Medo de Amar - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Sempre que podiam, os dois iam a Paris visitar os amigos. Túlio prosperou na nova profissão. Aproveitava as viagens para entrar em todos os restaurantes.
Inspeccionava cozinhas, aprendia truques com os grandes chefs. Especializou-se profissionalmente e, através dos anos, com seus cardápios criativos — na verdade, o grande sucesso dos restaurantes -, tornou-se internacionalmente reconhecido.
* * *
Matilde, ex-mulher de Túlio, casou-se com rico fazendeiro no interior de Minas Gerais. Ela e Túlio mantiveram a amizade. Alguns anos antes, ela foi apresentada a Clóvis, e a simpatia entre ambos foi mútua. Túlio sentia a falta dos filhos e, com o passar do tempo, teve de engolir em seco o preconceito de um deles.
Fabinho, o filho mais velho, ficou tão amigo de Clóvis, que, além de chamá-lo de tio, fez questão de que estivesse presente na cerimónia de seu casamento. Serginho, o caçula, frequentava a casa de Túlio e Clóvis nas férias. Na adolescência, ao compreender a verdadeira relação entre o pai e Clóvis, entrou em crise. Fez análise por alguns anos, mas de nada adiantou. Rompeu relações com o pai, brigou com a mãe e, com o dinheiro herdado do avô, comprou terras nos confins de Goiás, tornando-se rico criador de gado.
***
Maria Lúcia ficou internada por três meses. Floriano, penalizado com a situação da filha, assumiu a responsabilidade pelos actos dela. Fez de tudo para que ela voltasse para casa. Pouco tempo depois, morreu de ataque cardíaco. Maria Lúcia tornou-se mulher fria e insensível, mas chorou a morte do pai. Foi a última vez que ela derramou uma lágrima. Fez chantagem com Eduardo e a família. Para se verem livres dela, fizeram acordo em juízo, sob o qual Maria Lúcia pegou um punhado de milhões, com a condição de jamais fazer um comentário que fosse sobre seu passado, principalmente no período em que vivera junto dos Vidigais. Também teve de abrir mão da guarda da filha, o que fez com prazer.
A ex-mulher de Eduardo Araújo Vidigal manteve o sobrenome e tornou-se celebridade nacional. Fez cirurgia plástica, emagreceu, passou a frequentar novamente a alta sociedade. Envolveu-se com drogas, sexo e muita discoteca. Acompanhou, a distância, a ascensão de Gaspar. Arrependeu-se de não ter se casado com ele. Afinal, tornara-se
excelente partido. Agora ele tinha se tornado efectivamente bom de cama e bom de grana. Mas, se ela não podia tê-lo, nenhuma outra mulher o teria. Maria Lúcia ficava na espreita e, nesses anos todos, não deu trégua. Assim que Gaspar conhecia alguém, ela entrava em acção, na surdina. Subornava, dava às pretendentes passagens aéreas de primeira classe, casacos de pele, jóias caras. As meninas não resistiam e o abandonavam. Mas Maria Lúcia teve dor de cabeça com conhecida socialite. Rica e apaixonada, era praticamente impossível comprá-la. Coincidência ou não, Maria Lúcia estava a bordo do iate em que a moça acidentalmente escorregou e se afogou, morrendo em alto-mar.
***
Os corpos de Estela e Olavinho nunca foram encontrados. Seus familiares ainda aguardam o parecer da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
Estela, Olavinho e Henrique engalfinharam-se no astral Inferior por anos a fio. Alzira colocava o nome dos três espíritos na caixinha de orações do Centro Espírita todos os meses. Infelizmente, eles destilavam tanto ódio entre si, que eram incapazes de registrar as energias positivas emanadas pela equipe espiritual do Centro Irmão Francisco. Na época em que Marcos desencarnou por overdose de drogas e se juntou a eles, houve uma trégua. Mas o jogo de acusações entre os três ainda perdura. Encontram-se perdidos nos meandros do umbral.
