova inspecção no guarda-roupas. Por trás de alguns cabides, avistou a portinha falsa.
- Achei!
Meteu a mão e pegou o objecto. Ficou extasiado: uma caixa cheia de cruzeiros, dólares, jóias; enfim, uma pequena fortuna.
- Eu tinha certeza de que esse veado estava escondendo algo. Mas não imaginava que fosse tanto. Com isso, vou me mandar da cidade. Não preciso ficar fazendo michê.
Chega de ser prostituto. Isto aqui é minha libertação.
- De jeito nenhum! - vociferou Henrique.
Marcos não teve tempo de se virar. Henrique jogou-se sobre ele e começaram a travar uma briga feia. Chutes, pontapés, arranhões. Até o momento em que Marcos, aproveitando de um descuido de Henrique, botou uma das mãos no bolso traseiro da calça e sacou uma navalha.
- E aí, vai encarar?
- Opa, devagar!
- Venha, desgraçado!
Henrique sentiu as pernas falsearem.
- Desculpe, Marcos. Mas isso é tudo que tenho.
Vamos dividir.
- Dividir o escambau! Vou levar tudo.
- Não posso ficar sem nada. Demorei para juntar tudo isso.
- Problema seu. Arrume outro tanto de tempo.
Henrique precisava livrar-se do michê, que estava encostado na porta do quarto. De repente, Henrique arregalou os olhos, fingindo que alguém estava à porta. Gritou:
- Até que enfim, alguém!
Marcos assustou-se e voltou a cabeça para trás. Henrique aproveitou a distracção e avançou para cima do michê.
Marcos não hesitou. Agarrou-se a Henrique e foram se atracando até pararem no peitoril da janela. Mais da metade do corpo de Henrique ficou suspensa para fora.
- Largue-me! - gritava Henrique.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:15 pm

- Você não presta!
- Pelo amor de Deus, Marcos, largue-me!
- Filho da mãe!
- Juro: eu lhe dou tudo que tenho.
- Você não é confiável.
- Marcos, eu vou cair.
- Dane-se!
- Estou caindo! Socorro!
- Morra!
- Não! Por favor, Marcoooooos...
Henrique escorregou e desprendeu-se da janela. Seu corpo caiu com incrível velocidade. Marcos inclinou o corpo em direcção ao peitoril a tempo de presenciar o momento em que Henrique se transformou num grande saco de sangue ao se espatifar no asfalto.
Marcos estava aturdido. Precisava agir rápido. Cheirou mais uma carreira de pó para adquirir coragem. Abriu o armário, pegou uma sacola de viagem. Catou o dinheiro e as jóias, meteu tudo dentro da sacola e saiu correndo escada abaixo. Aproveitou a confusão que se instalara na rua para fugir e nunca mais aparecer. Passou despercebido pela multidão. Correu até o outro lado da avenida e tomou um táxi em direcção à rodoviária.
O trânsito parou. As pessoas aglomeravam-se umas sobre as outras, estarrecidas. Era horripilante testemunhar a transformação de um ser humano num punhado de pedaços de carne e vísceras espalhados pela rua.
Com a brutalidade do impacto, o espírito de Henrique foi arrancado do corpo. No momento em que seu corpo físico se esborrachou no asfalto, seu perispírito foi atirado a longa distância. Ele teve a sensação de estar rolando uma ribanceira. Ao levantar-se, respirou aliviado.
"Acabou o tormento. Pensei que não fosse escapar.
Marcos estava fora de si. Preciso ser mais cauteloso com esses marginais."
Henrique caminhou pela rua em direcção a seu prédio e avistou pequena aglomeração. Aproximou-se curioso. Também queria ver o que tanto chamava a atenção das pessoas. Ele sentiu o chão sumir no momento em que viu o próprio corpo despedaçado no asfalto. Fez um esgar de incredulidade.
- Não pode ser! Estou vivo!
- Mais vivo do que nunca.
- Hã?
- Pena que você não sofreu.
- Como é? - perguntou ele, olhando aturdido para os lados, procurando pela voz.
- Você não sofreu em vida. Mas agora vai sofrer comigo e com meus amigos.
- Quem é você? Não estou vendo. Quem fala?
Um clarão se fez na multidão e um espírito empertigado surgiu. Estava vestido feito um maltrapilho, roupas rotas e aspecto terrível. Henrique esfregou os olhos e o reconheceu.
- Estela!?
- Sua memória ainda não foi totalmente afectada pela cocaína.
- Você está morta.
- E você?
- Eu? Eu... - balbuciou ele.
- Esse monte de carne espalhada pelo chão... De quem é?
- Não sei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:15 pm

- Como não sabe? Não caiu lá de cima? - apontou ela para o alto.
- Estou confuso... Quer dizer...
- Não vou permitir que tenha chiliques.
- Hã?
- Você já era, Henrique. Agora vamos ao nosso acerto de contas.
Henrique tentou fugir, mas suas pernas não respondiam. Ele ficou paralisado, imóvel, sem acção. Estela,
Olavinho e seu bando jogaram-se sobre o rapaz e arrastaram-no até entrarem num enorme buraco, ali mesmo na avenida, um lugar que os olhos físicos jamais poderiam sequer supor existir.
Estela, morta havia algum tempo, começava a sentir o gostinho da vingança.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:15 pm

Capítulo 27
O acidente e a morte de Henrique foram ignorados pelos principais meios de comunicação. Somente um jornal sensacionalista da capital deu manchete: "Homossexual se esborracha no asfalto" O delegado responsável pelo caso, quando soube tratar-se de um homossexual, mandou arquivar o processo. E ainda fez questão de verbalizar seu preconceito:
- Uma bicha a menos no mundo. Não vou dar andamento ao processo. Usar dinheiro público no caso de um pederasta? Nunca!
***
Maria Lúcia, desde que soubera da morte do filho, adoptou comportamento maquinal, executando tarefas ou seguindo ordens como se destituída de consciência e vontade. Os familiares se espantaram. No dia em que resolveram contar-lhe o ocorrido, um dia depois de sua chegada em casa, montaram o maior aparato. Chamaram um médico, a psicóloga do hospital, até providenciaram uma ambulância, que ficou de plantão na garagem.
Assim que Floriano, em lágrimas, terminou o triste relato, fez-se constrangedor silêncio. Maria Lúcia não moveu um músculo. Após pausa que parecia eterna, respirou fundo, levantou-se e foi ao banheiro. Eduardo e Floriano ficaram preocupados. Levantaram-se rapidamente e correram até o banheiro. Maria Lúcia, ignorando a presença de ambos, maquinalmente tirou as roupas, abriu o chuveiro e tomou uma ducha. Depois, enxugou-se, vestiu uma camisola e penteou os cabelos.
— Você está bem? - indagou o pai. Ela não respondeu. Pousou a escova na pia, pegou um punhado de grampos, ajeitou os cabelos em coque. Espargiu colónia sobre o colo e os pulsos.
- Quer comer algo? - indagou o marido.
Ela fez sinal negativo com a cabeça. Saiu do banheiro e foi directo para a cama. O médico pegou um comprimido e deu-o a ela.
- Tome um agora e outro daqui a oito horas. Caso a dor persista, pode tomar mais um.
Ela moveu mecanicamente sua cabeça para cima e para baixo. Recostou-se na cama e ligou a televisão.
O médico e a psicóloga entreolharam-se. Fizeram sinal para Floriano e Eduardo. Todos se retiraram do quarto. Do lado de fora, a psicóloga considerou:
- Maria Lúcia bloqueou seu subconsciente. É uma defesa natural.
- Como assim, doutora? — perguntou Floriano, preocupado.
- Está traumatizada. Nos casos de fortes emoções, perdas desse tipo, o indivíduo se fecha e não registra qualquer tipo de emoção.
- Isso leva quanto tempo?
- Depende. Cada caso é único. Maria Lúcia vai precisar de terapia, duas vezes por semana. Poderei vir, se quiserem.
- Sem dúvida - interveio Eduardo. - Ela vai precisar de auxílio.
O médico e a psicóloga despediram-se. Floriano estava visivelmente perturbado:
- Ela nunca reagiu dessa maneira. Jamais vi minha filha assim. Ela não esboçou uma única reacção.
- Está anestesiada com a notícia, seu Floriano. Com o tempo, ela vai reagir e, aos poucos, a vida vai voltando ao normal.
- Assim espero.
- Agora temos Vitória. Maria Lúcia foi excelente mãe; logo estará embalando a pequena nos braços.
Floriano assentiu com a cabeça. Rezava para que isso realmente acontecesse.
Os dias se passavam e as sessões com a psicóloga não surtiam efeito. Ela se sentava ao lado da paciente, fazia-lhe perguntas, e nada. Maria Lúcia fitava um ponto indefinido do quarto. Não respondia, não esboçava expressão em seu rosto. Respirava pausadamente, olhos abertos e imóveis. Depois de quinze dias, Eduardo suspendeu as consultas, sob protesto da profissional.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:15 pm

