LUZ ESPÍRITA
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:55 am

Calvário Redentor
Antonieta V. Meyer

pelo Espírito José Euclides

Apresentação
Esclarecimento


I — Doença cruel
II — Prisioneira na casa de pedras
III — Grande revelação de pequeno punhal
IV — A esperada viagem
V — Importantes reencontros em Paris
VI — Em busca da fé no regresso à China
VII — Tung e Jesus
VIII — Kiang e a família de Tieng Pei
IX — Calvário redentor
X — Nos sombrios caminhos da ingratidão
XI — Nos luminosos caminhos do amor e do perdão
XII — Reencarnação redentora

Apresentação
Citei esta obra à irmã abnegada que vem batalhando, há muitos anos, em benefício destes desventurados irmãos leprosos{1}, recolhidos e esquecidos nos leprosários...
Ditei-a recordando a dor do meu próximo que foi a minha própria dor.
Não a ditei para os “críticos” nem para os intelectuais, mas sim para os irmãos de infortúnio, para os atacados da moléstia hedionda e terrível que os mantém tolhidos da sua liberdade, prisioneiros num limitado espaço de terra...
A triste história dos leprosários, espalhados pelo mundo, jamais será completamente contada, tão dolorosa e tão impressionante ela se revelará para a sensibilidade das criaturas.
Os homens têm olvidado os seus irmãos que residem no “vale silencioso” dos longínquos leprosários...
Entretanto, eu lhes tornarei a dizer que um homem não vale pela deformidade que lhe marca a face, nem pelos trapos que lhe escondem as chagas... mas... vale, sim, pelo Espírito...
Com esta simples apresentação, volto à minha tranquilidade no Infinito, na verdadeira Pátria Espiritual, onde, graças ao Supremo Criador, posso agora fluir as dádivas de uma paz benfazeja.
Dedico esta despretensiosa obra a todos aqueles que se imolam nos leprosários pela saúde colectiva... e é também uma homenagem à irmã que recebeu estas páginas, e que é tão modesta e devotada à causa dos que sofrem nos leprosários.
Fortaleza, 15 de março de 1950.
José Euclides.

1. Hoje, as expressões lepra e leproso, definindo a doença infecciosa e o enfermo, não são mais usadas na área médica, substituídas, respectivamente, por hanseníase (Mal de Hansen) e hanseniano, e, portanto, com o tempo, serão totalmente esquecidas pelo povo.
Isso porque elas representam um passado de terríveis preconceitos, com reflexos até os dias atuais, não mais justificáveis, pois, inclusive, tal enfermidade não é mais incurável. - Nota da Editora
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:55 am

Esclarecimento
Prisioneiro no cárcere terrível de um leprosário, onde, na condição de mísero farrapo humano, sorvi lenta e doloridamente todo o cálice de amargor, vendo dias passarem morosamente e as noites chegarem sem estrelas, vendo a vil matéria desfazer-se e cair apodrecida, insensível à dor física, mas apurado na sensibilidade do espírito, aprofundei-me na meditação e, no silêncio da minha vida, no ermo do vasto e triste reduto da dor, elevei o meu pensamento e pedi a Deus a explicação e a conformação para meu sofrimento.
Então contemplava o céu azul, os campos floridos, os pássaros ligeiros cortando a amplidão imensa, aspirava o ar embalsamado de perfumes subtis, ouvia o trinado delicado e mavioso dos passarinhos felizes, pousados nos ramos verdes das árvores, sentia o vento leve bater no meu rosto disforme, enfim, via, contrito, toda essa exuberante beleza e entusiasmado dizia:
— “Como é linda e perfeita a natureza” — e então rendia o meu tributo de admiração ao supremo Criador desta portentosa maravilha... mas depois olhava para minhas mãos mutiladas, sem tacto, sem parte de seus dedos, que para mim eram como o pincel para o pintor e o cinzel para o escultor, olhava para os meus pés disformes e pesados, que mal me podiam proporcionar pequenos e doloridos passeios, procurava um pedaço de espelho pendurado na branca parede do meu cárcere e olhava firmemente para o meu rosto hediondo...
Na contemplação e na análise da minha própria pessoa, fazia a interrogação aflita e revoltada, àquele mesmo Criador a quem eu tinha rendido o meu tributo de admiração e respeito.
E, alucinado, bradava:
“— Por que, ó Deus, fizeste isto ao Teu filho?
Por que deste ao homem, a Tua mais elevada criação, a Tua mais perfeita e admirável obra, a tortura da lepra, a mais terrível das moléstias, a mais repugnante... por que deste a um punhado de filhos Teus, esta tortura indescritível?!
“Que mal fizemos para recebermos tão grande castigo?
“Tu que fizeste a natureza rica e deslumbrante, porque na Tua criação tudo é perfeito e obedece ao ritmo certo, desde o trovão que reboa impiedoso e forte, até o desabrochar da singela florzinha agreste nos prados fecundos, Tu que deste ao homem a inteligência para poder compreender toda essa maravilha da Tua obra, deste, a este mesmo homem, a desdita de poder ser como sou, um leproso atirado sem piedade no reduto estreito de um pobre leprosário, perdido numa mísera povoação deste sofredor pedaço de terra do Brasil; deste Ceará pequeno, mas valente; deste Ceará que me serviu de berço e que amei muito...
“Diz, ó Deus, se possível for, a causa deste meu sofrer doloroso...
“Não quero descrer da Tua bondade, não quero acreditar que és capaz de castigar um filho Teu, que nunca Te ofendeu; não quero acusar injustamente àquele que eu amo e rendo a minha obediência; mas, Deus, tenho o direito de poder pedir explicação para a minha desdita e para o meu sofrer, que julgo injusto, pois nada fiz para ofender aquele que é o Supremo Criador de tudo.
Não pedi a Ti, ó Deus! para aqui vir... e se o fizeste sem o meu consentimento, me deste o direito de pedir esclarecimentos, porque sofro, porque sou leproso e pobre.
Por quê?
Sinto a lepra roer a minha carne e vejo cair, aos meus pés, pedaços pobres do meu corpo... por que, ó Deus, não tenho a dita de poder apertar ao encontro do meu coração, que pulsa normalmente, a minha filha inocente e pura?...
E ainda, não contente com o meu sofrer, fizeste retirá-la até da minha presença, atirando-a para bem longe do seu infeliz e desgraçado pai.
“Por que, Deus, fizeste isto com um filho Teu, que nunca Te ofendeu?
“Assim, peço explicação para a minha infelicidade, porque tenho direito e não compreendo como pudeste fazer a flor, que embeleza e perfuma, os pássaros que cantam, o céu azul e límpido, os rios caudalosos, o mar imenso, as noites estreladas, as montanhas altaneiras, os prados verdejantes, pudeste fazer também a “Lepra” e, ainda mais, pudeste atirá-la aos Teus filhos indefesos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:56 am


“Talvez não saibas mesmo avaliar o que seja ouvir esta sentença:
- “Estás leproso”, não saibas o que seja ouvir dizer:
“Tens de deixar o teu lar, os teus filhos, a esposa, os teus amigos, tudo quanto amas, para, como um trapo velho e imundo, ser atirado bem longe de tudo e de todos...; ser repelente, não ter direito nem mesmo de poder ver os seus filhos, não ter direito de poder reclamar os seus próprios direitos.”
— É por tudo isto, Deus, que ao contemplar certo dia o meu rosto, no velho pedaço de espelho pendurado na parede branca do meu cárcere, no leprosário, e que confesso revoltado, fiz essas perguntas que me torturavam a existência e que me faziam ser considerado como um rebelde, até pelos meus próprios companheiros de infortúnio...
Perguntas essas que me martirizaram toda a vida, todos os longos anos que passei interno e que, até o fim da minha vida tormentosa, não deixei de fazer, sem encontrar nunca a explicação que desejava.
Só depois que a morte quebrou os grilhões pesados que me prendiam, foi que compreendi a razão do meu destino e da minha dor, e agora, para consolo dos meus queridos irmãos, ainda sofrendo nos leprosários, e que, com permissão dada pelos bondosos guias do Além, é que posso dar esta mensagem de esperança e estímulo, contando a minha vida passada e a razão de ter sido leproso.
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I — Doença cruel
Nas margens plácidas e bucólicas do lendário Cantão, cujas águas tranquilas reflectem o céu de anil, deslizavam calmamente as embarcações, pesadas de várias mercadorias para o comércio da rica cidade da velha China.
Eram barcos que levavam grande quantidade de chá, que era, até aquele momento, um dos maiores comércios da tradicional cidade.
Outros transportavam cuidadosamente as peças de finos tecidos e delicadas sedas, que iriam causar admiração a outros povos menos hábeis do que os pacientes artífices chineses, que vinham deslumbrando a todos com as maravilhas da sua paciência e tenacidade do seu esforço...
Da China grande, sulcada de rios caudalosos e vales imensos, de clima ameno, cuja história será sempre um poema de dignidade e trabalho, encontravam-se, em todos os seus rincões, inspiração para as mais belas crónicas e os mais decantados feitos.
Foi, pois, nas margens do rio Cantão, que veio ao mundo, como primeiro filho de ricos comerciantes, Kiang Fú.
Eram seus pais, Tung e Li, casados há muitos anos, não tendo filhos, e foi, para eles, uma verdadeira surpresa, a vinda do primogénito.
Passaram meses de espera, numa ânsia de curiosidade, como seria o amado filho, e ao mesmo tempo amedrontados com a possibilidade de vir uma menina, que seria o desmoronar de todos os seus anseios e de todas as suas esperanças.
— Precisamos de um filho — dizia Tung à sua mulher.
Ele será nosso herdeiro, não só das tradições, como da nossa fortuna.
Seguirá as nossas leis e trabalhará por nossa família, que precisa ter um chefe enérgico e corajoso.
Foram preparadas grandes solenidades para a chegada do tão desejado rebento da velha e austera família.
Na magnífica residência de estilo mongol, tudo era feito como exigia o tradicional ritual que antecedia o tão solene acontecimento, dada a grande fortuna da família Fú, com o seu passado ilustre.
Era o senhor Tung, um chinês culto e viajado, porém fervoroso adepto da conservação dos velhos hábitos e costumes chineses.
Quando das suas longas viagens pelo ocidente, transformava-se num perfeito cavalheiro, vestindo-se como os ocidentais e frequentando as mais selectas e cultas sociedades, dado o seu grande saber e a sua imensa fortuna, porém, quando voltava para a sua velha e querida China, volvia a ser o mesmo chinês cumpridor de todos os costumes e tradições de sua pátria e de sua família.
Entretanto, o mesmo não acontecia com a senhora Fú, que apesar de não ter, como quase todas as chinesas, grande cultura, era muito inteligente e não tinha, como seu esposo, tanto fervor no cumprimento dos rituais chineses, que ela julgava excessivo e exótico, e a si mesma causava estranheza essa sua aversão a todos esses costumes que ela devia aceitar resignadamente e que, entretanto, no seu íntimo, não os podia aceitar como precisava e devia.
Quando sentiu que ia ter um filho, foi logo desejando uma menina, desejo esse que, para seu marido, caso soubesse, seria como afronta à sua dignidade, pois, ainda nessa época, a mulher chinesa era considerada como uma simples e insignificante companheira para o homem.
Mesmo nas castas mais elevadas, elas eram assim consideradas.
A senhora Fú, apesar da grande fortuna do esposo e do seu considerado talento, nunca tinha saído da China.
Vivia muito só, e por isso desejava ter uma filha, esperançosa de que ela pudesse viver mais livremente do que ela, e que fosse uma companheira amiga e dedicada para compartilhar da solidão da vasta e rica residência.
Nunca, porém, teve a ousadia de externar esse seu desejo.
— Quero um filho – dizia o Sr. Fú – para ser o continuador dos nossos antepassados, fazendo com que não desapareçam, da nossa China lendária, as suas tradições que herdamos e devemos cultivá-las com respeito e veneração.
Um filho forte e ousado, que saiba sentir todos os anseios do povo chinês sofredor, mas altamente esperançoso de uma nova fase de esplendor para a sua pátria.
E assim vivia Tung, fazendo os mais belos castelos, sobre o filho que tanto almejava, sem poder, nem mesmo de leve, pensar que este mesmo filho, tão ardentemente desejado, seria o seu carrasco, como de sua meiga e delicada mãe Li.
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Tudo era modificado na grande casa do riquíssimo comerciante, para a vinda do seu filho.
Somente Li demonstrava indiferença ao entusiasmo intenso de Tung.
O dia estava próximo e brevemente seria chegado o momento difícil.
Todas as tardes, ela saía a passear pelo vasto pátio da sua residência e, muitas vezes, ia até à margem do rio e quedava-se silenciosa, contemplando as águas serenas e azuis; depois erguia os olhos para a amplidão do Infinito e sentia uma grande opressão, um sobressalto inquietante que a fazia temer algo que não podia definir.
Apertando fortemente as mãos, dizia:
— Tenho medo de ter um filho, tenho medo do que ele nos possa causar...
Então, horrorizada, olhava para suas mãos finas e belas, para as suas unhas compridas e rosadas, que ela procurava sentir na sua pele delicada, e que, mesmo comprimindo-as fortemente, até quase feri-las, não sentia a menor sensação de dor.
— Por que não sinto dor alguma, por que esta insensibilidade que me apavora? – perguntava a si mesma.
– Desde muito que venho sentindo que estou ficando sem tato, não sinto nada... nada, nada...
Talvez, depois que meu filho chegar, tudo isto desapareça.
Depois voltava lentamente para sua residência, onde ia encontrar Tung atarefado, dando ordens e mais ordens.
Silenciosa, ficava observando o marido, sentada perto da janela, de onde podia ver a paisagem bela do rio...
Numa dessas vezes, Tung notou a fisionomia triste de Li, e a interrogou um tanto ríspido:
— Por que a vejo agora sempre triste e silenciosa, quando devia estar alegre com a vinda do nosso primogénito?
Ela não respondia e continuava a olhar para as suas mãos...
Era Li, um belo tipo de mulher chinesa, delicada, de um moreno pálido, olhos grandes e negros, cílios compridos ensombrando o olhar melancólico, cabelos também negros e sedosos, penteados cuidadosamente e sempre enfeitados com uma flor...
Vestia-se com esmero, escolhendo os matizes que mais se harmonizavam com a sua tez e os seus cabelos.
Era realmente encantadora a senhora Fú, e, ainda mais, de uma meiguice extraordinária; sua voz terna e suave, mais parecia um murmúrio.
Andava levemente na sua casa grande e vazia, e parecia uma sombra, um sonho irreal.
Aproximava-se o dia decisivo que tanto atormentava a alma de Li.
Foi numa noite calma e bela, quando a Lua muito redonda e luminosa reflectia-se sobre as águas plácidas do rio, que nasceu Kiang...
Na sumptuosa residência do riquíssimo Tung Fú, foi delirantemente recebida a auspiciosa notícia.
Tung, delirando de contentamento, tomou o seu filho e, olhando para Li, dizia entusiasmado:
— Veja como é lindo o nosso herdeiro!
Sinto-me imensamente feliz, conseguindo realizar o meu maior desejo:
ter um filho que possa substituir-me, que seja o meu leal continuador, elevando cada vez mais o prestígio e a prosperidade da nossa família.
Com Kiang nos braços, percorria o vasto aposento e depois ia colocá-lo ao lado da mãe, saindo contente; então Li voltava-se para o lado do filhinho e o contemplava demoradamente.
Depois tomava-o nos seus braços e o encostava junto ao seu coração, e muito baixinho murmurava:
— Filho, perdoe-me, mas mesmo agora, ao contemplá-lo tão puro e tão lindo, sinto o mesmo temor, a mesma inquietude... perdoe, ó filhinho adorado!
Mas o que posso fazer para afastar de mim este pesadelo que me tortura?
Kiang crescia forte e belo; com poucos meses era um menino robusto, e Li quase não podia tê-lo muito tempo nos braços franzinos.
Tung vivia empolgado com o filho, que não cansava de admirar e de profetizar para ele grandes triunfos.
Quando Kiang deu os primeiros e incertos passinhos, foi para Tung motivo de exagerados comentários; gritava à esposa:
— Senhora, venha ver o meu filho!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:57 am