***
O delegado Medeiros foi flagrado na clínica de aborto na qual prestava "assistência jurídica"; preso e condenado, foi para a detenção. Morreu na cadeia meses depois, esfaqueado por um colega de cela que ele tentara assediar sexualmente.

***
O inspector Peixoto, que tentou ajudar Marines, teve forte crise de consciência após aquele triste episódio. Abandonou a polícia e, com a movimentação em torno da Campanha pela Amnistia, no fim dos anos setenta, foi um dos que forneceu informações e ajudou a organizar a procura pelos desaparecidos durante os anos de chumbo.
* * *
Marinho, o inspector que chutou o ventre de Marines, foi capturado por um grupo de marginais enquanto fazia blitz numa favela. Muitos dos marginais, já soltos, haviam apanhado do truculento e jurado vingança. Marinho foi encontrado num terreno baldio, com mais de trinta perfurações de bala no corpo.
Marines e Eduardo formavam lindo casal e continuavam se amando. Eram felizes, e Vitória cresceu nesse ambiente cheio de amor, carinho e respeito. Ela se transformou numa linda jovem: possuía olhos castanhos brilhantes, pele alva e corpo bem-feito. Paquerada e requestada, não se interessara até o momento por nenhum rapaz. Falava português e francês fluentemente; formou-se em moda e despontava como promissora estilista na Europa, quando Osvaldo morreu e Eduardo teve de voltar ao Brasil para escolher novo presidente das organizações e cuidar da partilha dos bens.
* * *
Num dia quente de verão, o avião aterrissou no aeroporto internacional de Cumbica. Vitória adorava o Brasil e já fazia mais de três anos que não regressava, ocupada que estava em concluir os estudos. Marines e Eduardo sentiram estranha sensação, afinal fazia mais de vinte anos que não punham os pés por estas bandas.
Vitória, embora entristecida com a morte do avô, estava maravilhada com o progresso da cidade. O táxi ia cortando aqui e ali, procurando livrar-se do trânsito caótico de São Paulo, quando passaram ao lado do Hospital Emílio Ribas. Eduardo exalou profundo suspiro. Marines apertou sua mão com carinho, transmitindo-lhe coragem.
- Já passou, querido. Esqueça.
- Ainda me lembro como se fosse ontem.
Vitória encostou o rosto em seu ombro, delicadamente.
— Marcílio deve ter evoluído, não pode ter ficado em estado infantil por tantos anos.
— Acredita mesmo nisso?
— Papai, você mesmo acredita. Estudamos tanto lá na França! Tivemos acesso a todos os livros de Allan Kardec, no original em francês; lemos muita coisa, aprendemos bastante. Hoje, as informações sobre o mundo espiritual não estão mais escondidas em seitas ou organizações.
Temos tudo à mão. O conhecimento está disponível para qualquer um.
— Eu sei, filha, mas é difícil.
— Vamos esquecer nossas discussões espirituais, por ora. Acabamos de chegar. Vovó Adelaide precisa de nosso carinho.
- Ela é forte. Fez tudo sozinha. Ainda bem que Alzira e Iolanda estavam a seu lado.
- Nós, mulheres, somos muito fortes.
Eduardo riu.
- É, tem razão. E você é a mais forte de todas.
Ele a beijou na testa. Sentia muito orgulho da filha.
Vitória virou-se para Marines, com carinho:
- Mamãe, será que vamos nos acostumar com esta cidade?
Marines sempre se emocionava quando Vitória a chamava de mãe. Nada fora escondido de Vitória; ela sabia da verdadeira mãe, já tinha visto fotos suas nas revistas.
Maria Lúcia era uma estranha para Vitória. A garota tinha forte laço afectivo com Marines e acreditava que mãe era a que criava, a que dava amor, como Marines fizera naqueles anos todos.

- Mãe! Estou falando com você.
Marines riu.
