LUZ ESPÍRITA
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:58 am

Mas agora estou certo de que errei e que na vida só Li era a doce e meiga criaturinha que devia compartilhar comigo a suprema felicidade, espargindo em torno do nosso lar tranquilo, o amor e a paz...
***
Na manhã seguinte, muito cedo, Tung chamou Kiang e, com voz baixa e suave, disse:
— Filho, você deve partir breve e quero que olvide para sempre o que se passou ontem.
Procurarei encontrar um bom professor para que seja o seu guia, estou cansado e sinto-me seriamente enfermo.
Kiang, surpreso não só com o tom de voz de seu pai, mas também com o seu abatimento visível, aproximou-se dele e delicado pediu:
— Só partirei na sua companhia, pois do contrário não sairei daqui.
Não quero professor nem guia algum, quero somente a sua companhia.
Tung abraçou o filho, prometendo então seguir com ele para o estrangeiro.
— Providenciarei rapidamente.
E assim, dias depois, seguia com Kiang para a Europa, onde ele pretendia estudar num aristocrático estabelecimento de ensino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:58 am

IV — A esperada viagem
Foi para Kiang, jovem e idealista, um deslumbramento a viagem.
Guiado por Tung, velho e experimentado viajor, era um prazer inédito para o adolescente, que nunca tinha saído da tradicional cidade de Cantão, vislumbrar todas as belezas que lhe oferecia a longa travessia.
Ansioso, esperava a chegada no primeiro ponto da Europa.
Queria não só conhecer as cidades modernas, mas ainda os seus costumes e tradições.
Kiang, desde muito pequenino, demonstrou tendência para ser não só um fino cavalheiro, como também um artista perfeito.
Herdou de Li, romântica e sentimental, o gosto pelas coisas belas, e de Tung, inteligente e esforçado, o prazer de encontrar sempre definição para todas as suas curiosidades e forças para enfrentar todos os obstáculos que pudessem surgir à sua frente. Muito criança, já gostava de transmitir ordens e orgulhoso ficava quando era obedecido.
Era também com alegria que adquiria pequenos objectos e cuidadosamente os colocava em armários caprichosamente feitos para ele.
Assim, muito jovem, já era possuidor de coisas raras, que seriam mais tarde aumentadas com o decorrer das suas longas peregrinações por todos os recantos do mundo.
Tung notava com satisfação esse pendor do filho, pois ele também era um fanático coleccionador de preciosidades.
A sua residência era um verdadeiro museu de raras e ricas variedades de magníficas peças de marfim esculpido e de finas porcelanas que seriam significativamente aumentadas por Kiang.
Ansiosos estavam os dois pela chegada ao primeiro ponto da Europa para adquirirem outros objectos que iriam enriquecer a soberba colecção da antiga e ilustre família Fú.
Kiang esperava impaciente e frequentemente estava interrogando Tung, fazendo inúmeras perguntas a que ele pacientemente ia respondendo e dando, ao mesmo tempo, as explicações necessárias.
Sentados em frente um do outro, Kiang dizia:
— Quero estudar na França, quero conhecer profundamente a sua história e a sua literatura.
Tung curvava a cabeça, pois era seu desejo que ele estudasse na Alemanha onde tinha velhos e prestigiosos amigos, que poderiam na sua ausência guiá-lo convenientemente.
Porém, nada disse, e combinou com Kiang que ele iria logo para a França.
De surpresa em surpresa, passaram os longos dias de viagem.
Kiang estava radiante de felicidade, pois desde que saíra de China, vinha reconhecendo quanto ele era ignorante e quanto tinha ainda de ver e admirar.
Muitas vezes, afastado de Tung, ficava a meditar, pois apesar da sua pouca idade, era dotado de invulgar inteligência e fina concepção.
Observador arguto, nada lhe passava desapercebido.
Reconhecia que, com a fortuna que possuía, podia ter tudo quanto desejava.
Sorria satisfeito antevendo o seu futuro na grande e sedutora cidade de Paris.
Em tudo, Kiang demonstrava uma precocidade singular.
Educado nos moldes de uma sociedade rígida e essencialmente tradicionalista, ele, entretanto, ainda bem jovem, discordava de Tung, quando este tentava aconselhá-lo no cumprimento fiel das velhas e austeras tradições da família Fú.
Dizia seu pai que ele podia experimentar da vida todas as sensações, que podia haurir de todas as fontes o prazer almejado, mas quando tivesse de combater, teria de pensar em primeiro lugar na sua pátria e na sua família, assim como devia procurar na China a esposa, para com ela manter o prestígio e as tradições que ele, como filho único, tinha deveres imperiosos de cumprir.
Kiang ouvia, e com desdém respondia:
— Isso será resolvido só por mim mesmo — e saía indiferente.
Uma noite em que Tung. protestando ligeira indisposição, se recolheu mais cedo, deixou-o em companhia de alguns amigos palestrando animadamente.
Era a primeira vez que ele tinha oportunidade de ficar apenas com jovens da sua idade e com eles conversar livremente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:58 am

Quando voltou para seus aposentos ia cabisbaixo e pensativo, pois na conversação que manteve com os amigos ficou ciente de que era, na essência, um ignorante.
Revoltou-se intimamente contra seu pai, que o tinha educado tão severamente, nos seus princípios rígidos, austeros.
Deitado, olhando para Tung que dormia calmamente, com rancor ele dizia baixo:
— Agora começa para mim uma nova existência e saberei impor minha vontade, custe o que custar.
Só altas horas da noite foi que conseguiu conciliar o sono, mesmo assim tendo sonhos alucinantes que o fizeram acordar muito cedo e mal-humorado.
Saiu subtilmente e foi sentar-se num banco distante, entregue novamente às suas inquietações.
Tung, ao acordar, ficou admirado de seu filho já ter saído sem o despertar.
Alarmado, ficou pensando que talvez ele tivesse vindo tarde, pois o deixara com diversos jovens e isso pela primeira vez.
No seu imenso desvelo pelo filho único, que adorava, ficou preocupado.
Saiu depressa para procurá-lo e indagar não só o motivo por que tinha se levantado tão cedo assim, como a hora exacta em que tinha voltado para o aposento.
Quando o encontrou, sozinho e afastado, com a fisionomia apreensiva, teve um sobressalto e, ligeiro, foi ao seu encontro.
O jovem não notou a aproximação de Tung, tão absorvido estava nas suas meditações.
Só quando o pai, depois de estar muito tempo sentado ao seu lado, bateu de leve no seu ombro, foi que ele ergueu a vista e encarou firmemente Tung, que aflito o olhava.
Então, rudemente foi dizendo:
— O que deseja, e por que me olhou assim tão assustado?
— Eu que pergunto o que você faz aqui tão cedo e por que o vejo com esse olhar revoltado...
Por quê? pergunto. Responda!
Kiang, indiferente, olhou o pai.
Depois, com ironia na voz e no olhar, respondeu rudemente:
— Não tenho nada e quero de uma vez para sempre adverti-lo de que estou farto dos seus desvelos e dos seus conselhos.
Estou já na idade de guiar-me por mim mesmo.
Quero agora que seja somente um bom e agradável companheiro de viagem.
Sei que é óptimo amigo, e que tudo tem feito para proporcionar-me uma vida verdadeiramente superior.
Reconheço a sua grande cultura e o seu invulgar talento.
Sei que será para mim o companheiro indispensável, portador não só de conhecimentos altamente valiosos, perante as finas sociedades, assim como de relações de amizade que serão para mim de muito valor.
Mas quero que compreenda que só deve dar conselhos quando eu os pedir.
Tung, olhos muito abertos, fitou o jovem filho.
Sentados no mesmo banco, quase em frente um do outro, ele podia ver nitidamente, pela expressão forte e firme de Kiang, que seria de agora em diante completamente diferente.
Não podia acreditar que aquele filho adorado fosse, embora tão jovem, quase um tirano, pois as suas palavras repassadas de ironia e rancor penetraram profundamente no seu coração de pai dedicado, ferindo-o cruelmente.
Queria responder com autoridade e firmeza, mas as suas palavras morriam antes de serem pronunciadas.
E nos seus olhos pequeninos as lágrimas afluíram, caindo mansamente, umas após outras.
Nesse instante doloroso de sua vida, o seu pensamento célere pousou na lembrança esmaecida de li...
Abaixou a fronte cansada e reviu comovido a sua fiel companheira agora tão distante.
Não pôde deixar de sentir arrependimento de a ter abandonado pela segunda vez, para seguir o filho que era a razão suprema do seu viver.
Tinha duplamente cometido um grande erro.
Devia ter ficado na China, procurado alcançar o perdão de Li e a ela dedicar todo o seu afecto e ternura.
Tudo isso perpassava pelo cérebro de Tung, qual um tufão terrível e arrasador.
Tinha as faces ardentes e as mãos apertadas fortemente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:58 am

Queria voltar ã calma habitual, porém, debalde, pois o seu pensamento perturbado vagava veloz, e ele era impotente para reprimir a sua fúria.
Enquanto Tung, cabisbaixo, estava entregue à sua dor, Kiang, indiferente, contemplava o mar, azul e belo, e também pelo seu cérebro corriam os mais loucos pensamentos.
Tendo passado a noite quase toda sem dormir, sentia agora um cansaço imenso e uma grande vontade de poder ficar só e repousar.
Vendo que seu pai continuava calado e sem erguer a cabeça, levantou-se e saiu devagar.
Muito tempo ficou Tung pensando.
Depois lentamente foi erguendo a cabeça e viu que estava só.
Recostou-se então melhor no banco sentiu um grande alívio.
A manhã estava linda, e uma leve viração vinda do mar trazia para ele um bem-estar agradável.
O céu muito azul, de um azul forte, tendo pequeninas e brancas nuvens que corriam ligeiras em direcções diferentes até se perderem por completo no infinito.
O mar estava calmo e Tung, sentado no banco, olhava indiferente a beleza majestosa da manhã.
Mais alguns dias e estaria terminada a viagem há tantos anos arquitectada por ele; estariam na célebre e bela cidade de Paris, tão sua conhecida através de suas inúmeras viagens.
Revia a cidade em todo o seu esplendor e grandeza.
Recordava-se dos amigos e senda satisfação em reencontrá-los.
Tantas vezes pensou nesse momento e na alegria de poder apresentar o seu único filho.
Muitas noites ficou em vigília, só pensando como poderia iniciar a apresentação de Kiang na culta cidade.
E agora, sozinho em plena viagem, via contristado o desmoronar de todos os seus castelos.
Eles ruíram tão inesperadamente que Tung não podia ainda acreditar que era uma realidade.
Mas passados alguns momentos, via que era necessário acreditar no seu desmoronar, assim como era preciso coragem para se erguer das suas ruínas.
Precisava coordenar melhor os seus pensamentos para encontrar uma solução certa na terrível emergência em que se encontrava.
Não podia deixar que seu filho, ainda tão jovem e inexperiente, ficasse entregue a si mesmo.
Teria autoridade necessária para repreendê-lo severamente e impor a sua vontade.
Passado o momento desagradável, sentia Tung, outra vez, forças para lutar com Kiang, que ele reconhecia ter um temperamento violento e rebelde.
— Hei-de fazê-lo ver o seu erro e de torná-lo novamente um filho amigo — consigo mesmo conversava.
Kiang é muito jovem e nessa idade tudo toma proporções incríveis.
Não posso, principalmente agora, abandoná-lo.
Terei de, pacientemente, procurar acalmá-lo, fazendo-o seguir os meus conselhos.
Mais animado, Tung levantou-se e foi à procura do filho, na esperança de conseguir dele a promessa de deixar que ele fosse por mais algum tempo seu guia e conselheiro...
***
Com passos vagarosos, Tung dirigiu-se ao seu aposento.
Com cuidado, abriu a porta e entrou.
Um raio luminoso de sol invadiu o grande quarto, onde num largo e confortável leito dormia Kiang.
Em pé, olhou silencioso o filho.
Analisou detalhadamente todos os traços do jovem adolescente, que para ele era tudo quanto sonhara e desejara na vida.
Viu que o filho seria em breve um belo tipo de fidalgo chinês, porém o que mais impressionava nele eram os olhos.
Pequenos como de todos os de sua raça, só divergindo na tonalidade que era de um verde azulado, sombreado por longas e sedosas pestanas.
Quando fitava qualquer pessoa, principalmente quando irritado, tinham os seus olhos uma expressão ameaçadora, como se irradiassem faíscas eléctricas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 26, 2021 10:58 am