E Li, sempre pensativa e triste, sorria para o filhinho, que vinha com os bracinhos abertos para junto dela, que o tomava no colo e carinhosamente o beijava.
Quando ficava só no seu aposento, ela sentava-se e ficava contemplando as mãos, como estava acostumada a fazer, pois sentia que, depois do nascimento de Kiang, a sua insensibilidade vinha cada vez mais se acentuando, assim como a falta de tacto, que agora era mais nítida.
Li nada dizia ao esposo, guardando só com ela o seu terrível segredo.
Os meses foram passando e Kiang completou um ano.
A data foi comemorada pelos pais com muita alegria, e era justo o contentamento de ambos, pois Kiang era um lindo menino.
Os anos foram chegando, uns após outros, e na rica e sumptuosa residência de Tung a vida corria normalmente.
Kiang já estava com dez anos quando, certa tarde, sua mãe desceu com ele para um ligeiro passeio até às margens do rio, onde ele gostava de brincar.
Sentou-se na areia branca e fina, e deixou que o filho corresse livremente.
Li sentia, nos últimos anos, que uma sensação diferente perturbava todo o seu ser, e que a dormência do seu corpo era agora total.
Brincando com a areia, fazendo delicados arabescos com um pequenino ramo verde, escrevia Li, quase sem se aperceber, palavras, e só depois é que ela descobriu que tinha deixado, na areia branca, a seguinte frase:
“só pela dor alcançamos a morada do Pai.”
Leu vagarosamente as palavras, e depois, com o mesmo raminho verde, tornou a escrever:
“Dor, és o estilete que nos fere, que nos humilha, que nos tortura, mas és também o caminho que nos eleva, altaneiros, aos paramos celestiais.”
Enquanto escrevia, descuidada, a senhora Fú deixava rolar, pelo seu lindo e pálido rosto, lágrimas abundantes que, como transparentes e puras gotas de orvalho, caíam molhando a areia branca do rio.
Não notou também que Kiang tinha deixado de brincar e que estava sentado bem perto dela, lendo atento o que ela escrevia.
Quando terminou a frase e atirou para longe o pequenino ramo, foi que seu filho, olhando-a severamente, a interrogou:
— Qual o motivo das suas lágrimas, e por que você escreveu estas frases tão tristes?
Li, assustada com as palavras inesperadas de Kiang, olhou para o seu rosto, que já era muito parecido com o de Tung, porém com os traços mais fortes e olhar penetrante, sem encontrar no filho um só gesto de ternura pela sua mágoa, e respondeu:
— Nada, estou me sentindo um pouco doente – e levantou-se, convidando Kiang para voltar.
A tarde estava quase finda e o céu cinzento-escuro.
Quando se aproximaram, avistaram Tung que, impaciente, vinha ao encontro de ambos.
Notou logo os vestígios de lágrimas no rosto de Li e, como o filho, asperamente perguntou:
— Não é a primeira vez que vejo que você chora, qual o motivo?
E sem esperar a resposta da esposa, foi logo dizendo:
— Tem você tudo quanto deseja, por que então ainda chora?
Responda, por quê?
Li olhou também para Tung, muito aflita, procurando, como fez com o filho, descobrir no marido um pequeno gesto de compaixão pela sua visível tristeza, mas Tung, tanto como Kiang, não demonstravam compreender nem desculpar o seu sofrimento.
Então, cabisbaixa, respondeu:
— Não tenho nada – e, vagarosamente, dirigiu-se para o seu aposento.
Só com seu filho, Tung o chamou para mais perto e, passando a mão sobre o seu ombro, alegremente disse:
— Não nos preocupemos com Li, ela sempre foi assim... triste e pouco inteligente... tratemos de nós, meu filho... deve compreender que já está um rapaz, que precisa começar os seus estudos:
você é senhor de uma grande fortuna e de um nome ilustre.
Sempre desejei ter um filho para ser o continuador dos meus negócios, e das tradições da nossa família e da nossa pátria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:57 am

Assim, Kiang, é preciso que dê início à sua pesada tarefa.
São os meus principais conselhos: primeiro seja enérgico; segundo, trabalhador; e terceiro, audaz.
Nada de sentimentos banais, deve encarar tudo por um prisma mais forte e mais eficiente; por isso, tenho procurado sempre tê-lo mais sob as minhas vistas, do que sob os cuidados de Li, que sempre foi, como toda mulher, insignificante.
E, abraçado com o filho, saiu contente para providenciar a vinda dos professores de Kiang.
Li, encostada na parede, ouvia tudo quanto seu marido dizia a Kiang.
Pelo seu rosto pálido e triste, deslizavam mansamente as lágrimas, e baixinho murmurava:
— Insignificante... insignificante...
E, comprimindo fortemente as mãos, porém, sem senti-las, ela ergueu os olhos e chorando pensava:
— Como poderei contar isso a Tung, tenho medo, muito medo... vou deixar para mais tarde esta revelação dolorosa – e encaminhou-se para o seu aposento.
Abriu sutilmente a porta, entrou de mansinho, foi até a janela que estava aberta e ficou junto, olhando firmemente o céu. Já era quase noite.
O firmamento, pontilhado de fulgurantes estrelas, oferecia um espectáculo grandioso da omnipotência do Criador.
Olhou demoradamente o céu e, depois, abaixando a vista, contemplou o rio que deslizava placidamente; o silêncio era profundo, ligeiramente interrompido pelo rumor rápido do vento que sacudia os galhos verdes das árvores.
Li continuava contemplando as estrelas e, não resistindo, deu expansão ao seu entusiasmo, é só para ela cantou um pequenino poema que há muito ela havia feito, numa noite bela e estrelada, quando Kiang era ainda uma delicada criancinha embalada nos seus braços:
Estrelas, raios de luz
Que deslumbra e nos seduz
Criação sublime de Deus
Que magnânimo nos deu.

Li possuía uma voz terna e suave e, as ocultas do esposo, compunha delicados versinhos, que cantava quando estava só e triste.
Depois de repetir diversas vezes os mesmos versos, olhando as estrelas, ela parou para depois cantar novamente outro poema, a que ela dava uma interpretação deveras pungente:
Deus, ó meu grande amor
Dai-me um pouco de alegria
Afastai minha grande dor...
Suavizai minha agonia...