- Desculpe. Estava divagando. Eu e seu pai iremos nos acostumar. Mas, e você? Não tem amigos, não conhece ninguém...
- Ora, tenho tio Túlio e tio Clóvis.
- Acho melhor visitá-los - ponderou Eduardo. - Eu e sua mãe precisamos dar atenção à sua avó e há muitos assuntos que preciso resolver. Tenho certeza de que você vai se divertir multo com seus tios.
- Incomoda-se se eu ficar hospedada na casa deles?
- Se você quiser...
- Oh, papai! - Ela estalou forte beijo em sua bochecha. — Você é o máximo! Como amo vocês!
Marines e Eduardo entreolharam-se, emocionados.
Vitória era motivo de orgulho, uma filha exemplar. Amorosa, estudiosa, dedicada, sempre sorridente. Vitória era a prova de que tudo que passaram valera a pena.
Vitória ficou alguns dias dividindo-se entre a casa das avós. Uma semana depois, fez as malas e foi hospedar-se na casa dos tios.
Clóvis recebeu-a com imenso carinho.
- Estava ansioso. Demorou muito.
- Desculpe-me. Quis ficar ao lado de vovó Adelaide.
Ela se sente fragilizada emocionalmente. A morte de vovô
Osvaldo abalou-a profundamente.
- Ela vai superar logo: tem conhecimento do mundo espiritual. Sabe que, logo, ela e ele estarão juntos novamente. E, de mais a mais, ela tem um montão de netos.
- Ela adora o trabalho na creche. Minha avó Iolanda também. E eu - fez beicinho - estou sozinha.
Clóvis sorriu.
- Temos muita coisa para fazer. Teatros, cinemas, exposições...
- Por isso eu quis ficar aqui. Tem certeza de que não vou atrapalhar?
- Nunca! Você é como uma filha para nós. Ficamos felizes por nos adoptar.
- E Túlio?
- Está resolvendo uns problemas no restaurante.
Logo estará em casa.
Vitória queria saber tudo sobre a cidade, os costumes, as pessoas, os lugares mais badalados. Entabulou animada conversação com Clóvis, e nem perceberam o tempo passar. Algumas horas depois, Túlio chegou.
- Menina, como você está linda!
- Obrigada.
- Fiquei muito contente de saber que vai ficar connosco por uns tempos.
- Pois é. Papai e mamãe têm muitos assuntos a tratar: eleição de novo presidente do grupo, inventário, toda essa burocracia.
Túlio avisou:
- Gaspar vem jantar em casa hoje à noite.
- Justo hoje? - perguntou Clóvis. - Eu queria matar a saudade de Vitória.
Ela indagou, curiosa.
- Então vou conhecer o famoso Gaspar Mendonça?
- Vai. Até que enfim irão se conhecer.
***

Logo mais à noite, Gaspar chegou para o jantar. Foi apresentado a Vitória e, sem poder explicar, teve a sensação de conhecê-la há muito tempo. A recíproca foi verdadeira. Passaram o jantar conversando sobre tudo: artes, sociedade, comida, moda. Parecia que na mesa só havia os dois. Clóvis fez sinal para Túlio e ambos se retiraram, com discrição.
- Você viu só? - indagou Túlio, malicioso.
- Vi.
- Eles nem nos deram bola.
- Estão enfeitiçados.
- Não resta a menor dúvida, Clóvis. Eu conheço muito bem Gaspar. Trabalhamos juntos há anos. Nunca o vi tão empolgado. Parece um adolescente apaixonado.
- E Vitória?
- É, Clóvis, acho melhor tirar seu cavalinho da chuva.
- Por que diz isso?
- Minha intuição diz que Vitória não vai ficar muito tempo hospedada aqui em casa.
- Será?
* * *
Como num conto de fadas, Gaspar e Vitória se entrosavam mais a cada dia que passava. Todo tempo de sobra de que Gaspar pudesse dispor, ele a levava para jantar, comprava ingressos para teatro, cinema, exposições. Daí para o namoro foi um pulo.