- Conheço esses casos, Sr. Eduardo - rebateu a psicóloga.
- Mas, até agora, nada.
- Ela vive uma crise psicótica caracterizada por alto grau de desintegração da personalidade. Sua mulher é incapaz de avaliar a realidade externa.
- Obrigado, doutora. Mas, se precisar da senhora, eu ligo.
- Maria Lúcia mais cedo ou mais tarde vai ter um ataque - avisou a mulher.
- Não acredito. Assim que Vitória chegar em casa, tudo vai mudar.
- Não creio. É perigoso pararmos agora. Sua mulher pode cometer uma loucura.
Eduardo não discutiu. Não queria mais a presença de ninguém naquela casa a não ser os familiares. Quando Maria Lúcia voltasse a falar, avisaria a psicóloga. Vitória estava para chegar em casa. Havia a babá e a empregada. Sua filha precisava de um lugar calmo, sem tanto entra-e-sai. Eduardo tinha certeza de que logo tudo voltaria ao normal.
* * *
Vitória foi para casa assim que completou um mês de vida. Cida encantou-se com a menina: era muito pequenina.
A babá dobrava a atenção ao pegar aquele corpinho tão frágil. Eduardo não cabia em si, tamanha a felicidade. Embora houvesse momentos em que ele chorava pelos cantos da casa, com saudade do filhinho, fazia grande esforço para dar alegria à pequena Vitória.
Uma noite, Marines foi visitá-los.
- Maria Lúcia já viu a pequena?
- Nem notou sua chegada. Colocamos o berço no quarto de Marcílio. Mudei-me em definitivo para o quarto de hóspedes.
- Ela ainda está trancafiada no quarto?
- Sim.
- Não acha perigoso deixá-la sozinha?
- Tiramos tudo quanto foi objecto cortante. Mandei colocar grade na janela. Precaução, somente. Não acredito que Maria Lúcia queira cometer uma loucura.
- Tentou levá-la para outro cómodo, fazê-la andar pelo apartamento?
- Tento todos os dias. Mas ela se recusa a sair de lá. Faz o toalete, troca de roupa e volta para a cama. Não permite que abram as janelas. As cortinas ficam o tempo todo cerradas.
- Dona Alzira mais um grupo de amigos fazem vibrações constantes lá no Centro, em prol de Maria Lúcia.
- Qualquer ajuda é válida.
- Maria Lúcia precisa de muita ajuda. Assim que voltar ao normal, as coisas vão se tornar difíceis.
- Quem lhe disse isso?
- Dona Alzira. Precisamos ser fortes.
Eduardo meneou a cabeça negativamente.
- Você acredita demais em d. Alzira. Não acho que Maria Lúcia possa dar trabalho.
- E quando ela voltar do surto?
- Acabou de perder um filho. É natural que esteja em choque.
- Sei disso - retorquiu Marines. - Mas há uma diferença subtil que percebo no comportamento de minha irmã.
- Que diferença?
- Num estado desses, a pessoa não tem condições de nada, mesmo. Vira um autómato.
- É o que está acontecendo com Maria Lúcia.
- Mas você mesmo disse que, ao saber da morte de Henrique, ela tomou todas as providências: vendeu carro, apartamento, e depois voltou a se recolher. Há uma coisa estranha aí.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 28, 2024 8:15 pm

Eduardo andava muito tenso. A morte de Marcílio, depois os dias angustiantes torcendo para que sua filha chegasse sã em casa, tudo contribuiu para que estivesse com os nervos à flor da pele. Embora ainda sentisse um friozinho na barriga toda vez que se aproximava de Marines, desta vez desabou. Esbravejou:
- Você e sua irmã nunca se deram bem. Isso não é e nunca foi novidade. Mas daí você vir até minha casa e dizer que ela está fingindo...
- São conjecturas. Conheço Maria Lúcia.
- Não pode estar falando sério.
- Claro que estou. Ela não conversa comigo nem com você nem com as empregadas. Mas ligou para o advogado, dando ordem para vender o carro e o apartamento que dera a Henrique. E depois voltou a ficar em silêncio assim, sem mais nem menos?
- Não sei o que fazer.
- Tenho medo de que algo de ruim aconteça a Vitória.
- Não estou entendendo.
- Sinto que sua filha corre perigo.
Eduardo explodiu.
- Ah, Marines, isso é demais! Acha que Maria Lúcia seria capaz de ferir a própria filha? Que mãe faria mal a seu filho?
- Calma! Não quis dizer isso. Mas sinto uma dor no peito toda vez que olho para minha sobrinha.
- Vitória é muito miúda, dá essa impressão.
- Não é isso. Ouça: infelizmente desconfio de Maria Lúcia.
- Não esperava ouvir isso de você. Atacando uma pobre indefesa, uma mulher que acabou de perder o filho.
- Espere um pouco...
- Chega! Você agora foi desumana. Não consegue imaginar a dor que sua irmã deve estar sentindo?
Marines ficou constrangida. Ela tinha convicção de que Maria Lúcia estava fingindo; conhecia bem a irmã. E precisava ser verdadeira. Fazia noites que tinha os mesmos pesadelos. Vitória era assassinada, em sua frente. Marines estava confusa. Alterou o tom de voz:
- Espere um pouco, Eduardo. Calma lá!
- Calma, nada! Por que atira lama em sua irmã no momento em que ela está debilitada, arrasada?
- Não estou atirando lama...
- Será que os choques que você tomou lhe afectaram o cérebro?
Aquilo foi a gota d'água. Marines empalideceu e tonteou. O ar lhe faltou. Não podia acreditar que Eduardo pudesse ser tão grosseiro. Ela não tinha palavras. Caiu no sofá extenuada e chocada.
- Desculpe, estamos com a cabeça quente - contemporizou ele.
- Não temos mais o que conversar.
- Não tive a intenção de agredi-la.
- Você está cego. Sei que seu filho morreu recentemente, que você passou maus bocados com a possibilidade de perdera filha. Mas minha intuição não me engana. Toda vez que olho para Vitória, sinto um aperto no peito, algo desagradável. Sinto que ela corre perigo. Mas você não enxerga. Não tenho mais o que dizer.
- Mas o que quer que eu faça?
- Se algo vier a acontecer amanhã, minha consciência estará tranquila.
- Espere! Desculpe-me. Fui grosso com você.
Eduardo aproximou-se e Marines esquivou-se. Pegou a bolsa e saiu em disparada, chorando copiosamente. Chorava por ela, por Eduardo e por sua sobrinha.
- Que Deus me perdoe, mas Maria Lúcia vai aprontar das suas.
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:39 am