Já era tarde e ela continuava debruçada à janela, cantando e contemplando a noite.
Depois, cansada, veio para perto do seu leito, onde se sentou num pequenino banco e ficou silenciosa.
Muito tempo ela ficou sentada, entregue aos seus próprios pensamentos e tão absorta estava, que não se apercebeu que Tung, há muito, a contemplava parado, perto da porta.
Li ergueu a vista, e Tung pôde nitidamente ver que ela estava chorando; aproximou-se e outra vez, em tom ríspido, perguntou:
— Por que você chora tanto, Li?
Exijo que confesse a causa deste seu silêncio e desta sua tristeza.
Sentou-se no leito e ficou esperando a resposta, mas ela, atemorizada, respondeu:
— Não tenho nada e não sei explicar por que ultimamente sinto-me tão abatida e desanimada, talvez esteja doente.
— Doente! — disse Tung alarmado...
Quero saber o que sente, pois deve compreender que temos um filho ainda pequeno, e que devemos ter todo cuidado, evitando, caso esteja realmente doente, todo o contacto com ele.
Li deixou escapar um leve grito de terror, que não passou desapercebido de Tung, que se levantou ligeiro e chegou junto da esposa, fazendo com que ela ficasse em pé, à sua frente, para olhá-la fixamente, e depois, com rudeza, tomou as suas mãos e, apertando-as fortemente, gritou furioso:
— Diga o que vem sentindo, diga.
Quero e preciso saber...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:58 am

Amedrontada com a atitude violenta de Tung, respondeu outra vez:
— Não sei; não sei...
Então Tung afastou-se e saiu apressado, deixando-a só e horrorizada, com a possibilidade de seu marido saber de seu estado de saúde e de como ele tomaria providências para afastá-la de King.
Mas, pensava Li:
— Será que estou... estou... não... — grita desesperadamente e cai sem sentidos junto ao seu leito.
Tung ouviu o seu grito agudo e, voltou, encontrando-a caída.
Tomou-a em seus braços e a levou desacordada para o leito.
Ao pegar as suas mãos frias, notou entre os dedos pequeninas manchas, quase invisíveis, que o fizeram recuar horrorizado.
Nesse instante, ela abriu os olhos e fitou o esposo com ternura.
Tung voltou para perto dela e, tomando novamente as suas mãos, procurou apertá-las fortemente, e mesmo feri-las com as suas unhas pontiagudas e longas; entretanto, Li continuava a fitá-lo sem demonstrar o menor vestígio de dor.
Inesperadamente, Kiang entrou no aposento e vendo sua mãe deitada, e seu pai junto dela com suas mãos presas, aproximou-se e procurou também encostar-se a ela, que carinhosamente o chamou:
— Venha, filhinho!
Foi quando Tung, brutalmente, o empurrou e gritou:
— Afaste-se desta mulher, ela está leprosa... leprosa.
Kiang deu um salto e ficou bem longe, olhando horrorizado a sua mãe que, tomada de pavor, sentou-se no leito, pálida, as lágrimas deslizando pelo seu lindo rosto, fitando suplicante o marido e o filho que, juntos à porta, a observavam com horror.
— Tung!... Kiang!... — Li chamou-os, alucinada, porém, tanto o esposo como o filho, continuavam longe e fazendo gestos para que ela não se aproximasse.
Kiang, apesar de ter somente dez anos, era um menino inteligente e de um temperamento forte e mau; nunca teve para com sua mãe palavras de amor, era ríspido e violento, exigindo que todas as suas vontades fossem satisfeitas plenamente, tendo sempre a aprovação de Tung, que ficava radiante com o filho, achando que ele era muito valente, muito inteligente e forte.
Quando, ao aproximar-se de sua mãe, ouviu Tung dizer que ela estava leprosa, compreendeu perfeitamente o que isso representava para ele e seu pai.
Imobilizados ainda na porta, pelo medo da revelação apavorante, estavam Tung e Kiang olhando para Li, que em pé também os olhava apavorada.
Foi Tung que, tomando o filho pela mão, disse:
— Vamos, Kiang!
E fitando-a, demoradamente, falou:
— Você ficará aqui, até que eu resolva para onde devo mandá-la.
Não sairá mais deste aposento, assim como proíbo-a de falar com Kiang; está para sempre desligada da família, que não pode ter no seu seio uma leprosa como você...
Ao ouvir as palavras cruéis de Tung, Li tentou aproximar-se de Kiang, sendo impedida pelo esposo, porém ela implorou:
— Kiang, meu filho, tenha compaixão de sua mãe... Kiang... Kiang...— mas vê, apavorada, que o filho chega para junto de Tung e afasta-se, dizendo:
— Tenho horror de você, é uma leprosa...
Meu pai deve mandar encarcerá-la para que ninguém saiba, para que ninguém suspeite que a nossa família foi marcada com o estigma de lepra.
Qual uma estátua de mármore, ela ouviu a sentença do seu próprio filho, uma criança de pouco mais de dez anos, mas que já fazia sentir o tirano que seria brevemente.
Tung voltou-se para o filho e o contemplou, satisfeito com a resolução apontada por ele, e disse:
— Sim, filho, tratarei o mais depressa possível de afastá-la do nosso convívio e desta casa. Vamos!
E juntos saíram, deixando-a presa no seu próprio aposento, à espera da resolução de Tung, que não demoraria muito.
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:58 am

***
Tung possuía uma grande casa afastada da cidade, onde costumava, depois de suas longas viagens, ir passar alguns dias de repouso.
Li pouco a conhecia, tendo ido ligeiramente quando Tung esteve lá alguns anos atrás.
Quase não se recordava da mesma.
Era uma velha casa feita de pedras, circundada de altas e frondosas árvores, que a encobriam totalmente.
Tinha largas janelas revestidas de grossos ferros, dando à mesma um aspecto de prisão.
O seu interior era triste, apesar de luxuosamente mobiliado, tendo inúmeros armários onde Tung guardava recordações de suas viagens.
Quando Li esteve lá, notou que um dos aposentos, em que casualmente entrou, tinha uma saliência no assoalho, assim como uma argola pesada, que servia naturalmente para levantar alguma porta, e que possivelmente, pensou, descia para algum subterrâneo.
Tung, quando a viu sair daquele quarto, demonstrou grande contrariedade, e rispidamente respondeu, quando ela perguntou para onde dava aquela porta:
— Você não precisa saber disso, e uma antiga passagem desta casa, que já possuía quando eu a comprei para o meu veraneio...
Li, acostumada a ser submissa, não pensou mais na sua descoberta.
Na casa morava um casal de confiança de Tung, sendo que a mulher era muda.
O marido o obedecia cegamente, pois desde muitos anos que era seu criado.
Quando Tung, em companhia de Kiang, deixou horrorizado o aposento de Li, lembrou-se imediatamente da velha casa para afastá-la da sua convivência, encarcerando-a no subterrâneo há muito abandonado.
Com a voz ainda trémula de pavor, comunica ao filho a sua resolução.
Kiang tinha ido lá quando pequenino, mas mesmo assim olhou assustado para o pai, quando ouviu dizer “subterrâneo”.
Para o seu cérebro infantil, subterrâneo significava um lugar escuro, frio, povoado de fantasmas e animais repelentes.
E ficou muito tempo em silêncio à espera da explicação de seu pai.
Foi quando Tung disse:
— Meu filho, um subterrâneo é, na realidade, escuro e triste, mas sem fantasmas, nem animais repelentes.
Este de que falo, é grande, claro, tendo uma pequena janela revestida de grades, de onde se pode ver perfeitamente o céu, o rio, as árvores... pode-se ouvir os pássaros e sentir o sol...
— Mas, então — disse Kiang —, não é uma prisão e sim um belo aposento!
Acho muito bom e confortável para abrigar uma “leprosa”, sendo que o mesmo ficará para sempre inutilizado.
Tung admirou o raciocínio claro e a inteligência do filho.
Alegre com essa demonstração, o esclareceu:
— Filho, realmente é um esplêndido aposento para uma “leprosa”, mas é melhor para nós mesmos, porque é uma casa conhecida como desabitada, e que não despertará suspeita alguma.
O criado é de toda confiança, e sua mulher é muda.
— Mas – insistiu Kiang –, é uma bela casa, e ficará para sempre inutilizada.
Podíamos mandá-la para mais longe, morar numa palhoça qualquer.
Sei que os leprosos são atirados em lugares apropriados, sem regalias, tendo alguns, até mesmo, presos ao pescoço um sinal de alarme...
Mais uma vez, Tung surpreendeu-se com a opinião de Kiang.
— Meu filho, Li pertence a uma família abastada e ilustre, e é preciso que seja totalmente oculta essa terrível tragédia.
Temos de sacrificar a nossa casa, em troca do silêncio de que necessitamos para encobrir essa verdade.
Podemos dizer que Li está doente e depois participar que ela morreu.
Ninguém descobrirá o subterrâneo, pois somente três pessoas ficarão sabendo.
Tenho confiança absoluta no meu criado, e sei que ele não falará jamais.
Li só será vista pela criada que, sendo muda, nada poderá fazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 24, 2021 9:58 am

Darei ordens severas para que, só uma vez ao dia, ela desça ao subterrâneo para levar os alimentos, podendo mesmo levá-los por meio de longa vara que será introduzida por baixo da porta, por um orifício apropriado para isso.
Hoje mesmo, irei lá e contarei tudo ao meu velho servidor, e providenciarei o subterrâneo, mandando para lá um leito, uma pequena mesa, enfim alguns objectos necessários.
Depois, aproveitando a noite escura, a levarei e imediatamente farei descê-la para o subterrâneo, donde jamais sairá.
Só assim ficaremos tranquilos.
Kiang ouviu atento seu pai, não demonstrando nenhum sinal de revolta pelo projecto monstruoso e desumano que seria imposto à infeliz Li.
Foi depois de um longo silêncio que Tung disse:
— Agora tratemos de organizar a nossa vida, esquecendo este terrível acontecimento, olvidando para sempre essa desgraçada leprosa, que há tanto tempo abrigávamos nesta casa.
Kiang, sempre que ouvia seu pai pronunciar a palavra “leprosa”, ficava revoltado e com as feições transtornadas pelo horror que já sentia pela moléstia repelente.
Enquanto no grande e luxuoso salão, Tung e Kiang organizavam o meio de poder afastá-la do convívio deles, atirando-a sem piedade num subterrâneo antigo e oculto, Li, sozinha no seu aposento, sentada no mesmo banquinho, silenciosa pensava:
— Qual será agora meu destino?
Olhava bem para suas mãos fidalgas e observava as manchinhas esbranquiçadas, que surgiam lentamente, positivando a terrível verdade.
E, com temor, meditava:
— Sim, estou leprosa, não tenho mais dúvida, estou... tenho de curvar a cabeça humildemente e aceitar resignada esta dolorosa realidade.
Teria coragem para, impávida, enfrentar tudo se tivesse o amparo de Tung e Kiang, mesmo afastada deles.
Mas sou repelida com tanto horror e com tanta crueldade.
Não tenho culpa do que aconteceu, fiz tudo para ocultar... mas um dia teria de surgir a verdade.
Para onde irei?
Terei de enfrentar sozinha todos esses longos anos que me esperam.
Então implorava:— Kiang, meu filho!
Venha socorrer a sua infeliz mãe! — mas... ao mesmo tempo recordava as palavras de Kiang:
“Tenho horror de você, é uma leprosa.”
Lágrimas abundantes deslizavam pelo rosto de Li, vindo cair no seu colo...
Escurecia lentamente, e o aposento já estava imerso em densa escuridão, quando ela ouviu passos junto à porta e, ansiosa, esperou para ver quem era.
Mansamente a porta foi aberta, e Tung entrou trazendo um embrulho que depositou sobre a pequenina mesa ao lado.
E de longe, junto à porta, falou com rudeza:
— Já resolvi para onde você deve ir.
Tenho uma casa distante daqui, e dois leais servidores, que poderão tratar de você.
Irei amanhã providenciar tudo para que saia desta casa o mais breve possível.
Li, ainda sentada, ouvia calmamente as palavras cruéis de Tung, olhando fixamente para ele que continuava, de longe, amedrontado.
Depois, muito delicadamente, com voz firme e pausada, disse:
— Sim, sairei desta casa quando você quiser, e para onde determina, assina como espero passar os dias longos da minha vida, sozinha, não desejando nunca mais perturbá-lo com a minha presença.
Só uma coisa ouso dizer-lhe, Tung, e peço que medite sobre estas minhas palavras.
Não tenho culpa de estar doente... não sei como adquiri esta terrível moléstia, mas outros também, assim como eu, poderão adquiri-la.
Tung, de olhos desmedidamente abertos, a contemplou, sentada no banquinho junto à janela aberta, qual uma delicada moldura, cujo fundo era feito pelo céu escuro, mas pontilhado de milhares de cintilantes estrelinhas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:34 am