Marines e Eduardo não viam aquele envolvimento com bons olhos. Quando vinha passar as férias com os avós, Vitória não corria riscos: era praticamente uma adolescente; viviam na Europa, sentiam-se seguros. Mas, agora, adulta, morando no Brasil e saindo com Gaspar, será que Maria Lúcia poderia atentar contra a garota?
- Deixe de bobagens, Marines! Ela nos esqueceu. Assinou acordo e ganhou muito dinheiro. Maria Lúcia não pode e não vai se aproximar de nós ou de nossa filha. Ela assinou acordo em juízo. Não iria abrir mão de uma grande soma em dinheiro para atentar contra a vida de Vitória.
- Tenho medo, Eduardo.
- Por que me diz isso?
- Por nada.
Ele se aproximou de Marines e pegou em suas mãos.
- Um dia duvidei de você e quase perdi nossa filha.
Por acaso está com aquela sensação de novo?
- Quer dizer...
- Pelo amor de Deus, Marines, não minta para mim.
Ela fez sinal afirmativo com a cabeça.
- E agora, o que faremos? Vamos ligar para d. Alzira?
- Desta vez, não.
Marines fitou um ponto indefinido da sala e lembrou-se de uma conversa que tivera com Alzira muitos anos atrás, quando ainda se recuperava das torturas sofridas nos porões do Dops.
"Sinta-se segura para encarar todo e qualquer desafio que a vida lhe trouxer. Você é forte e pode mudar. Não reprima sua força; seja uma aliada de si mesma."
Marines esboçou um sorriso e voltou-se para o marido.
- Eduardo, não vamos deixar que o medo nos atinja.
Há muitos anos cansei de sentir medo. Ele atrapalha nosso raciocínio, cega a inteligência, paralisa-nos. Não, agora vamos usar a fé, aliada à inteligência. Nada de mau vai acontecer à nossa filha. Sinto-me segura. Juro isso a você, meu amor.

Marines falou com tanta firmeza e convicção, que parecia outra pessoa. Na verdade, ela estava amparada por amigos da espiritualidade. Eduardo comoveu-se com a atitude da mulher. Abaixou-se e beijou-a nos lábios.
- Você é a mulher da minha vida. Eu a amo.
* * *
O namoro foi esquentando a ponto de Gaspar, pela primeira vez em vinte anos, tirar uns dias de férias.
- Vitória, gostaria de conhecer o Rio de Janeiro?
- Adoraria - respondeu ela, animada.
- Então vamos à Cidade Maravilhosa.
- E os negócios?
- Túlio é competente. Administra o restaurante com facilidade. Estou com problemas na filial do Rio. Quero juntar o útil ao agradável.
- Quanto tempo?
- Uns quatro dias.
- Oh, Gaspar, adoraria.
- Então, faça suas malas.
Ela o beijou longamente.
- Eu o amo.
- Eu também, como nunca amei ninguém nesta vida.
***
Marines não gostou da viagem. Enquanto estavam de namorico, tudo bem. Mas viajar juntos? Isso era demais!
- Por que implica tanto com ele, mamãe?
- Ele tem idade para ser seu pai.
- Desde quando idade quer dizer alguma coisa?
- Ele é muito velho. Quer ficar viúva cedo?
- Não posso acreditar nisso. Mãe, que besteira! Um raio pode cair em minha cabeça amanhã e Gaspar ficaria a ver navios. Pare de ser infantil e preconceituosa. Ademais, o que são vinte e cinco anos de diferença de idade? Nosso amor minou a diferença. E mais: você sempre soube de minha preferência por homens mais velhos. Que espanto é esse?
- Não poderia ter escolhido outro?
Vitória passou os braços pela cintura da mãe.
- Está preocupada, não é? - indagou com amabilidade.