Marines não podia chegar em casa naquele estado.
Tomou um táxi e foi ter com Clóvis. Tocou a campainha e um brutamontes atendeu a porta.
- Clóvis está?
- Sim. Quem deseja?
- Sou Marines.
- Ah, sim. Entre, por favor.
- Obrigada.
- Vou chamá-lo.
Túlio percebeu que os olhos dela estavam inchados de tanto chorar. Foi até o escritório chamar Clóvis. Entrou devagarinho no aposento e abraçou-o por trás. Clóvis sentiu agradável sensação.
- Hmm, que gostoso!
- Gostaria de continuar, mas não posso.
- Por quê?
- Chegou visita para você.
- Visita?
- Sim. Marines.
- Aqui em casa?
- É. E parece que não está bem. Seus olhos estão tão vermelhos!
- A esta hora da noite, coisa boa é que não é.
- Vá lá atendê-la. Vou fazer um chá. Não quero incomodá-los.
Clóvis levantou-se e foi até a sala. Marines, assim que o viu, abraçou-se a ele e rompeu em prantos.
- O que foi, querida?
- Acabei de sair da casa de minha Irmã.
- O que aconteceu? Algum problema com sua sobrinha?
- Não - respondeu ela, limpando as lágrimas com as costas da mão. — Vitória está multo bem, graças a Deus.
Ah, Clóvis, é uma sensação muito estranha!
- O que há?
- Desde que Vitória nasceu, não saí do hospital. Fiquei dia e noite em vigília, enquanto ela estava na incubadora. Era como se eu tivesse dado à luz, sabe?
- Notei quanto se desdobrou para ficar no hospital.
As noites mal dormidas, a expectativa, as conversas com os médicos. Tanto, que, quando ela foi liberada, foi você quem a pegou nos braços e a levou para casa.
- Foi divino. Nunca vou me esquecer desse dia. Sou apaixonada por Vitória.
- E o que está havendo?
- Desde o dia em que ela foi para casa, tenho sentido uma opressão aqui no peito. Tenho tido sonhos esquisitos, pesadelos horríveis.
- Conversou com d. Alzira a respeito?
- Sim. Ela tem me ajudado muito. Tenho ido ao Centro Espírita todos os dias. Tomo passe, faço minhas orações.
Mas os pesadelos continuam.
- E o que d. Alzira disse?
- Que estou tendo visões de vidas passadas. Que logo tudo vai passar.
- Então qual o medo?
- É difícil dizer. É como se Vitória corresse grande risco. E os pesadelos me consomem.
Túlio chegou com uma bandeja de prata, um bule, duas xícaras e um pratinho com algumas guloseimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:40 am

- Acho que não comeu nada. Não sente fome? — perguntou ele, com amabilidade na voz.
- Não tenho tanta fome, mas um chá vai bem. É de cidreira?
- Sim. Peguei no quintal. Fresquinha.
- Túlio adora cozinhar - interveio Clóvis.
- Em outra ocasião, Marines, gostaria de lhe oferecer um jantar.
- Muito obrigada. Virei com prazer.
Túlio serviu o chá e dois biscoitinhos para Marines.
- Hmm, deliciosos!
- Fui eu que fiz. Gostou?
- São maravilhosos, Túlio - parabenizou ela.
- Ele é excelente na cozinha - disse orgulhosamente Clóvis.
- Você trabalha em restaurante?
Túlio riu.
- Não, eu trabalhei por muitos anos num Banco estatal. Não era a vida que eu queria. Tenho percebido que o que gosto mesmo é de cozinhar.
- Por que não tenta?
- Porque não tenho experiência profissional.
- Túlio ainda não se convenceu de que é um chef de cozinha.
- Não exagere.
Marines interveio, amável:
— Tenho um amigo que possui três restaurantes. Está precisando de cozinheiro. A mãe dele, responsável pela cozinha, formou-se em Contabilidade e trocou o fogão pelos livros fiscais.
Túlio animou-se:
— Adoraria. Tem certeza de que a vaga não foi preenchida?
— Tenho, porque almocei com ele hoje mesmo. — E, virando-se para Clóvis, completou: - Você sabe de quem estou falando: de Gaspar Mendonça.
Clóvis revirou os olhos.
- Ah, Gaspar! Quem poderia se esquecer dele?
Ambos riram. Túlio interessou-se.
— Gente boa?
— Um amigo querido, de muitos anos. Namorou minha irmã anos atrás. Está no ramo de restaurantes e vem se dando muito bem.
Túlio interessou-se:
— Poderia me dar o endereço?
— Claro! Acho que vale a pena tentar.
— Quero tentar, sim. Sinto-me pronto para iniciar uma nova carreira.
- Você fazia o quê no Banco? - indagou Marines, curiosa.
— Área administrativa, muito chato. Agora que me acertei com Clóvis, quero também começar nova profissão, algo que tenha a ver comigo, que eu goste de verdade. Descobri a paixão pela cozinha.
— Faço questão de que procure Gaspar amanhã. — Marines pegou a bolsa, abriu a agenda e fez anotações num papelzinho. — Aqui está. Ele vai ficar neste endereço amanhã, no finalzinho da tarde. Diga-lhe que foi Marines quem o indicou. Tenho certeza de que o emprego será seu.
— Só o emprego, ouviu bem? - salientou Clóvis, maliciosamente. - O patrão, não!
Túlio pegou uma almofada e jogou-a sobre o companheiro. Fazia quase um ano que ele e Clóvis estavam juntos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:40 am

Poucos meses antes, decidiram morar sob o mesmo tecto, e o resultado era espectacular. Viviam em harmonia, com carinho, amor e respeito.
Clóvis conseguiu convencer o companheiro a deixar o Banco. A princípio, Túlio relutou. Ficaria sem trabalho, sem o que fazer, e, pior, deixaria de ter uma gorda aposentadoria.
Mas arriscou.
Após a separação, Túlio e Matilde venderam a casa.
Ela, para ajudá-lo, deu-lhe sua parte da venda do imóvel.
Ele aplicou o dinheiro e sentiu-se seguro o suficiente para abandonar o emprego e poder tentar outro concurso público, ou, quem sabe, nova carreira. O convívio com Clóvis despertara sua sensibilidade, e Túlio mostrou grande habilidade na cozinha. Era criativo e fazia pratos saborosos, apreciados pelos amigos do casal. A fama do grandalhão foi crescendo e todo fim de semana amigos e até parentes de Clóvis vinham para degustar alguma iguaria feita por Túlio.
Os três se divertiram bastante. Marines e Túlio entrosaram-se muito bem. Simpatizaram-se logo de cara.
Aquilo fez muito bem a ela. Ainda estava magoada com Eduardo. Sabia que ele estava em seu limite, mas destratá-la daquele jeito infelicitou-a profundamente. Num determinado momento, ela parou de sorrir. Túlio percebeu que ela ainda precisava desabafar e retirou-se educadamente, pretextando cansaço.
Clóvis notou a angústia no olhar da jovem.
- Eu a conheço mais do que possa imaginar.
- É, para você não consigo mentir. Estou multo desapontada com Eduardo.
- Ele a destratou?
- Foi estúpido.
- Ele está com os nervos à flor da pele.
- Ele não quer enxergar a verdade.
- Dê um tempo a ele. Não o procure.
- E o que faço com minha preocupação? O que será da pequena Vitória?
- Tenha calma. Dona Alzira não disse para confiar?
- Disse.
- Pois, então, confie. Essa é sua lição.
Marines exalou profundo suspiro. Era obrigada a concordar. Tinha de aprender a confiar, a entregar aquele caso nas mãos de Deus. Por mais que tentasse, uma dor, quase física, oprimia seu peito. Aquela sensação estranha era como um alerta. E Marines não sossegaria enquanto aquela sensação esquisita não sumisse por completo. E, de mais a mais, sua intuição parecia dar-lhe a certeza de que Maria Lúcia seria capaz de cometer um ato insano.
A jovem resolveu mudar de assunto e conversar amenidades.
Passava da uma da manhã quando Clóvis estacionou o carro em sua porta. Despediram-se e ela entrou em casa cabisbaixa. Pelo horário, deduziu que os pais estivessem dormindo. Abriu e fechou a porta da sala com extremo cuidado. Assustou-se com a luz da cozinha acesa.
- Ainda acordada, mãe?
— Estava preocupada — retrucou Iolanda.
Marines beijou-lhe a face com ternura.
— Você é uma mãe e tanto!
— E vou cuidar de seus filhos.
Marines esmoreceu.
— Não terei filhos. Não se iluda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:40 am