Vestia Li nesse dia um delicado vestido, de finíssimo tecido estampado com artísticas flores de um colorido suave, que lhe dava uma graça encantadora, e trazia presa aos seus cabelos negros e sedosos, uma flor também de tonalidade clara, que sobressaía maravilhosamente com o pálido de seu rosto belo e perfeito.
Tung olhava para a esposa e, quase arrependido, estava para pedir perdão pelas suas palavras ásperas e, juntamente com ela, procurar um meio mais fácil de poder afastá-la de perto dele e do filho.
Deu uns passos para a frente, quando sentiu que estava sendo agarrado fortemente; voltou-se rápido e deparou com Kiang que o prendia, impossibilitando-o de sair do lugar.
— O que você pretende fazer neste aposento, junto dessa miserável leprosa?
Será que está arrependido do que combinamos?
Quero que a mande para bem longe de nós!
Tenho medo dela... vamos, meu pai, saia daí...
E assim, arrastado por Kiang, saiu Tung do aposento, deixando novamente só e desolada sua infeliz companheira.
Li estava isolada.
Não procurou nem mesmo chegar à porta, pois conformada estava com o seu destino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:34 am

II — Prisioneira na casa de pedras
Muito cedo, Tung deixou sua residência e, sozinho, foi para sua casa de veraneio.
Com surpresa, os dois velhos criados viram quando ele chegou, de fisionomia taciturna e olhar desconfiado.
Chamou o criado e, na vasta sala, confidencialmente, o fez sabedor da sua infelicidade, assim como os planos que tinha para encobrir tão grande tragédia.
Encontrou, como sempre, o criado pronto para obedecer suas ordens.
Depois, juntos, desceram para o subterrâneo.
Há muitos anos, completamente fechado, era deveras lúgubre o seu interior.
Ao chegar ao quarto destinado a Li, Tung, com dificuldade, conseguiu abrir a pesada porta.
Estava muito escuro, e foi difícil encontrar a janela, assim como também difícil abri-la.
Porém, aberta, entrou rapidamente um claro raio sol, que invadiu todo o aposento.
Foi então que Tung pôde observar tudo.
Encostado à janela, pensativo, percorria com o olhar todo o pequenino quarto destinado à sua dedicada companheira de tantos anos.
Impassível, ao longe, estava o criado à espera das ordens.
Muito tempo ficou Tung na contemplação silenciosa.
E, no seu cérebro exaltado, mediu toda a extensão do infortúnio de Li, prisioneira, sozinha naquele velho e desconhecido subterrâneo.
Calculou como seriam seus dias longos, e as suas noites intermináveis... sem ter com quem pudesse externar as suas mágoas, tendo somente para seu lenitivo, a janelinha, de onde poderia ver nitidamente o céu, ouvir os pássaros livres e felizes, cantando nos galhos das altas árvores que circundavam a casa, ver o rio calmo, de águas azuis, deslizarem mansamente... e quando das noites enluaradas, contemplar a lua majestosa parada na imensidão misteriosa do infinito...
Muito tempo esteve Tung entregue a essas conjecturas, sem ser interrompido pelo criado que o observava atenciosamente.
Em dado momento, Tung pensou:
— E se Li morrer, como poderei saber?
Horrorizado, mediu toda a extensão da sua responsabilidade perante tão monstruoso atentado.
Foi, porém, rápido este temor.
Lembrou-se de Kiang e, resoluto, voltou-se para o criado, dizendo:
— Agora teremos de providenciar a abertura da porta por onde terá de ser enviado todo o alimento, que pode ser uma só vez por dia.
Numa pequena bandeja, presa a uma longa vara, poderá vir tudo, água, frutas e a refeição necessária.
A porta será fechada pelo lado de fora, e só eu terei as chaves.
Satisfeito de ter resolvido tudo rapidamente, Tung ordenou que fosse limpo o quarto, e transportada, imediatamente para lá, uma pequenina mesa, um leito, uma cadeira, um banquinho, assim como os objectos indispensáveis de Li, e para a sua higiene.
Mandou também que fossem retiradas duas ou três grades da janela de modo que ela pudesse livremente atirar pela mesma tudo que lhe fosse desnecessário.
Ainda ficou Tung muito tempo parado junto à porta, com o olhar observador, procurando ver o que faltava, pois não desejava nunca mais ter o menor contacto com a esposa.
Foi para ele fácil resolver tudo, pois encontrou no velho criado um colaborador eficiente.
Depois, calmamente, deixou o subterrâneo e foi repousar no rico salão.
Mais tarde, despediu-se dos criados, dizendo voltar no dia seguinte à noite.
Só com o marido, a infeliz muda procurou com gestos significativos saber o que desejava o senhor Tung, no que foi asperamente repelida pelo marido.
Tung voltou para a sua residência, e logo deparou com Kiang que, curioso, desejava saber o que o pai resolvera.
Juntos entraram e Tung, minuciosamente, contou para o filho os seus planos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:34 am

Ao ouvir seu pai referir-se sobre a alimentação, o menino protestou quando soube que seriam enviadas também frutas:
— Mas meu pai, por que ordenou que lhe sejam enviadas frutas?
Não compreendo a necessidade que tem uma leprosa de alimentação tão boa.
Tung, mais uma vez, ficou alarmado com a observação do filho.
Fitou-o demoradamente, encontrando no olhar forte e penetrante da criança um fulgor estranho que o fez recuar receoso.
No dia seguinte, à noite, já tendo Tung providenciado um pequeno carro que ele mesmo guiaria, dirigiu-se aos aposentos onde Li estava prisioneira.
Abriu devagar a porta e deparou com ela, sentada no mesmo banquinho, junto à janela aberta.
De longe, disse:
— Acompanhe-me - no que foi prontamente atendido.
E, cautelosamente, saiu encaminhando-se para o carro, que velozmente seguiu para a casa de pedras.
Li não pronunciou uma só palavra durante o trajecto, o mesmo fazendo Tung.
Já bem tarde da noite chegaram, sendo recebidos pelo criado logo no portão.
Deixando Li sozinha, no grande salão, imediatamente ele desceu para o subterrâneo, acompanhado do criado para ver pessoalmente se estava como desejava.
Era verdadeiramente horrível o aspecto do subterrâneo, à noite.
Tung, munido de uma pequenina luz que, bruxuleante, dava às paredes enegrecidas reflexos claros, destacando-se as silhuetas perfeitas dos dois homens, que tão misteriosamente percorriam aquela passagem, há tanto tempo abandonada.
Ao abrir a pesada porta, uma rajada de vento apagou a luz, deixando-os na mais completa escuridão.
Atemorizado, Tung gritou ansioso para o companheiro, que procurou, às apalpadelas, encontrar o seu senhor.
Foram momentos terríveis para Tung que, desorientado, apalpando as paredes, tentara também encontrar o criado.
Depois de sentir as mãos fortes do criado, ríspido, ordenou que acendesse novamente a luz.
Em pé, no meio do pequeno aposento, ele lançou um olhar rápido sobre tudo, constatando que as suas ordens tinham sido escrupulosamente cumpridas.
Sem demonstrar, mais uma vez, um só vislumbre de piedade pela sua infeliz companheira, voltou-se enérgico e disse:
— Estou satisfeito; podemos ir buscar Li.
Calmamente, voltou em busca de Li, que havia deixado no grande salão.
Foi surpreso que a encontrou em pé à sua espera e, ao contemplá-la, não deixou de sentir um certo temor, principalmente ao notar a calma e a tranquilidade estampadas em seu rosto belo e sereno.
Parecia que ela não se apercebia do drama sinistro, preparado pelo marido, para afastá-la definitivamente do seu convívio e de Kiang.
Realmente, ao ouvir as palavras terríveis do filho, quando ela lhe pediu protecção, deixou, desde aquele momento, de sentir a menor sensação de mágoa, parecendo que o seu dolorido coração tinha, naquele trágico momento deixado de pulsar.
E foi, desde então, que não se apercebeu, nem sentiu mais nada do que estava se passando ao seu redor.
Estava Li vestida com um comprido traje de fina seda estampada, que modelava maravilhosamente o seu corpo franzino e perfeito.
Nos cabelos, caprichosamente penteados, trazia, como costumava usar, um delicado raminho de flores alvas, porém já murchas...
Vista ao longe, na semi-escuridão do vasto salão, era impressionante a sua imobilidade, que mais parecia uma estátua do que uma infeliz e desprezada mulher.
Não se voltou nem mesmo quando ouviu os passos ligeiros de Tung.
Somente quando ele falou bem perto dela, ordenando que o seguisse, foi que se voltou e o fitou demoradamente, como desejando ainda encontrar no seu olhar um vislumbre de compaixão.
Mas o olhar do marido era frio e cortante, e Li, curvando a cabeça, humildemente o acompanhou.
De longe, a muda, escondida, viu alarmada e sem compreender o seu senhor, tão tarde da noite, descendo para o subterrâneo em companhia da senhora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:34 am