- Eu?! - disfarçou Marines.
- Sim. Só porque Gaspar namorou Maria Lúcia, não é?
- É. - Marines torcia as mãos, nervosa. — Não tenho medo, mas fico com a pulga atrás da orelha. Maria Lúcia sempre cismou com Gaspar.
- Isso faz parte do passado. Nós nos amamos, mamãe.
Quer protecção maior do que essa? A cisma de Maria Lúcia não pode ser maior do que meu amor por Gaspar. Dessa vez, ela não vai nos atingir.
No dia seguinte, Vitória e Gaspar partiram rumo ao
Rio de Janeiro. Estavam felizes e apaixonados.
***
Maria Lúcia estava recostada na cama quando a campainha tocou. A empregada bateu na porta:
- Dona Margô está na sala.
- A esta hora?

- Disse que é urgente.
- Mande-a subir.
Ela ajeitou os travesseiros na cabeceira. Por que
Margô a procurava tão tarde da noite?
- Oi, amiga.
- Como vai, Margô?
- Bem, e você?
- Como sempre.
- Ainda bem que está na cama.
- Por quê?
- Tenho uma bomba para lhe contar.
- Vá directo ao ponto. O que foi?
- Gaspar Mendonça está de namorico com uma linda jovem.
- Mais uma aventureira. Sabe muito bem que essas jovenzinhas são fáceis de ser compradas. Dou uma joia para a interesseira e ela se afasta.
Margô usou de tom debochado.
- Sei, mas vai ser difícil livrar-se dessa.
- Nunca houve e nunca haverá páreo para mim.
Gaspar vai morrer só.
- Essa vai lhe dar trabalho.
- Não acredito.
Margô tirou uma revista de fofocas de debaixo do braço. Abriu-a e mostrou:
- Essa é bonita.
- Bonita mesmo - ajuntou Maria Lúcia. - Mas esse romance não vai adiante.
- Nem quando se trata de Vitória Araújo Vidigal?
Maria Lúcia ficou muda por instantes. Acreditou ter ouvido outro nome.
- O que foi que disse?
- Gaspar está namorando a filha de Eduardo Vidigal. É essa aí na foto. É bonita, jovem e rica. Como vai comprá-la?
Maria Lúcia sentiu o ar lhe faltar. Aquilo não podia ser verdade. Os deuses estavam conspirando contra ela. Havia alguma trama diabólica elaborada no intuito de medir seus nervos. Era pura ironia do destino. Ela olhou a foto com atenção. Vitória tinha seus traços. Era realmente bela.
- Eu sempre disse que monstro deve ser morto ao nascer.
Margô não entendeu.
- O que está falando?
- Que o mal tem de ser cortado na raiz.
- Enlouqueceu, Maria Lúcia?
- Ainda não. Diga-me: onde está o casalzinho?
- Foram para o Rio de Janeiro esta noite. Dizem as más línguas que em lua de mel.
Maria Lúcia explodiu em sua raiva. Há vinte anos tentou esquecer que havia gerado um monstro. Procurou seguir sua vida, mas agora a parasita voltava e mostrava suas garras.
Ensandecida, colocou Margô para fora de casa, aos gritos. Em sua fúria, quebrou tudo que podia no quarto: espelho, vasos, cinzeiro, quadros. Chutou a televisão. Correu até a mesa de cabeceira e pegou uma tesoura.

Picotou travesseiros, rasgou o colchão. A cada golpe, destilava seu ódio.- Desgraçada! Você vai pagar, nem que seja a última coisa que eu faça na vida.
Maria Lúcia fungava de um lado para o outro do quarto.
O sono sumiu, a madrugada parecia infinita. Já havia roído as unhas, fumado dois maços de cigarro. Precisava ir ao Rio de Janeiro, de qualquer maneira. Sabia qual a suíte em que Gaspar costumava se hospedar no Copacabana Palace.
- Hoje acabo com essa festa.