— Por quê? Acha que filho só vem pela barriga? E com tanta criança no mundo querendo um lar! Não está na hora de rever seus conceitos? É tão presa a antigos valores, que não pode aventar a possibilidade de adoptar uma criança?
- Você nunca falou comigo nesse tom.
— Estava na hora. Vai viver o resto da vida se lamentando? Isso não combina com você, Marines.
Aquilo a tocou profundamente. Iolanda estava certa:
havia tantas outras possibilidades de ser mãe. Marines pegou seu copo de leite morno e bebeu-o vagarosamente. Passou a língua sobre o lábio superior, limpando o bigodinho branco.- Tem razão, mãe. Preciso mudar. Boa noite.
— Boa noite. Tenha bons sonhos.
Marines subiu vagarosamente as escadas. Entrou no quarto, despiu-se, vestiu pijama confortável e deitou-se.
Orou pedindo protecção aos amigos espirituais e, em especial, ajuda a seu mentor. Mais alguns minutos, e adormeceu.
Ela sonhou que estava sentada num banco, ladeado por lindo jardim, o céu negro salpicado por algumas estrelas.
Marines teve agradável sensação. Respirou profundamente, enchendo os pulmões com aquele ar puro e rarefeito. Uma simpática senhora veio até ela.
- Como vai, Marines?
A jovem fitou a senhora, emocionada.
- Abigail, há quanto tempo!
Abraçaram-se e sentaram-se lado a lado no banco do jardim.
- Muitas coisas aconteceram, e bem que tentei alertá-la.
- Eu sei, Abigail. Reprimi minhas emoções, meu desejo. Julguei-me suja. A lição foi dura, mas aprendi.
Abigail bateu levemente nas mãos da jovem.
- Está indo muito bem. Parabéns. Superou seus medos, suas inseguranças. Está pronta para novo ciclo.
- Sinto-me confusa. Por mais que tente, eu me recrimino por amar Eduardo.
- O que seu coração diz?
- Que ele é o homem de minha vida. Mas veja como fui tratada hoje. Ele me magoou.
- A mágoa só traz aborrecimentos. Você acredita que nunca vai realizar seu sonho, o de se casar com ele.
- Acho impossível. Maria Lúcia naquele estado patético e Vitória necessitando de cuidados... Como Eduardo poderá pensar em separação?
- Espere e confie.
Marines apertou a mão da amiga com força.
- Estou aflita. Ultimamente nem tenho pensado em casamento, em Eduardo, em nada.
- Está preocupada com Vitória, não está?
- Sim. E a dor no peito que não passa? Estou louca?
- Não, não está. Vitória corre mesmo risco de desencarnar. Sua irmã está emocionalmente desequilibrada. Maria Lúcia está prestes a cometer uma loucura.
- Então o que sinto é um sinal de que... - Ela colocou a mão na boca, em desespero. — Não! Isso não pode acontecer, Abigail.
- Tudo depende do merecimento de cada um.
- Mas minha sobrinha, tão pequenina...
- Não se iluda. Aquele corpinho abriga um espírito lúcido, inteligente. Não se engane com Vitória. Ela tem tudo para vencer.
- Mesmo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:40 am

- Quando desencarnou pela última vez, soube perdoar. E, como sabemos, perdoar é libertar-se. Vitória está pronta para viver o que lhe foi tirado em última vida.
- O que aconteceu? É permitido me contar?
- Sim. Tiramos você do corpo esta noite para lhe revelar algumas passagens de sua última encarnação. Nela, vou lhe relatar somente o essencial.
- Não vou ver tudo numa tela? Dona Alzira disse que muitas vezes podemos assistir a tudo como a um filme.
- Podemos. E conforme eu for lhe contando o passado, inevitavelmente virão cenas à sua mente. Abriremos a porta de seu inconsciente; ele é o guardião de nossas vidas passadas.
- Tenho certeza de que há algo entre mim, Maria Lúcia e Vitória; algo muito forte que nos une, seja no amor, seja no ódio.
- Está pronta? - indagou Abigail, atenciosa.
- Sim.
- Feche os olhos e relaxe.
Marines assentiu com a cabeça. Recostou-se no banco, inspirou e soltou o ar, ficando numa posição confortável.
Logo, imagens apareceram em sua mente.
A bondosa senhora sorriu. Aproximou-se mais, pousou suas mãos na dela. Com voz suave e sorriso encantador, pausadamente começou a relatar sua última vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:41 am

Capítulo 28
Uma jovem senhora, elegante em seu vestido de luto, silenciosamente contemplava o céu, enquanto deixava correr as lágrimas que afloravam aos olhos, sob efeito de forte emoção. Ergueu o pescoço para o alto e, pela janela, tentou avistar uma estrela que fosse. Devido ao nevoeiro intermitente que cobria Londres naquela noite, ela nada pôde ver. Viúva recentemente, Marines afastou-se da janela e estirou-se na cama. Era-lhe estranho ainda deitar-se sozinha, embora seu amado esposo tivesse partido há mais de um ano.
- Eduardo, quanta falta sinto de você - disse, comovida.
Virou-se de lado e ouviu leve batida na porta.
- Filha! Por favor, deite-se com sua mãe. Sinto-me muito triste esta noite.
Vitória fechou a porta e correu até a cama da mãe.
- Dormirei com você todas as noites, se quiser.
- Eu a amo tanto, Vitória!
- Eu também a amo, mamãe.
Vitória, então com dezassete anos de idade, possuía rara beleza: pele alva, traços finos, lábios vermelhos e carnudos. O corpo bem feito chamava a atenção dos rapazes. A moça não ligava para os galanteios dos jovens de sua idade.
Sentia atracção por homens maduros.
Num belo dia, passeando pelos jardins do Hyde Park, nos arredores da cidade, Vitória, em companhia da avó Iolanda, conheceu Gaspar, um aristocrata simpático, rico, influente e... casado. Vitória tentou esquivar-se, mas sentira profunda atracção pelo aristocrata. Sua avó, Iolanda, companheira e confidente, incentivava-lhe com palavras de ânimo. Vitória não resistiu aos apelos da avó e aos galanteios insistentes de Gaspar: iniciou com ele tórrida paixão. Gaspar, apaixonado, divorciou-se da mulher para casar-se com a jovem.
Maria Lúcia, a ex-mulher, nunca amou o marido. Casara-se pela posição social dele, pelo status, pelo poder.
Viviam uma relação fria, insossa. Gaspar dava suas escapadinhas e Maria Lúcia também dava as suas. Tudo hipocrisia, para manter as aparências. O grande amor da vida dela, na verdade, era seu filho Marcílio. Jovem, da mesma idade que Vitória, Marcílio era a personificação do belo: alto, forte, profundos olhos azuis. Ele e a mãe eram muito ligados, amavam-se verdadeiramente.
A separação foi um choque para mãe e filho. Maria Lúcia deixou de ser convidada para festas, jantares. Marcílio trancafiou-se em casa, para não dar ouvidos aos comentários maledicentes. A separação de sua mãe tornou-se mais comentada do que os feitos da rainha da Inglaterra.
Mãe e filho partiram para o ataque. Gaspar não cedeu às chantagens dos dois e não voltou para casa. Perdidamente apaixonado, desposou Vitória alguns meses depois. Nunca sentira nada parecido por outra mulher. Vitória trouxe-lhe de volta a alegria de viver.
Indignada e ferida em seu orgulho, Maria Lúcia e o filho chegaram à única conclusão, embora terrível, para acabar com aquele pesadelo em que viviam:
- Vitória tem de morrer, mamãe - repetia o filho, insistentemente.
Maria Lúcia acolheu a ideia do filho com satisfação.
Quem sabe, Vitória estando fora do caminho, Gaspar não voltasse para casa?
- Como faremos?
— Precisamos de um profissional, e ele terá de executar o serviço em local público, mamãe.
- Por quê?
- Porque assim não suspeitarão de nós, jamais.
— Mas e se esse profissional for preso? E se confessar?
— O dinheiro compra tudo. Conversei com Lord Henry.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:41 am

