LUZ ESPÍRITA
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:23 am

Tung estremeceu e, sem poder se conter, tomou as mãos do filho, e com emoção murmurou:
— Kiang, você me deu, com essa confissão, a maior alegria.
Quero a Meiling como uma filha — e redrou rapidamente as mãos...
Agora precisamos ir a Roma, onde tenho muito que providenciar.
Saudosos deixaram Como, e numa rápida viagem visitaram ainda outras cidades, até que, numa fresca manhã, chegaram a Roma.
Instalados num luxuoso aposento reservado especialmente para eles, pôde Kiang descansar da viagem apressada feita por ele e seu pai.
Passou todo o dia deitado, o mesmo não acontecendo a Tung, que logo saiu para tratar dos seus negócios, pois era visível a sua vontade de voltar.
Passou todo o dia ausente, e Kiang não pôde sair, pois além de não conhecer nada da grande cidade, não sabia também falar o idioma italiano.
Admirava seu pai, que era um poliglota, falando correctamente diversos idiomas e inúmeros dialectos.
Via quanto ainda precisava estudar para poder viajar sozinho.
Só à tarde foi que ele voltou, encontrando seu filho já alarmado com sua demora.
— Por que não saiu um pouco?
— Porque não conheço a cidade e não sei italiano.
Tung sorriu e o aconselhou a tentar sair só, o que Kiang discordou:
— Não, preciso da sua companhia.
Na próxima vez que aqui vier, então sim, já estarei falando com facilidade e não precisarei de ninguém.
Quero mesmo fazer uma viagem só para poder saciar minha curiosidade.
— E qual foi até agora a sua curiosidade não satisfeita? — perguntou Tung.
— Nenhuma, realmente, mas estou me referindo a quando estiver mais velho — disse ele com certa malícia.
Tung compreendeu e nada mais disse.
Lembrou da viagem quando saíram da China e durante a travessia em que ele fez novos amigos.
Em Roma foi anunciada a estadia de Tung, que, como em Paris, era muito conhecido e grandemente admirado.
Nas suas inúmeras visitas à velha cidade, quando ainda bem jovem, fez um vasto círculo de amigos, que sempre conservou com muita estima.
Quando era anunciada a estadia do riquíssimo chinês Tung Fú, movimentavam-se os círculos literários e artísticos.
Os literários, ansiosos para ouvirem as conferências do abalizado historiador, e os artistas, para mostrarem verdadeiras preciosidades, pois sabiam ser ele um apaixonado coleccionador de raridades, desde telas até as miniaturas, assim como armas, sendo a sua colecção uma das mais famosas.
Conhecida a sua visita, logo no dia seguinte começou a receber os antigos amigos e convites para festas e reuniões.
Ele recebia a todos com amabilidade, apresentando-lhes seu filho.
Foram tantas as visitas, que sobrava-lhe pouco tempo para os passeios, conforme desejava Kiang.
Roma era digna de ser visitada demoradamente, em todos os seus recantos; esses tinham, para Tung, uma espécie de lenda que desejava contar ao filho.
Era um recapitular constante de velhas reminiscências... quando uma noite voltavam de uma reunião em casa de antigo amigo de Tung, que os recebera para um grande banquete, em que se reuniram as mais destacadas personalidades de Roma e as mais belas damas, algumas de invulgar beleza, e que Kiang notou serem conhecidas íntimas de Tung, ele fez então uma pergunta inesperada ao pai:
— Admira-me, meu pai, que você tenha viajado tanto, tenha conhecido tantas mulheres bonitas, e foi casar em Cantão com uma insignificante mulher chinesa!
Tung respondeu logo:
— Você era bem pequeno quando sua mãe “morreu”, pois do contrário não faria esta afirmativa.
Li, meu filho, foi a mulher mais bela que cruzou na minha vida....
Só vi depois outra, que me causou uma impressão tão profunda como aquela que senti quando conheci Li.
Quer saber quem foi? Mei-ling!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Kiang sorriu contente, compreendendo o sentido da resposta de seu pai...
***
Depois de muitos dias de intenso trabalho, viu-se satisfeito e já podia organizar a sua volta a Paris, onde pretendia passar poucos dias, retornando definitivamente à China.
Aproximou-se a época do início do estudo de Kiang, e ele desejava voltar quando seu filho já estivesse cursando as aulas no Instituto onde estava matriculado.
Queria acompanhar essa última etapa da iniciação de Kiang.
Foi alegre que voltou a Paris, indo ocupar os mesmos aposentos.
Kiang, assim que chegou, manifestou desejo de ir ver logo Mei-ling, convidando seu pai que, alegando cansaço, recusou, tendo ele ido só.
Foi recebido com alegria pelo casal, assim como por Mei-ling, que já não podia ocultar o seu grande segredo.
Crivado de perguntas, Kiang respondia a todos com desembaraço, descrevendo pormenorizadamente toda a viagem e narrando depois, só para Mei-ling, as maravilhas da Itália.
A jovem nunca saíra de Paris e era com interesse que ouvia as palavras de Kiang, que demonstrava que seria mais tarde um fino e arguto viajor.
Quando descreveu as belezas do lago de Como, aproveitou um instante em que Nai chamou Tieng para um ligeiro momento de atenção e, quase confidencialmente, disse a Mei-ling:
— De todos os lugares que percorri, foi esse lago o que mais gostei, sentindo somente estar só com meu pai diante de tanta beleza.
Lembrei-me então como seria agradável tê-la ao meu lado para juntos podermos apreciar tantas maravilhas.
Mei-ling olhou demoradamente para Kiang, sentado ao seu lado, e com um terno e expressivo olhar agradeceu-lhe por ter-se lembrado dela quando distante.
Nai voltou com Tieng e continuaram ouvindo Kiang.
Depois, respondendo a uma pergunta de Nai, o rapaz respondeu-lhe que seu pai logo partiria directamente para a China.
Despedindo-se logo depois, Kiang deixou a casa de Mei-ling, prometendo voltar breve.
Chegando, encontrou Tung deitado à sua espera.
— Sente-se aqui, Kiang, desejo conversar com você.
— Pronto — atendeu Kiang, sentando-se ao lado do pai.
— Meu filho, resolvi seguir imediatamente para Cantão, pois já está por demais demorada a minha estadia aqui.
Tudo providenciei para que nada lhe falte e caso ainda precise de alguma coisa, pode procurar Tieng, que fica encarregado de me substituir.
Espero que saiba aproveitar convenientemente o tempo em que estiver estudando.
Depois, então, poderá, com facilidade, gozar como deseja a sua vida.
Para isso tem o bastante.
Quero, neste momento, e talvez pela última vez, conversar seriamente com você.
Quero fazê-lo lembrar que é o único descendente de uma família ilustre, que sempre cumpriu fielmente todos os seus deveres.
Lembre-se também que é chinês e que a sua pátria ainda precisa do seu auxílio.
Kiang, comovido, ouvia os conselhos de Tung, mas agora era muito orgulhoso para deixar transparecer ao seu boníssimo pai o que sinceramente sentia.
Quando Tung deixou de falar, ele se levantou e começou a percorrer com passos largos e ligeiros o aposento.
Tung não o interrompeu.
Só depois de muito tempo foi que ele, em pé junto ao pai, falou:
— Sinto bastante a sua partida, mas prometo que não esquecerei os seus conselhos e logo que termine os meus estudos voltarei definitivamente para a China.
Tung olhou o filho e sentiu que ele não estava dizendo com lealdade o que sentia, porém se manteve calado.
Dias depois, numa tarde cinzenta e fria, Tung deixou Paris e seu filho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Foi uma despedida simples.
E se não fosse a presença amiga de Tieng, Nai e Mei-ling ele não encontraria uma só palavra de afecto e saudade, porque Kiang não demonstrou um só vislumbre de carinho para com seu velho pai, que tanto o queria.
Mei-ling, sim, demonstrou quanto era carinhosa e sensível ao abraçá-lo ternamente.
Tung, com os olhos cheios de lágrimas, disse-lhe quanto iria sentir a sua ausência; o mesmo fazia Nai que, comovida, tentava demonstrar que ainda era a mesma velha amiga de outros tempos.
Não deixou, nem mesmo nessa ocasião, de relembrar a antiga amizade que tinha por Li e que por essa mesma amizade tudo faria por Kiang.
— Pode voltar tranquilo, Tung, Kiang será agora nosso filho...
Só Tieng é que se mantinha calado observando a atitude de Tung, e se convenceu de que o seu amigo sofria cruelmente, encobrindo grande mágoa.
Só depois que Tung partiu foi que Kiang sentiu a sua falta, pois era a primeira vez que se separava do seu velho pai.
Foi, porém, um sentimento passageiro e muito breve.
Se não fossem as contínuas visitas à casa de Tieng, onde ele era sempre lembrado, talvez o jovem o tivesse olvidado de todo.
Nai, principalmente, não deixava de se referir a Tung, assim como recordava constantemente Li.
Certa vez, em que Mei-ling, muito delicada, o interrogou querendo saber se ele sentia profunda saudade de sua mãe, Kiang ficou perturbado e com dificuldade foi que pôde responder:
— Mei-ling, quando minha mãe morreu eu era bem pequeno e por isso guardo poucas recordações dela, e mesmo porque meu pai exigiu que não se pronunciasse jamais o nome dela em nossa casa, e foi então, aos poucos, desaparecendo por completo a sua lembrança, até que ficou quase totalmente esquecida...
***
A volta de Tung foi muito monótona, e, no grande aposento, alheio a todos os divertimentos, afastado de todos, passava o tempo deitado, entregue às mais diversas divagações.
Pensava constantemente em Kiang, sozinho e ainda inexperiente em Paris, talvez rodeado de novos amigos, sem temer a quem quer que fosse, ainda tão jovem e do temperamento violento, sedento de conhecer a vida e de tudo haurir com sofreguidão.
Pai extremoso, e desejoso de possuir um filho digno do nome ilustre que possuía, temia só em pensar na possibilidade de seu filho fracassar e não levar adiante o ideal tão ardentemente ambicionado por ele... ter um filho para que fosse o seu sucessor na vida.
A viagem era longa e muitos dias teria Tung de enfrentar a solidão... ansiava ardentemente que esses dias passassem rapidamente e que ele pudesse chegar, o mais breve possível, na sua casa e então, com calma, coordenar melhor os planos para o futuro que se apresentava cheio de nuvens pesadas.
Uma noite, em que não podendo conciliar o sono, resolveu sair para um pequeno passeio em volta do aposento, deparou com um espectáculo de magnífica beleza, que o tomou de verdadeiro entusiasmo e de grande alegria.
No céu calmo e belo surgia majestosa a Lua, na plenitude de sua fase máxima, clareando a imensidão do oceano e cobrindo-o com um leve véu prateado...
No vaivém constante das ondas, os reflexos da lua eram empolgantes...
Tung, ardente apaixonado do belo, ficou encostado à grade de ferro do tombadilho, para depois se debruçar, embevecido na contemplação do espectáculo maravilhoso que se apresentava diante dos seus olhos.
E nessa contemplação lhe veio à mente cansada a lembrança tentadora de como seria suave encontrar o descanso no seio daquelas ondas calmas e cobertas pelos raios pálidos da Lua.
Seria, pensava ele, um túmulo digno para quem passou pela vida em busca constante do belo.
Foi para ele, Tung Fú, tão imperiosa essa mística beleza, que fez dela quase um culto...
Diante de uma tela, ele, contrito, se deixava empolgar tão profundamente como seria se estivesse diante de um altar, rezando uma prece sincera...