Ela tomou banho e vestiu-se com incrível rapidez.
Nem fez mala. Pegou a bolsa e correu para o aeroporto de Congonhas.
- Quero embarcar na ponte aérea agora.
- Lamento, senhora, mas o voo vai partir em instantes.
- Não quero saber! - bramiu ela. - Preciso embarcar.
É urgente.
— Senhora, por favor. Daqui a meia hora faremos novo embarque.
- Cale a boca! Coloque-me no avião.
O gerente aproximou-se.
- O que se passa?
— Preciso ir ao Rio de Janeiro, agora, entendeu?
- Iremos colocá-la na próxima ponte aérea.
- Sabe com quem está falando?
- Sim, d. Maria Lúcia, mas acontece que...
— Acontece, nada! Quero embarcar agora.
Maria Lúcia fez tanto estardalhaço, que obteve êxito.
Conseguiram avisar o piloto a tempo. Atrasaram o voo em alguns minutos. Gritando e gesticulando, ela entrou no avião.
— Bom dia, senhora - cumprimentou a aeromoça.
Maria Lúcia não respondeu. Contrariada, nervosa e com o ódio consumindo-lhe as entranhas, sentou-se na poltrona.
— Quando chegar ao Rio de Janeiro, quero ver quem leva a melhor: Vitória ou Maria Lúcia. Pago para ver!
Esse foi o último pensamento de Maria Lúcia nesta vida. O avião em que ela estava caiu em plena cidade, no meio da rua, pouco mais de trinta segundos depois de decolar do aeroporto. Não houve sobreviventes para descrever o que de fato aconteceu, num dos piores acidentes da aviação brasileira.

Epílogo
Retornamos ao início desta história, quando Maria Lúcia, horrorizada por conversar com o pai morto, sentiu forte emoção e desmaiou.
O dr. Lucas e sua equipe imediatamente a induziram à sonoterapia. Maria Lúcia ficou alguns meses nesse estado. Aos poucos, foi recobrando a consciência. Floriano estava a seu lado.
- Pai? Quer dizer que está vivo?
- De uma certa maneira, sim - respondeu ele, sorrindo.
- Sinto-me confusa, perdida.
- Foi submetida a tratamento intensivo. Enquanto descansava, sua mente expurgava as emoções negativas.
- Há quanto tempo estou aqui?
- Há uns seis meses.
Recobrando a lucidez aos poucos, Maria Lúcia constatou, atónita:
- Se estou falando com você, é porque...
- Você morreu.
- Então o avião caiu mesmo! - exclamou surpresa.
- Caiu. Lembra-se de algo?
- Estava nervosa, possessa. Sentei-me na primeira
poltrona vaga que vi e, em seguida, ouvi um estrondo. Daí em diante não me recordo de mais nada.
- Eu estava a seu lado. Tive autorização para resgatá-la.- Mas estou sem arranhões! - Ela apalpava o corpo.— Parece que nada me aconteceu.
- Seu corpo físico foi dilacerado; seu perispírito, não. Você não se lembra de nada porque sua consciência foi apagada milésimos de segundos antes do baque.- Por que tive de morrer assim? Que maneira mais violenta, não acha?
- Se analisar pelo ponto de vista pessoal, é uma tragédia sem proporções; do ponto de vista espiritual, digamos que são tempestades passageiras do destino. O desencarne colectivo enche os olhos humanos de revolta e dor. Diante da espiritualidade, esses processos grupais são desencadeados por forças da natureza que unem as pessoas de acordo com o momento de vida delas, coisas em comum, afinidades. O contrário também acontece, com maior frequência inclusive, se quer saber.
- Como assim?
- As pessoas, na Terra, estão acostumadas a valorizar a dor e o sofrimento. E essa valorização negativa chegou a tal ponto, que tudo aquilo que acontece de bom é visto com desconfiança pelo ser humano. O mundo está desse jeito porque as pessoas se recusam a acreditar na força do bem. E o que me diz de grupos que conseguem coisas boas?