A pele, levemente bronzeada, era de uma palidez rara, o que o tornava ainda mais sedutor.
Cabelos finos e lisos, cuidadosamente tratados, sendo que Kiang tinha por eles zelos especiais.
Vestido em trajes típicos chineses, mas de chineses da casta elevada, era digno do pincel de um mestre genial de pintura, que poderia tirar inigualáveis motivos para uma grande e bela tela.
Foi o que fez mais tarde Tung, procurando, na França e na Itália, renomados pintores para exigir deles a reprodução imorredoura, num grande quadro, do retrato do filho belo e adorado, na grandiosidade exuberante de sua mocidade.
Vestido à moda europeia, era também Kiang um jovem sedutor.
Tung pensou, em contemplação muda que fez com o filho adormecido à sua frente, e sentiu que era preciso empregar todas as suas energias para conter o caudal vertiginoso que vinha de Kiang, como o murmurar longínquo de possante rio que tende a desprender-se no abismo profundo.
Entristecido, pensou no que arquitectara durante longos anos, para fazer dele um chinês culto, viajado e, sobretudo, um baluarte na defesa do ideal sacrossanto que era o soerguimento da China, pobre e sofredora, apesar de seu passado cheio de heroísmo, apesar dos séculos e séculos martirizantes em que ela sempre sobreviveu dos seus escombros para a glória e a admiração dos outros povos, que a teriam sempre como exemplo para as gerações vindouras.
E ele, descendente de velha e tradicional família, desejava contribuir, não só com o seu quinhão de sacrifícios, como também com a dádiva do seu único filho, para a defesa desse pedaço imenso de terra que lhe tinha servido de berço.
Sentado em frente a Kiang, deixava que o seu pensamento corresse livremente enquanto o filho dormia placidamente.
Tudo em redor era luxuoso, pois Tung fez sempre questão de proporcionar ao filho o máximo que ele podia desejar.
Assim, logo ao iniciar a travessia, procurou dar a ele a sensação e conforto de uma viagem num grande e confortável navio.
Foi para ambos reservado o mais caro e belo aposento.
Agora, entregue à sua mágoa, vendo o filho rebelde, sentiu a profundidade de sua desdita e chorou convulsivamente.
O silêncio era impressionante, e pela janela aberta chegava mansamente o leve bater das ondas ao encontro do navio.
E ao fixar o olhar no pequeno pedaço do céu, tornou a se lembrar de Li e pelos seus olhos cheios de lágrimas surgiu outra vez a silhueta dela sentadinha no banco, tendo no regaço a linda avezita e ao alto uma pequenina janela igual à do navio, que deixava também a descoberto um recorte de céu azul.
E nas brumas do seu passado, surgiu a visão dolorida que desde muito vinha torturando sua alma inquieta.
Não pôde conter o pensamento na voragem impiedosa que o fazia sentir remorsos e vacilar timidamente ante a expectativa terrível do momento que lentamente se aproximava.
Momento que ele, Tung Fú, temia e sentia que era inevitável.
Desde alguns anos que a sua vida vinha sendo uma tortura, um cruciante calvário que ele subia muito devagar, tropeçando e se levantando para cair novamente, menos encorajado para seguir até o ponto final.
Sentado, continuou sem ânimo para acordar o filho, e com ele conversar severamente como tinha resolvido.
Quis deixar por um momento de pensar na atitude rebelde de Kiang, mas não conseguiu.
O seu cérebro trabalhou vertiginosamente, e ele meditou:
— É justo o meu sofrer, pois pratiquei, acobertado pelo meu prestígio e pela minha fortuna, um grande crime.
Estou imune perante os homens, mas constantemente julgado pela minha própria consciência, que é um juiz terrível e implacável...
Sabia que teria de passar por esta tortura, desde aquela fatídica noite em que levei Li para aprisioná-la no subterrâneo oculto, e depois fazê-la passar como morta.
Nunca pude esquecer essa noite, mas agora, depois que Kiang demonstrou o seu verdadeiro carácter, foi que senti mais fortemente a inutilidade do meu sacrifício.
Tinha certeza de que não encontraria no filho querido o apoio que iria necessitar.
Kiang seria para ele um tirano mais cruel do que fora para a sua bondosa e terna mãe.
Quando Li adoeceu, ele era uma criança; mesmo assim foi decidido na sua atitude.
E quando ele, Tung, não pudesse mais ocultar a terrível revelação, Kiang já estaria na posse completa do seu desenvolvimento.
Só ao pensar nesse momento, estremeceu apavorado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:07 am

Sentiu-se só e sem esperanças, e alucinado exclamou:
— Como poderei encontrar forças para enfrentara realidade dolorosa?
Apesar de profundo filósofo, não encontrou arrimo na doutrina magnífica e altamente interpretada por ele, cujas bases sólidas e arraigadas o tinham feito até então um forte.
Mas... ele agora não encontrava nesse momento, em que tanto sofria, o conforto ardentemente almejado.
Era um vencido... apertava as mãos e, apavorado, reconhecia que elas estavam para sempre inertes... já era total a dormência... e indeléveis no seu corpo surgiam as minúsculas manchas, reveladoras positivas da horripilante verdade.
Mais alguns meses talvez... depois a confissão inevitável... e gritou então muito alto:
— Kiang! — e caiu sem sentidos junto ao leito do filho.
O jovem acordou com o barulho da queda e, atordoado, viu seu pai lívido e prostrado no tapete.
Abaixou-se e tomou nos seus braços possantes o corpo inerte de Tung e com carinho depositou-o no mesmo leito onde estava repousando.
Depois, correu em busca de socorro.
Quando retornou, viu que seu pai continuava desacordado.
Ajoelhou-se junto ao leito e o chamou muitas vezes.
Ficou aliviado quando Tung abriu os olhos e o fitou demoradamente.
Aflito, perguntou:
— O que sente?
Tung nada respondeu e continuou a olhá-lo insistentemente.
O filho tomou as suas mãos e apertou-as com força.
Tung estremeceu e as retirou bruscamente.
Assim ficaram em silencio muito tempo até que Kiang se levantou e foi procurar a cadeira onde Tung esteve sentado longamente em meditação.
Ficou olhando com insistência o pai, que continuava deitado e silencioso.
Passados, porém, alguns instantes, o jovem, impaciente, tornou a perguntar:
— Mas, o que sente, meu pai?
Quero saber!...
Não pode ser devido às minhas palavras, pois deve compreender que eu teria o direito de pedir a minha liberdade.
Não sou mais o tímido menino que era guiado exclusivamente pela vontade de seu pai.
Creia que o admiro e o quero também bastante, creia que sinceramente desejo que seja ainda por algum tempo o meu guia e o meu conselheiro.
Porém sou por índole um liberto.
Tung nada respondeu.
Levantou-se e foi até perto do moço, e pondo as mãos sobre os seus ombros, disse em voz baixa:
— Sim, filho, por mais algum tempo, continuarei seu guia, e sempre que necessitar de conselhos pode me procurar — e saiu vagarosamente, deixando Kiang só.
*Normalmente corria a viagem desde o incidente passado com Tung e Kiang; e nem uma só palavra fora jamais pronunciada sobre o ocorrido.
Continuaram, como sempre, muito amigos e eram vistos constantemente juntos.
Porém, na intimidade, faltava aquele elo de confiança que os tinha ligado tão fortemente desde a infância até o momento em que Kiang exigiu a sua liberdade.
Tung, temeroso, deixava que seu filho agisse de acordo com o que desejava.
Procurava mesmo se esquivar propositadamente para que ele ficasse o mais livre possível.
Quando via Kiang em companhia dos seus recentes amigos, afastava-se e ia sentar-se de modo que pudesse observar todas as atitudes do filho.
Era impressionante a fisionomia de Tung ao olhar de longe Kiang.
Quem visse aquele pequeno chinês, de olhar compassivo e triste, não podia avaliar a tortura de sua alma sofredora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:07 am

Nunca mais perguntou a Kiang o que conversava com os amigos, e não o repreendeu jamais quando voltava altas horas da noite.
Só fazia observar e analisar todos os seus gestos e atitudes, como procurando sondar aquele despontar violento para as delícias da vida, e reconhecia que seu filho procuraria sorver, com ímpetos fortes e desorientados, todas as emoções que eram dadas a sentir aos homens do temperamento de Kiang.
Tinha certeza que ele iria buscar em todas as fontes de prazer, desde os mínimos detalhes até o auge supremo e alucinante da sensação máxima que poderia desejar.
Fechava os olhos e via Kiang pelo prisma claro e positivo em que ele se retractava, na realidade sincera do que seria o seu filho quando na posse integral de todos os seus actos e de todas as suas energias.
Baixava a cabeça grisalha e se entregava à verdade e à concepção real da certeza de que não poderia nunca conter a avalanche forte e impetuosa do carácter e do temperamento excepcionalmente raro do jovem.
Tentava Tung fazer planos para o futuro, porém, debalde...
Não era mais aquele homem decidido e intrépido, que tinha resoluções fáceis e sabia rapidamente resolver os seus intrincados problemas.
Reconhecia que só era forte quando a vida lhe proporcionava meios fáceis, quando ainda não tinha sido atingido por uma grande dor.
Até então a vida lhe tinha sido benévola, pois nascido na riqueza, e tendo vivido fartamente, nunca experimentou e nem teve oportunidade para enfrentar realmente um grande problema, e ter, então, certeza de que era capaz de resolvê-lo com coragem e destemor.
Muito jovem, Tung teve, certa ocasião, oportunidade de ver, numa das ruas da grande cidade de Cantão, um grupo numeroso de leprosos, que, qual um rebanho de pacientes ovelhas, se dirigiam para o lugar reservado àqueles infelizes e desgraçados seres atingidos pela moléstia medonha e repelente.
Foi casualmente e rápido esse encontro, mesmo assim ficou por longo tempo gravado na sua retina, e ele não mais podia esquecer o semblante horrível daqueles monstros disformes.
Tempos depois, já casado, percorrendo o vasto parque da sua rica habitação e, lembrando-se dos leprosos, não podia imaginar que, na sua própria casa, a sua esposa já era uma leprosa e que ele, mais tarde, seria também atingido pela moléstia traiçoeira e cruel.
Nesses momentos, pensava que só um caminho existia para quem sofria dessa doença — o suicídio; entretanto, agora que tinha certeza que era um leproso, lhe faltava a coragem para executar o que tão fácil julgava.
Comprimindo fortemente a cabeça, pensava:
— Mas como Li adquiriu esta moléstia?...
Creio que nunca viu um leproso...
Como foi, pois, atingida?
A minha deve ter vindo dela, que viveu muitos anos em plena união com todos.
Eram esses os pensamentos constantes de Tung, que vivia desde muito preso nesse penoso sofrer...
Deixou de ser para sempre o homem alegre, o filósofo convicto, para ser um mísero e desgraçado sofredor.
Desejava ardentemente encontrar uma solução para a sua torturada existência.
Porém, o que mais o amedrontava era a revelação imperiosa que teria um dia, não muito distante, de fazer ao seu filho.
Muitas e muitas vezes pensava qual seria a atitude de Kiang...
Talvez fosse melhor fazer logo a confissão, e depois voltar para junto de Li, na casa grande e silenciosa.
E assim, nesse constante penar, corriam morosamente os dias para ele, e aproximava-se o momento do término da longa viagem.
Entretanto, esses últimos dias tinham sido por demais compridos para o infeliz pai, que via constantemente o filho cercado de novos amigos, ouvindo atentamente a suas aventuras com uma expressão deveras impressionante, como querendo tirar das palavras dos companheiros a explicação cabal para o seu breve aprendizado, no sector da vida mundana, até então restrita para ele na austera sociedade da velha e tradicional cidade de Cantão e no círculo dos amigos de seu pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:07 am