O seu marido lhe havia dito que ela estava doente, mas agora duvidava, pois via com seus próprios olhos a sua senhora, tão bonita, descendo calmamente em companhia do marido as escadas carcomidas pelos anos, do lúgubre subterrâneo, há tanto tempo abandonado.
Depois, ouviu quando Tung chamou pelo criado e quando este se afastou ligeiro... e mais nada.
Porém, a pobre muda teve um pressentimento doloroso... e ficou estarrecida no mesmo lugar de onde estava olhando.
Passados alguns instantes, viu Tung voltar sozinho e calmamente tomar o carro que o conduziria de volta para a sua casa, rica e luxuosa, onde o esperava o filho único e adorado; por causa de quem tinha praticado um tenebroso crime, atirando num subterrâneo oculto sua própria esposa, companheira dedicada, mãe carinhosa e meiga...
***
Li acompanhou Tung, silenciosa, durante todo o pequeno trajecto até o quarto destinado a ela.
Impassível, viu quando foi aberta a porta, e quando o esposo entrou e colocou a pequena luz sobre a mesinha.
Junto à porta, ficou Li esperando; quando ele se voltou, fitando-a demoradamente, disse:
— Nesse momento nos separamos para sempre; e se assim faço é devido ao grande e profundo amor que dedico ao “meu” filho Kiang.
É só por ele que resolvi ocultar de todos a terrível desgraça que nos atingiu, com essa moléstia que você adquiriu.
Aqui encontrará repouso e terá tudo quanto precisar, encobrindo assim para sempre essa nódoa que você nos atirou.
Li, de olhos muito abertos, fitava, pelas grades da minúscula janela, o céu que nesse momento era iluminado pela Lua majestosa, que despontara cobrindo a Terra com seus raios prateados, dando uma suavidade consoladora e calma...
Quando Tung terminou, ao olhar para ela, viu espantado que estava absorta olhando o céu, indiferente às suas palavras...
Revoltado, afastou-a da porta, e saiu fechando-a por fora, retirando as chaves, que cuidadosamente guardou.
Ao ouvir a porta fechar e serem retiradas as chaves, Li compreendeu que estava para sempre prisioneira.
Lentamente, aproximou-se da pequenina janela e tentou olhar para onde dava a mesma.
Como era muito baixa, não foi possível alcançá-la, sendo preciso levar um pequenino banco, e subindo, pôde ver, auxiliada pelo luar, toda a paisagem que se descortinava ante os seus olhos deslumbrados.
A Lua grande, clara, pairava soberba na amplidão imensa, banhando com a sua luz suave toda a extensão do grande parque.
As árvores frondosas reflectiam seus galhos longos na terra branca das margens tranquilas do rio que mansamente deslizava.
O silencio era completo, ligeiramente interrompido pela aragem fresca que sacudia as árvores imponentes e seculares.
Trepada no banquinho, segurando fortemente as grades frias, olhava extasiada toda a beleza dessa noite em que, tão cruelmente, fora afastada do seu lar, do esposo e do único filho.
Pelo seu rosto pálido corriam lágrimas ardentes.
Depois, cansada, desceu e foi deitar-se no pequenino e pobre leito.
Adormeceu rapidamente, e, só ao amanhecer foi que despertou ouvindo o trinado alegre dos pássaros nas árvores próximas ao seu cárcere, e pela janela o sol rutilante invadia todo o aposento, inundando-o de luz.
Lentamente sentou-se e, alegre, disse consigo mesma:
— Pensei que o meu cativeiro fosse pior, mas logo no primeiro dia vejo que me enganei.
Terei a companhia dos pássaros, ouvirei as suas melodias magníficas, verei o rio, onde desde pequenina, na minha infância distante, tanto gostava de brincar nas suas margens; verei, mesmo de longe, os barqueiros robustos, e talvez ouvirei as suas canções dolentes e belas.
O Sol aquecerá estas paredes, há tanto tempo vedadas à sua visita amiga e, às noites, terei a felicidade de contemplar, silenciosa, o céu estrelado e o luar, espectáculos grandiosos que Deus nos proporciona, magnânimo.
Sinto agora que poderei ser feliz aqui.
Chegou novamente à janela e, trepada no banquinho, olhou curiosa o despontar do dia.
Atenta estava, quando ouviu, ao longe, uma canção que ela tanto gostava de ouvir quando, em companhia de Kiang, ia até perto do rio.
Divisou nitidamente uma embarcação e quatro remadores que, alegremente, cantavam acompanhando o ritmo dos remos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:34 am

Viu quando eles passaram defronte à janela, quase encoberta pelas arvores.
Foi então, que procurou ver o que tinha no aposento.
Abriu uma grande mala e, satisfeita, constatou que Tung tinha sido generoso para com ela enviando todos os objectos do seu quarto, inclusive pequeninos trabalhos que ela muito gostara de executar.
Retirou tudo e, cuidadosamente, foi arrumá-los na mesinha, e, assim entretida, passou toda a manhã e depois, cansada, foi deitar-se.
Não demorou muito a ouvir um barulho junto à porta e, em seguida, o pequeno buraco que tinha passado completamente desapercebido por ela, foi aberto e introduzido, por meio de uma longa vara, uma bandeja que ela retirou logo, vendo surpresa uma farta alimentação, água e frutas, e o mais importante, que a deixou deveras maravilhada, um raminho de lindas florzinhas perfumadas.
Retirou tudo, colocou novamente a bandeja na vara e a empurrou para o lado de fora, ouvindo outra vez os mesmos passos vagarosos, que aos poucos foram se tornando indistintos, para logo mais desaparecerem por completo.
Radiante, tomou os alimentos e os arrumou na pequenina mesa; voltou-se para apanhar as flores e, quase com vaidade, as colocou, como costumava usar, nos cabelos já cuidadosamente penteados.
Sentou-se no pequenino banco e ficou pensativa, meditando profundamente de quem seria a oferta, pois só uma amiga muito sincera teria tido a delicada lembrança.
— Não conheço ninguém aqui, e, mesmo que isso fosse possível, é ignorada a minha presença nesta casa, há tanto tempo abandonada.
Ao chegar aqui, só vi o criado, que é um fiel e dedicado servidor de Tung, há muitos anos.
Tenho certeza de que ele obedecerá a toda e qualquer ordem dada pelo seu senhor.
Sei também que Tung jamais daria permissão para ele enviar-me flores.
Sou uma prisioneira que devo ser para sempre olvidada.
De quem, pois, a lembrança amiga e expressiva?
Assim estava meditando, quando subitamente lembrou-se da muda, que conhecia bem, pois quando veio, há muito tempo, em companhia de Tung e Kiang pequenino, passar uns dias de repouso, procurou fazer com que a infeliz criada compreendesse os seus gestos.
Lembrava-se agora, nitidamente, que uma tarde, quando passeava sozinha, viu a muda e convidou-a para ir com ela, no que foi atendida, e juntas foram até às margens do rio, e, sentadas, Li procurou conversar com a dedicada servidora.
Notou que ela era inteligente, assim como demonstrou, também, muito medo do marido, que a tratava severamente.
Agora tinha certeza de que a oferta era dela.
Satisfeita, juntou as mãos e disse contrita:
— Mais uma vez, rendo meu tributo de agradecimento a Deus, que não abandonou a sua desgraçada filha, tão grandemente atingida por esta terrível moléstia.
Ficou muito tempo olhando para as pequeninas manchas, quase invisíveis, mas nódoas marcantes, que fariam com que ela as visse como mensageiras de Deus para torná-la melhor e mais humilde.
— Encontrarei nesta prisão, talvez, o grande lenitivo para o meu sofrer e a coragem para o meu fim.
Esta moléstia será o facho luminoso e esplêndido que iluminará os meus dias longos de cativeiro, clareando a minha vida, e mostrando-me as possibilidades de alcançar, venturosa, as mansões distantes do Além.
Bendigo, desde já, este sofrer, agradeço por esta Dor que há-de purificar-me...
Tenho o coração transbordando de perdão e de amor...
Amor, luz clara e bela cujo calor alenta, cujos reflexos intensos e brilhantes guiarão os Espíritos para as moradas grandiosas do Pai.
Pois só o amor terá forças para esclarecer os que duvidam, para converter os descrentes, para transformar os incrédulos, e ainda, o amor é que mostrará para a humanidade sofredora os mundos maravilhosos, dispersos na imensidão do Infinito.
Só porque tenho o coração cheio de Amor é que posso perdoar e posso enfrentar destemida os dias longos do meu cativeiro...
Os dias foram passando e Li, cada vez mais integrada no marasmo do seu abrigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:35 am

Sozinha, procurava passar as horas, o mais agradável possível, entretendo-se com os pequenos trabalhos que Tung tinha enviado na sua mala.
Eram delicados bordados, finamente desenhados e artisticamente executados por Li, uma verdadeira artista.
Desde muito mocinha, tinha demonstrado pendor principalmente pelas tapeçarias que a seduziam, pois, dotada de inata concepção do belo, era para ela um prazer tecer uma tela, estudar os matizes vários e confrontar, como artista, o final, analisando demoradamente o trabalho, corrigindo detalhes, fazendo modificações de acordo com o seu fino gosto e rara sensibilidade.
Sensibilidade tão marcante que transmitiu ao seu único filho, fazendo dele também um peregrino do belo, um eterno insatisfeito, buscando haurir intensamente de todas as fontes de artes o prazer para a sua curiosidade artística, sempre insatisfeita, à procura de novas sensações.
Muito moço, pôde seu filho ser um dos homens mais viajados do Cantão, percorrer todo o mundo, conhecer todos os lugares célebres:
pôde estudar os problemas que o interessavam, coleccionar tudo quanto desejava e transformar sua residência num verdadeiro e estupendo museu de artes, que será mais tarde descrito pormenorizadamente.
Tão grande era a sensibilidade de Li e tão profundo o seu gosto pelas coisas belas que, mesmo prisioneira numa pequenina e estreita sala, pôde encontrar logo o lenitivo e a alegria perene para os dias longos do cativeiro.
Não fosse uma artista perfeita, teria sucumbido pela tristeza e pelo vácuo do isolamento, mas tal não aconteceu.
Ela encontrou, como artista, o deslumbramento para os seus olhos de esteta do Belo.
Na simples contemplação do azul do céu, ou do verde forte das árvores, do barulho cadenciado das águas do rio, do canto longínquo dos rudes barqueiros, Li ficava extasiada e, satisfeita, esquecia que era doente e prisioneira.
Só lhe faltava uma companheira para poder conversar, o que lhe foi um certo dia concedido, encontrando-a num lindo pássaro que alegremente pousou na janela da sua cela, vindo de um galho florido que pendia junto à grade.
Estava sentada no banquinho, entregue aos seus pensamentos, quando ouviu o trinado da avezinha. Não se levantou para não assustá-la.
Ergueu os olhos e viu que era linda, muito linda a sua visitadora.
Cantava alegremente, tirando da sua pequenina garganta privilegiada os mais suaves acordes, os gorjeios mais delicados, que fariam inveja às mais decantadas cantoras.
Li, imóvel, escutava a bela avezinha.
E foi pesarosa que a viu partir célere, livre e feliz pelo espaço azul.
Quando ela voou e o silêncio voltou a pairar no aposento, Li sentiu tão profunda tristeza, que pediu fervorosamente a Deus que lhe concedesse a ventura de poder sempre ouvir um recital tão belo como o que a pequenina e frágil avezinha lhe concedeu.
No dia seguinte, ela teve o cuidado de colocar na janela alimento, esperançosa de que o pássaro voltasse para alegrá-la novamente.
Sentou-se no banquinho e, como uma ingénua adolescente que espera ansiosa o seu amado, sentindo o coração bater acelerado, assim ficou à espera da visita.
Em dado momento, ouviu o trinado junto à janela, pois a avezinha, de cabeça baixa, comia satisfeita todas as migalhas.
Terminando, sacudiu a linda plumagem como se estivesse ajeitando as dobras de rico traje, para depois dar início ao seu recital de agradecimento.
Livremente a avezinha cantou, e Li, contrita, a ouvia sentadinha no pequenino banco.
Depois novamente o bater de asas, e o silêncio.
Muitos dias foram passados e Li, continuando a colocar as migalhas para a avezinha, que assiduamente vinha comer e, em seguida, cantar para depois partir deixando-a triste e só.
— Quero agora ver se consigo que ela não tenha medo de mim, quero ver se a posso pegar para acariciá-la como merece.
Atenciosa, esperou o amanhecer para tentar a experiência.
Muito cedo já estava contemplando o Sol, que despontava lentamente entre as grandes e azuladas montanhas.
Cuidadosamente, colocou as migalhas e, desta vez, não sentou no banquinho, procurando ocultar-se como costumara fazer, mas ficou em pé, segurando fortemente as grades.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:35 am