- E?
— Ele nos dará cobertura. Um de seus guarda-costas fará o serviço.
— Lord Henry não faz nada de graça. O que quer em troca?
— Que você se case com ele.
— Ele é devasso. Casar-me com ele vai me prejudicar mais ainda. E não terei seu pai de volta.
— Mas nós não o queremos de volta. Queremos que ele pague caro por ter nos deixado, mais nada. Você ama papai?
— Sabe que você é o único amor de minha vida. Seu pai serviu de trampolim para a vida de luxo com que sempre sonhei.
— Lord Henry é muito mais rico, mamãe. Nossa reputação já foi para a lama, desde que papai nos deixou.
Dane-se o que pensam ou dizem de nós.
— Não sei se devo.
— Faça esse sacrifício por nós.
Maria Lúcia pensou, pensou e admitiu: valia a pena acabar com Vitória e casar-se com Lord Henry. A fase estava boa para ela, visto que Iolanda, a avó que estimulara o namoro da neta com seu ex-marido, morrera de ataque cardíaco. Um alívio, uma a menos contra quem se vingar.
Maria Lúcia antegozava o prazer de ver o ex-marido sofrendo pela perda da mulher. Decidiu compactuar com a trama sórdida. Não tinha nada a perder.
O local do atentado não poderia ser mais público: o Palácio de Cristal, especialmente construído pelos ingleses para exporão mundo suas maravilhas tecnológicas. Como se tornou um retumbante sucesso, o palácio era visitado diariamente por milhares de pessoas, Ingleses e estrangeiros.
Vitória estava passando distraída por um dos corredores quando tudo aconteceu. Maria Lúcia, ali perto, jogou-se no chão, gritando em desespero, alegando ter sido roubada, chamando a atenção dos visitantes. Assim que se formou pequena aglomeração, o assassino aproximou-se de Vitória e apunhalou-a nas costas. Ninguém percebeu, nem mesmo Gaspar. Quando a multidão se desfez, Gaspar olhou aterrorizado para a mulher. Dos lábios dela escorreu grossa camada de sangue e Vitória caiu em seus braços, morta.
Com o passar dos dias, Gaspar, arrasado, passou a entregar-se à bebida. Fechara-se em seu mundo e não desejava mais viver. Um ano após a morte de Vitória, depois de tanto abusar do álcool, ele morreu.
Maria Lúcia voltou a frequentar a sociedade, agora como mulher de Lord Henry. Era com indescritível sensação que fitava Marines, nas raras vezes em que se encontravam. Numa dessas vezes, só para espezinhar Marines,
Maria Lúcia comentou:
- Demos uma bela lição em sua filha.
- Do que está falando?
- Da próxima vez que tiver uma filha, não a deixe aproximar-se de homens casados. É perigoso e fatal.
- Você não foi capaz...
- De matar Vitória? Não. Não sujaria minhas mãos com aquele sangue ordinário. Tenho capangas para isso.
Marines atirou-se sobre ela com imensa fúria. Lord Henry, por meio de seus contactos, conseguiu que Marines fosse presa. A desmiolada passaria um tempo na detenção sem amolar sua família.
Anos depois, livre da cadeia, Marines não desistiu e, inconformada com o silêncio e descaso da polícia, que arquivou o processo por falta de provas, resolveu fazer justiça com as próprias mãos. Revoltada, contratou um polaco truculento, Olavinho, para dar uma lição a Maria Lúcia.
Numa noite, Marcílio encontrou a mãe quase à beira da morte, brutalmente espancada. Por um triz, Maria Lúcia escapou de morrer. Levou mais de seis meses para voltar a andar. Ninguém sequer suspeitou de Marines, mas Lord Henry, inconformado com a invasão à sua propriedade e o ato bárbaro a que sua mulher fora submetida, ofereceu gorda recompensa a quem descobrisse o paradeiro do autor do atentado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:41 am