E assim, sozinho diante daquela beleza sem par, ele teve a visão nítida de como seria bom ter nas ondas do oceano imenso, o túmulo para o fim da sua trajectória pela Terra, e ainda mais encantadora se lhe apresentava essa noite enluarada...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Estava já quase resolvido a pôr em execução o seu intento, finalizando assim rapidamente o seu martírio, quando, sem poder conter, seu pensamento — como um raio rápido — cruzou o céu e foi parar na casa grande de pedras, e surgindo, à sua frente, Li, presa no lúgubre subterrâneo.
Tung olhou o oceano inundado de luz e reconheceu a covardia do seu Eu, não tendo a coragem precisa para enfrentar a adversidade que o cercava.
Lembrou-se de que ainda poderia encontrar no perdão de Li a suprema paz e, talvez, ainda juntos pudessem viver isolados e felizes.
Como se estivesse carregando pesado fardo, Tung sentiu um alívio imenso e respirou mais calmo, antevendo a possibilidade de rever Li...
Foi como se a sua lembrança o fizesse depositar o fardo no ponto exacto que lhe era destinado...
Sorriu satisfeito e, olhando a Lua grande e cercada por um rendado de nuvenzinhas graciosas, intimamente entoou um cântico de agradecimento ao Senhor dos Céus por ter recuado do seu intento, que o iria fazer passar, perante seus amigos, como um covarde e um mistificador das suas próprias afirmações, quando dizia perante os grandes auditórios, que “o homem só tem real valor pelas suas atitudes claras e positivas, e pelo destemor com que souber enfrentar as batalhas árduas da vida cotidiana.”
Lembrava-se de Confúcio, o filósofo mais célebre de sua pátria, o mais perfeito{1} e o mais elevado, aquele que deixara gravada em letras fulgurantes de luz a base de uma sólida doutrina, de uma moral altamente elevada e de um ideal puro, que transmitiria aos seus milhões de adeptos a coragem para pacientemente enfrentarem, audazes e destemidos, todos os revezes e todas as torturas, na clara esperança de encontrarem nessa doutrina o lenitivo que os faria, com o decorrer dos séculos, os homens mais fortes e raros de todo o Universo...
E ele, Tung Fú, que tão cuidadosamente tinha estudado essa doutrina, a filosofia de Confúcio, ia trair na primeira ocasião a sua profissão de Fé, a crença em que ele tanto confiava e que tanto amava, onde encontrava força e alegria para enfrentar o infortúnio.
Era na sua própria filosofia que ele agora — ao deixar de ser homem feliz e acatado, rico e ilustre, para se tornar um mísero sofredor atingido pela mais repelente moléstia, tendo na sua consciência uma negra mancha difícil de ser apagada — iria encontrar o bálsamo suavizador e o lenitivo precioso para fazer com que ele não esmorecesse e, impávido, seguir o caminho do seu calvário, até que pudesse corajosamente depositar a pesada cruz do seu infortúnio.
Não fossem as longas horas que dedicara aos estudos complexos das teorias religiosas e filosóficas, ele seria agora um fracassado, um perdido para sempre...
Depois da noite em que, desesperado, Tung esteve olhando a Lua, sentiu quanto errado estava, pensando em dar fim à própria vida.
Ficou mais conformado e esperançoso.“
Devo e tenho obrigação de dar exemplo ao meu filho.
Quero, quando desaparecer, deixar para ele, como um livro sagrado, a minha própria vida.
Quero que ele leia suas páginas, repassadas de ensinamentos, e, mirando em meus exemplos possa caminhar desassombrado e feliz.
E se, por qualquer motivo, encontrar dificuldades no trilhar pelas veredas múltiplas, ou nas encruzilhadas embaraçosas, possa procurar no livro, que eu lhe deixo escrito com a trinta rubra dos meus sofrimentos e da minha Dor, a solução precisa que o possa guiar” — meditou.
Sentia-se mais aliviado, e esperava com paciência chegar e poder iniciar a sua nova vida.
Entretanto, continuava a manter-se esquivo de todos, pois sabia que era necessário afastar-se de todo o convívio.
Sabia quanto era traiçoeira e terrível a moléstia que trazia consigo.
Excepcionalmente conversava com alguns passageiros, isso mesmo, mantendo certa distância.
Foi, pois, com verdadeira alegria que divisou ao longe, no horizonte azul-escuro, uma pequenina mancha negra que era o sinal de aproximação de terra.
Junto à grade fria, ainda húmida do orvalho da noite, senda Tung um alvoroço incontido, quando viu claramente ao longe a brancura do casario de sua terra natal...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Depois, quando transpôs a outro veleiro, tipicamente chinês, que o levaria veloz pelas águas do rio Cantão... sentado indolentemente no tosco banco, olhos parados, em mudo êxtase, alheio ao barulho da embarcação e ao vozerio de seus remadores, deixava que o barco deslizasse ligeiro até que ancorasse junto às escadarias da sua luxuosa residência, que ficava às margens do lendário rio.
Ele voltou sem avisar os seus servidores.
Queria chegar sozinho para poder melhor haurir a sensação da volta tão almejada à sua casa. Sentia uma saudade intensa que invadia toda a sua alma...
Nesses poucos meses que passou ausente foi tão cruciante a sua vida, que só esperava poder encontrar paz no silêncio e no alheamento absoluto que só ali podia ter.
Foi por isso não participou o seu regresso.
***
Deixando a embarcação, Tung subiu lentamente a escada que o levaria ao grande parque.
Reinava um profundo silêncio e Tung pôde livremente dar expansão aos seus devaneios.
Sentou-se debaixo de uma grande árvore e ficou recordando emocionado todo o seu passado.
Revia Li, muito delicada e vestida elegantemente, tendo os cabelos lustrosos e crespos, penteados caprichosamente, com um raminho de mimosas florzinhas presas ao lado com dois minúsculos alfinetes terminados por pontas de cores vivas, e nos braços, Kiang de poucos meses.
Debaixo dessa mesma árvore em que ele repousava, ela vinha se sentar com o filhinho que idolatrava.
Muitas vezes ele veio ocultamente observá-la, e alegre ouvia quando ela cantarolava apertando Kiang junto ao coração.
Revia ainda quando ele, já crescidinho, corria na frente de Li, e ia se sentar nas areias brancas da margem do rio para fazer os seus brinquedos predilectos, casinhas e mais casinhas.
Recordou ainda quando, certa ocasião, ouviu Li cantar alto, uma canção desconhecida, cuja música terna e harmoniosa o deixou deveras comovido.
Quando ele entrou, curioso, quis saber onde Li tinha ouvido aquela melodia tão expressiva, e foi atónito que soube que era composição dela.
Esforçou-se para se lembrar da mesma e com dificuldade pôde recordar algumas palavras, que baixinho repetiu:
“Felicidade é sonho é quimera...”
Tentava poder lembrar mais, porém esforço inútil...
Até que, depois de longo silêncio, lembrou-se de outro trecho que também murmurou:
“Esperança que um dia nos espera...
Já libertos dos acintes da dor...”
Não pôde reter as lágrimas que afluíram nos seus olhos doloridos e cansados, mas deixou que o seu pensamento vagasse livre, embora as recordações o ferissem profundamente, e na sua retina encoberta pelas abundantes lágrimas tinha fixo o quadro do seu passado distante...
Viu quando Kiang, já um menino garboso, veio uma tarde já quase extinta à frente de sua mãe, de olhar irritado, demonstrando visíveis sinais de cólera enquanto Li, cabisbaixa e triste, o acompanhava.
Arrependido, recordava quando ele veio ao seu encontro e com rudeza a interrogou:
Não é a primeira vez que a vejo triste.
Por que chora?”; e sem esperar resposta foi tornando a dizer:
“Tem você tudo quando deseja, por que então ainda chora?
Por quê?” e Li, sem erguer os olhos, com delicadeza respondeu:
“Nada...”
O céu nessa tarde era cinzento escuro, sem uma só nuvem para enfeitá-lo, e Tung lembrou-se agora desse pormenor, que há anos era para ele insignificante, mas que hoje, na sua recordação sentida, tinha uma significação sublime...
Sentado ainda ficou muito tempo, até que, com coragem, resolveu seguir.
A passos lentos, Tung foi aos poucos se aproximando de sua casa e, já bem junto dela, foi que um dos criados casualmente deparou com ele.
Tomado pela inesperada surpresa, mal pôde balbuciar algumas palavras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Então, muito delicado, bateu nos ombros do velho servidor e, sorrindo, disse:
— Propositadamente deixei de avisar a minha volta; queria causar a todos esta surpresa...
Vamos, quero entrar, estou ansioso por tornar a rever a minha casa.
E, afastando o criado, entrou depressa, acompanhado pelo servidor que, ainda não refeito do abalo, o seguia de cabeça baixa.
Mas tarde, todos reunidos foram levar-lhe os cumprimentos e testemunhar a alegria que sua volta causava...
Tung, comovido, agradeceu sinceramente a demonstração dos seus leais servidores.
Depois de alguns meses ele retornava à sua pátria e à sua casa para nunca mais se afastar.
Muitos dias passou ignorado de todos, e, ao contrário do que costumava fazer, procurou se afastar definitivamente do círculo das suas relações.
Até os próprios servidores notaram a sensível diferença imprimida por ele.
E, às ocultas, comentavam...
Entre eles, um não compartilhava da opinião dos mesmos, pois sendo o mais antigo criado, conhecia bastante o seu senhor e sabia que algo de extraordinário o tinha afectado profundamente.
Julgava que fosse devido à ausência do filho único, até então seu companheiro inseparável...
***
Tung vivia isolado, desde que chegou, e passava os dias perambulando pelos vastos salões.
Sentado na antiga cadeira de que tanto gostava, ficava analisando as mãos e vendo que, aos poucos, surgiam ameaçadoras manchas e seus dedos estavam intumescidos e insensíveis...
Certa tarde, procurou um pequeno espelho e, horrorizado, constatou a diferença já bem visível estampada nos contornos do seu rosto...
Viu que as feições estavam completamente modificadas, sentiu que os seus pés estavam dormentes e uma pequena ferida aparecia junto aos dedos, quase que o impossibilitando de poder calçar os sapatos.
Nessa análise dolorosa, Tung viu que seria debalde tentar encobrir a sua desdita.
Seria brevemente forçado a fazer a confissão dolorosa.
Sentia-se desamparado, sem o consolo de um só amigo a quem pudesse confiar toda a sua desgraça.
E Kiang?
Estremecia ao lembrar de quando o seu filho fosse sabedor da terrível verdade...
Como Kiang receberia a fatal revelação?
Era o que ele temia.
Confessar a Tieng... não.
Tieng estava muito longe e nada podia fazer; melhor que ignorasse.
Para todos os lados que se voltava não encontrava o amparo que precisava.
Só os servidores é que tinha ao seu redor.
E a esses ele queria ocultar e desejava mesmo afastá-los todos.
Só confiava em um.
O velho Chan, seu leal criado desde os primeiros anos de casado.
Tinha também o casal da casa de pedras, mas esses ele não podia afastar de lá, pois precisava deles para Li.
Meditou muitos dias até que resolveu chamar o velho servidor, e a ele fazer a confissão urgente.
Precisava de outra opinião e de um apoio para resolver o máximo problema de sua vida.
Esperou mais uns tempos, até que uma noite chamou o velho Chan para com ele conversar.
Levou-o para o seu salão e fechou cuidadosamente as portas diante do velho criado, que não podia compreender a atitude de seu senhor.
Depois sentou-se, tendo ao lado uma pequena cadeira.
Chan, em pé junto a ele, esperava ouvir as suas ordens.
Tung olhava com insistência para o velho criado, como procurando encontrar, no seu rosto rugoso e nos seus olhos baços, a confiança precisa para fazer a revelação difícil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:24 am