- Que grupos?
- Aqueles que ganham na loteria, por exemplo. Ou o caso de uma empresa de grande porte que se instala em determinada cidade, oferecendo progresso para a região e melhoria de vida para seus habitantes. O mecanismo atracção é o mesmo.
- Nunca pensei dessa forma. Mas morrer dessa maneira... Que fatalidade!
- Não, minha filha. Ninguém escapa quando soa a hora da partida.
- Mas sair de cena assim? Como se fosse arrancada do mundo?
- Você traçou para si mesma uma espécie de destino.
- Eu?!
- Sim. Agrediu-se demais, adoptou comportamento auto-destrutivo.
Ela fez força para recostar-se na cabeceira.

Alterou o tom de voz:
- E o que queria que eu fizesse?
- Que dominasse suas emoções. Por que não ficou
do lado de si mesma? Por que deu tanto ouvido aos outros?
Você é forte, lúcida. Poderia agir melhor, mas negou sua evolução e perdeu a protecção.
- Eu não neguei minha evolução.
- Não havia necessidade de ser agressiva. Sempre
foi inteligente; poderia dominar melhor suas emoções. Mas, não: acabou se destruindo com seu desequilíbrio. Poderia ficar mais algum tempo na Terra, mas para quê? Para perseguir Vitória? Ah, Maria Lúcia, isso não teria cabimento.
- Ela foi a culpada de tudo. Arruinou minha vida.- Por que tem de colocar a culpa nos outros pelos seus desatinos? Por que é tão difícil assumir que foi uma fracassada?
- Não fale assim comigo. Nunca me tratou dessa maneira.
- É por amá-la verdadeiramente que digo isso. Você é espírito que viveu várias vidas, passou por maus bocados, mas também teve momentos de glória. Conseguiu trilhar árduo caminho, venceu preconceitos, passou por cima de muita coisa. E agora fica nessa briga de cão e gato? Quem mandou engravidar? Por que não se precaveu?
- Eu... Quer dizer, entreguei-me a Eduardo num momento de fraqueza. Tenho de ser crucificada por isso?
- De jeito algum. Todos somos passíveis de deslizes. E por que crucificar Vitória? Por que a culpar por sua infelicidade?
- Eu nunca quis ter outro filho.
- Se fosse outro espírito, você aceitaria. Vitória reencarnou como sua filha porque você nunca a perdoou. A vida lhe deu rara oportunidade de transformar seus sentimentos.
- Vitória roubou Gaspar de mim.
Floriano riu.
- Isso é demais! O pior de tudo é que você sabe que nunca o amou. Sempre cismou com ele, e isso ocorreu por séculos. Agora a vida deu um basta. Quer uma sugestão?
- Quero.
- Liberte-se das crenças antigas e viciadas. Adopte nova postura diante da vida. Assuma seu poder, siga em frente ao lado daqueles que ama de verdade.
- Não sei o que é amor.
- Como não?
- É duro admitir. Mas nunca amei Gaspar ou Eduardo.
— E quanto a mim?
— É diferente.
— Não. Amor é amor. As formas de amar são várias, a essência é a mesma.
— Eu o amo tanto, papai...
Ela se abraçou a Floriano em prantos.
- Você ainda não é uma alma conspurcada. Tem nobres sentimentos; é só deixar que eles aflorem. Liberte-se do orgulho e será feliz.
- Vou pensar nisso.
Ouviram leve batida na porta. Floriano ordenou:
- Entre.
Um jovem de cabelos anelados, olhos vivos e expressivos, que ela sentiu enorme vontade de abraçar, entrou no quarto. Maria Lúcia teve novamente ímpetos de abraçá-lo.
- Como vai? - perguntou ele.

— Bem, obrigada. Estava tendo agradável conversação com meu pai.
- Floriano é excelente pessoa.