A notícia correu a cidade, e em pouco tempo o malfeitor foi capturado e confessou o crime. Marines não teve alternativa a não ser fugir da Inglaterra. Embrenhou-se numa floresta ao norte da Espanha e nunca mais foi vista.
Passou seus últimos anos vivendo com medo de ser descoberta. Desencarnou adoentada e quase demente.
Maria Lúcia recuperou-se da surra. Marcílio não saía de seu lado; amava a mãe acima de tudo. Cuidou dela com extremo carinho, e um ano depois ela voltava à sociedade. A gravidez inesperada da mãe tirou o chão de Marcílio. Aquilo não estava nos planos dele. Ele era único. Não podia imaginar sua mãe, mesmo ainda jovem, dando à luz. O ciúme corroía-o dia após dia. Marcílio tentou alertar a mãe sobre o perigo da gravidez, lembrando-a de que ela ainda se recuperava da surra, mas foi em vão: Maria Lúcia levou a gravidez adiante. Deu à luz um lindo garotinho, mas não chegou a conhecê-lo. Uma forte hemorragia após o parto tirou a vida de Maria Lúcia.
Marcílio ficou arrasado. Olhava para a criança e rangia entre dentes:
— Desgraçado! Você matou minha mãe!
Numa noite fria e húmida, Marcílio pegou o pequeno bebê, tirou-lhe as vestes e deixou-o completamente nu. Abriu as janelas do quarto e permitiu que a brisa gelada castigasse o corpo frágil do pequenino. O bebê não suportou o frio e amanheceu morto.
Marcílio sentiu-se parcialmente vingado. Faltava alcançar Marines. Tentou até mesmo subornar a Scotland Yard, mas debalde. Nunca encontrou Marines, em vida. Quando desencarnou, anos depois, ambos ficaram frente a frente e digladiaram-se por anos.
Lord Henry voltou à sua devassidão. As mortes da mulher e do enteado em nada mudaram seus hábitos.
- Faz parte da vida. O ser humano vem com esse defeito de fabricação - dizia aos amigos mais íntimos, incrédulos com sua frieza.
Lord Henry - ou Henrique, nesta vida - conheceu uma moça muito bonita e também muito interessada em seu dinheiro. Na meia-idade, era-lhe difícil conseguir belas mulheres para satisfazê-lo. Estela era exuberante, dominava as técnicas do sexo como ninguém e levou Henrique à loucura.
Logo ele se apaixonou perdidamente pela moça.
Com o passar do tempo, Estela meteu na cabeça que queria arrancar todo o dinheiro e as jóias que pudesse do marido. Mas o lorde era esperto, e escondia muito bem seus tesouros. Estela amancebou-se com aquele mesmo capanga que atacara Vitória. Seu nome era Marcos. Juntos, planejaram dopar o velho lorde e tomar-lhe seus pertences.
Mas Lord Henry desconfiou da armadilha e tentou acabar com os dois. Pegos de surpresa e com medo de serem presos, dominaram o velho e torturaram-no, dias a fio. O lorde não cedia, não contava onde ficava seu cofre. Estela e o jovem não tinham piedade e cometeram atrocidades:
perfuravam o velho com garfos, acendiam velas e deixavam que a parafina fervente caísse sobre seus olhos, e outras perversidades. Lord Henry morreu sem confessar. Estela e Marcos fugiram e nunca foram encontrados.
O lorde desencarnou muito mal. Recebeu ajuda, tratamento. Mas o que mais lhe doía era o fato de ter sido enganado. Amou Estela como nunca amara outra mulher na vida. Estremecido em seus valores, jurou nunca mais confiar nas pessoas. Trancou os sentimentos a sete chaves. Jamais entregaria seu amor a alguém.
Na Espanha, Marines, embora tenha tido uma vida de luxo na Inglaterra, submeteu-se a todo tipo de trabalho, desde que lhe desse o que comer. Não podia dar pistas de sua origem, nunca. Numa de suas andanças conheceu Clóvis, viúvo e pai de dois filhos. Contratada por ele, tornou-se governanta da casa e praticamente segunda mãe das crianças, tamanha a devoção.
Lá, havia uma empregada de origem alemã, mulher de grande porte, mas totalmente desprovida de desejo sexual.
Frida - actualmente encarnada como Túlio - nutria paixão platónica pelo patrão, Clóvis. Mas era incapaz de aceitar seu corpo feminino e frágil. Lamentava não ter um corpo viril e másculo, embora sentisse atracção por homens.
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Capítulo 29
Marines despertou com extraordinária sensação de bem estar. Levantou-se e, durante o toalete, aos poucos se lembrou de algumas passagens do sonho. Algumas imagens ainda estavam fortes em sua mente. Precisava encontrar-se com Alzira o mais rápido possível. Próximo à hora do almoço, chegou à casa da médium.
- Desculpe não ter ligado antes. Estava ansiosa por vê-la.
Alzira cumprimentou-a com amabilidade.
- Entre. Eu já a esperava.
Marines fez ar de interrogação.
- Mesmo?
- Sim. Está confusa em relação ao sonho.
- Como soube?
Alzira sorriu levemente.
-Vamos nos sentar. Precisamos conversar.
Ajeitaram-se confortavelmente no sofá. Alzira tornou, amável:
- Os espíritos me avisaram hoje cedo. Sente-se melhor, depois de saber alguns factos importantes do passado?
- Sinto-me chocada.
- Somos capazes de tantas coisas! Mas nada como uma vida após a outra!
- Mas, e essa opressão no peito? Quando vai passar?
- Logo.
- E se Vitória vier a...
Marines baixou a cabeça, chorosa. Alzira explicou:
- A lei está em nossas mãos. O espírito de Vitória está abrigado num corpo de bebê. Concordo que ela não tem meios físicos de se defender, mas tem poder, tem Inteligência. Ela escolheu estar naquele lar, foi necessidade de seu espírito.- Mas corre risco. Tenho pena.
- Nada é imposto pela natureza. Não se engane, pois Vitoria tem o poder de mudar a realidade.
- Assim espero.
- Eu disse que você precisa aprender a confiar. Já desperdiçou uma vida por não saber controlar suas emoções.
Não acha que está na hora de aprender a dominá-las?
- Sim. Quero mudar. Sinto-me cansada de ter medo.
Marines abraçou-se a Alzira e chorou. Deixou que as lágrimas escorressem livremente pelo rosto. A médium deslizava suavemente as mãos pelos seus cabelos. Disse baixinho:
- Vai dar tudo certo. Confie.
Espíritos amigos deram um passe em Marines. Ela permaneceu abraçada a Alzira por mais um tempo. A médium vislumbrava o futuro da jovem, bem como o de Vitória.
Esboçou leve sorriso e continuou acariciando os sedosos cabelos da moça.
No fim daquele mesmo dia, Túlio apareceu no endereço que Marines lhe indicara na noite anterior. Sentia certo nervosismo. Entrou no restaurante e procurou por Gaspar.
A faxineira do restaurante apontou para um corredor e Túlio estugou o passo. Estava muito ansioso.
- Senhor Gaspar Mendonça?
- Eu mesmo.
- Boa tarde. Foi Marines quem me sugeriu procurá-lo.
Gaspar sorriu. Levantou-se e estendeu a mão.
- Prazer. Sente-se, por favor.
- Obrigado.
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Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 9:41 am

- De que se trata?
Túlio pigarreou.
- Bom, fui informado de que está procurando um cozinheiro.
- Sim. Pretendo me desfazer do bar e da pizzaria que tenho. Quero ficar somente com um restaurante, mas um que seja aconchegante, elegante, com pratos diferentes do convencional, embora saborosos.
- Sei.
- Quero formar uma equipe de profissionais. No Brasil ainda é difícil encontrar bons chefs de cozinha. Infelizmente não tenho como contratar alguém de fora do país.
- Culinária ainda é uma actividade sem valor.
- Disse bem: "ainda". Nosso país carece de profissionais. Preciso de alguém que cozinhe, que saiba fazer tanto pratos triviais quanto refinados. Na verdade, estou atrás de um mestre-cuca. Você tem experiência?
- Bem, eu sempre trabalhei como assistente administrativo. De um tempo para cá me entreguei de corpo e alma aos prazeres da boa comida.
- Fale-me um pouco de você.
Túlio remexeu-se nervosamente na cadeira.
- Trabalhei num Banco estatal por quase dez anos.
- Sim, continue.
- Bem, estava cansado daquele ambiente, de minha vida. Meu casamento não ia bem e resolvi procurar ajuda espiritual. Acredita nessas coisas?
- Acredito. Precisei muito de ajuda alguns anos atrás.
Não frequento Centro algum, mas acredito, sim.
- Pois bem... Uma tarde fui até um Centro Espírita por indicação de uma amiga. Ouvi tantas coisas boas, fiquei tão tocado, que resolvi mudar minha vida a partir de então. Se não fosse d. Alzira, eu...
Gaspar interrompeu-o, animado:
- Alzira? Do Centro Irmão Francisco?
- Essa mesma.
- Ela é minha vizinha. Eu a adoro. Puxa, que coincidência!
Túlio sentiu-se mais à vontade. Relatou a Gaspar sua falta de motivação no trabalho, a crise no casamento. Falou sobre sua relação com Clóvis, enfim, contou tudo. Gaspar ficou impressionado. Simpatizou com Túlio logo de cara e depois do relato vibrante e verdadeiro fez-lhe a proposta:
- Vamos fazer um teste. Tem hora para chegar em casa hoje?
- Não.
— Então vamos à cozinha. Lá temos vários ingredientes: legumes, carnes, vegetais, tudo que quiser. Invente, crie para mim dois pratos. Quando terminar, me chame para degustá-los. Se eu gostar do que comer, eu o contrato.
Túlio levantou-se empolgado.
— Obrigado. Garanto que não vai se arrepender.
Gaspar conduziu-o até a cozinha e deu ordens para que ele pudesse usar e solicitar o que precisasse. Deixou uma assistente de cozinha ao dispor do grandalhão. Túlio empenhou-se. Fez um prato de comida trivial: arroz e bife acebolado. Depois fez um estrogonofe de filé-mignon acompanhado de batata sauté, prato desconhecido do grande público naquela época.
Duas horas depois, Gaspar foi chamado para degustar os pratos. O aroma da comida, a decoração dos pratos, tudo já valeria contratação imediata. Gaspar sentou-se, experimentou. Terminado o repasto, olhou sério para Túlio. Este estremeceu.
— Algo de errado?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 8:34 pm