Não demorou muito a ouvir, num galho próximo, o trinado alegre e suave da avezinha que se preparava para ir buscar o alimento costumeiro.
Impaciente, Li observava todos os movimentos do pássaro e foi com emoção que viu quando ele deixou o ramo e directo veio pousar na janela.
Chegando, não demonstrou receio, abaixou a linda cabecinha e calmamente comeu.
Emocionada, Li não perdia um só movimento da graciosa visitante.
Depois, muito sutilmente, tentou passar de leve a mão sobre a macia plumagem da encantadora avezinha e, maravilhada, viu que ela não deixou de comer; então, esperou mais alguns instantes para tentar novamente pegá-la.
Surpreendida, pegou a avozinha, que não demonstrava o menor temor.
Trémula, ficou com ela nas mãos, receosa de magoá-la.
Desceu depois e sentou-se no banquinho.
Colocou com delicadeza a avezinha no colo e ficou emocionada vendo que ela se conservava aconchegada junto aos seus braços.
Chorou de contentamento, pois já eram passados tantos meses de confinamento, sem ter uma só pessoa com quem pudesse falar.
Surpreendeu-se como o eco de sua própria voz, quando disse:
— Agradeço, amiguinha delicada, a visita amável...
A avezinha ergueu a cabecinha parecendo que tinha compreendido as palavras de Li.
— Quero dar-lhe todo o carinho...
Como poderei chamá-la?
Como? Quero um lindo nome...
Mei-ling... Mei-ling... sim, assim chamar-se-á a minha amiguinha.
Estranha coincidência...
Li deu o nome de Mei-ling ao pássaro, sem poder saber que, alguns anos mais tarde, o seu filho escolheria para esposa uma linda adolescente que teria também o doce nome de Mei-ling.
Voltou Li e colocou a avezinha na janela, sentando-se em seguida no banquinho.
Atenta ouviu o gorjeio alegre e em seguida o bater das asas que, aos poucos, foi se distanciando até desaparecer por completo.
No dia seguinte, novamente conseguiu prender a avezinha e com ela conversar demoradamente.
Estava assim Li satisfeita, tendo tudo quanto desejava, pois diariamente recebia também a demonstração afectuosa da amiga desconhecida que lhe ofertava flores, testemunhas mudas de uma grande amizade.
Muitos meses já eram passados, e Li via resignada a marcha da moléstia implacável.
Muitas vezes pensou no filho ingrato, que ela ainda adorava; lembrou-se também de Tung, seu companheiro de tantos anos; revia saudosa a velha casa, e em pensamento percorria todos os seus recantos, desde o grande salão até o jardim, e as margens poéticas do rio onde costumava passear com Kiang ainda pequeno.
Lembrava-se dele sentadinho na areia branca, brincando descuidado.
Parecia que ouvia a sua vozinha terna chamando para que voltassem.
Lembrava-se depois do dia terrível em que Tung a prendeu no quarto, horrorizado com a revelação da moléstia terrível.
Ouvia as palavras de Kiang:
— Você é uma leprosa... você é uma leprosa... você é uma leprosa...
Li tapava os ouvidos, ainda estarrecida com a crueldade do seu pequenino filho.
Mais tarde lembrava-se de Tung, ordenando que ela o seguisse, para encarcerá-la no subterrâneo, sem piedade, onde, desde longos meses vinha suportando resignada o cativeiro imposto por seu esposo e pelo seu único filho.
Falava então alto:
— Será que estou mesmo totalmente esquecida deles?
Resta-me ainda um pouco de esperança, não posso crer que tenham deixado de se recordar de mim, assim como eu não posso de todo olvidá-los...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:35 am

III — Grande revelação de pequeno punhal
Durante os anos em que Li esteve afastada, prisioneira na longínqua casa de pedras, Tung e Kiang desfrutavam de uma vida calma e feliz.
Nunca mais o nome de Li tinha sido pronunciado no seu lar.
Estava para sempre esquecida, tendo Tung feito ciente aos seus amigos que ela, doente, repousava afastada na sua casa de veraneio em companhia de servidores dedicados e fieis.
Porém, decorridos alguns meses, fez constar que ela havia falecido repentinamente e que, conforme seu expresso desejo, tinha sido sepultada no mesmo lugar onde falecera.
Tung, em companhia de Kiang, passou uns dias afastado, voltando em seguida para receber impassível as demonstrações de pesar de todos os seus amigos que, em consideração à sua imensa fortuna e ao seu grande talento, acorreram para testemunhar o grande pesar.
E foi depois dessa fase que Tung respirou aliviado e procurou coordenar melhor os seus negócios, pois desejava afastar-se da China, levando Kiang para estudar num centro de cultura mais elevado, porque desejava que o filho tivesse uma educação aprimorada, sendo preciso afastá-lo logo, para que ele ficasse de todo ambientado num meio mais culto e onde pudesse livremente aprimorar os seus dotes de invulgar inteligência.
Conhecedor como era dos meios mais selectos, tendo amigos proeminentes, não lhe foi difícil fazer a escolha.
Assim meditava seus planos:
— Irei com ele e guiarei os seus primeiros passos.
Mais tarde viajaremos juntos, e serei novamente seu guia.
Não quero que ele retorne à China, só quando já estiver preparado e, assim mesmo, depois de ter percorrido todos os países do mundo e de ter conhecido as mais decantadas regiões, então sim, virá rever a sua pátria e aqui ficará trabalhando para o seu soerguimento.
Dias após dias Tung trabalhou incessantemente numa faina intensa de preparativos para a partida.
Ficaria a grande casa fechada, entregue aos seus velhos criados.
Cuidadosamente guardava as preciosas peças antigas, desde os raros marfins finamente esculpidos, até as delicadas porcelanas pintadas à mão por artífices renomados; porcelanas essas que vinham pertencendo à família Fu desde os mais remotos tempos. Depois, em companhia dos criados, providenciou também para que fossem guardadas as tapeçarias ricas e raras, algumas tecidas por seus antepassados — verdadeiras jóias de requintado gosto, não só pelas nuances perfeitas como pelos anos que tinham, pertencentes à ilustre família da qual Tung era o último representante, e que avaramente guardava para seu filho Kiang.
Foi o próprio Tung que, procurando auxiliar os criados, tomou uma das tapeçarias para guardar numa grande caixa, e ao contemplá-la mais nitidamente, reconheceu como sendo uma das criações de Li.
Lembrou-se do momento em que ela terminara esse trabalho e, submissa, pedira sua apreciação, e ele não pudera deixar de reconhecer que estava diante de verdadeira obra-prima, onde sobressaíam tonalidades perfeitas e acabamento esmerado.
Era uma grande tela representando uma linda paisagem, com altas árvores e um campo verde coberto de lindas florzinhas de cores diferentes; ao fundo, quase encoberto pelas árvores, via-se um pedaço de céu muito azul.
Sentado à sombra da mais frondosa das árvores, um casal de mãos dadas contemplava as flores, sendo que a dama tinha no seu regaço uma braçada delas.
Perfeitos eram os traços dos dois, assim como os trajes típicos de fidalgos chineses.
Tung entusiasmou-se tanto por esse trabalho que o colocou no luxuoso salão, e muitas vezes veio sentar-se em frente para melhor contemplá-lo.
Agora que para todos ela era considerada morta, foi para ele um choque quando reconheceu entre suas mãos a tela de Li.
Sentiu um estremecimento violento, e um escuro encobriu a sua vista.
Resoluto, sentou-se, tendo a tela presa nos seus dedos nervosos.
Fechou os olhos e recostou a cabeça no alto espaldar da velha cadeira.
Sem poder reter o turbilhão das suas emoções, reviu Li delicada e bela, sentadinha e silenciosa bordando ao seu lado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:35 am

E no âmago da sua alma torturada, ele cedeu aos impulsos imperiosos dos seus sentimentos e reconheceu, nesse momento, que foi cruel, foi desumano, e não podia deixar de recordar com saudade a terna e mansa criaturinha que ele, por um desmedido e alucinante egoísmo paterno, atirou sem piedade numa fria e escura prisão, num velho e abandonado subterrâneo.
Tão absorto estava na recordação da esposa, que não notou quando Kiang sutilmente entrou e, junto da cadeira, alarmado, observava o pai.
Notou presa ainda fortemente às suas mãos a tapeçaria.
Kiang, violentamente, a retirou.
Depois o interrogou:
— Por que o vejo tão apreensivo, olhando esta tapeçaria?
Tung não respondeu; e Kiang mais uma vez o interrogou, pedindo-lhe esclarecimentos daquela estranha postura.
Então, olhando firmemente para o filho, falou:
— Kiang, esta tapeçaria foi tecida há muitos anos por sua mãe, e hoje, casualmente ao contemplá-la, senti que algo estranho me perturbou fortemente.
Não sei definir positivamente o que senti, mas pela primeira vez recordei-me de Li, e confesso, meu filho, senti saudades dela...
Kiang era ainda muito jovem, mas possuidor de rara inteligência que Tung, desde muito, vinha orientando também com o seu invulgar talento, procurando despertá-lo e orientá-lo para os grandes problemas da vida que ele via com acentuada agudeza.
Kiang era um discípulo excepcional, sagaz, não lhe passando desapercebidos os mínimos detalhes das lições recebidas de seu pai.
Foi, pois, quase com ironia que ele ouviu Tung dizer que sentia saudade de Li.
Sorrindo, indiferente, olhou a tela e disse:
— Surpreenderam-me, meu pai, as suas palavras.
Então está com saudade de minha mãe? – riu alto... — saudades... ela já morreu para nós... tratemos de nos preparar e esqueçamos de uma vez esta história da nossa vida.
Atirou para longe a tela e saiu apressado do salão.
Tung continuou sentado e, em silêncio, meditou.
No seu cérebro exausto perpassou velozmente toda a sua vida, desde o instante em que conheceu Li, mimosa menina, quase da idade que Kiang tinha agora.
Depois recordou o seu enlace, muitos anos passados.
Foi como quase todos os casamentos chineses, mera escolha dos progenitores de ambos.
Mesmo pertencendo a uma ilustre família e tendo sido educado numa adiantada capital europeia, era Tung um chinês cumpridor fiel das suas tradições, aceitando resignado todos os seus rituais.
Foi assim que se uniu a Li, também pertencente a abastada família.
Depois de casados, Tung, inteligente como era, não pôde deixar de reconhecer não só a delicadeza de Li, como a sua rara beleza e a inteligência aprimorada.
Apaixonou-se loucamente por ela e, se não fosse a sua arraigada convicção pelo cumprimento de dever de cultivar todos os ensinamentos dos seus antepassados, teria feito dela uma grande dama que, com orgulho, poderia apresentar nas mais selectas sociedades da Europa.
Porém, Tung nada fez nesse sentido e até mesmo a sua paixão procurou disfarçar.
Era para todos o chinês imperturbável e austero.
Agora, sozinho, pensava, e na sua alma torturada sentia que não podia esquecer jamais a sua infeliz companheira.
Ainda muito tempo ficou Tung entregue aos seus pensamentos.
Cabeça baixa, olhos fechados, continuava revendo todas as fases da sua vida, procurando, num esforço supremo, afastar da sua mente a visão saudosa de Li.
Porém, debalde.
Ela surgia nítida em toda a sua plenitude, de beleza e ternura.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 25, 2021 9:36 am