Vivia observado minuciosamente por Tung, que não perdia mesmo de longe um só dos seus movimentos e via, contristado, que seria inútil o seu esforço para vencer aquela vertigem de emoções que vinham de Kiang, como o desabrochar imperioso da semente pequenina e ressequida atirada à terra fecunda, mas que despontaria breve e com vigor, no romper forte e altaneiro, verde e bela, com a força misteriosa que fazia remover sem esforços todos os obstáculos, e erguer bem alto os seus galhos para o céu, à procura da luz.
O jovem não podia conter essa onda de entusiasmo que o invadia diariamente, ao saber de novos pormenores, de revelações que o deixavam aturdido de curiosidade.
Para o seu temperamento impetuoso, essas revelações tinham um poder e uma influência tão alucinadora que o faziam ficar completamente transtornado, pois tinham sido feitas mui inesperadamente, sem o preparo conveniente que era necessário a um jovem educado austeramente como ele tinha sido.
E Tung, que a tudo observava, não podia deixar de reconhecer essa verdade insofismável.
Sentia grandemente, pois era seu desejo ser ele o desbravador dessas verdades ao filho, até então seu amigo inseparável.
Devia, pensava agora Tung, ter primeiro sondado o carácter de Kiang, para depois iniciar convenientemente esta viagem.
Reconhecia o erro grave que cometera tendo cedido, desde criança, a tudo quanto ele desejava, sem a menor restrição.
Auxiliou com sua complacência para que o temperamento forte de Kiang fosse gradativamente se firmando até torná-lo mais tarde um tirano.
E agora era demasiado tarde para tentar impedi-lo, ou mesmo tentar uma ligeira modificação.
Tinha de curvar-se submisso, e esperar resignado a recompensa da sua dedicação e do desmedido afecto.
Depois do incidente havido entre os dois, raramente o jovem procurava Tung para pedir a sua opinião.
E quando isso acontecia, era visível e constrangimento de ambos.
Desapareceu por completo aquele elo de intimidade que os ligava tão estreitamente.
Tung limitava-se a responder friamente as perguntas banais do filho.
E Kiang simplesmente fazia poucas perguntas, despedindo-se logo para só revê-lo à noite, isso mesmo muito tarde.
Tung esperava pacientemente que ele o procurasse para juntos resolverem o programa da estadia de ambos em Paris, e também como deviam ser iniciados os seus estudos na grande capital francesa.
Antes de saírem da China, quanto existia troca de opiniões entre eles, o filho demonstrou mais de uma vez o desejo de estudar na França, seguindo o Curso de Direito e Filosofia e após o seu termino iniciar suas viagens através do mundo.
Revelava a Tung o seu ardente anseio de conhecer outras terras e outros costumes, e ter oportunidades de conviver com grandes diplomatas, pintores e escultores célebres.
Desejava conhecer a intimidade das grandes personalidades...
Tung ria satisfeito quando ele demonstrava e descrevia entusiasmado os seus projectos futuros, e depois prometia-lhe a realização de todos os seus desejos.
Juntos combinaram a viagem e juntos acertaram que logo que chegassem a Paris, o moço iniciaria os estudos, começando por contratar um professor capaz de orientá-lo e prepará-lo, para que pudesse, o mais depressa possível, entrar e cursar o tradicional Instituto que Kiang desejava.
Tudo bem planeado, iniciaram a travessia... mas sucedeu o inevitável...
Kiang, logo no primeiro encontro com os novos amigos, e vendo as primeiras grandes cidades, foi tomado de um entusiasmo tão intenso, que esqueceu rapidamente tudo quanto tinha planeado com o seu velho e bondoso pai.
Foi rápido o desmoronar de tudo quanto tinha arquitectado há tantos anos...
Tung sentia um desfalecimento completo, pois via em poucos dias que baldados tinham sido os esforços para fazer do filho único o homem forte e excepcional que ele idealizava.
Sabia que Kiang era inteligente, e que seria fácil galgar as altas esferas sociais, assim como seriam fáceis para ele os estudos.
Só o que o deixava acabrunhado era a revelação estonteante da independência que Kiang demonstrava.
Pensava Tung que o filho seria sempre obediente às suas ordens, tudo fazendo ouvindo primeiro o seu conselho, mas ele logo o decepcionou rudemente, dizendo e demonstrando que era independente e seria sempre senhor absoluto de sua vontade.
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 2 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:07 am

Compreendeu a inutilidade de lutar com o filho, cedeu e ficou entregue aos seus caprichos.
Talvez se Tung não estivesse atacado da terrível moléstia, teria forças para enfrentar o despotismo do filho... mas ele era um vencido... um infeliz.
Certa tarde estava Tung sozinho, sentado, olhos fechados, quando sentiu que mãos fortes batiam nos seus ombros.
Abriu rapidamente os olhos e deparou com Kiang sorridente ao seu lado.
Era uma tarde cinzenta e amena, o céu de um azul forte e sem o enfeite de uma só nuvem, e do mar, também azul e calmo, chegava de leve o barulho das ondas.
Nenhum passageiro estava admirando a tarde, que era deveras triste e sombria.
Sentindo a mão de Kiang pousar-lhe no ombro, ele ficou surpreso, pois há muitos dias que o seu filho não o procurava.
Foi o jovem, quem primeiro falou:
Meu pai, desejo conversar amigavelmente com você, quero organizar os planos para a nossa estadia em Paris.
Faltam poucos dias e ainda não resolvemos como devemos fazer logo que tenhamos chegado.
Tung respondeu, calmamente:
— Estava esperando que viesse me procurar para dizer o que deseja.
Estou pronto para satisfazê-lo em tudo.
Naturalmente já tem os seus planos e pode contar com o meu auxílio em tudo quanto for necessário.
Kiang olhou insistentemente o pai, e no rosto pequeno e impassível de Tung não descobriu as torturas que ele tinha gravadas na sua alma.
Ele continuou o exame como procurando encontrar no olhar do pai qualquer início de revolta, mas...
Tung nada demonstrou e o moço encontrou, na sua impassibilidade, uma barreira forte, que não deixou margem para os seus interrogatórios.
Calado ficou Kiang algum tempo, fitando demoradamente seu pai, que parecia não ver os olhares insistentes do filho, procurando fixar seus olhos no horizonte longínquo, evitando desse modo encarar o filho sentado bem junto dele.
Aproveitava Kiang para analisá-lo melhor, sondando com o seu olhar forte e persistente a fisionomia triste e abatida de Tung.
Não podia deixar de reconhecer, depois de longo exame, que seu pai estava seriamente doente, e que no seu rosto pálido se via nitidamente que ele encobria uma profunda e dolorida mágoa.
Tentou mais uma vez interrogá-lo, mas foi baldado o seu esforço.
Tung respondia delicadamente as perguntas, para voltar depois ao silêncio impressionante que vinha mantendo há muitos dias.
Foi preciso que o rapaz batesse com força no seu ombro para que ele desse mais atenção às suas palavras, agora repassadas de revolta.
— Por que você não responde com mais atenção o que pergunto?
Quero providenciar tudo de acordo com a sua vontade...
Tung, com um ligeiro movimento, tentou afastar a mão de Kiang pousada ainda no seu ombro, e depois, devagar, falou:
— Estou ouvindo com prazer e atenção as suas palavras, e estou de acordo com os seus planos.
Prometo providenciar tudo logo que chegarmos a Paris.
Pode contar com a minha aprovação.
Kiang se levantou e ficou em pé defronte a Tung, que voltou a fitar a linha azulada do horizonte.
O seu olhar era parado, e na sua córnea brilhante o moço parecia ver que ele tinha gravado um mundo de reminiscências, pois não era possível que naquele olhar tão repassado de limpidez, ele não reconhecesse que seu pai havia deixado de ser o homem feliz, rico, culto e viajado para ser um homem sofredor, sucumbido pela dor de uma decepção tremenda, de uma saudade torturante e de um arrependimento sincero.
Kiang era ainda muito jovem para poder analisar e sentir todo o peso do infortúnio paterno.
Ele vivia no presente a fase esplendorosa da transição magnífica e exuberante em que o menino alça os primeiros voos para as delícias e os encantos da vida até então desconhecidas; e nesses voos altaneiros ele pensava que era o senhor de todas as coisas, que é o vitorioso feliz de todos os empreendimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:08 am

Então para um temperamento fortemente emotivo com o dele, não havia barreiras que poderiam impedi-lo de ser o idealista impetuoso e destemido que desabrochava violentamente para a vida e para o amor...
Fitando o velho pai, sentado, de olhos tristes em contemplação silenciosa e resignada, em vez de sentir piedade e ternura, ficou exasperado e revoltado com o indiferentismo com que ele ouvia as suas pretensões.
Batendo com força os pés, Kiang exclamou com ímpeto:
— Exijo que explique por que o vejo agora sempre com esse olhar parado e essa fisionomia triste!...
Responda!... Quero imediatamente saber o que se passa!...
Será porque ainda se lembra e sente saudade daquela mulher que devia estar para sempre morta e esquecida?
Daquela mulher doente e miserável, que nos deixou uma terrível nódoa difícil de ser apagada?
Não, meu pai!...
Não posso crer que, inteligente e forte como é, possa ficar triste e abatido como o vejo, por causa de uma insignificante criatura digna somente do nosso desprezo e do nosso completo esquecimento...
Vendo e ouvindo Kiang em pé, falando alto, Tung aos poucos for erguendo a cabeça e, à proporção que o filho pronunciava as palavras duras e cruéis, com entonação ríspida e violenta, como num desafio à sua atitude calma e pacífica, se levantou também e, destemeroso, ficou em pé na frente do filho rebelde que, surpreso, notou a transformação operada subitamente em seu pai, pois o rosto, até então triste e pálido, se transformou rapidamente em contracções fortes e rugas profundas, dando ao mesmo, aspecto feroz e ameaçador, e o seu olhar bondoso e límpido, Kiang, amedrontado, viu transformar-se num olhar alucinado como de um possesso em iras difíceis de serem contidas...
Tung se elevou nas pontas dos pés como querendo se avantajar para melhor castigar o filho insolente, que não respeitava a sua dor e o seu infortúnio.
Levantou a mão pequenina e nervosa para fazer Kiang calar, e reverente respeitar aquela terna e delicada mulher que lhe deu a vida e que o embalou, cantando suavemente durante noites e noites seguidas nos seus braços frágeis e amigos, que acompanhou deslumbrada e feliz os seus incertos passinhos no salões vastos e luxuosos da rica residência, nas margens plácidas do lendário Rio Cantão, agora tão distante...
Quando ia bater fortemente no rosto largo e expressivo do jovem, sentiu como que uma leve pressão de macia mão suster o seu gesto e surgiu nitidamente na sua frente o vulto de Li, para mais uma vez proteger o seu filho...
Tung deixou cair pesadamente a mão e, quase correndo, saiu em direcção ao seu aposento.
Kiang ficou ainda algum tempo atordoado, sem poder se afastar do lugar onde mais uma vez feriu dolorosamente seu pai.
Só depois de passado o abalo e o forte estremecimento que sentiu quando viu Tung erguer a mão para castigá-lo severamente, foi que deu demonstração da sua revolta e, como fez seu pai, saiu também correndo na mesma direcção.
Ninguém teve oportunidade de assistir ao que se passou entre ambos...
Tudo era silêncio... e o navio continuava normalmente a viagem...
A tarde estava prestes a findar, já era bem escuro o céu, quando Tung, apressado, saiu para o aposento, empurrou bruscamente a porta e, cambaleando, caiu sobre o leito, soluçando convulsivamente.
Kiang entrou logo depois e sentou-se numa cadeira ao lado, calado e indiferente.
Não podia compreender a transformação de seu pai até bem pouco tempo forte e corajoso, alegre e um perfeito fidalgo...
Achava que ele devia estar muito doente, pois só uma grave moléstia é que poderia transformá-lo tão sensivelmente.
Deixou que ele chorasse livremente e quando não ouviu mais os soluços foi que, com delicadeza, falou:
— Meu pai!...
Não houve resposta e ele outra vez o chamou:
— Meu pai!...
Tung se voltou e, com os olhos ainda nublados de lágrimas, respondeu:
— O que deseja?
— Quero saber por que está tão nervoso e sensível...
Sente-se doente?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:08 am