Por fim, disse:
— Chan! Sente-se aqui junto a mim.
O velho obedeceu. Tung ficou calado, sem poder saber como iniciar a sua confissão.
Reconhecia que esse momento era o mais terrível que tinha deparado na sua vida. Era, realmente, o começo da subida do seu longo calvário.
— Chan, necessito do seu amparo.
— Como, meu senhor? — perguntou ele.
Em que posso eu, humilde e pobre, lhe servir?
— Quero a sua amizade para poder fazer a você, meu único amigo, a mais dolorosa das confissões.
Chan encarou resoluto Tung, pois há muito que ele desconfiava que o seu senhor estava escondendo um grande segredo, e às ocultas tinha procurado olhar com mais vagar para ele, e não podia compreender o que sentia, mas notava que ele não era o mesmo.
Estava diferente, muito diferente.
E quando Tung o chamou e o fez sentar-se perto dele, foi então que Chan, horrorizado, notou que seu senhor estava com as feições de um... não... não... não podia ser, pensou tremulo o criado.
Mas, ao ouvi-lo pausadamente dizer que tinha uma confissão dolorosa a fazer, anteviu logo o que seria, porém, esperou que o senhor falasse.
— Chan!!! Estou leproso!!!
Essas poucas palavras custaram tanto para Tung poder pronunciar, que quando ouviu a sua própria voz dizendo — leproso — foi para ele, infeliz e desgraçado, um instante de alívio.
Julgava que jamais poderia pronunciá-las, mas as pronunciou no seu luxuoso salão, tendo por única testemunha o velho criado e amigo.
Parecia que, mesmo depois, ainda o eco de sua voz enchia o salão e ele ouvia nitidamente as mesmas palavras... leproso...
leproso... leproso.
Quando conseguiu dominar a forte emoção, fitou Chan e, comovido, viu que ele soluçava baixinho e que, aos poucos, foi erguendo a cabeça muito alva e, olhando para ele, disse:
— Meu senhor, em que posso servi-lo?
Não o abandonarei, ficarei ao seu lado.
Não tenho família e aqui há muitos anos vivo.
Estou velho e nada tenho.
Tung olhou Chan e reconheceu a bondade e a dedicação do velho criado.
— Agradeço-lhe, meu bom amigo, e se o procurei para fazer esta confissão, é porque, tinha certeza, encontraria em você o amparo de que necessito.
Quero dispensar os criados e ficar só com você, mas como poderei fazer?
Chan pensou um pouco para depois aconselhar:
— Pode, meu senhor, dissimular uma viagem e assim dispensá-los; quando voltar, podemos ficar sozinhos ou então ir para outra casa, mais afastada.
— Não quero deixar esta casa, onde. sempre vivi.
Foi quando Chan lhe fez outra pergunta:
— E quando seu filho voltar?
Tung não respondeu logo, e o criado não o interrompeu.
Depois de longo silêncio, ele disse:
— Chan, não posso saber como meu filho irá encarar o meu estado de saúde, porém, espero que ele saiba compreender bondosamente, e que tenha por mim muito afecto e profunda piedade.
Não o perturbarei jamais, e ele pode livremente viver bem, afastado daqui, até que eu desapareça.
Nesta casa, espero viver os meus últimos anos.
Será o meu derradeiro reduto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:25 am