Reconhecia que, realmente, Li fora a mulher mais encantadora que cruzara na sua vida.
E abrindo os olhos fitou ainda a tela que Kiang havia retirado das suas mãos e atirado sobre um velho canapé, defronte onde ele estava sentado.
Não podendo recalcar as saudades, aflito, exclamou:
— Li, perdoe-me, tudo fiz em benefício do nosso filho Kiang!
Nos seus olhos tristes, claras lágrimas brotaram e mansamente deslizaram pelo seu rosto... depois, mais calmo, levantou-se e foi continuar o trabalho interrompido.
Estava só, pois ordenara aos criados que se afastassem e que ele mesmo terminaria como desejava.
Num recanto do amplo salão, verdadeiro relicário de preciosos ornamentos, distinguia-se um antiquíssimo móvel, obra valiosa, datada de muitos anos, vindo de gerações em gerações, tradicionalmente cobiçado por todos os rebentos da velha família Fu, e que orgulhosamente ele o guardava como uma peça de inestimável valor.
Era todo esculpido e incrustado de finas madrepérolas, tendo diversas gavetinhas, todas abertas por meio de um segredo, tão artisticamente disfarçado que causava espanto ao mais conhecedor e hábil coleccionador de raridades chinesas.
Desde muito jovem possuía esse móvel, e nas suas minúsculas gavetas guardava todas as jóias e pequeninas preciosidades adquiridas durante suas viagens.
Foi esse móvel que Tung procurou arrumar cuidadosamente.
Sentou-se, foi abrindo lentamente as gavetas e redrando tudo para rever.
Notava-se o interesse que ele tinha por todos aqueles objectos guardados com tanto carinho.
Colocou em cima do móvel diversos deles, e entre eles um pequeno punhal, também peça rara e preciosa, assim como arma terrível.
Fora adquirido numa das suas longas viagens na velha cidade de Pequim, num recanto sórdido, de um chinês coleccionador de armas perigosas e traiçoeiras.
Tung o comprou pela originalidade, não só do tamanho, como também pelo acabamento exótico e pelo perigo que podia provir da minúscula lâmina cortante e perigosa.
Esteve com ele muito tempo nas mãos examinando como costumava fazer, todas as vezes que abria a gavetinha, e sempre entusiasmava-se pela beleza do punhalzinho.
Depois colocou-o ao lado e continuou a rever o que tinha guardado.
Em dado momento, descuidou-se e bateu com o braço violentamente, derrubando diversos objectos, entre eles o punhalzinho, que foi cair sobre o seu pé.
Ele calçava um sapato de fino tecido, muito usado pelos chineses, principalmente em casa; e foi fácil o punhal penetrar profundamente.
Alarmado, abaixou-se e retirou-o bruscamente, com coragem, e, impassível, viu o sangue manchar o tapete.
Porém, estremeceu e ficou lívido.
Pois apesar de o ferimento ser profundo, e da grande perda de sangue, não sentiu a menor dor.
Estarrecido, ficou muito tempo com o punhalzinho preso nas mãos.
Olhar desvairado, como louco, contemplou o seu próprio sangue que tingia o rico tapete.
Sentia-se subjugado, como preso por possantes algemas à cadeira.
Debalde tentou levantar-se, porém, inútil o esforço.
Queria chamar o filho, mas incontinenti lembrou-se do momento terrível em que Kiang, ao ouvir o apelo alucinante de sua mãe, nas mesmas condições em que ele se encontrava agora, bradara impiedoso:
— “Você é leprosa... você é uma leprosa... você é uma leprosa...”
Tung levou as mãos aos olhos, enxugou as lágrimas que abundantes deslizavam pelas suas faces ardentes.
Depois, recostou a cabeça no alto espaldar da antiga e preciosa cadeira, e deixou-se vagar pelo mundo misterioso dos seus pensamentos, preso às suas malhas confusas.
Só agora, passados tantos anos, nesse momento cruciante da sua vida, é que se lembrou de Li e avaliou o seu calvário.
Acabrunhado, pensou nela, tolhida na sua liberdade, prisioneira num abandonado subterrâneo, frio e triste.
Sentiu agora intensamente a sua dor, que era também a dele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:56 am

Reconheceu que a história de Li jamais seria contada, tão dolorosa ela era.
Ele nunca teria a coragem precisa para deixar transparecer a verdade do seu desaparecimento, que seria uma nódoa na vida, não só dele, como do filho único e adorado.
Reconheceu a sua crueldade e como devia ter sido mais humano para com a doce criaturinha que compartilhava da sua vida e que era a mãe de Kiang.
Viu horrorizado o hediondo crime que, silenciosamente, praticou, amparado pela fortuna imensa que possuía e pelo prestígio do seu nome ilustre.
Reconheceu e avaliou que os homens não valem nada pelos seus talentos, nem pela glória efémera das suas posições, mas valem, sim, pelas refulgências do seu espírito.
E ele, Tung Fu, nada mais era do que um vil e cruel monstro, acobertado pelo dinheiro, indiferente e dissimulado, digno do desprezo de Li.
Recordou-se do olhar indiferente e da passividade dela ao ouvir as suas palavras.
Parecia que estava vendo o seu rosto pálido e perfeito, a contemplá-lo firmemente, sem uma só frase de revolta.
Soluçou baixinho e murmurou:
— Não poderei, agora, jamais esquecer este atentado...
Terei coragem para disfarçar de Kiang esta terrível verdade?
E ainda soluçando convulsivamente, debruçou-se sobre o rico móvel, de que tanto se orgulhava de possuir, entregue à sua grande Dor.
Quando Tung se levantou, surpreendeu-se de estar no escuro, e pôde avaliar nitidamente o longo tempo em que esteve entregue à sua imensa mágoa.
Sentia o cérebro confuso e um grande entorpecimento em todo o corpo.
Olhou demoradamente para o vasto salão envolto em ténue penumbra.
Da janela entreaberta vinha a fresca aragem da noite.
Com dificuldade levantou-se e, arrastando-se, chegou até a janela onde, debruçado, ficou contemplando o firmamento estrelado.
E no recôndito de sua alma torturada chegou, em borbotões, toda a recordação de sua vida, desde a infância até o momento presente, em que ele reconhecia os erros que praticou; e sentia já o arrependimento que iria acompanhá-lo, não só o arrependimento, como o remorso que o perseguiria como um fantasma tremendo, torturando-o constantemente.
Ele reconheceu toda a realidade que se apresentara clara e ameaçadora.
Fitando o céu, meditou na finalidade da Vida e na sua eterna filosofia, porque Tung, como um chinês de arraigadas tradições, era também um filósofo profundo.
Com o aprimorado talento que possuía, e com a sua grande cultura, ele tinha sabido haurir de todas as fontes inestimáveis conhecimentos, a força precisa para a resolução lógica e positiva de todos os seus intrincados problemas, mas... agora... curvou a cabeça e, impotente, ficou ante as terríveis verdades que se deparavam à sua frente.
Até então todos os seus reveses eram por ele calmamente resolvidos, como o filósofo que na realidade era... mas... tornou a murmurar:
— Agora... agora... é por demais intenso o que sinto e o que me atingiu... e a minha filosofia é também impotente para esclarecer-me e amparar-me neste transe difícil em que me debato!
Terei coragem para enfrentar impávido e sozinho esta dura batalha?
Kiang é tão jovem, e tenho certeza de que mais tarde terá horror de mim.
Lembrou-se do seu rostinho contraído, do olhar espavorido quando soube que sua mãe estava leprosa; entretanto, era uma criança.
Pensou em quando ele não pudesse mais ocultar a verdade e, atemorizado, ficou pensando também como iria resolver esse seu problema.
Apertando fortemente a cabeça, continuou entregue aos seus alucinantes pensamentos.
Estremeceu violentamente quando sentiu o contacto da mão de Kiang pousar levemente no seu ombro.
Voltou-se bruscamente e fitou firme o filho, que assustou-se com o olhar espavorido e ameaçador de Tung.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:57 am

Em frente um do outro, ficaram em silêncio até que Kiang o interrogou:
— Por que o encontro tão diferente e tão acabrunhado?
Tung não respondeu.
O filho tornou a perguntar, desta vez em tom alto e ríspido, porém ele continuou calado, olhando firme para o filho.
Só depois de muito tempo é que, com dificuldade, conseguiu falar e pausadamente disse:
— Kiang, não me sinto bem, preciso de repouso, pois na realidade estou muito cansado.
— Tratemos então de abreviar a nossa viagem, que espero lhe seja benéfica.
E Kiang saiu sem demora, deixando o salão.
Tung ficou novamente só e entregue aos seus funestos pensamentos.
Até tarde da noite esteve no vasto salão, e só pelo raiar do dia se levantou da grande cadeira e mais uma vez foi à janela onde ficou admirando o despontar lento da aurora.
Sentiu na sua alma torturada um bem-estar delicioso na contemplação do espectáculo magnífico que nunca tinha sido visto por ele.
Respirou profundamente, haurindo da aragem fresca da manhã um tónico precioso para o seu organismo, enfraquecido pelas emoções violentas que tinha experimentado nesse dia fatídico da sua existência, até então sossegada e feliz.
Deixou que o vento batesse livremente no seu rosto, e de um galho verde, que ousadamente tentava penetrar na janela, lhe caíssem nas faces algumas gotas de orvalho fresco da noite.
Preso no êxtase da contemplação, sentiu também os reflexos dos raios benfazejos do Sol que despontava rubro por entre as montanhas altas.
Refeito e mais calmo, deixou o salão, para ir ultimar as ordens necessárias, pois desejava agora partir brevemente para bem longe, procurando se esquecer de seus nefastos pensamentos.
Julgava que, engolfando-se no turbilhão entontecedor das grandes capitais, encontraria o refúgio certo para a sua mente cansada.
Sem querer, voltou a pensar em Li, prisioneira, e estremeceu ligeiramente, sentindo um frio penetrar na sua epiderme.
Sentiu também uma vontade alucinadora de ir até à casa de pedras para ter notícias detalhadas dela; pois, só assim, pensava, teria a paz necessária para empreender a longa viagem.
Por isso, resolveu ir, naquela mesma noite, até a longínqua casa de pedras para ouvir do velho e leal servidor algo sobre o estado de lá.
Resoluto, chamou pelo criado e, cauteloso, ordenou que lhe preparasse um carro, pois desejava fazer uma ligeira viagem, assim como pediu para que mandasse Kiang à sua presença.
Sentou-se e ficou à espera do filho, que não demorou muito a vir.
Surpreendido com a resolução do seu pai, insistiu para acompanhá-lo, o que Tung não permitiu, dizendo ser uma viagem rápida e cansativa.
Conformado ficou Kiang e seu pai pôde partir livremente.
***
A tarde findava lentamente, e toda a cidade estava encoberta pela ténue claridade vinda dos últimos raios do Sol.
Tung tomou o pequenino carro e velozmente seguiu para a casa de pedras.
Ia só e durante o longo percurso deixou que o seu pensamento vagasse livremente.
A estrada era larga, cheia de subidas, algumas bem íngremes, porém Tung não se amedrontava e fustigava violentamente os animais que, sentindo a dor da chibata que os feria, corriam celeremente.
Mesmo assim, a distância a percorrer era grande e só muito tarde da noite foi que ele, protegido pela claridade da Lua, distinguiu ao longe a casa de pedras.
Procurou fustigar ainda mais os animais que, espavoridos, chegaram ao imenso portão.
Ligeiro, Tung desceu, deixando ao abandono o carro.
Com força bateu, e como não fosse imediatamente atendido, puxou repetidas vezes a argola de bronze, que provocou um barulho intenso e estridente.
Instantes depois a pesada porta foi aberta e o criado, ao deparar com Tung, recuou alarmado, e trémulo ficou quando olhou mais demoradamente e viu o olhar aflito dele como desejando descobrir num só relance toda a casa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:57 am