Tung estremeceu imperceptivelmente e disse:
— Não venho me sentindo bem há muito tempo, e agora, com a viagem, me parece que o meu mal se acentuou...
— Por que, então, não me disse logo que estava doente?
— Porque tínhamos de fazer esta viagem há muito projectada.
Espero, logo que chegue em Paris e que esteja convenientemente ambientado, voltar para a China e de lá não me afastar mais.
— Como? Então pretende me deixar?...
Sempre esperei tê-lo ao meu lado como guia e conselheiro!
— Sim — respondeu Tung —, eu também pensava que era necessária a minha companhia, porém há dias você me fez ciente de que era desnecessária a minha presença.
Assim sendo, pretendo apresentá-lo a amigos ilustres e eminentes que tenho em Paris, acomodá-lo com todo o conforto, enfim, providenciar para que a sua estadia seja a melhor possível.
Que possa viver sem preocupações, e que tenha tudo quanto desejar, de acordo com a minha fortuna e o nome fidalgo que possui.
Só assim poderei voltar tranquilo para a minha velha e querida China, no meu amado Cantão.
Na minha casa grande e silenciosa, cheia de imorredouras reminiscências, esperarei pacientemente a sua volta...
Sentir-me-ei feliz, rodeado de tudo quanto amei...
Encontrarei distracção revendo minhas relíquias preciosas, pois em cada uma delas relembrarei episódios saudosos.
Cada uma delas terá para mim uma lenda, uma saudade que me fará por alguns instantes voltar ao passado...
Bendigo agora ter coleccionado aquelas relíquias, pois elas me darão a força e o lenitivo para enfrentar a minha velhice só e sem esperança.
Na minha casa erma e triste pretendo viver os meus últimos anos...
Tenho certeza que a minha vida não será vazia, pois tive a sábia previdência, quando jovem e feliz, de angariar tudo quanto era belo, bom e útil, e agora terei a ventura de encontrar nesses objectos e adornos a distracção para os meus dias cansados de velho e solitário...
Terei ainda a ventura de poder viver no meu torrão querido, no meu Cantão amado, de poder admirar a paisagem sempre sedutora de minha terra, de ver meu lendário rio, largo e tranquilo, reflectindo nas suas águas límpidas, o azul do céu incomparável...
Quando o silêncio for por demais impressionante descerei até às margens do meu rio e, sentado nas suas areias alvas e finas, ouvirei o cântico sonoro e alegre dos remadores fortes, nos seus barcos típicos, levando os seus produtos, frutos dadivosos de um trabalho rude e penoso...
Ouvirei o trinado dos pássaros alegres...
Enfim, a música da própria natureza, no sussurro do vento embalando as folhagens das árvores...
Terei a companhia amiga dos meus servidores leais...
E se ainda sentir nostalgia, irei à casa grande de pedras, meu último reduto para a espera da partida definitiva...
Tung falou tão apressado que não deu oportunidade de Kiang interrompê-lo.
Depois, sensivelmente cansado, ficou calado por muito tempo, sem ser perturbado pelo filho que mantinha a mesma posição, sentado e olhando fixamente o pai.
Porém, passados alguns momentos, foi o moço quem falou:
— Então é inevitável a sua volta?
— Sim — foi a resposta de Tung.
Tenho confiança que você poderá viver em Paris muito bem sem a minha presença, e quando tiver de iniciar as suas viagens, já terá adquirido o necessário conhecimento, e para que, sozinho e mais livremente, possa percorrer todos os países que desejar...
Kiang sentiu que era inútil tentar fazer reviver a antiga intimidade que existia entre eles; seu pai era muito sensível para poder esquecer rapidamente uma decepção sofrida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:08 am

O rapaz compreendeu que perdera o melhor e o mais sábio dos amigos, mas, dotado de um temperamento muito forte e de um desmedido orgulho, nem mesmo para com o seu bondoso pai teve o gesto humilde e complacente de pedir perdão pela sua atitude irreverente, pelas palavras cheias de desdém, pelo seu imperdoável indiferentismo à dor imensa em que vivia imerso seu pai, assim como pelo infortúnio de sua mãe, que ele sabia, vivia prisioneira por sua causa, num frio e oculto subterrâneo...
Kiang era um desalmado e perverso.
Limitou-se em dizer a Tung que seria capaz, conforme ele dizia, de viver independente, precisando somente que ele lhe desse o necessário para enfrentar folgadamente a vida. Tung sentou-se e com voz pausada respondeu:
— Já lhe disse e prometo que terá tudo quanto desejar.
Agora, peço que me deixe só, preciso descansar, estou fatigado e quero ficar completamente isolado.
Kiang saiu imediatamente e foi sentar-se no mesmo banco onde estivera há poucos instantes conversando com o seu progenitor.
Cabisbaixo, entregue ao seus pensamentos, ficou muito tempo, até que, com um rápido movimento, levantou-se e foi recostar-se a uma coluna, olhando o mar calmo, perdido no turbilhão das suas ideias confusas.
Queria poder coordenar melhor os planos para o futuro que se apresentava cheio de surpresas, pois calculava o muito que teria de ver e admirar na grande capital onde iria ficar por longo tempo.
Pelo que soubera por seus recentes amigos, já sentia uma curiosidade incrível de poder ver de perto tudo quanto lhe fora descrito por eles, já iniciados na trama tentadora da sedutora cidade.
No adolescente inexperiente, que desabrocha bruscamente para os encantos e atracções da vida mundana, era natural a ansiedade que sentia de poder logo experimentar as sensações, até então desconhecidas, principalmente quando ouviu de jovens ricos e pervertidos, a descrição minuciosa de todos os segredos até então nunca desvendados...
Kiang se revoltava com a educação que recebeu de seu pai, que jamais o fez sabedor dessas coisas, que ele agora desejava ardentemente conhecer.
Nas conversações que manteve com os jovens companheiros de viagens, sentiu-se de tal maneira humilhado com a sua ignorância, atribuída unicamente à educação austera que recebera de Tung, que sentiu grande alívio quando ele lhe participou que não o acompanharia mais.
— Assim — pensava ele —, ficarei senhor da minha vontade e saberei em pouco tempo tudo quanto desejo, talvez mais do que os meus amigos, para isso tenho dinheiro bastante.
Quero conhecer tudo quanto for possível da vida, nada me poderá deter, sou livre, e todos os obstáculos que por ventura surjam à minha frente, serão derrubados com a força da minha vontade e do meu poder...
A noite despontava lentamente e, já no céu quase todo escuro, apareciam estrelas brilhantes, clareando-o com o brilho intenso de suas luzes...
Já se ouvia o ruído de passos apressados dos passageiros que se preparavam para a hora da refeição.
Kiang então notou que tinha ficado muito tempo na mesma posição, absorvido no intrincado dos seus sonhos...
Saiu vagarosamente em direcção do seu aposento, para também ultimar o seu traje e voltar.
Quando abriu devagar a porta, sobressaltou-se não vendo Tung no mesmo.
Quis ainda recuar e voltar à sua procura, mas se lembrou do que ocorrera à tarde e desistiu.
É conveniente evitar o encontro para que a cena não se repita.
Já resolvi o que devo fazer e nada mais me deterá — meditou.
Cuidadosamente se vestiu, e, pronto, procurou o grande espelho para ver se estava correto o seu traje, e foi com satisfação que constatou que era na realidade um belo jovem.
Elegantemente trajado, com os cabelos negros e sedosos bem penteados, os olhos de uma tonalidade rara, de olhar sedutor e enérgico, erecto na atitude arrogante, Kiang era um magnífico e raro tipo de chinês.
Contente, saiu para logo encontrar os amigos que estavam à sua espera.
Foi recebido com demonstrações entusiásticas, devido à sua esplêndida aparência.
Depois, todos reunidos, conversando animadamente, se dirigiram ao salão donde já vinham os acordes de uma orquestra pronta para deliciá-los com músicas seleccionadas e belas até altas horas da noite.
Estava prestes a findar a viagem, e eles queriam aproveitar da melhor forma possível esses últimos dias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:08 am

Tinham organizado diversos programas de divertimentos, todos repletos de interessantes atracções, para preencher todos os dias restantes.
Finda a refeição, juntos ainda foram para um recanto do salão, onde, bebendo e ouvindo música, cada um contava uma das suas aventuras românticas passadas em diversas cidades do mundo, pois todos eles eram jovens ricos, viajados e pertencentes a famílias nobres.
Vinham de uma viagem à China, país até então desconhecido de todos, e voltavam maravilhados com o que viram e com o encanto e pureza da mulher chinesa.
Kiang, envergonhado, pois era o único entre eles que nada tinha para contar, nem uma só conquista, nem uma só viagem, não conhecia outra cidade além do seu Cantão.
Era também o mais jovem e todos prometiam, logo que chegassem a Paris, proporcionar a ele momentos alegres com noitadas boémias, onde ele poderia iniciar com êxito a sua entrada nos círculos elegantes da sociedade francesa.
— Portanto, não fique decepcionado, pois brevemente estará engolfado no turbilhão alucinante da fascinante capital, e preso pelos seus tentáculos gigantes — diziam rindo os jovens...
Ao longe, Tung via o filho elegantemente vestido entre os amigos, rindo alto, bebendo, demonstrando toda a alegria que transbordava de sua alma...
No salão fartamente iluminado, todos demonstravam satisfação pelo término da viagem, já tão demorada.
Poucos dias faltavam e era com alegria que todos desejavam chegar, apesar de a viagem ter sido divertida e interessante.
Muito tarde foi que Kiang voltou para o quarto depois de uma noite de prazer.
Tung viu quando ele entrou e logo mais ouviu o seu ressonar tranquilo, porem ele não pôde conciliar o sono; passou todo o resto da noite pensando como deveria fazer logo que chegasse a Paris.
Só pela manhã, quando o Sol já aparecia no horizonte além, foi que ele, cansado, conseguiu dormir, mesmo assim para sonhar e acordar rapidamente, assustado e trémulo.
Mas olhando para o leito do filho viu que ele ainda não tinha despertado.
Continuava a dormir calmamente... feliz... muito feliz...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:08 am