O velho Chan percorreu com o olhar o salão repleto de raros e preciosos ornamentos, de ricas e custosas telas, de antigos móveis e depois pousou o olhar no seu senhor, sentado na cadeira antiga, com a cabeça grisalha e as feições alteradas.
Veio então ao humilde e inculto criado uma grande compaixão pelo seu rico senhor, e, mais uma vez, querendo testemunhar todo o seu apoio e amizade, tornou a reflectir:
“Meu senhor, fique certo de que eu não o abandonarei nunca”.
Quando Chan deixou o salão, Tung continuou sentado e voltou a pensar nas palavras do criado:
“E quando seu filho voltar?”
Ele não queria ainda pensar na atitude que Kiang poderia tomar, porém, lembrou-se de quando ele, ainda muito criança, foi decisivo na sua resolução contra a própria mãe que o adorava...
Recordou o rostinho transtornado dele quando ouvia a palavra: leprosa...
E quando ele viesse a saber que seu pai era também um leproso, já estaria um homem na plenitude de seu desenvolvimento e assim, talvez, pudesse melhor agir, e tomar uma resolução mais humana e mais afectiva.
Entretanto, Tung pouco confiava no filho, pois sabia que ele era egoísta, violento e ambicioso.
E, no turbilhão confuso dos seus pensamentos, ele não podia deixar de se lembrar de Li, agora tão perto...
Uma vontade imensa apoderou-se dele, um desejo ardente de poder revê-la ou ter notícias exactas de como ela passava.
Uma grande curiosidade de poder saber a marcha da moléstia, que primeiro a vitimou. Imaginava como Li devia estar transformada...
Penalizava-se quando revia o seu rosto perfeito e belo, os olhos brilhantes, a tez pálida e o sorriso meigo, para depois pensar na destruição implacável causada pela terrível doença.
Calculava toda a extensão do mal, vendo que ele em pouco tempo já estaria deformado e horrível...
Pensava quanto ela devia ter sofrido, pois, sozinha, no oculto subterrâneo, na estreita pequenez do minúsculo aposento, sem ouvir sequer a voz amiga de uma só pessoa, pois conforme “ordem” sua, só a muda é que tinha permissão para, uma vez ao mês, descer até à sua prisão.
Enquanto ele tinha os seus vastos e luxuosos salões, circundados das mais preciosas antiguidades, para o deleite dos seus olhos e para a divagação do seu espírito, ela nada possuía além da pequenina janela, que lhe proporcionava a ligeira visão de uma nesga do céu e um recorte minúsculo de uma volta do rio.
Tung pendia a cabeça e, no âmago profundo do seu coração, reconhecia que tanto ele, como Kiang, eram indignos do perdão de Li.
E também era justo o que ele estava sofrendo.
Só agora é que, depois de conhecer profundamente o sofrimento, deu o verdadeiro valor ao que Li passava.
Recordou que numa das suas viagens, quando teve oportunidade de passar uns dias na lendária cidade de Atenas, pôde sentir e estudar mais de perto a doutrina ali pregada, há muitos anos, por um dos maiores vultos da Grécia e que agora ele, fazendo um ligeiro retrospecto, via que realmente algo de sublime existia no seus ensinamentos, quando perante os seus acérrimos inimigos vulgarizou destemerosamente a sua doutrina baseada na grande verdade de que:
O bem é o efeito essencial para o esclarecimento da inteligência e da própria ciência”.
Tung reconhecia que só com a prática do bem é que podemos ter uma consciência calma e uma directriz perfeita nos nossos actos e julgamentos.
Se ele concebesse realmente o valor da prática do bem, não teria enclausurado Li.
Mas, naquela ocasião, ele não era bom, nem pensava na prática do bem, que nos aproxima e nos dá de Deus um ideal sublime.
Nas suas longas horas de meditação, Tung procurava recordar tudo quanto tinha estudado nas doutrinas e nas várias religiões, assim como nas bases da Filosofia, numa ânsia incontida de encontrar em qualquer uma delas um lenitivo para o seu sofrimento e uma explicação para o mesmo.
Tinha momentos de verdadeiro desespero e queria encontrar apoio seguro para poder, estoicamente, como fez Sócrates, o ilustre filósofo que ele tanto admirava, levar o seu corpo de veneno aos lábios e morrer corajosamente...
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 3 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:25 am

Mas ele não tinha ainda essa fé arraigada e forte, que o fizesse capaz de
um gesto desses; ele ainda procurava e tentava encontrar essa convicção que o faria agora um herói forte e audaz.
Tung precisava de uma fé mais sincera, para sentir a verdadeira resignação.
Lembrava-se que Li era inculta, que não tinha, como ele, nenhum conhecimento de dogmas nem princípios, mas que, entretanto, soubera corajosamente enfrentar a sua desdita sem uma só palavra de revolta e sem um só gesto de desespero.
Ela fora muito mais atingida do que ele, que até aquele instante não tinha recebido uma só demonstração de hostilidade e repulsa; pelo contrário, ao primeiro que confessou, o seu velho criado, encontrou nele o amigo leal, o companheiro fiel, que a tudo prometeu renunciar para ficar ao seu lado.
E Li? Ninguém teve para ampará-la quando ele e Kiang a repudiaram.
Mas ela os fitou como um desafio, tendo somente para guiá-la a luz viva da sua fé.
Essa Fé magnífica de Li, que ele desejava possuir e não possuía, mesmo tentando sofregamente encontrá-la nas doutrinas pregadas pelos pensadores e filósofos que já passaram pelo mundo.
A todos, ele, Tung, tinha recorrido em busca desse facho luminoso que sabia existir, mas não podia saber onde...
Nos seus preciosos livros, percorrendo com ansiedade as suas páginas, ele passava os dias e até altas horas da noite em demorado estudo; mas debalde, não encontrava nada que pudesse explicar e suavizar sua desdita.
***Foi um claro despertar de uma linda manhã, cheia de luz e sol, quando a natureza soberba se engrinaldava das mais belas flores, no desabrochar da primavera, quando tudo sorria inundando do mais vivo entusiasmo, desde a passarada feliz e livre cantando nas árvores floridas até as subtis e leves borboletas, ébrias de luz e perfumes, pousando inebriadas nas corolas entreabertas, sugando o néctar precioso para depois, tontas, em voos rápidos, ganharem a amplidão infinita... tung, sentado junto a janela, olhava extasiado toda essa grandiosa beleza, e erguendo depois os olhos cansados, procurava o céu...
Foi quando, inesperadamente, o seu pensamento pousou no vulto até então esquecido dele: Jesus!... e mais uma vez recordou as suas viagens e lembrou-se quando, com um grupo alegre de companheiros, visitou Jerusalém, percorrendo os lugares santos, indo até à poética cidade de Belém...
Reviu então Jesus...
Lembrou-se que, quando forte e sadio, subiu alguns degraus do monte Calvário, onde foi crucificado Jesus, o meigo Messias anunciado pelos profetas.
Como foi dolorosa a sua vida, quanto sofreu suportando os mais atrozes sofrimentos com uma admirável e santa resignação...
Tung, desde aquele momento, não pôde mais esquecer a visão de Jesus.
Procurou com avidez conhecer todos os pormenores do drama terrível que abalou o mundo inteiro e que até os seus dias trazia unida uma legião de adeptos da doutrina de amor e paz, ensinada pelo humilde filho de um carpinteiro nascido na mais extrema pobreza.
Tung empolgou-se por esse místico rabi e quis estudar demoradamente o que ele pregou.
E assim passava os dias, uns após outros, isolado no seu aposento, tendo como único companheiro o velho criado, cercado dos seus livros, à procura do bálsamo ambicionado.
Assim, desejava encontrar explicação para o seu destino.
Cada dia mais se avolumava a ânsia de saber algo sobre Li.
Foi então que, não podendo mais suportar, chamou Chan e pediu para que ele fosse até à casa de pedras e trouxesse o criado, porque precisava resolver com ele um negócio urgente.
No dia seguinte, muito cedo, Chan saiu num carro para cumprir as ordens recebidas.
Antes, Tung chamou-o, e pediu também para que, cautelosamente, informasse ao criado do seu estado de saúde, não ocultando dele a terrível revelação, diminuindo para ele a confissão.
Tinha também no seu criado da casa de pedras, confiança ilimitada.
Sabia que ele guardaria o seu segredo assim como tinha guardado o de Li...