Tung ordenou que se fizesse luz e logo foi interrogando o leal servidor:
— Diga-me, como vai a sua senhora?
— Creio que vai bem, pois conforme suas ordens, nunca mais a vi, sendo que minha mulher é quem desce diariamente, porém para levar uma só vez os alimentos necessários.
Sei que ainda vive porque devolve a bandeja em que é levada a refeição.
Tung, com o olhar alucinado, fitou o criado.
Pediu em seguida que se retirasse, pois desejava repousar, e pela manhã daria as ordens necessárias.
Ficando sozinho, Tung procurou um antigo canapé e deitou-se, tentando descansar, pois devido à longa viagem sentia o corpo dolorido.
Deitado na semi-escuridão, tentou coordenar melhor as suas ideias e pensou em como deveria agir:
— Quero ver Li... quero... preciso ver pessoalmente como ela está.... deve estar bem doente e horrível... a moléstia é medonha e a sua marcha é lenta, porém, destruidora.
Reviu, comovido, Li quando jovem, na plenitude dos primeiros anos de casados.
Sentiu ainda o coração bater fortemente na recordação dos dias felizes em que ela, meiga e delicada, lhe fazia companhia... parecia que ouvia a sua voz melodiosa, cantando baixinho e bordando uma encantadora tapeçaria; atento, observava o cuidado com que escolhia as cores e depois como procurava harmonizar os matizes.
Muitas vezes, Tung a auxiliou com o seu comprovado conhecimento, dado às numerosas vezes em que percorreu os célebres museus de artes e os requintados salões de pinturas.
E agora, na erma casa de pedras, sozinho no grande salão, recordou-se de todos esses pormenores.
Foi preciso que uma forte dor o ferisse para que ele reconhecesse os seus erros e curvasse a cabeça arrependido.
Já vinha despontando o dia, e Tung continuava deitado, recapitulando toda a sua vida.
Quando sentiu que o Sol vinha surgindo, levantou-se bruscamente e saiu em direcção ao quarto que dava passagem para o subterrâneo onde Li estava prisioneira.
Abriu com cuidado a porta e, puxando a grande argola, deparou com a escada que, ligeiro, desceu.
Ao defrontar com a porta do quarto de Li, encostou-se à parede fria, pois sentiu uma vertigem turvar-lhe a vista.
Passados alguns instantes, e refeito do abalo, corajosamente colocou a chave e ouviu o ranger da porta, para depois, empurrando-a vagarosamente, abri-la de todo.
Aberta a porta, Tung deparou com Li sentada no pequenino banco, tendo no colo uma formosa avezita de linda plumagem, que ela carinhosamente afagava.
Estava singelamente vestida e penteada caprichosamente.
Tung reconheceu o vestido, pois era o mesmo que ela vestia quando anos passados ele a trouxera para enclausurá-la.
Apesar de velho era ainda, vestido por Li, muito elegante.
Quando ouviu o barulho da porta que se abria, Li ergueu apressada a cabeça e, ao deparar com Tung em pé, parado junto à mesma, não demonstrou o menor sinal de surpresa; voltou-se novamente para a avezita e continuou a acariciá-la, indiferente.
Tung continuava o exame, e surpreendido ficou ao constatar que ela estava, como sempre, bonita, e que a moléstia parecia estacionada, não demonstrando quase nada de anormal nas suas feições belas e perfeitas.
Vendo que Li não o observava, encaminhou-se para mais perto dela; foi quando ela se levantou e, subindo no banquinho, colocou a avezita na janela, observando o seu vultozinho gracioso desaparecer ao longe, na amplidão infinita do céu.
Desceu devagar e voltou-se para Tung que estava bem perto dela.
Fitou-o demoradamente, porém, sem dizer uma só palavra, e depois foi aos poucos se afastando dele.
Tung aproximou-se outra vez dela e com voz comovida disse:
— Li, vim até aqui me despedir, pois partirei brevemente com Kiang, que vai para o estrangeiro iniciar os seus estudos.
Li continuou calada.
Novamente Tung insistiu, dizendo:
— Li, por que não responde?
Você deve compreender que o que fiz foi exclusivamente em benefício do “nosso único filho”.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:57 am

Era a primeira vez que Tung se expressava assim, pois sempre dizia — “Meu filho”.
Então Li, erguendo a cabeça e olhando-o firme, respondeu com delicadeza:
— Agradeço, sinceramente, a sua visita e desejo para ambos muitas felicidades.
Muito tempo ficou Tung olhando para Li, que continuava sentada e cabisbaixa.
Depois, mais uma vez falou:
— Quero que compreenda o meu gesto, pois apesar de parecer ingratidão, não foi assim por mim pensado...
Insisto em dizer que tudo fiz em benefício de Kiang, e espero que mais tarde ele também saiba avaliar este meu gesto, e recompense-me agradecido.
Ela ouviu estas palavras silenciosamente, sem nem sequer erguer a cabeça.
Irritado com a atitude de Li, ele encaminhou-se para a porta, abrindo-a pela última vez; olhou para a sua antiga companheira e comovido voltou para junto dela, que recuou bruscamente, atemorizada.
Então, Tung, com voz trémula, murmurou:
— Adeus, Li... talvez venha mais tarde compartilhar com você desta prisão... talvez.
Li... adeus... — e saiu ligeiro, fechando com violência a pesada porta.
Quase correndo, Tung subiu os degraus da longa escada e, ofegante, chegou ao salão, caindo sobre o canapé.
Neste momento, o criado, ouvindo os seus passos, dirigiu-se também para o salão e o viu cair desfalecido.
Apressado, procurou socorrê-lo, quando entrou também a muda, e juntos tentaram levantar o senhor.
Minutos depois, lentamente, Tung abriu os olhos e deparou com os dois fiéis servidores ajoelhados ao seu lado.
Agradeceu e, levantando-se com dificuldade, ordenou ao criado que preparasse o carro, pois desejava partir imediatamente.
Ficando só com a muda, ele a fez sentar-se e, com gestos expressivos, pediu-lhe tratar bem a senhora; ela compreendeu o pedido e respondeu-lhe pondo a mão sobre o coração e apontou o quarto que dava passagem para o subterrâneo onde Li estava prisioneira.
Depois tentou perguntar por que ele a prendeu.
Tung abaixou a cabeça e, ao levantá-la, a muda, surpresa, viu que ele estava chorando.
Esquecendo que era uma humilde criada, e levada pelo sentimento e pela bondade nata de sua alma, tomou as mãos de Tung e as apertou junto de seu coração.
Nesse momento, o criado entrou e ficou admirado vendo sua mulher perto do senhor.
Mandou que ela se retirasse, no que foi repreendido por Tung, fazendo com que a muda voltasse.
Tendo os dois juntos dele, transmitiu ao criado ordem para que nada faltasse a Li, e que a muda teria permissão para visitá-la, com ela passando alguns momentos.
Mais uma vez demonstrou ao velho criado a sua confiança entregando-lhe as chaves do subterrâneo, recomendando o mais absoluto sigilo.
O criado curvou-se respeitosamente e afirmou que as suas ordens seriam cumpridas fielmente.
Participou que iria viajar por muito tempo e saiu para tomar o carro, que, pronto, o esperou no grande portão.
Fustigou os animais que, rápidos, tomaram a direcção da estrada. Na curva, Tung olhou mais uma vez para a casa de pedras e alto exclamou:
— Adeus, Li... adeus...
***
Exausto, Tung chegou, depois da longa caminhada e fortes emoções; foi com alívio que repousou num canapé do luxuoso salão.
Repousou e meditou, e nas sombras do passado distante reconheceu que tudo desaparecera para ele, pois Li nunca mais poderia perdoá-lo.
Recordou, emocionado, os momentos felizes que passou, não esquecendo uma só fase nem uma só reminiscência...
Comovido, reviu na penumbra longínqua da sua vida, a silhueta expressiva de Li.
Reconheceu agora que era impossível olvidá-la e que ela ficaria sempre pairando sublime no seu coração.
E na luta em que se debatia, julgava a si mesmo e uma atroz melancolia invadiu sua alma torturada.
Lutava para afastar para bem longe o pesadelo cruciante, mas debalde... era muito mais forte a dor que o atormentava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:57 am

Porém reconheceu que nunca era tarde para remir um erro, e um dia, talvez, poderia ainda, das torturas de agora, fruir a ventura de um futuro feliz... feliz... será possível?
Veio então à sua imaginação o vulto jovem de Kiang.
Só nesse transe terrível é que pôde, conscienciosamente, analisar a personalidade do filho adorado.
No seu pensamento surgiu mais uma vez Kiang, e Tung, amedrontado, reviu os seus olhos sugestivos e pareceu-lhe ouvir a sua voz que, desde já, tinha um timbre autoritário e ríspido.
Sabia que não encontraria nele o amigo que idealizava, que teria de palmilhar sozinho a estrada longa e difícil, mas reconheceu também que era justo, pois afastando Li, que era a verdadeira amiga e companheira, praticou um atentado monstruoso e que devia, por isso, agora, levar sozinho a pesada cruz.
Tentou reter os seus pensamentos e recuperar a calma anterior... porém não conseguiu; eles voavam como folhas soltas ao léu do vento forte... e em reviravoltas pairavam sempre no mesmo ponto:
Li... Li... Li...
Sentiu, nesse instante, a ausência dela e uma saudade cruciante e infinda, qual uma chaga dolorosa que o maltratava e aniquilava... sabia que essa saudade não teria fim... que o acompanharia para sempre, até que pudesse voltar a unir-se a ela... inconsciente, Tung exclamou alto:
— Irei, Li, para junto de você... irei...
Foi quando ouviu a voz de Kiang, que junto dele estava e pôde ouvir perfeitamente as suas palavras.
Ríspido, perguntou:
— Estava sonhando?
Ouvi dizer uma coisa tão absurda!
Diga-me, exijo, estava mesmo sonhando?
Ou está doente?
Pois, do contrário, não pronunciaria jamais esse nome, até agora completamente olvidado por nós.
Tung ficou silencioso e Kiang outra vez o interrogou:
— Estou preocupado com você há muitos dias!
Vejo-o sempre triste e procurando evitar-me.
Noto algo diferente e gostaria de saber o que se passa!
á pensei que talvez tivesse recebido notícias desagradáveis daquela desgraçada mulher.
Tung levantou-se inopinadamente e, tomando o filho pelas mãos o sacudiu violentamente, atirando-o depois sobre o mesmo canapé onde estava repousando.
E alto, em tom até nesse momento nunca ouvido por Kiang, gritou furioso:
— Como ousa chamar sua mãe de mulher desgraçada, como ousa fazer tal coisa, filho ingrato e cruel?
Kiang também levantou-se ligeiro e enfrentou seu pai com um olhar que desprendia verdadeiras fagulhas de ódio... e exclamou:
— Desde que você mesmo a afastou do nosso convívio que a chamo assim, e nunca tive uma só palavra de reprovação; por que, pois, agora reprova o meu procedimento, quando você mesmo já a chamou diversas vezes de desgraçada, e ainda mais de leprosa?
Em frente a Tung, cabisbaixo, o jovem insistiu e, batendo fortemente o pé, gritou:
— Não tolero que pronuncie nunca mais o nome dessa desgraçada... desgraçada... desgraçada... ouviu?!! — e saiu furioso, batendo com estrondo a pesada porta do salão.
Tung continuou de pé, chorando silenciosamente... depois dirigiu-se ao canapé e deitou-se exausto.
De momento a momento constatava o seu terrível erro e um pesar lento invadia a sua alma sofredora.
Sofrendo profundo remorso, assim meditou:
— Terei de expiar este pecado até que a morte chegue impassível e leve-me... mas se a morte tardar muito, será para mim um calvário... tenho, entretanto, de seguir, tenho que percorrer todo o longo percurso, triste e sozinho... tenho que levar a minha desdita com paciência, porque eu mesmo fui o culpado, porque eu mesmo inutilmente me enveredei por esse caminho tenebroso, pensando assim encontrar a felicidade.
Afastei de mim o verdadeiro amor, por um outro que eu julgava elevado e puro.
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