V — Importantes reencontros em Paris
Finalmente, depois de muitos dias de viagem, chegaram a Paris.
Tung, exausto, abatido e doente.
Kiang, forte, alegre e cheio de esperanças, tendo na mente exaltada os mais loucos pensamentos.
Já bastante conhecedor da grande capital, foi com desembaraço que Tung deu os primeiros passos para a instalação confortável do filho.
Não deixou de causar admiração ao jovem a facilidade com que seu pai tudo resolvia, como um perfeito conhecedor de todos os costumes franceses, assim como lhe surpreendeu ver a grande admiração e respeito com que ele era recebido nas mais cultas e renomadas Sociedades e Institutos célebres.
Kiang, ao seu lado, ouvia atento Tung falar como se fosse, na realidade, um autêntico francês.
Eram inúmeros os convites que chegavam para que ele concedesse entrevistas, assim como pedidos insistentes para que realizasse conferências, principalmente sobre a velha civilização chinesa, de que ele era abalizado conhecedor.
Os dias corriam velozmente, pois eram tantos os assuntos a resolver que não deixavam nem um instante de folga para o descanso necessário; só mesmo à noite é que podiam repousar.
O moço, junto ao progenitor, sentia profundamente quanto era necessário ainda estudar, não para se igualar à cultura imensa e profunda de Tung, mas poder ao menos aproximar-se.
Estava constantemente pedindo a ele que o ensinasse, porque pouco conhecia do idioma francês e sentia grande dificuldade, temendo sair só e não querendo pedir aos amigos.
Queria parecer a eles que era realmente instruído.
Tung continuava a tratá-lo com toda a atenção, porém sem aquela demonstração de afecto com que ele o tratava desde criança.
Atendia a todos os seus pedidos, e queria que ele manifestasse com sinceridade o que desejava.
— Quero fazer — dizia Tung — tudo conforme a sua vontade, pode expor os seus planos...
Kiang recusou diversos convites dos amigos, alegando não poder sair, pois estava atarefado com a sua instalação e precisava urgentemente começar a estudar, porém prometia breve procurá-los, e então, sim, poderiam juntos sair para os passeios combinados.
Tung ouvia Kiang desculpar-se perante os companheiros, e sorria, admirado do poder de dissimulação do filho que, assim fazendo, dava tempo para que pudesse ambientar-se melhor e então aparecer com mais desembaraço perante os amigos.
Convidou diversas vezes seu pai, para sair, no que foi atendido, indo a todos os lugares que ele queria, a diversos divertimentos e visitas, sendo que o rapaz cada vez mais se surpreendia com a facilidade de Tung; quer visitando personalidades eminentes, quer entrando nos mais requintados salões, ele não sentia a menor dificuldade.
Ele era, na realidade, um perfeito fidalgo.
As suas maneiras distintas e seu poder de atracção pessoal eram deveras impressionantes.
Tudo nele era correto, desde o trajar impecável até o porte distinto e simples.
Então, quando conversava, trazia todos presos à magia das suas palavras.
Conhecedor abalizado de todos os assuntos, era um prazer ouvir as descrições feitas por ele, principalmente das suas viagens aos pontos mais exóticos e afastados.
Em tudo ele demonstrava uma cultura invulgar; mas quando falava sobre a China, ele se transformava completamente, como querendo que as suas palavras pudessem transmitir o mais claro possível todo o esplendor, toda a grandeza e todo o valor da pátria imensa, salpicada das mais positivas provas de heroísmo dos seus filhos dilectos e abnegados.
Tung sabia contar, repassado do mais entranhado entusiasmo, toda a história da China, como a patriarca venerável de todas as nações do mundo.
Sentia-se, ouvindo as suas palavras empolgantes, o contágio do seu entusiasmo.
Convidado por uma renomada instituição literária para fazer uma conferência no salão do tradicional centro de cultura, ele quis recusar, no que foi impedido por Kiang, que assim fazia não por admirar o valor real de seu pai, mas por vaidade de poder aparecer como o filho de um homem tão culto e admirado.
Tung compreendeu a atitude do filho, e mais uma vez, para satisfazê-lo e protegê-lo, acedeu ao atencioso convite.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 27, 2021 11:09 am

Foi uma noite de gala a recepção ao ilustre chinês, que com a sua presença honrava a sociedade francesa, proporcionando à mesma momentos de incomparável beleza, ouvindo as suas palavras repassadas do mais requintado encanto e do mais profundo valor.
A satisfação de Kiang chegou ao apogeu quando, em companhia do pai, penetrou no austero e tradicional Instituto, sendo ambos recebidos com as mais tocantes provas de entusiasmo e veneração pela culta e fidalga assistência que se comprimia para ouvir mais uma vez as palavras do chinês talentoso que os distinguia com a sua presença cativante e altamente honrosa.
No salão iluminado e florido, ao centro, numa grande e antiga cadeira, Tung tomou assento, para dar início à sua palestra.
Porém, antes de começar, pediu permissão para, ousadamente, num capricho de pai, apresentar a todos os amigos e admiradores o seu único filho, que vinha da China distante, haurir nas fontes incomparáveis da civilização francesa, todo o esplendor e todo o valor da sua cultura imensa e admirável.
A esses amigos bondosos que o recebiam com tão gratas demonstrações de benevolência, tinha, no momento, a suprema coragem de apresentar seu filho Kiang Fú.
Levantando-se e tomando Kiang pela mão, da cadeira distante onde estava sentado, o trouxe para junto dele.
Uma grande e prolongada salva de palmas reboou, quando Tung, em pé, apresentou Kiang, pálido e nervoso...
Enquanto pai e filho recebiam no aristocrático salão da capital francesa os mais efusivos aplausos da assistência selecta, que os recebia nesse momento inolvidável, em que Tung, ao lado do jovem, era aplaudido com delírio, ele, comovido, deixou que seu pensamento pairasse muito além, num pequenino pedaço do seu Cantão distante, numa sombria casa de pedras, onde entreviu, como num sonho, o vulto delicado de uma linda chinesa, pequenina e frágil, qual uma preciosa estatueta de inestimável valor, sentada silenciosa numa húmida cela, tendo unicamente para consolo da sua solidão o estreito vão de uma minúscula janela, onde ela podia mirar um pedacinho do céu azul...
Era, entretanto, essa mulher, a bondosa companheira dos seus dias felizes, da mocidade longínqua, e a mãe admirável e terna do seu filho adorado...
Foi essa mesma pequenina e frágil mulher chinesa, vislumbrada agora nas brumas da sua sentida recordação, que lhe proporcionou os momentos mais felizes da sua vida, dando-lhe a satisfação de conhecer todas as emoções e todos os êxtases que um homem pode desejar de mais sublime para o prazer de seu ser, sempre insatisfeito e egoísta.
Era essa mulher que ele agora entrevia, ofuscado pelas múltiplas luzes do salão parisiense, a mesma que ele e seu filho, como recompensa de tudo quanto de bom receberam dela, enclausuraram sem piedade, para depois fazê-la passar como morta.
Mas ela ressurgia sempre na consciência de ambos, como um dardo penetrante, para fazê-los reconhecer o erro tremendo que cometeram.
Para fazê-los sentir quanto foram ingratos, sem nunca proferir uma só palavra de revolta, sem um só gesto de protesto, Li fez com que ele, Tung, nunca mais pudesse apagar da sua mente a hediondez do ato que praticara.
Assim seria sempre para ele um recapitular constante dessa passagem horrível da sua atribulada existência.
Mesmo tentando, num esforço inaudito, seria debalde conseguir esquecer essa visão que o torturava constantemente, pois, jamais poderia apagar da sua vida essa mancha escura que ele voluntariamente deixou cair nas páginas do livro da sua existência.
Tinha gravado, com letras incandescentes no seu coração, a história de Li.
Quando terminaram os últimos aplausos, Kiang voltou para o mesmo lugar e Tung deu início à palestra, debaixo do mais absoluto silêncio.
Todos atentos, ouvindo-lhe as palavras sábias e ricas de expressões, não podiam imaginar que o seu coração nesse instante estava profundamente ferido.
Na impassibilidade do seu rosto e do seu olhar, ninguém descobriria um só traço que demonstrasse as torturas cruéis em que vivia imerso.
Só o seu filho é que, de longe, num exame minucioso, compreendia o esforço supremo que ele fazia para ocultar as mágoas e as dores que sofria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:20 am

Kiang ainda ignorava que seu pai estava doente, e não sabia que ele, não muito depois, teria de lhe fazer a mais terrível das revelações...
Quem visse Tung, falando a uma assistência tão fina e elegante, não podia imaginar que esse homem forte já tinha sido atingido pela mais tremenda das moléstias, que o faria, não muito longe, ser repelido com horror por todos, que seria esquecido totalmente, que seria banido como um ser repelente...
Ele, Tung, compreendia isso e pelo muito que ainda queria ao filho, desejava aproveitar os derradeiros dias em que podia disfarçar a sua desdita, e dar a ele o último testemunho da sua dedicação; não só os anos seguidos em que acumulou uma fortuna sólida para ele, como também se esforçou para galgar todos os degraus da fama e do prestígio, que, deixando de aureolar o seu nome, pudesse passar a fulgurar na fronte de Kiang.
Por isso foi que acedeu ao honroso convite para fazer a conferência que, no momento, iniciava, calculando de antemão a possibilidade de poder, como fez, apresentar Kiang à sociedade francesa, reunida para ouvir a conferência tão ansiosamente aguardada.
Se no rosto calmo de Tung não se descobria nada que denotasse o quanto sofria, o mesmo se dava com Kiang, sentado ao longe, atento, ouvindo as palavras de seu pai; entretanto, distante estava da realidade de ouvir o que ele dizia, pois o seu pensamento vagava no mundo de cogitações tão confusas que ele não podia facilmente detê-lo.
Só depois que chegaram foi que ele viu claramente quanto Tung era respeitado e como era grande o seu talento, e a facilidade com que sabia se portar num meio tão diferente do que habitualmente frequentava.
Quem tivesse oportunidade de ver Tung, vestido com os tradicionais trajes chineses, percorrendo a grande casa estilo mongol, nas margens tranquilas do rio Cantão, não podia deixar de surpreender-se vendo-o depois vestido elegantemente à maneira europeia, falando desenvolto o mais perfeito francês.
Tão marcante era essa metamorfose que até ao próprio filho causava verdadeira e impressionante surpresa. Kiang só agora compreendeu quanto errara ao dizer rudemente ao seu pai que não precisava da sua companhia e dos seus conselhos.
Mediu o quanto lhe seria vantajoso tê-lo ao seu lado, facilitando-lhe o caminho para que pudesse, com mais rapidez, galgar as altas esferas sociais tão ardentemente almejadas por ele.
Sabia que seria inútil tentar recobrar a confiança dele.
Ele o tinha magoado tão fortemente, que seria baldada uma tentativa para fazê-lo esquecer.
Devia procurar, o mais depressa possível, que ele lhe facilitasse todos os meios necessários para que, depois de sua volta, pudesse com mais desembaraço se movimentar sozinho numa sociedade tão oposta à que estava acostumado a frequentar.
Quando Tung terminou a conferência, foi rodeado de inúmeras pessoas que, calorosamente, o foram cumprimentar e agradecer pelos momentos de imenso prazer que lhes proporcionara, dando-lhe o ensejo de ouvir a palavra ponderada e sábia de um grande filósofo e historiador eminente.
Cortesmente recebia a todos e apresentava pessoalmente seu jovem e único filho Kiang, que, impecável, retribuía as saudações, esforçando-se para falar o mais correto possível.
Entretidos, conversavam com os presentes, quando Tung sentiu que braços fortes o apertavam de surpresa.
Voltou-se imediatamente e deparou com um chinês já idoso que o abraçava comovido.
Foi um momento de tão grande satisfação para ambos, que ficaram esquecidos de onde estavam, falando o intrincado dialecto mongol, como se estivessem no próprio rincão querido.
Todos os presentes, silenciosos, contemplavam aquela efusão de alegria dos dois velhos amigos.
Só depois de passados os primeiros momentos foi que se lembraram de onde estavam e, sorridentes, se voltaram para os convidados, pedindo desculpas.
Notou Tung que o amigo não estava só, pois ao seu lado uma linda chinesinha contemplava os dois.
Foi quando o velho chinês a tomou pela mão e trouxe-a para junto de Tung, dizendo:
— Apresento-lhe a minha filha Mei-ling, que quando a viu pela última vez era ainda uma pequenina criança; hoje está quase moça.
Tung tomou as mãos da formosa jovem e carinhosamente a cumprimentou, para logo afastá-la bruscamente, movimento este que não deixou de ser notado pelo amigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:27 am