1. [N.R.] Não consegui identificar a palavra truncada do PDF.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 29, 2021 10:25 am

VII — Tung e Jesus
Durante o longo tempo em que Tung esteve ausente, e mesmo depois que chegou, a vida de Li bem pouco havia se modificado.
Continuava feliz, no seu quartinho humilde e silencioso, tendo por única distracção os pequeninos trabalhos de tapeçaria que ela lentamente executava, ou então, quando enfadada, procurava ver da janelinha o céu azul ou a volta do rio.
Quando tinha oportunidade de ouvir os barqueiros era para ela uma grande alegria.
Gostava também de ver o verde das árvores e sorria contente quando via desabrochar as flores, principalmente da árvore que ficava junto à janela e cujos ramos, mais atrevidos, invadiam as grades e pendiam para o quartinho.
Muitas vezes conseguiu colher as flores que, milagrosamente, entreabriam no seu quartinho, e com elas enfeitar a pequena mesa que possuía.
Mas, a sua maior felicidade era quando tinha presa nas suas mãos uma das avezitas, que costumava vir apanhar as migalhas que ela depositava cuidadosamente na janela.
A primeira delas, que se chamava Mei-ling, já havia desaparecido há muitos anos, mas as suas sucessoras continuavam a ter a mesma amizade pela bondosa amiga, que tão paciente as esperava e as alimentava.
Só muito tempo depois que Mei-ling morreu foi que Li, chorando a sua falta, se lembrou que tinha dado à avezita o mesmo nome de uma filha de uma antiga amiga — Nai Pei...
Tinha também sido motivo de grande alegria e surpresa quando, um dia pela manhã, ouviu o ranger da chave na fechadura e logo mais apareceu na porta, toda aberta, a criada muda.
Li, tomada de espanto, ficou muito tempo olhando para ela, sem saber o que fazia...
Porém, refeita da surpresa, foi para perto dela e, sorrindo meigamente, procurou, por meio de gestos, saber qual o motivo da visita inesperada.
Satisfeita, viu que ela compreendeu, assim como Li também compreendeu o que ela queria dizer: tinha vindo visitá-la e ficar um pouco com ela.
Li agradeceu pondo a mão sobre o coração e depois tentou explicar que não pedia para ela se sentar por causa de sua doença, sendo este o motivo de estar presa.
Pelo olhar espantado dela, compreendeu que a muda duvidava das suas palavras, pois ela achava que Li estava muito bonita...
Com dificuldade, Li perguntou quem a autorizara a visitá-la e a muda, imediatamente, respondeu com precisão que foi o senhor, mostrando o caminho para a cidade...
Com o decorrer do tempo e pelas assíduas visitas da muda, foi fácil Li entender tudo quanto ela queria dizer e, desde então, ansiosa, esperava as suas visitas.
A muda demonstrou que não tinha medo da moléstia, tomando ela mesma o pequenino banco e sentando-se calmamente, para depois mostrar a Li o leito e pedir a ela que também se sentasse.
Ficaram grandes amigas e Li, para ter certeza de que ela a compreendia, certa vez pediu que lhe trouxesse, na próxima visita, um trabalho de tapeçaria, pois nada mais tinha para fazer, mostrando que precisava de muitas linhas de cores variadas, principalmente verde e, para espanto seu, ela trouxe tudo exactamente como ela pedira.
Não restou mais dúvida e, desde então, contou com a dedicação daquela criatura singular e bondosa.
Nunca porém viu o criado e, perguntando a ela, teve a resposta:
que o senhor não permitia que ele a visitasse.
Li então nunca mais perguntou pelo criado, contentando-se com a visita e a amizade da muda.
Corria lentamente o tempo e na grande casa de pedras tudo continuava normalmente como Tung deixara organizado.
Foi, pois, motivo de grande surpresa quando avistaram ao longe o carro que veloz se aproximava do grande portão.
Tanto o criado como a muda correram pensando ser o senhor que voltava.
Mas, ao depararem com Chan, maior ainda foi o espanto dos dois. Receberam o emissário de Tung com muita alegria e curiosidade, tendo o criado perguntado logo pelo senhor e quando tinha ele voltado.
Chan respondeu tudo, dizendo em seguida que tinha uma ordem urgente de Tung para ele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:04 am

Chan sentou-se ao lado do criado e, conforme Tung havia pedido, contou-lhe a desgraça que atingira o senhor, e como vivia isolado tendo somente ele por companheiro.
O criado ouviu estarrecido a notícia terrível e pediu a Chan que lhe transmitisse que continuaria a servi-lo fielmente.
Muito tempo ficaram os dois velhos criados conversando e penalizados com a desgraça que, tão rude, tinha atingido o senhor.
Amedrontados, pensavam, quando Kiang voltar, como iria receber a notícia de que seu pai estava atacado da doença terrível que ele tanto temia.
Chan tinha verdadeira compaixão de Tung, pois conhecia bem o jovem desde que nascera.
Acompanhava o menino e via, contristado, quanto ele era orgulhoso e rebelde. Já bem tarde foi que Chan se despediu dos amigos e tomou o carro de volta para levar ao senhor a certeza de que breve o criado iria.
Tarde da noite chegou e assim mesmo encaminhou-se ao aposento de Tung que, acordado, ansiosamente esperava por ele.
Quando ouviu o barulho do carro, foi ao encontro do criado, e ao avistá-lo perguntou aflito:
— Chan, por que ele não veio? — e respirou aliviado quando soube que breve ele viria...
Fez Chan sentar-se ao seu lado e contar, pormenorizadamente, tudo quanto conversara; porém, ele pouca coisa tinha para relatar.
Chan saiu e Tung, mais uma vez arrependido, mediu toda a extensão da sua crueldade para com aquela que, agora, podia ser sua companheira inseparável, pois, atingidos do mesmo mal, encontrariam, juntos, forças bastante para, com coragem, enfrentarem a cruel realidade.
Mas, ele mesmo, com o seu desmedido egoísmo, tinha subjugado, pelo excessivo amor ao filho, aquela que devia ter amparado com mais afecto e carinho.
***
Corriam os dias na luxuosa residência de Tung.
Quanto a Kiang, raramente recebia notícias, e foi com júbilo que recebeu, mandadas por ele, as duas telas feitas em Paris e na Itália.
Ele mesmo quis abrir o grande caixão para ter a satisfação de rever o filho ausente.
Emocionado, descobriu as telas e surgiu à sua frente o retrato fiel de Kiang, pintado pelos dois famosos artistas.
Tung colocou os quadros no grande e principal salão, um perto do outro, junto à cadeira antiga.
Passou muitos dias entregue à contemplação, num recordar constante dos últimos dias que conviveu com o filho e, sem poder se conter, sentia uma saudade atroz daqueles momentos inolvidáveis.
Lembrou-se também de Mei-ling e antevia a união de Kiang e dela, que viria alicerçar solidamente as duas velhas famílias, já presas por laços de longa e sincera amizade.
Se não fosse essa terrível moléstia, pensava Tung, essa perspectiva o faria imensamente feliz... mas... ele não poderia jamais ver esses dois entes amados... teria de se contentar só com a lembrança fagueira, de poder recordá-los e desejar que fossem felizes...
Dias depois, Tung recebeu a visita do criado da casa de pedras que, atendendo ao seu chamado, vinha receber as ordens.
Tung mandou-o vir para o grande salão e, fazendo com que ele se sentasse perto, começou a interrogá-lo.
Pouco pôde saber, pois o criado limitou-se a contar o mesmo que tinha dito a Chan.
Nunca mais viu a senhora, e só a muda é que descia para passar com ela ligeiros instantes.
Enquanto Tung falava, o criado olhava o seu senhor e, penalizado, via quanto a doença já estava adiantada, e que muito breve ele estaria horrivelmente mutilado.
Prometeu a Tung que procuraria interrogar sua mulher e ver se podia descobrir qualquer coisa sobre Li.
Testemunhou ao seu senhor a sua fidelidade e que ele ficasse certo, que assim como Chan, não o abandonaria nunca.
Tung, sensibilizado, agradeceu e pediu que ele providenciasse tudo o que Li manifestasse vontade.
E, assim, sem alterações, a vida continuava calma na silenciosa casa.
Só a moléstia é que acelerava sua marcha na faina destruidora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:05 am