Maria Lúcia forçava a memória. Aquele rosto era-lhe profundamente familiar. Arriscou:
— Eu não o conheço de algum lugar?
O moço riu.
- Conhece, sim.
— De onde?
- Minha aparência mudou um pouco, mas continuo o mesmo.
- Quem é você?
— Sou eu, mamãe.
Maria Lúcia abriu e fechou a boca, sem conseguir articular som. Seus olhos ficaram imóveis diante do belo jovem. Não podia ser. Ou podia?
— Você... Você é...
- Sou eu, mamãe: Marcílio.
Maria Lúcia deixou correr livremente as lágrimas que afloravam aos olhos. Sentia-se profundamente emocionada. Estava explicado o porquê de querer abraçá-lo desde o primeiro instante em que o viu. Abriu os braços e deu largas às emoções.
- Filho querido, é você mesmo?
Marcílio sentou-se na cama e abraçou-se à mãe.
- Oh, mamãe, como eu a amo!
- Eu também, filho. Amo-o tanto! Como senti sua falta!
- Faz alguns anos.
- Você está tão lindo! Minha imaginação não chegaria a tanto. Quando minhas amigas me apresentavam os filhos, eu intimamente fazia comparações. Será que Marcílio estaria assim? Será que se comportaria dessa forma? Como estou feliz!
Floriano interveio.
- Entende o que disse sobre amor? É isso que acabou de expressar.
- Mamãe? - indagou Marcílio.
- O que é, meu tesouro?
- Quer deixar tudo para trás e recomeçar, a meu lado?
- Com você, vou a qualquer lugar.
- Deixaria Vitória e Gaspar para trás?
- Se jurar que vai estar comigo daqui por diante, sim.
Por você sou capaz de tudo, meu filho.
- Importa-se de assistirmos ao casamento deles?
- Por quê?
- Gosto muito de Gaspar. Ele é meu pai querido, e admiro Vitória.
- Admira?
- Em outra vida, eu e você fizemos de tudo para afastá-los, inclusive planejamos o assassinato de Vitória.
Gostaria muito de vê-los unidos novamente. Vai me trazer paz. Por favor!
- Não sei - ela hesitou.
- Mamãe, deixe as mágoas de lado. Está com seus dois grandes amores.
- Isso é verdade.
- E, se demorar um pouco mais, vamos perder a cerimónia.

- Mas como vou sair daqui? Sinto-me fraca. Preciso de tempo para me arrumar.
— Vamos assistir daqui mesmo.
— Como?
A parede na frente deles transformou-se numa tela gigante e as imagens foram ficando nítidas. Pegaram o finzinho da cerimónia:
— Vitória, aceita Gaspar como seu legítimo esposo?
— Sim, aceito.
— Então eu os declaro marido e mulher.
O padre esboçou um sorriso e incitou Gaspar:
— Pode beijar a noiva.
Gaspar, emocionado, levantou o véu que cobria o rosto de Vitória e beijou-lhe os lábios com amor. A tela apagou-se.
— E então, o que prefere? Ir atrás deles ou viver ao nosso lado?
— Quero ficar com vocês. Do fundo do coração - respondeu, convicta.
Marcílio postou-se de um lado e Floriano foi para o outro lado da cama. Abaixaram-se no mesmo instante e beijaram Maria Lúcia nas faces.
— Nós a amamos.
Naquele instante, Maria Lúcia teve certeza de que amava e era amada. A partir daquele momento, perdera o desejo de vingança. Envolvida por aquela energia pura e nutritiva, pôde sentir sua alma libertando-se das amarras do orgulho que tanto a machucara e fizera sofrer. Ela exalou profundo suspiro e sorriu.
Maria Lúcia, enfim, tomava consciência de que era dona de seu destino e que nada, nem ninguém, poderia ser mais forte do que o genuíno desejo de seu espírito.

Fim

§.§.§- Ave sem Ninho