Imediatamente Tung apresentou o seu moço, dizendo também:
— Agora quem vai fazer a surpresa sou eu — este é meu filho Kiang.
Kiang aproximou-se e cordialmente cumprimentou o velho chinês, que não deixou de admirar o belo jovem, filho do seu antigo companheiro.
Depois fez a apresentação de Kiang a Mei-ling.
Parados em frente um do outro, sem dizer uma só palavra, ficaram os dois contemplando-se mutuamente.
Mei-ling admirou o porte elegante do rapaz e o modo distinto com que ele a cumprimentou, igual ao de um autêntico parisiense, porém, Kiang, ao ser apresentado à jovem chinesa, sentiu inopinadamente uma atracção tão violenta, que com esforço conseguiu manter-se correctamente, não deixando transparecer todo o entusiasmo que lhe causou a aproximação inesperada.
Era realmente Mei-ling encantadora, na radiosidade primaveril dos seus quinze anos.
De porte pequenino, porém gracioso e leve, qual delicada libélula que, liberta de estreito casulo, tenta alçar os primeiros voos em busca da liberdade, já atraída pelo perfume inebriante de sedutoras flores.
Assim, Mei-ling, mimosa florzinha transportada da China distante para a entontecedora capital francesa, era para Kiang, também no despertar violento da vida, uma tentação irresistível.
Mudo, analisa meticulosamente a beleza impressionante da chinesinha que, embaraçada, estava parada junto dele.
Reconheceu que ela era um verdadeiro tipo de beleza.
Tudo em Meiling era perfeito, porém o que mais o impressionou foram os seu olhos oblíquos, desmesuradamente brilhantes e sedutores; e quando ela os fixou demoradamente, eles ficaram como que parados qual um feixe de luz resplandecente, iluminando o seu rosto e dando ao mesmo uma expressão estranha e atraente.
Kiang sentiu que ela ficaria para sempre no seu coração, pois desde o momento em que a viu junto de si não pôde deixar de sentir que a jovem era, na realidade, o tipo idealizado por ele.
Outras mulheres poderiam cruzar na sua vida, mas Mei-ling nunca seria igualada.
Naquele mesmo instante ele, com todo o seu poder de vontade, determinou que ela lhe pertenceria.
Quando Tung e seu amigo se voltaram e viram os dois jovens juntos, conversando alegres, sorriram satisfeitos.
Depois os quatro saíram, sendo que Mei-ling e o pai foram atenciosamente acompanhá-los ao local onde se hospedavam.
***
Tieng Pei era um distinto chinês que há muitos anos residia em Paris, sendo que Mei-ling, sua última filha, veio para a França com poucos meses, não conhecendo portanto sua verdadeira pátria.
Como Tung, Tieng era também natural de Cantão e foram muito amigos, desde a infância.
Juntos fizeram inúmeras viagens pelo mundo, pois Tieng era muito rico.
Casaram-se quase na mesma ocasião, e a senhora Pei era uma chinesa muito distinta, não tendo porém a beleza de Li.
Amigas sinceras, foi para Li uma imensa tristeza quando Nai deixou definitivamente Cantão.
Os seus múltiplos negócios motivaram a resolução de Tieng em deixar sua pátria, encontrando na França grandes possibilidades que não lhe eram fáceis na China.
Além de Mei-ling, tinha Tieng mais dois filhos, que estudavam no mesmo Instituto onde Kiang pretendia também se matricular.
Tung sempre encontrou no velho companheiro um verdadeiro amigo, mas como ele tinha deixado de vir há muitos anos a Paris e agora, chegando, não o tendo procurado imediatamente, Tieng quis lhe fazer uma surpresa indo assistir à sua anunciada conferência.
Convidou Mei-ling e, juntos, foram à procura do amigo querido.
Quando voltou, lembrou-se de que Tung não dissera uma só palavra sobre Li, e ele, na confusão do momento, imperdoavelmente, não tinha também lhe perguntado.
Mei-ling, que era um filha extremosa, surpreendeu-se com a atitude de Tung e de Kiang, demonstrando sinceramente a seu pai que eles não foram correctos assim fazendo.
Tieng notou isso, mas desculpando o amigo, disse que, naturalmente fora devido exclusivamente ao momento, um tanto tumultuado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:27 am

Quando chegaram foi a primeira pergunta de Nai:
— Como passa minha amiga Li?
Tieng, embaraçado, não soube como responder.
Nai insistiu e ele, atrapalhado, tentou explicar à esposa que, devido ao grande número de pessoas em volta de Tung, não teve oportunidade de fazer certas perguntas, no que ela o reprovou severamente, dizendo que era imperdoável o procedimento dele para com Li, amiga dedicada que sempre foi de ambos.
Mais calma, perguntou outras coisas, e o esposo, então, contou que Tung veio trazer o filho para estudar em Paris.
Com entusiasmo, descreveu Kiang para Nai, participando que ele e seu pai viriam breve visitá-los.
Mei-ling, sentada ao lado, ouvia tudo quanto o seu pai contava.
E veio então na sua mente o vulto de Kiang, e sentiu que ele lhe deixara forte impressão.
Tentou afastar o pensamento do jovem chinês, mas não conseguiu...
Ao mesmo tempo, ficou surpreendida de ele também não ter dito uma só palavra a respeito de sua mãe, ausente e sozinha na pátria distante e, voltando-se para Nai, pediu:
— Conte-me como é sua amiga Li.
Nai voltou-se, ao ouvir da filha fazendo uma pergunta tão inesperada, e a interrogou:
— Por que deseja saber como é minha amiga Li?
— Curiosidade, simplesmente...
Ela é uma chinesa e tudo quanto se refere à minha pátria gosto de saber.
Nai sorriu bondosamente e contou à sua filha:
— Li é de uma rara beleza, difícil de ser encontrada, além disso, de uma bondade incalculável.
Delicada e simples, atrai irresistivelmente...
Não posso compreender como Tung, tão inteligente, viajado, culto, admirador do belo, não tenha por sua esposa verdadeira admiração.
Nunca viajou com ela, o que me surpreende, pois tenho certeza que Li despertaria, em qualquer sociedade, grande entusiasmo pela sua beleza impressionante.
Quando deixei Cantão, Kiang era bem pequenino, e Li tinha pelo único filho uma idolatria sem par.
Estou ansiosa para que Tung venha logo nos visitar e possa dar notícias detalhadas dela.
Mei-ling ouviu atenta tudo quanto Nai contou e, mais uma vez, reprovou a atitude, principalmente de Kiang.
***Ficando a sós com Tung, Kiang deu expansão ao seu entusiasmo pela beleza de Mei-ling.
Sentado em frente ao pai que, exausto pelo esforço desprendido, estava deitado, o crivou de perguntas:
— Por que não procurou há mais tempo Tieng, seu velho amigo?
— Pretendia, logo que estivesse mais descansado, fazer-lhe uma surpresa.
— Por que você nunca falou de sua filha Mei-ling?
Tung olhou demoradamente seu filho e, com um leve sorriso, respondeu:
— Queria, mais uma vez, lhe proporcionar uma bela surpresa!
Kiang olhou para o pai, que continuou deitado, tendo fechado os olhos.
Porém, o moço não levou isso em consideração e, ansioso, continuou a interrogá-lo insistentemente:
— Você sempre foi amigo de Tieng?
— Sim — respondeu Tung.
Kiang ficou por alguns instantes calado e foi então que Tung, abrindo ligeiramente os olhos, viu o filho com uma fisionomia sombria, demonstrando que um pensamento forte o perturbava muito, porém não quis interrogá-lo, ficando à espera de que ele voltasse a conversar outra vez.
Momentos passados, Kiang bruscamente perguntou-lhe:
— A mãe de Mei-ling era também amiga de minha mãe?
Tung, como se tivesse sido atingido por uma faísca eléctrica, sentou-se incontinenti no leito, demorando o olhar penetrante em Kiang, que, impassível, não retirou os olhos do rosto congestionado de seu pai, que, pela primeira vez, depois de muitos anos, ouvia inesperadamente seu filho balbuciar estas palavras há tanto tempo esquecidas por ele:
“Minha mãe...” e com uma entoação delicada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:28 am

Ficou sentado, sem poder articular uma só sílaba.
Frente ao filho, ele sentiu uma emoção tão diferente que não pôde, no momento, subjugá-la como desejava.
Foi depois de prolongada espera que o rapaz, impaciente, renovou a pergunta, e Tung, num esforço tremendo, disse:
— Sim, foram amigas inseparáveis, e é esse o motivo principal por que temo a visita aos meus velhos e sinceros amigos.
Nai vai nos crivar de perguntas, assim como não nos perdoará facilmente por não termos informado a morte de Li.
Tung pronunciou essas palavras como se elas tossem brasas acesas que tivessem queimado dolorosamente a sua epiderme.
Kiang também denotou contrariedade ao ouvir seu pai referir-se à morte dissimulada de sua infeliz mãe, prisioneira de ambos.
Veio na sua mente e recordação de Mei-ling, tão delicada, e já sentia que não poderia jamais esquecê-la.
Sentiu, como seu pai, um forte estremecimento ao pensar que ela pudesse algum dia vir a saber que sua mãe era leprosa e vivia.
Debalde praticaram o hediondo atentado, pois Li ressurgia, constantemente, como um fantasma ameaçador e terrível para fazê-los reconhecer o quanto erraram.
Seria um fantasma que os haveria de seguir passo a passo, muito lentamente, mas que não os deixaria nunca... nunca....
O jovem era, porém, muito forte, e foi passageiro esse momento de reflexão e hesitação.
Logo se levantou como para reaver as energias perdidas.
Andou muito tempo, no pequeno espaço do aposento, com as mãos fortemente apertadas e a fisionomia carregada.
Enquanto assim fazia, Tung se mantinha sentado, com a cabeça baixa, em silenciosa atitude.
Era muito tarde da noite e estavam cansados das emoções violentas que experimentaram nesse longo dia.
Kiang abriu as janelas do aposento e uma rajada intensa de vento frio invadiu todo o interior.
Sentiu um bem-estar agradável quando o vento da noite bateu no seu rosto, refrescando-o delicadamente.
Foi até a janela e aspirou longamente o ar puro, haurindo assim mais calma e energia.
Olhou o firmamento estrelado e pensou, então, na grandeza do céu sem fim...
Sem querer, sentia uma estranha nostalgia... sentia, naquela noite longa e fria, em que ele se via solitário, aparecerem à sua frente fantasmas que, ameaçadores, faziam-no rever episódios de sua vida até então quase completamente olvidados.
Rememoração que o induzia, sem desejar, a um auto-exame minucioso, reconhecendo-se, forçado pela consciência — juiz implacável —, que era um grande culpado; voltou-se depois de alguns momentos e viu que seu pai estava sentado na mesma posição. Penalizado dele, veio sutilmente sentar-se ao seu lado no leito.
Pôs a mão sobre o seu ombro e delicadamente falou:
— Vamos, meu pai, é muito tarde e você deve estar exausto.
Esqueça tudo isso.
Tung se deitou e o mesmo fez Kiang.
Logo mais ele dormia tranquilo e seu pai, ainda acordado, repetia mentalmente suas palavras:
— Esqueça isso... como se fosse fácil e possível...
Kiang era jovem e nessa fase tudo era passageiro, mas Tung era velho e, na sua mente cansada, pelo constante meditar, era difícil esquecer como seu filho o aconselhou.
Pensava:
— Preciso visitar Tieng, tenho de ir, necessito de todas as minhas energias para poder resistir ao interrogatório de Nai.
E assim, num constante pensar, as horas iam se passando lentamente e a aurora já se aproximava; Tung ainda não tinha conseguido dormir.
Só com os primeiros albores da madrugada foi que ele conseguiu dormir.
Dormiu, mas, mesmo assim, perturbado com sonhos terríveis.
Sonhou que estava na casa grande de pedras...
Descia às ocultas a velha escada do subterrâneo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:28 am