Gaspar não conseguiu segurar a risada. Olhar para aquele brutamontes meio estabanado, ansioso e medroso, era de fazer rir.
— Considere-se contratado.
Túlio exalou profundo suspiro.
- Obrigado. Prometo que serei o melhor mestre-cuca que você já teve.
***
Aquela noite foi de imensa felicidade para Túlio. Finalmente alguém lhe dera a chance de recomeçar. O salário não era lá essas coisas, mas dava para ajudar a pagar as contas básicas da casa. Túlio simpatizou com Gaspar e iria fazer de tudo para que o novo restaurante desse certo, pelo menos no tocante ao cardápio. Clóvis vibrou de felicidade e imediatamente ligou para Marines.
- Você é a responsável. Venha comemorar.
Ela ficou feliz, mas declinou o convite com elegância:
— Desculpe-me, mas hoje, especialmente, não me sinto bem.
- Algo errado?
- Não. Aquela dor no peito continua vibrando forte em mim.
- Melhor seria procurar um médico. Já está reclamando há alguns dias.
- Não é dor física, Clóvis, sabe disso.
- Conversou com d. Alzira?
- Estive na casa dela hoje na hora do almoço. Conversamos um pouco.
- E o que ela disse?
- Pediu-me para confiar e garantiu-me que logo a sensação vai desaparecer.
- Então confie. Não quer mesmo vir até aqui?
- Não. Fica para outro dia.
- Você nos ajudou. Obrigado.
- Eu não ajudei, simplesmente dei o endereço. Juntaram a fome com a vontade de comer - ela se riu.
Túlio pegou na extensão:
- Serei eternamente grato. Você ajudou a mudar minha vida. Mal a conheço, mas simpatizo muito com você.
Se precisar de qualquer coisa, pode contar comigo.
- Sua gratidão me emociona - tornou Marines.
- Mais uma vez, obrigado. Que Deus a ilumine sempre.
Vou rezar por você todas as noites de minha vida.
Marines pousou o fone no gancho, emocionada. Quase chorou. Sentindo-se mais tranquila, deitou-se e adormeceu.
Túlio e Clóvis nem imaginavam que suas vibrações de carinho e gratidão chegavam num momento crucial na vida da moça. Aquela energia positiva e carinhosa daria a Marines o suporte necessário para encarar com firmeza e serenidade, mais adiante, a grande reviravolta em sua vida.
***
Estava quase amanhecendo quando Maria Lúcia despertou, de súbito. Pensou que houvesse tido um pesadelo sem fim. Passou as mãos pela testa como a afastar os pensamentos confusos e desconfortáveis que assolavam sua mente. De repente, lembrou-se do filho.
- Cadê Marcílio? Onde está meu filho?
Deu um salto da cama e revistou o quarto com o olhar. Onde estava o berço? Onde estava seu filho? Imediatamente, ela foi ao quarto do bebê. Entrou pé ante pé, para não fazer barulho. A babá acordou assustada.
- Dona Maria Lúcia, o que faz aqui?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 8:35 pm

- Vim ver o bebê.
- A senhora está bem?
- Claro que estou. Não está na hora da mamadeira?
- Ainda não. Só às seis horas vou dar de mamar.
- Vá esquentar uma agora. Quero dar de mamar a meu filho.
A babá achou tudo aquilo muito esquisito. Fazia dias que Maria Lúcia estava confinada no quarto, incomunicável. Alimentava-se a contragosto e somente se mexia para as necessidades básicas e o banho. Agora aparecia no quarto, e referia-se à pequena Vitória como filho. Cida ficou preocupada. Saiu do quarto pretextando esquentar a mamadeira, mas, assim que dobrou o corredor, correu até o quarto de Eduardo.
Enquanto isso, Maria Lúcia aproximou-se do berço.
- Olhe que bebê mais lindo! Mas está um pouco magro...
A criança mexia-se e, ao ver a mãe, esboçou leve sorriso. Maria Lúcia emocionou-se.
- Ah, bebê, venha com a mamãe.
Maria Lúcia aproximou-se do berço para pegar a criança. Assim que seu rosto se aproximou do bebê, ela notou a fitinha no cabelo, o brinco nas orelhas.
- Você não é Marcílio - bramiu.
Imediatamente tudo veio à tona: a gravidez indesejável, o dia do aniversário de Marcílio, a festa que não se concretizou, o parto, a morte do filho, a prostração. Maria Lúcia perdeu o juízo. Ensandecida, corria de um lado para outro do quarto, gritando feito louca:
- Desgraçada! Você me arruinou. Você é o monstro que eu jamais deveria ter concebido. Merece morrer, de novo.
Ela pegou o travesseiro da babá e com fúria desmedida afundou-o no rostinho indefeso de Vitória.
- Morra, desgraçada! Você arruinou minha vida. Morra!
Vitória começou a contorcer-se no berço. Suas perninhas e mãozinhas debatiam-se, numa débil tentativa de defesa.
- Não!! - gritou Eduardo, atónito.
Maria Lúcia não lhe deu ouvidos. Continuou sufocando a filha.
Eduardo correu e jogou-se sobre a mulher. Caíram no chão. Cida imediatamente pegou a menina no colo. Vitória chorava até quase perder o fôlego.
- Psiu! Calma, meu amor. Tia Cida está aqui. Não chore mais. Mamãe não vai machucá-la de novo.
Cida envolveu a pequena em seus braços e estugou o passo até a sala. Maria Lúcia tentou desenvencilhar-se do marido, mas Eduardo era mais forte.
- Louca! Perdeu o equilíbrio? Assassina!
Ela lhe deu uma dentada tão forte no braço, que
Eduardo imediatamente a soltou.
- Maldito! Você é o culpado.
- Eu?! Você tenta matar nossa filha e eu sou culpado? De quê?
- Ela arruinou minha vida. Por causa dela perdi Marcílio.
- Não diga um absurdo desses.
- Por que Deus não a levou? Por que tirou meu filho, que eu tanto amava?
- Pare com isso, Maria Lúcia!
- Ela deveria ter contraído meningite no hospital. Era fraca, debilitada... Por que não morreu de vez? Odeio essa criança! Odeio, entendeu?
- Nossa filha não tem culpa de nada. Você ainda está em choque. Sei que a perda de nosso filho a atormentou.
Mas, atentar contra a vida de um bebê?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 8:35 pm

Maria Lúcia deu uma gargalhada.
- Você quis dizer a perda do meu filho.
- Você não o fez sozinha. Portanto ele era meu, também.
- Imbecil! Está completamente enganado. Marcílio era meu filho, não seu!
- Está delirando.
Eduardo foi até a porta e pediu para Cida ligar para o médico e localizar a psicóloga. Solicitou também uma ambulância. Quando se virou para Maria Lúcia, ela ria sem parar. Eduardo informou:
- Os médicos vêm chegando.
- Danem-se os médicos! Sei que vão me internar. É isso que quer, não? Quer me internar para ficar com a ordinária da Marines.
- É mentira!
- Corno desgraçado!
- Você está me insultando. Pare com isso! Pensa que também não chorei e ainda não choro pela morte de nosso filho?
Maria Lúcia usou toda a força que tinha nos pulmões.
Gritou feito louca:
- Eu já disse que Marcílio era meu filho... Meu e de Gaspar.
- O que disse?!
- Isso mesmo. Eu engravidei de meu ex-namorado.
- Isso não é verdade. Está tentando me agredir.
- Usei Gaspar e iria me vingar. Claro que ele nunca soube que fiquei grávida dele. Eu jamais me casaria com um pé-rapado. Mas, lá na frente, eu iria esfregar o menino na cara dele. Seria minha vingança para arranhar o verniz de integridade daquele canalha. Você caiu feito um patinho.
Casou-se comigo e achou que era o pai. Quer ser chamado de quê? Cor-nu-do!
Eduardo não tinha palavras para expressar seu estupor. Ela continuou, enraivecida:
- Lembra-se de nosso jantar de noivado? Foi naquela noite que me entreguei a Gaspar.
- Na noite de nosso noivado? - indagou, aturdido.
- Sim, naquela noite. Jamais me esqueci de Gaspar.
Jurei não ter mais filhos na vida, mas você estragou tudo, engravidando-me. Tentei abortar, mas o incompetente do Henrique não me deu a quantidade correta de chá. Bem feito que morreu! Não servia para nada, mesmo.
- Quer dizer que tentou abortar? Então o médico estava com a razão! Como pôde ser tão vil, tão desumana?
Maria Lúcia ria descontrolada. Sentia-se praticamente vingada de Eduardo.
- Infelizmente o parasita cresceu dentro de mim, sugou-me e nasceu. O que posso fazer? Essa, sim, é sua filha. Ela não tem mãe. Nunca terá. Vou odiá-la por todos os dias de minha vida.
- Você nunca mais vai pôr as mãos em Vitória.
- Pode ficar com ela, corno manso!
Eduardo levantou a mão e deu sonora bofetada no rosto da mulher.
- Cale a boca! Nunca mais ouse falar comigo assim.
Você precisa de tratamento. Espero que fique confinada num sanatório.
- Eu tenho amigos. Eu quero dinheiro.
- Só pensa em dinheiro?
- Quero muito dinheiro. Caso contrário, eu falo sobre a verdadeira paternidade de Marcílio. Sua família vai ser execrada pela sociedade, vai morrer de vergonha. Um escândalo envolvendo os Vidigais.
- Chega! Você é louca. Como pude me envolver com pessoa tão inescrupulosa? Você me dá nojo, Maria Lúcia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 8:35 pm