Durante esses meses, Tung sentia que piorava constantemente e chagas profundas se abriam em todo o corpo; nas mãos, os dedos foram rapidamente atingidos...
Já não podia manter por muito tempo seguro um livro e foi preciso que Chan lhe fizesse um pequeno suporte para colocar os livros que desejava ler.
Atingida também, violentamente, foi a vista e, estarrecido, constatou que breve não poderia mais ter a distracção da leitura, pois mesmo com o auxílio das lentes não conseguia ter mais a nitidez precisa para as longas horas de estudo.
Chan nada podia fazer, pois não sabia ler...
Tung procurou, nesses últimos meses que ainda tinha vista, organizar melhor todos os seus livros e preciosidades, pois sabia perfeitamente que breve não poderia nada mais fazer, contentando-se somente em poder vislumbrar alguma luz, o suficiente para caminhar sem auxílio de Chan.
Continuava a receber poucas notícias de Kiang e do mesmo modo retribuía-lhe, mandando pequeninas cartas e, em todas elas, nada dizia a respeito da moléstia que furiosamente desenvolvia os seus tentáculos, abrangendo-lhe todo o corpo e o transformando totalmente.
Tinha os pés cobertos de chagas, o rosto intumescido, os olhos quase sem luz e sem cílios, raras sobrancelhas, as orelhas compridas e alguns fios de cabelos brancos.
Porém, o que foi mais atingido pela destruição da doença foram as mãos.
Um dia, quando Chan levou a primeira refeição, notou, ao entrar, que o seu senhor estava parado junto à janela, tentando atirar para bem longe qualquer coisa, e tão entretido estava que não se apercebeu da aproximação do criado; e este pôde, horrorizado, ver o que ele fazia...
Do indicador da mão direita, pendia uma falange que ele tentava desagregar do último liame que ainda a prendia, mas, sem forças, baldado era tentar.
Chan, bem perto, via o seu martírio e não pôde reter as lágrimas, queria falar e não podia, queria se afastar e também não tinha coragem de abandoná-lo, pois era o seu único amparo.
Então, sentiu ainda mais compaixão, e afectuosamente pôs a mão sobre o seu ombro, chamando-o baixinho:
— Senhor, diga-me o que deseja!
Tung voltou-se e pediu:
— Chan, meu bom amigo, me ajude, de modo com que eu possa me desenvencilhar disto.
E mostrou ao criado a falange dependurada, presa por ténue fio de epiderme.
Chan sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo, mas corajosamente foi à procura de uma faca para cortá-la.
Tung o chamou e, mostrando perto da janela um rico móvel, mandou que ele abrisse uma das gavetas, ensinando-lhe o segredo, para depois retirar um cofrezinho, obra rara de arte, e de dentro trazer um minúsculo punhal, fino e cortante.
O mesmo que, há anos, lhe fora o denunciador da verdade dolorosa, quando, caindo-lhe sobre o pé, não lhe causara a menor dor.
Chan, com cuidado, tomou e, conforme ordem do senhor, cortou, de um só golpe, o primeiro pedaço do corpo de Tung.
Ao cair a falange sobre o precioso tapete que cobria o salão, deixou gravada uma nódoa de sangue difícil de ser retirada.
Tung ficou muito tempo olhando apequena falange apodrecida caída junto aos seus pés, também cobertos de horríveis chagas.
O mesmo fazia Chan, até que, vagarosamente, deixou o salão para voltar logo depois e retirar a minúscula falange, sendo observado pelo seu senhor que, ainda de pé, olhava fixamente o pedaço do seu próprio corpo.
Quando Chan saiu, fechando a porta, Tung, exausto, sentou-se e viu surgir à sua frente a visão de Jesus, subindo o calvário, levando o pesado madeiro.
Sentiu alívio ao lembrar-se do meigo rabi e, conformado com o exemplo edificante que Ele deixou aos homens, sorriu como que enfrentando acintosamente o sofrimento, e pudesse, desse modo, receber mais tarde a recompensa prometida pelo Senhor, quando esclareceu que o seu reino não era deste mundo e que só os bons e resignados terão no reino de seu Pai a glória de repousarem felizes.
“Assim espero subir o meu calvário e, talvez, possa mesmo receber galhardamente a recompensa prometida aos resignados e arrependidos.” — pensou seriamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:05 am

Nesse momento teve vontade de escrever e procurou um pedaço de papel, com grande dificuldade, quase não enxergando mais, e com a mão direita mutilada ainda conseguiu deixar transbordar a sua grande dor, escrevendo lentamente este pequenino poema que dedicou ao seu filho Kiang:
Sofrer...
Pela última vez que escrevo, dedico ao meu filho Kiang esta recordação.

Tung Fú
I
Sorri da vida o néctar precioso...
Em taça de cristal toda dourada,
E como um vagabundo preguiçoso
Nesta ilusão da vida, repousada.
II
Caminhei triunfante e bem feliz...
Conheci mistérios do amor...
E como louco sonhador eu quis
Esquecer, no pratear, a própria dor...
III
Certo dia parei e, meditando,
Triste e desiludido, procurei
Reconhecer da minha vida o erro; e andando
Em outras terras, disse-me que pequei.
IV
Compenetrado, então, busquei o Céu;
Na face do Senhor vi alegria
Do meu coração aflito se doeu,
E de luz suavizou minha agonia.
Tung.

Nesse momento pensou em Li, e rapidamente lembrou-se de quando ela cantava baixinho, e recordou-se de um dia em que a ouviu cantando uma canção desconhecida, e, ao interrogá-la, soube que era dela a inspiração.

Milagrosamente lembrou-se e, num esforço inaudito, escreveu também para Kiang:
Felicidade é sonho... é quimera...
Nas alegrias suaves do amor...
Esperança que um dia nos espera,
Já libertos dos acintes da dor...
Li Fú.

Quando escreveu o nome de Li, exausto, deixou cair o papel que foi cobrir a nódoa de sangue deixada pela falange quando se desprendeu do seu dedo...
Assim, sempre pior, iam correndo para Tung os dias.
Chan, bem velhinho, mal podia zelar a grande casa apesar de Tung, há muito tempo, ter isolado e fechado completamente uma ala, pois nela guardara as mais ricas peças do mobiliário, assim como várias colecções de porcelana e miniaturas, toda a galeria de quadros, deixando somente os dois retratos recentes de Kiang e a tapeçaria feita por Li.
A rica colecção de livros fora, também, recentemente, transportada para o outro lado da casa.
Limitava-se agora ao salão, o seu aposento e perto o quarto de Chan.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:05 am

Mandara que o criado levasse o móvel que pertencera sempre à sua família, retirando porém o pequenino punhal.
Guardou com cuidado as jóias num artístico cofre e nele escreveu:
“Para Mei-ling Pei esta recordação de Tung Fú.”
Estava, portanto, tudo organizado e ele, com sublime resignação, esperava tranquilo o fim...
Restava-lhe somente uma esperança: era ainda poder ver Kiang, no anseio de encontrar no filho toda dedicação e afecto que lhe era dado esperar.
Queria também obter o perdão de Li, mas não podia mais escrever e não queria que ela visse o seu estado lastimável, bastava o quanto já vinha sofrendo com o seu infortúnio.
Mas... Kiang... ele, num derradeiro lampejo de esperança, ainda guardava o desejo de revê-lo, mesmo de longe...
Muitas vezes pensou escrever contando tudo, mas lhe faltava, no momento, a coragem precisa e deixava então que o tempo passasse.
Mandou diversas vezes Chan até à casa de pedras saber notícias de lá, assim como queria agora ver sempre o criado, pois era a única pessoa que sabia que ela vivia ainda isolada, na casa distante.
Como fez com Li, dizendo que ela havia falecido longe, assim também fez constar que iria empreender uma longa viagem e que, talvez, não voltasse mais para Cantão.
Dispensou os criados, fechou a grande casa e passou a viver oculto, só, com Chan.
Os anos foram passando e aos poucos foram também esquecendo-se dele.
Li, “falecida” há muitos anos, Kiang estudando no estrangeiro e ele viajando, deu ensejo a que os habitantes da cidade o esquecessem por completo.
Julgavam que Chan era simplesmente zelador da rica residência e que estivesse à espera de que um dia Tung Fú se lembrasse da sua cidade e viesse revê-la.
Assim, quase não olhavam para o velho criado, que se limitava a sair pouco.
O criado da casa de pedras, quando vinha, procurava chegar sempre à noite para evitar comentários.
***
O mesmo acontecia com Li.
Continuava a viver calmamente no subterrâneo, agora constantemente visitada pela muda, conforme autorização de Tung.
Quanto à moléstia, estava estacionada; poucos vestígios ela lhe imprimia, principalmente no rosto que continuava bonito e expressivo.
Quem a visse não podia, de relance, julgá-la doente; só mesmo com um exame minucioso é que se podia ver algo de estranho, como ligeiras manchas nos braços, os dedos curvos e ressequidos.
No lindo e lustroso cabelo negro, alguns fios brancos apareciam, dando ainda maior realce à beleza dos mesmos, e Li, num requinte de faceirice, nunca deixou de penteá-los com cuidado e de enfeitá-lo com flores, agora trazidas com capricho pela dedicada amiga.
Trazia o quartinho escrupulosamente asseado, e na rústica mesinha tinha sempre um vaso com flores.
Quando a árvore vizinha da janela se cobria de flores, ela subia no banquinho e com paciência entrelaçava os ramos pesados e floridos na grade da janela, de modo que ficasse como uma cortina alegrando e perfumando o aposento.
Pela manhã, então, era encantadora a janelinha florida e as avezitas, de cabecinhas baixas, comendo as migalhas gostosas, para depois, todas juntas, nos ramos verdes, entoarem os maviosos gorjeios que deleitavam a alma romântica e sonhadora de Li.
Nas paredes velhas pendiam os trabalhos perfeitos que ela vinha executando com vagar durante os longos anos de cativeiro.
Sentada, ficava olhando as suas tapeçarias sem molduras, apenas esticadas na velha parede encardida pelo tempo, fazendo entretanto que elas sobressaíssem muito devido às tonalidades claras e vivas das mesmas.
Para Li era motivo de imensa alegria quando a muda ficava parada em frente aos trabalhos e, depois, sorrindo e com gestos expressivos “dizia” que eram lindos... e vinha tomar as mãos de Li, acariciando-as demoradamente.
Não satisfeita de vir agora diariamente passar horas com a sua querida amiga, passou também a vir nas noites de luar.
Juntas ficavam em pé no banquinho perto da janela mirando a Lua prateada e muito redonda, solta na amplidão do Infinito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:05 am