Abriu cuidadosamente a pesada porta, receoso de assustar Li.
Queria ver logo como ela estava.
E qual não foi a sua surpresa, ao deparar não com Li leprosa e horrível, mas via à sua frente Li, jovem e bela, como nos primeiros anos de casados.
Estava parado, surpreso, sem poder articular uma só palavra, quando Li gritou horrorizada:
— Saia da minha frente! tenho medo!... tenho medo!...
Quem é você?
O que vem fazer aqui?
Saia!... Saia!...
Tung tentou se aproximar dela, que corria espavorida para junto da porta tentando fugir...
— Saia! — gritou alto.
Quem é você?
— Sou Tung, seu marido, que vem de muito longe para revê-la.
— Não!... Está mentindo!
Tung é forte e belo, e você é um leproso horripilante...
Afaste-se de mim!...
Tenho medo de seu rosto coberto de chagas que sangram.
Saia!...Saia!...
Tung, em soluços, tentou explicar:
— Venha, Li, venha. Li!...
Não tenha medo, sou Tung e não sou leproso!...
— Mentira!... Mentira!
Olhe no espelho! — e correndo voltou-se para apanhar um pequenino espelho, que estava pendurado na parede muito alva, e o apresentou a ele, que, olhando, viu reflectido na transparente lâmina de cristal o seu hediondo rosto de leproso.
Gritou e acordou trémulo.
Foi tão aflito o grito de Tung que acordou Kiang.
Vendo então seu pai sentado nas bordas do leito, com a cabeça entre as mãos e soluçando convulsivamente, levantou-se e chegou junto a ele, perguntando angustiado:
— O que sente?
Por que chora tanto?
Fale, meu pai!
Tung ergueu a cabeça e, olhando o filho, com voz entrecortada pelos soluços, disse:
— Sonhei com Li...
Kiang mudou de expressão e, com voz irónica, respondeu:
— Julguei que fosse mais sério o seu sonho.
Então, por que sonha com uma mulher, chora desse modo e fica nesse abatimento tão acabrunhador?
Que é isso, meu pai? — perguntou novamente.
Por acaso está ficando um homem fraco?
Tente reagir, deixe de lado essas tolas preocupações e continue a viver alegre!
Mas ele continuou com a cabeça entre as mãos, alheio às palavras do filho.
Este, vendo que ele não dava atenção aos seus conselhos, saiu do aposento, deixando-o só.
Muito tempo ficou Tung na mesma posição.
Só levantou a cabeça quando sentiu que um raio forte de sol batia sobre ele, dando uma sensação desagradável, pois era abrasador nessa hora.
Levantou-se vagarosamente, sentindo os membros entorpecidos pela posição forçada em que esteve durante muito tempo.
Com dificuldade, conseguiu dar os primeiros passos, indo até a janela, que estava aberta, e se debruçou, olhando indiferente o movimento intenso da larga rua, que nesse instante já era grande.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:28 am

Estava ainda olhando os transeuntes, que ligeiros passavam em sentidos contrários, quando viu Kiang, impecavelmente vestido, atravessar a rua e seguir apressado.
Vendo ao longe o filho, observou-o até perdê-lo completamente de vista.
Depois que voltou, foi sentar-se na cadeira em que Kiang costumava ficar.
Outra vez deixou que seu pensamento vagasse alheio a tudo; só pensava em Li...
Era impossível esquecê-la...
Sentia forte desejo de voltar breve para a China...
Tung, em poucos dias, resolveu todos os seus problemas.
E atendendo ainda a um pedido do filho acedeu de, antes de seguir para a China, ir com ele até à Itália, numa ligeira viagem de recreio, aproveitando também para apresentá-lo, como fez em Paris, a alguns ao seus velhos amigos italianos.
Nesses dias em que ele, apressado, procurava organizar tudo para Kiang, de modo que ele não sentisse grande dificuldade quando estivesse só, pediu-lhe, certa tarde, quando ambos conversavam amistosamente:
— Kiang, agora que já providenciei tudo quanto você precisava, tenho um pedido a lhe fazer.
Admirado, o moço olhou para ele, pois há muito que seu pai não falava com esse tom de voz, igual ao que tinha antes do incidente passado no navio.
Alegre, respondeu:
— Pode pedir, meu pai, estou ansioso por saber o que deseja.
Tung demorou a fazer o pedido.
Depois, quase com dificuldade, pediu:
— Quero que vá comigo à casa de um pintor, antigo amigo meu, e que pose em traje tipicamente chinês, para uma tela que desejo levar para a China.
O rapaz deu uma grande gargalhada e disse:
— Meu pai, pensei que fosse mais sério o seu pedido....
Porém, estou pronto a satisfazê-lo; pode marcar o dia para o início e pedir ao seu amigo para apressar, pois muito breve, temos de ir à Itália.
Logo no dia seguinte, Kiang começou a posar para o renomado pintor, que, com a maestria do seu genial talento, ia, com nuances fortes e perfeitas, fazendo surgir, como um milagre do pincel, a imagem maravilhosa de um autêntico chinês, vestido ricamente e soberbamente belo no esplendor da sua mocidade...
Essa tela Tung levaria para a China e seria a sua companheira inseparável na solidão em que iria viver na luxuosa casa, nas margens do rio Cantão.
Dias após dias, o jovem, incansável, posou e aliviado respirou quando foi terminada a célebre tela.
Durante esses dias em que ele ia, em companhia de seu pai, ao ateliê do pintor, Tung disse-lhe:
— Precisamos ir à casa de Tieng.
Não podemos mais adiar essa visita.
Satisfeito, o filho concordou e, ao terminar a hora fixada pelo pintor, foram fazer a visita há tanto prometida.
Kiang não mais tinha visto Mei-ling e era imenso o seu contentamento em poder revê-la nessa tarde.
***
Tung caminhava ao lado de Kiang, seriamente preocupado, pois sabia que iria enfrentar uma grande luta; tinha certeza de que Nai não pouparia a curiosidade de saber pormenorizadamente toda a história de Li.
Sabia que ele teria de enfrentar a situação sozinho, pois Kiang só pensava em poder rever Mei-ling, deixando tudo entregue a ele que, realmente, era o maior responsável.
Trémulo ficou ao deparar com a residência de Tieng.
O seu coração bateu aceleradamente ao ouvir passos que se aproximavam.
Sentiu uma forte emoção e foi preciso se apoiar nos braços do filho.
Quando Tieng avistou seu velho amigo, foi logo abraçando-o fortemente e chamando alto por Nai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:28 am

Esta, chegando, e vendo Tung ao lado do esposo, foi, antes mesmo
de cumprimentá-lo, dizendo:
— Tung, como vai a minha amiga Li?
Ele abaixou a cabeça, deixando o casal surpreendido.
Todos ficaram calados, até que Tung, com dificuldade, disse:
— Nai, a sua amiga Li morreu...
— Mas, Tung, conte-nos como foi e quando!
Tieng voltou-se para ela, e bondosamente pediu:
— Nai, tenha paciência, Tung nos contará tudo; antes, veja Kiang como está um belo jovem.
Foi quando Kiang se aproximou e cerimoniosamente a cumprimentou.
Nai ficou muito tempo olhando para ele, e depois disse:
— Parece incrível que seja o mesmo menino que eu deixei nos braços de minha inesquecível Li.
Kiang... deve sentir uma grande tristeza por ter perdido tão cedo a sua mãe, aquela adorável amiga que nunca deixei de recordar e sentir saudade.
É muito jovem ainda para realmente avaliar o que tão cedo perdeu...
Sua mãe, além da incomparável beleza que possuía, tinha a mais privilegiada alma, era inata a sua bondade...
Filho, sinceramente, compartilho da sua dor por ter perdido tão prematuramente a sua linda mãe — e comovida abraçou Kiang, durante muito tempo.
Depois, ainda com voz entrecortada pelos soluços, disse:
— Aqui, meu filho, você encontrará sempre uma amiga sincera e um lar onde pode compartilhar como se fosse seu.
Quero, se for possível, fazer tudo o que você desejar, em homenagem à minha querida Li.
Tung, Tieng e Mei-ling, silenciosamente, presenciavam essa manifestação emocionante e carinhosa de Nai.
Foi Mei-ling quem primeiro falou:
— Sim, Kiang, assim como disse minha mãe, eu também ofereço a minha amizade e fique certo de que sinceramente compartilho, como meu pai, da grande dor, que sei, ainda tortura sua alma e a de seu pai — voltou-se e abraçou afectuosamente Tung, que tinha os olhos cheios de lágrimas...
Tieng, desejando terminar a tocante cena, num esforço disse:
— Deixemos isso para depois, vamos agora conversar alegremente...
Vamos, Nai!
Venham, Mei-ling e Kiang!...
Sentaram-se os cinco e procuraram conversar satisfeitos, porém, forçados, pois parecia que pairava entre eles a sombra de Li...
Era Tieng quem mais se esforçava para manter uma palestra agradável.
Perguntou a Tung quando voltaria à China, interessado em saber detalhes da sua querida cidade, dos amigos e do comércio, pois ele ainda possuía lá grandes e prósperos negócios.
Tung a tudo respondeu, procurando contar tudo o mais minuciosamente possível.
Depois participou a sua próxima partida para a Itália, onde ia numa rápida viagem, somente para apresentar Kiang a velhos amigos e rever também algumas cidades que, outrora, tanto gostava de visitar.
*— Sei que esta será a minha última viagem; irei depois para a China, esperar o momento da última e definitiva viagem...
Todos conversavam, só Nai é que se mantinha calada, ouvindo atentamente tudo quanto diziam.
Em dado momento, bruscamente olhou para Tung e Kiang, e perguntou:
— Ainda não sei do que Li morreu... foi repentina a sua morte, Tung?
Este, atingido pela inesperada pergunta de Nai, voltou-se tão rapidamente e com um olhar aflito que impressionou a todos; ficou olhando Nai, que, também angustiada, olhava para ele...
Sem poder pronunciar uma só palavra, deixou que lágrimas brotassem nos seus olhos pequeninos e deslizassem pelo rosto pálido.
O silêncio era completo; ninguém ousava interrompê-lo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:29 am