Os médicos chegaram e correram até o quarto. Maria Lúcia não ofereceu resistência. Deixou-se conduzir. Queria sair dali. Não suportava mais aquele ambiente, aquele marido, aquela criança. Passou por Eduardo e cuspiu-lhe na cara.
- Cornudo!
Foi conduzida por dois fortes enfermeiros. Ao passar pela sala, seu olhar cruzou com o da pequena Vitória, nos braços da babá.
- Espero que escorregue na gangorra, que caia da janela do apartamento. Ou, melhor: que meta os dedos na tomada e seja electrocutada; ou, ainda, que seja currada por um tarado.
Deu nova gargalhada, esganiçada, e sumiu pelo corredor. Eduardo pegou a pequena no colo, ainda assustada.
- Papai está aqui. Não dê ouvidos, não registre o que sua mãe disse. Ela não tem noção do que diz. Vamos sair daqui imediatamente. Esse apartamento só me trouxe desgosto. Cida, prepare a mala e coloque nela os pertences de Vitória. Vou arrumar minhas coisas. Volto logo.
Eduardo foi ao quarto e pegou algumas mudas de roupa. Pediu que Cida o ajudasse com as malas até a garagem. Colocou o bercinho no banco de trás do carro e partiu com a filha.
***
Às sete da manhã, a campainha soou forte e insistente. Marines levantou-se agitada:
- Podem deixar. Eu atendo a porta.
Abriu a porta e permaneceu imóvel. Parado na soleira estava Eduardo, com a pequena Vitória nos braços.
- O que houve?
Eduardo respirou fundo, porquanto estava abalado emocionalmente.
- Marines, aceita ser mulher e mãe de uma só vez?
- O que foi que disse?
- Quer se casar comigo e ser mãe de Vitória?
Ela não tinha palavras. Abriu e fechou a boca, emocionada. Pegou a pequena Vitória dos braços de Eduardo e embalou-a com carinho. O bebê deu gostosa risada.
- Acho que acabou de se tornar mãe. Quer também tornar-se minha mulher?
Ela não respondeu. Com a pequena Vitória nos braços, ergueu o rosto. Seus lábios aproximaram-se e Eduardo falou, com voz que a paixão enrouquecia:
- Case-se comigo. Será a mulher e a mãe mais feliz do mundo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 29, 2024 8:36 pm

Capítulo 30
Em janeiro de 1975, Marines, Eduardo e Vitória partiram rumo à França. A parceria com os Gauleses havia se solidificado e Eduardo ia dividir o controlo dos negócios: ele em Paris, e Osvaldo, no Brasil.
Não descartava a possibilidade de regressar ao Brasil.
Amava seu país, mas no momento estava deveras abalado. Por outro lado, havia pedido o desquite e não podia se casar novamente, pelas leis brasileiras em vigor.
Houve muito falatório. As más línguas diziam que Eduardo trancafiara a mulher num sanatório para se amancebar com a cunhada. Um escândalo. Ele e Marines decidiram que Vitória deveria crescer longe dos fuxicos e dos comentários maledicentes das pessoas.
Alguns meses depois, Floriano morreu de ataque cardíaco. Iolanda aposentou-se e, com a morte do marido, dedicou-se activamente aos trabalhos da creche mantida pelo Centro Irmão Francisco.
Osvaldo e Adelaide, na companhia de Iolanda, iam a Paris constantemente. Participaram do crescimento de Vitória. Amavam a menina como ninguém.
* * *
O tempo, inexorável, seguia seu curso. Era como se um calendário, preso à parede, tivesse suas folhas arrancadas com tremenda rapidez. Dessa feita, vinte e um anos se passaram. Para a eternidade, um sopro de tempo, mas, para nossos personagens, tempo de sobra para grandes transformações. Sónia casou-se com um diplomata americano e corria o mundo. Traumatizada com os acontecimentos na própria família, optou por não ter filhos. O marido também não os desejava. Transformaram-se em casal modelo, tanto pela cumplicidade quanto pelos serviços prestados às crianças carentes em todo o mundo. Sónia vez ou outra mandava um cartão, dava um telefonema. Quando passava pela Europa, não deixava de se encontrar com o Irmão, a cunhada e a sobrinha, que tanto amava. Nos últimos tempos, envolveu-se, como membro das Organizações das Nações Unidas, em trabalhos assistenciais em prol de crianças atingidas pela guerras no Oriente Médio.
* * *
Osvaldo continuou à frente dos negócios no Brasil.
Adelaide, depois do escândalo e dos comentários maledicentes envolvendo sua família, afastou-se da sociedade.
A convite de Alzira, conheceu a creche mantida pelo Centro Espírita. Apaixonou-se pelas crianças e, juntamente com Iolanda, trabalharam na melhoria, crescimento e manutenção da creche. De dezoito crianças atendidas diariamente no início, agora, vinte anos depois, o número saltara para oitocentas crianças assistidas por dia. Celeste, mãe de Gaspar, juntou-se a elas nessa empreitada.
* * *
Gaspar vendeu o bar e a pizzaria e apostou todas as fichas no sonhado restaurante. O sucesso foi estrondoso, e do dia para a noite ficou rico e famoso. Com a ajuda de Túlio, que posteriormente se tornou seu sócio, abriram filiais de Porto Alegre a Manaus, abrangendo todas as capitais do País. Gaspar tornou-se rico empresário, um quarentão em boa forma física, charmoso; as têmporas levemente grisalhas davam-lhe um toque sedutor. Continuava solteiro, mas não por opção. Tentara um namoro aqui e outro ali, mas nada sério. A maioria das mulheres aproximava-se dele pela fama, status, dinheiro. Alguns anos antes, uma socialite apaixonou-se de verdade por e/e. Gaspar chegou a pensar em casamento, mas ela sofreu misterioso acidente em alto-mar e morreu. Gaspar, acreditando no bordão "sorte nos negócios, azar no amor", descartou a possibilidade de casar-se um dia.
***
Túlio e Clóvis continuavam juntos. Clóvis ainda dava aulas na USP. Era o responsável pela decoração dos restaurantes. Eles não perderam contacto com Marines. Acompanharam o crescimento de Vitória, que carinhosamente os chamava de tios.
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