Na volta do rio, que também se descortinava, viam os reflexos da Lua nas águas que, tranquilas, deslizavam.
Numa dessas maravilhosas noites, quando enlevadas contemplavam o espectáculo magnífico, Li ouviu, muito ao longe, chegando quase indistinta até ela, a canção triste dos barqueiros.
A muda nada ouvia, mas pelo gesto da senhora compreendeu que ela ouvia.
Ficou imóvel e viu quando os barqueiros passaram; Li desceu do banquinho, indo assentar-se no leito, chorando baixinho.
Ela aproximou-se e, ansiosa, queria saber o que a tinha magoado tanto, fazendo-a chorar.
Li explicou que se lembrou do filhinho ainda pequeno no seus braços, quando cantava para adormecê-lo...
A criada abaixou a cabeça já encanecida e chorou com ela.
Em tudo compartilhava com Li intimamente.
A muda notou que existia alguma coisa que seu marido ocultava, pois desde que Chan veio visitá-los ela teve permissão para descer quando quisesse ver a senhora e que seu marido agora ia sempre à cidade.
Tentou perguntar, mas ele não quis dizer nada...
Perguntou pelo senhor e ele também nada explicou, mas no seu cérebro pairava uma grande dúvida.
Quando foi ver Li, disse que o marido não estava, que tinha ido à casa do senhor e com gestos mostrava o caminho, e com os dedos tentava explicar que ele ia muitas vezes.
Apreensiva ficou Li, pois há muitos anos que estava prisioneira e só uma ocasião viu Tung, quando este veio despedir-se e participar que ia levar Kiang ao estrangeiro para estudar.
Nada mais soube e agora a muda lhe fazia reviver a curiosidade de saber se ele tinha voltado.
Nessa noite não pôde conciliar o sono, passando todas as horas acordada, com o pensamento fixo no filho e no esposo.
Tendo vivido esses longos anos recalcando todas as suas emoções, não podia deixar de sentir uma vontade imensa de saber como estava o filho que deixou tão criança.
Sentia, sem poder dominar nessa noite, uma saudade infinda dele.
Via-o um belo e forte mancebo, instruído e talvez, quem sabe, já tendo escolhido a sua companheira...
Quem seria ela?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:06 am

VIII — Kiang e a família de Tieng Pei
Durante esses anos em que Kiang estudou em Paris, desfrutou de uma liberdade absoluta, possuindo tudo quanto desejava, frequentando a mais distinta sociedade, dado o seu nome ilustre e a fama de possuidor de grande fortuna.
Logo que Tung o deixou, procurou os amigos e, em companhia deles, iniciou a sua vida mundana.
Com verdadeira sofreguidão quis conhecer tudo, desde os meios mais seleccionados até a baixa vida dos Basf-fonds.
Estudava bastante, queria ser instruído e no Instituto era considerado um dos melhores alunos.
Tinha pelos idiomas verdadeiro anseio de conhecê-los profundamente e com rara facilidade os aprendia.
Assim é que, em poucos meses, já falava correctamente o francês, tendo iniciado, com um professor conhecedor de inúmeros idiomas, o italiano, que ele achava necessário iniciar logo, pois pretendia voltar breve à Itália para percorrê-la demoradamente.
Passava todo o dia entregue aos estudos, mas a noite reservava para os passeios e conquistas.
Sendo um admirador apaixonado do belo, não podia deixar de se entusiasmar quando deparava com uma formosa dama, ou uma adolescente graciosa.
Teve logo oportunidade de manter intimidade com muitas mulheres belas, que conhecera, apresentadas pelos amigos nas reuniões elegantes, sem, todavia, esquecer Mei-ling, a sua predilecta.
Kiang, depois da partida do pai, continuou a frequentar assiduamente a casa de Tieng Pei, encontrando nos velhos e sinceros amigos de Tung todo o afecto e carinho.
Na casa acolhedora de Nai, encontrou um lar bondoso para ele.
Todas as vezes que ia visitá-los, era recebido com as mais carinhosas demonstrações de amizade pelos dois amigos, que o cumulavam de atenções, procurando, deste modo, substituir Tung, pois este, antes de deixar Paris, procurou Tieng para, confidencialmente, entregar o filho, certo de que ele tudo faria para protegê-lo.
Deu também ao amigo ampla liberdade de proporcionar ao filho tudo quanto ele pedisse, abrindo para Kiang um crédito ilimitado.
Tieng agradeceu a confiança que ele lhe testemunhava ao entregar o seu único filho e prometeu que, sem que ele notasse, vigiaria constantemente os seus passos, assim como teria o máximo cuidado de sondar suas amizades, e, quando necessário, o chamaria para aconselhar, como se fosse seu próprio filho.
Tung, emocionado, olhou o velho amigo e, quase num momento de fraqueza, teve vontade de confessar-lhe todo o drama de sua vida, porém, num ligeiro instante de reflexão, ainda teve o controle preciso para reprimir o impulso forte que teve de contar a Tieng tudo quanto tinha praticado e tudo quanto sofria...
Depois pediu a Tieng para chamar a esposa e a ela fez também o mesmo pedido.
Nai, mais positiva que o marido, foi logo se expressando com franqueza e sinceridade:
— Tung, você deve lembrar claramente quanto fui amiga de Li.
Vi Kiang nascer e acompanhei Li em todos os momentos alegres ou difíceis, até o dia em que deixei Cantão para não vê-la nunca mais.
Não posso deixar de sentir um certo ressentimento por não ter você me avisado de sua morte; enfim, tudo já passou e estou conformada, passando a ter por Kiang, agora, um afecto maternal.
Pode voltar tranquilo, que ele terá no meu lar, aqui em Paris, a continuação do seu em Cantão.
Procurarei ser para ele a sua segunda mãe.
Tung, sensivelmente comovido, agradeceu a Nai...
E assim, Kiang vinha encontrando nos amigos de seus pais, afecto e dedicação sincera.
Quanto a Mei-ling, não restava mais o menor sinal de dúvida, o jovem tinha, no primeiro momento, se assenhoreado do seu incauto coraçãozinho.
Com ansiedade esperava as visitas dele e, quando demorava, não podia ocultar o receio que invadia sua alma.
Tanto Tieng como Nai estavam certos de que um elo muito forte unia a única filha ao filho único do grande amigo.
Não podiam deixar encoberto quanto isso os alegrava, pois Kiang seria uma magnífica aliança para Mei-ling.
Sempre temeram que ela fosse procurar um jovem francês para se unir, o que seria para eles um grande abalo.
Continuavam, depois de longos anos de permanência na França, sendo os mesmos chineses e cultuando as mesmas tradições da sua pátria querida.
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 3 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:06 am