Todos estavam impressionados com a pergunta brusca de Nai e com o aspecto de Tung, que continuava calado, deixando que as lágrimas deslizassem mansamente.
Foi depois de um longo silencio que Tieng conseguiu dizer:
— Tung, meu velho amigo, perdoe a Nai essa curiosidade, que é motivada somente pela grande e sincera amizade que a ligava a Li.
Mas fique certo de que todos nós lamentamos profundamente a grande perda que você sofreu.
Mais uma vez Tung voltou-se para ouvir atento as palavras do amigo, o mesmo fazendo Kiang, que olhou com insistência para o pai, como atemorizado de que ele, num momento de exaltação, pudesse deixar escapar a revelação terrível, confessando a verdade aos velhos amigos.
O jovem tinha receio, pois há muito tempo notava que seu pai vinha sofrendo, e a causa principal era a moléstia de sua mãe e o seu aprisionamento no oculto subterrâneo, e agora, com as perguntas constantes de Nai, temia que ele não tivesse a força precisa para dissimular toda a verdade da história de Li.
Sentiu-se aliviado quando ouviu seu pai, com voz calma e pausada, responder a Tieng agradecendo as demonstrações de amizade, não só dele como de Nai.
Se não tinha contado com fidelidade toda a verdade sobre a morte de Li, era porque lhe faltava coragem...
Desde que ela desaparecera, excepcionalmente falava no seu nome, nem mesmo com Kiang.
— Compreendo, meu bom Tung, a sua mágoa e a sua perda, e acho que tem razão de assim proceder.
Nai, cabisbaixa, olhava demoradamente agora para Kiang, que, alegre, conversava com Mei-ling, não denotando o menor vestígio de constrangimento pela cena desagradável passada há tão poucos instantes.
Tung e Tieng, a convite deste, tinham saído para o terraço, onde, sentados em cómodas cadeiras, conversavam baixo.
Nai podia observar livremente o jovem filho da sua grande amiga.
Ela não podia compreender por que sentia essa vontade imensa de saber a verdade sobre a inesperada notícia da morte de Li.
Dizia consigo mesma:
— Como pode Tung, tão nosso amigo e tão educado, cometer uma falta assim; não creio que fosse devido à grande dor... não... não creio... pois passados os primeiros dias, ele, já refeito do abalo, podia ter participado aos amigos distantes a triste ocorrência.
Tung está muito mudado, noto que ele não é o mesmo homem alegre e forte que conheci na China.
O seu olhar é triste e vago, encobrindo uma grande preocupação...
Percebo também algo de anormal no seu rosto, parece que a sua pele está mais grossa e mais rosada, e ele um tanto esquivo, evitando apertos de mão prolongados, retirando-as bruscamente, receoso...
Vi bem, quando Mei-ling sentou-se ao seu lado e, afectuosa, pousou a mão sobre a dele; foi rápido o movimento que fez para retirar as mãos de junto dela...
Todos esses pensamentos bailavam na mente de Nai que, ao lado, sozinha, continuava vendo Kiang e Mei-ling alegres e felizes conversando tranquilamente, o mesmo fazendo os dois velhos amigos no terraço próximo.
Por que só ela, Nai, é que tinha essas dúvidas, desde o momento que Tung viera visitá-los?
E tão imersa estava nos seus pensamentos, que não viu que já estava escurecendo e que uma ténue penumbra invadia o grande salão.
Apressada, levantou-se à procura de luz, voltando logo trazendo um rico e artístico candelabro, tendo diversas velas, e colocando-o numa mesinha situada num recanto do salão.
Mei-ling, delicada, sorriu para ela e, levantando-se, chegou bem junto dela, beijando-a com afecto.
Ligeira, voltou para perto de Kiang que não deixou de notar o gesto terno e amigo de Meiling.
Momentos depois, Tung e Tieng também entraram.
Nai os recebeu com alegria, oferecendo novamente uma cadeira a Tung, que agradeceu, recusando devido ao adiantado da hora.
Chamou a atenção de Kiang e, despedindo-se dos amigos, retirou-se, participando a sua breve partida para a Itália, onde demoraria pouco, pretendendo voltar o mais breve possível para a China...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:29 am

VI — Em busca da fé no regresso à China
Poucos dias depois, Tung e Kiang deixaram Paris rumo à Itália.
Iriam primeiro a Roma, onde passariam poucos dias, seguindo, então, numa ligeira excursão, pelas formosas cidades que o moço tinha mais vontade de conhecer.
— Quero ver Veneza, meu pai, sinto por essa cidade uma atracção incrível, quero percorrer os seus canais e as suas vielas, quero ver de perto os seus palácios, pois só assim poderei compreender toda a história dessa cidade sem par...
Nas suas gôndolas tradicionais levadas por remadores românticos, ouvindo as suas canções dolentes e mornas, quero percorrer, um por um, todos os seus canais...
Vamos logo visitar Veneza, depois, então, com mais vagar, veremos Roma.
Tung ouvia atento seu filho e com ele tudo concordava.
— Sim, podemos, logo ao chegarmos, organizar o nosso itinerário.
Iremos para onde você quiser.
E foi assim que resolveram ir logo a Veneza.
Foi para Kiang um deslumbramento a realização desse sonho, há tanto tempo esperado.
Em companhia de Tung, que como em Paris não sentiu a menor dificuldade, percorreram todos os recantos da linda cidade tradicionalmente falada.
Dias após dias foram de surpresa para o rapaz.
Atento, ouvia as explicações do seu pai que ele reconhecia ser o melhor “cicerone” que se podia desejar.
Respondia com abalizadas explicações tudo quanto ele perguntava.
Porém, o que mais surpreendeu Kiang foram as visitas aos museus de arte onde ele, artista e profundo admirador do belo, encontrou margem para a sua completa satisfação.
Defronte às grandes telas, mudo de emoção, via, concretizados em cores e contornos, os sonhos maravilhosos de geniais artistas italianos.
Era preciso que Tung o despertasse da contemplação para fazê-lo voltar à realidade.
— Vamos...
Temos tanta coisa ainda para ver.
E Kiang, então, dizia:
— Tenho de voltar muitas vezes à Itália para poder sentir melhor a beleza desse pedaço privilegiado do mundo.
Compreendo agora, meu pai, por que gostava tanto de aqui vir.
Foi com dificuldade que convenceu o filho a sair de Veneza, seguindo a visitar outras importantes cidades.
Foram todas verdadeiras surpresas para Kiang, que não podia reter o seu grande entusiasmo diante de tanta beleza e de tanta arte.
Florença foi para o jovem chinês uma surpresa inesquecível.
No perambular pelos museus famosos, ficava parado diante dos quadros, numa contemplação que só mesmo os inspirados na divina arte eram capazes de sentir o que o jovem sentia.
Era sincero o seu entusiasmo pelas maravilhas que lhe eram dadas, no momento, apreciar.
Tung o seguia pacientemente constatando que, na realidade, seu filho seria muito em breve a personificação do que ele fora.
Nesses mesmos museus ele passara horas de imorredoura alegria percorrendo os imensos salões, junto com outros admiradores, ou então, sozinho, para maior deleite de sua alma, sempre em busca do belo.
Nessa mesma cidade, teve oportunidade de conhecer inúmeros artistas que se tornaram verdadeiros amigos, a quem ele agora iria apresentar seu
filho, também sincero admirador das artes.
Foi a um desses renomados pintores que Tung encomendou mais um retrato de Kiang, vestido como ele gostava, em trajes típicos de fidalgo chinês.
Tiveram de demorar mais alguns dias em Florença para que Kiang posasse para a realização de mais um desejo de seu pai, que era levar outro retrato dele feito por célebre pintor, e que iria enriquecer ainda mais a sua valiosa colecção de pinturas, no rico salão da sua residência em Cantão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 28, 2021 10:29 am

Foram, depois, ligeiramente, visitar mais algumas cidades.
Milão, outra maravilha da Itália, orgulho de seus filhos, patriotas exaltados não só das suas preciosidades artísticas guardadas cuidadosamente nos museus, como das suas famosas igrejas, dos seus palácios majestosos, e sobretudo dos seus ilustres e célebres filhos, como diversos papas que ocuparam o trono de São Pedro, o que era motivo ainda maior para que os filhos de Milão ostentassem grande orgulho de terem nascido naquele pequeno e glorioso pedaço da Itália.
Kiang quis ainda conhecer, em companhia de Tung, outras cidades, não atendendo o pai ao seu apelo, pois desejava voltar logo à China.
— Quero ver Génova — insistia ele.
E Tung, não podendo negar nada a ele, foi a Génova, que também não visitava há muitos anos, pois da última vez em que esteve na Itália, não fora possível ir.
Era uma cidade de que ele não só gostava muito, como tinha também negócios importantes.
Estava pronto para ir passar uns dias na grande cidade, quando foi convidado por diversos amigos para uma excursão ao longínquo Egipto.
Ele, entusiasmado, deixou para outra vez a visita a Génova, sendo que era essa agora a sua oportunidade.
Génova, porto de grande movimento e intenso intercâmbio comercial, visitado constantemente por inúmeras caravanas de viajantes, atraídos por sua beleza e pelos seus museus que contêm obras célebres de incalculáveis valores.
Os seus palácios eram soberbos e o seu aspecto magnífico.
Kiang guardou de Génova grata recordação, pois essa sua primeira visita ficou gravada para toda a sua vida.
Quando, anos depois, conversava sobre suas viagens, ele não esquecia de citar Génova e descrever com ardor a beleza desse encantado porto italiano.
— Agora, meu pai, ainda um pedido, quero ver de perto o lago de Como.
Já conheci diversas cidades importantes e muitas outras que, apesar de menores, são também encantadoras, mas quero ir ver esse recanto tão decantado da Terra...
Tung tudo providenciou e foi para Kiang a maior surpresa que experimentou na sua vida.
Cada cidade que conhecia, ele, apesar de achar tudo maravilhoso, esperava ver outras mais belas, mas ao visitar o lago de Como, o seu entusiasmo chegou ao auge, e nos transportes da mais viva admiração confessava a Tung:
— Meu pai, creio que não é possível se encontrar uma beleza maior do que esta que nos é permitido contemplar nesta paisagem encantadora.
— Sim, meu filho, este lago é único.
Kiang, extático, falava:
— Meu pai, essas colinas verdejantes...
Não pode haver coisa mais bela...
Não pode...
Foram dias inesquecíveis, de constantes passeios, e Kiang, cada vez mais contente, formulava já projectos para nova excursão à Como.
Numa tarde de estonteante beleza, em que todo o lago era envolvido pelos últimos reflexos do sol posto, o moço se aproximou de Tung e, confidencialmente, muito baixo disse-lhe:
— Meu pai, já resolvi que a minha próxima visita a este lago será com a companhia de Mei-ling...
Tung olhou para o filho e viu que nada o demoveria desse seu desejo.
Sorriu satisfeito, pois adorava a filha de seus velhos e sinceros amigos.
Seria para ele a concretização de todos os seus sonhos, Mei-ling ser a senhora Fú...
Tão orgulhoso ficou com a revelação de seu filho que esqueceu até mesmo a doença terrível que ocultava.
Porém foi passageiro, pois veio logo a recordação da verdade, e ele mais uma vez curvou a cabeça vencido. Kiang, ao se voltar, vendo Tung de cabeça baixa, falou alto:
— Então, meu pai...
Parece que você ficou triste com a minha confissão?
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