Queriam que Mei-ling encontrasse para esposo um chinês.
Foi com imensa satisfação que constataram a existência, entre Kiang e Mei-ling, de um laço de amor.
Não poderia ela ter encontrado outro jovem chinês que concretizasse todas as qualidades de Kiang.
Era a própria Nai que, confidencialmente, comentava com o esposo:
— Kiang reúne tudo, mocidade, distinção, inteligência, fortuna e fidalguia...
Tieng, sempre compassivo para com a esposa, sorria concordando com ela:
— Ainda temos muito que esperar — dizia ele. — Kiang precisa terminar o curso iniciado, depois irá viajar conforme tanto deseja, e só depois, talvez, venha buscar a nossa Mei-ling...
— Sim — respondia Nai —, eu também desejo que ele demore o mais possível, pois só assim poderemos ter a nossa filha mais alguns anos para alegrar a nossa vida e a nossa casa.
Kiang, com certeza, há-de querer volver à China, onde seu pai tem grandes e importantes fontes de renda, e propriedades valiosíssimas...
Conversavam, uma noite, os dois, quando, inesperadamente, apareceu Kiang que, ao entrar, foi logo abraçando Nai e Tieng, e chamando alto Meiling.
— Vim buscá-los para irem ver, antes que envie a meu pai, as telas que acabei de receber.
Quero a opinião de todos.
Vamos depressa, vamos, Meiling...
Juntos os quatro saíram, momentos depois, pelas ruas movimentadas de Paris até à residência do moço, ansiosos para verem as duas preciosas telas.
Foi com uma exclamação de grande admiração que depararam com os dois retratos de Kiang, em frente um do outro, sobre suportes apropriados de grande tamanho, circundados por rica moldura de inestimável valor, esculpida à mão, sobressaindo nitidamente em cores combinadas, numa demonstração exuberante do talento genial dos pintores.
Kiang, vestido em trajes típicos de rico fidalgo chinês, desde os sapatos de brilhante cetim negro, modelando os pés pousados num pequeno recorte de antiga tapeçaria persa, até às peças do rico traje, com um amplo calção, também de fulgurante cetim negro, caindo negligentemente até às bordas do sapato, e a comprida blusa do alvo tecido, bordado em relevos dourados, com uma larga faixa terminada com delicada franja de finos cordõezinhos, também dourados.
Na cabeça, um pequeno gorro de cetim preto.
Mas, para dar maior realce às cores sóbrias do traje, o renomado artista procurou um fundo roxo-escuro que, subindo, terminava no mais perfeito e difícil rosa-antigo.
Só mesmo quem tivesse visto essa tela feita pelo pintor italiano poderia constatar a magnitude e a maravilhosa beleza imprimida pelo pincel do grande génio.
Então, no rosto do rapaz é que se podia admirar a força do talento do artista.
E, realmente, Kiang era um raro tipo de homem.
Nos seus traços fortes, no olhar arrogante, na boca sensual, no sorriso irónico, deixava pairar uma personalidade inconfundível.
Quando posou para o artista italiano, a pedido de seu pai, estava na idade esplendorosa da vitalidade marcante em que o homem desafia, impávido, o mundo.
Sedento de emoções, sentindo no sangue o calor crepitante da vida que, em borbotões, qual corrente de caudaloso rio, se desprende violentamente no abismo escuro, mas na queda deixa refulgir, num instante rápido, a brancura espumosa das suas águas.
Assim, Kiang sentia no seu corpo o crepitar imperioso da seiva viva que, em alucinante impulso, está próxima a se desprender em convulsões incontidas, levando-o aos píncaros das emoções em que o homem sente toda a força do seu Ser, e quer, sôfrego, sugar impaciente todo o conteúdo da dádiva preciosa da natureza.
Reconhecendo que essa fase do homem era a que mais o tornara singular foi que Tung, observador arguto, quis eternizar o seu filho numa tela preciosa que, mesmo com o decorrer impiedoso do tempo, haveria de sobreviver bela e magnífica na eternidade das cores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:06 am

E quando o seu único filho, já no ocaso da vida, na última fase em que o homem vê contristado a ruína dos seus anseios e os escombros dos seus castelos, terá então, para alegria de sua recordação do passado longínquo, a satisfação de poder rever na oferta dessas telas o que ele foi... e poderá, só nesse momento, agradecer a lembrança de seu pai e talvez, num vislumbre de saudade, possa murmurar bem baixinho para que só ele ouvisse estas palavras:
“Grato, meu pai, pela oferta que agora posso realmente apreciar.”
Tieng, Nai-ling, Mei-ling e Kiang analisavam meticulosamente as telas não podendo, na apreciação, dizer qual a mais perfeita.
Os trajes de ambos eram idênticos, só diferenciados no tuncio{1}, em que os pintores divergiram escolhendo matizes opostos, de acordo com a escola de cada um, porem magníficos os dois.
A primeira que deixou de contemplar as telas foi Mei-ling. Silenciosa, foi sentar-se numa cadeira junto à janela, e pelo vidro olhava indiferente a rua...
Tão entusiasmados estavam os três que não se aperceberam de que a moça os tinha há muito deixado.
Quando Kiang deu uma grande gargalhada foi que Mei-ling despertou do seu devaneio e voltou a olhar com insistência o eleito do seu ingénuo coração. Durante os longos meses que tinha convivido com Kiang, na intimidade do seu lar, notou com tristeza que ele nem uma só vez falou sobre Li, falecida tão moça e tão bela.
Mesmo do pai, tão bondoso e tão amigo, ele raramente se lembrava, e quando ela tentava interrogá-lo via que no seu rosto apareciam rugas denunciadoras de contrariedade.
Mei-ling, filha carinhosa, que tinha por seus pais muito amor e ternura, não podia deixar de sentir uma certa repulsa pelo indiferentismo do jovem.
Muitas vezes conversou com Nai pedindo que ela lhe contasse tudo quanto sabia a respeito de Li.
E Nai, comovida, contava à filha quanto Li era bela e bondosa.
Descreveu minuciosamente a grande e luxuosa casa nas margens do rio Cantão.
Conhecera Li quando ela era ainda uma jovenzinha no desabrochar da vida.
Uniu-se a Tung, já seu noivo desde a infância.
Li, nessa fase da vida, era na realidade um tipo perfeito de beleza, raramente encontrado.
— Até hoje nunca cheguei a compreender como Tung, tão culto e viajado, tão apreciador da beleza e das artes, não tivesse dado a Li oportunidade de conhecer centros mais elevados do que o estreito círculo da velha cidade onde sempre residiram.
Kiang nasceu muitos anos depois de casados e fui testemunha da alegria de quando teve certeza que ia ter um filho, há tanto tempo sonhado.
Notei, porém, que ela, há muito, encobria uma grande preocupação e mais de uma vez tentei saber qual o motivo da sua tristeza.
Ela, sorrindo, me dizia:
“Nada!...”, mas eu via, estampados no seu rosto lindo, os sinais evidentes de uma luta íntima...
Quando Kiang nasceu, apesar do grande júbilo...
Li continuou triste... e nunca mais tornou ser a mesma, procurando se afastar de todos, vivendo quase que exclusivamente para o filhinho.
Quando deixamos Cantão, fui despedir-me e, chorando, ela me disse:
“ — Adeus, Nai querida, nunca mais a verei...”
Tung pouco nos escrevia e nem mesmo para comunicar a morte de Li, o que me magoou muito.
Mei-ling ouvia calada tudo quanto Nai contava sobre sua amiga e cada vez mais sentia por ela uma grande e sincera admiração.
Passados muitos dias depois que Kiang veio buscá-los para verem as telas, antes de enviá-las à China, foi que, uma tarde, quando Mei-ling, sozinha no grande jardim, apreciava um grande canteiro florido, Kiang, elegante e alegre, transpôs o portão e foi chamando alto:
— Mei-ling! Mei-ling!
Ela se voltou assustada e deparou com Kiang, à sua frente, com as mãos estendidas para ela.
Encaminharam-se para um banco...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:06 am

Mei-ling notou que algo de extraordinário o trazia ali naquela tarde.
Só depois de ter olhado muito para Mei-ling foi que ele falou:
— Vim até aqui para lhe participar que resolvi aceitar o convite de uns amigos para uma excursão a vários países, e como agora estou livre do Instituto por uns meses, quero aproveitar para iniciar as minhas tão sonhadas viagens.
A moça olhou demoradamente para Kiang, sem dizer uma só palavra, e ele então, muito delicado, tomou as suas mãos e com afecto perguntou:
— Por que, Mei-ling, ficou triste, quando eu estou tão contente de poder satisfazer os meus sonhos?
Irei agora só, mas depois iremos juntos percorrer os mesmos lugares; prometo isso a você, Mei-ling.
Irá comigo viajar muito.
Ela tornou a olhar para Kiang e com um sorriso delicado agradeceu dizendo:
— Só um lugar desejo conhecer... Cantão...
— Por que deseja tanto conhecer uma cidade tão antiga e feia?
— Sim, pode ser feia, mas é a minha terra natal; quero e hei-de conhecer essa cidade que adoro.
Kiang se transformou; no seu rosto de traços fortes surgiram as rugas denunciadoras de contrariedade.
Mas, fitando o lindo semblante da jovem, tudo esqueceu, e, tomando outra vez as suas mãos finas e com dedos longos, delicadamente prometeu que a levaria para conhecer Cantão...
Continuaram conversando, alegres...
A tarde, maravilhosamente bela, aos poucos foi-se esmaecendo no horizonte rubro, e o Sol pausadamente desapareceu, deixando atrás um rastilho de luz forte que lentamente foi sumindo...
Foi quando Kiang, olhando a noite que surgia, disse:
— Mei-ling, e tarde, e quero participar a Nai e a Tieng a minha próxima viagem.
Levantaram-se de mãos dadas e se encaminharam para a casa.
Entraram devagar para surpreenderem Nai e Tieng sentados juntos à janela aberta, contemplando também o pôr maravilhoso do Sol.
Voltaram-se ligeiros quando ouviram a voz de Kiang e alegres viram os dois jovens, de mãos dadas, parados em frente deles.
Não podiam deixar de reconhecer que Mei-ling e Kiang formavam um belíssimo par e anteviam, breve, o enlace feliz.
Kiang abraçou Nai e, contente, participou sua próxima viagem em companhia de alguns amigos.
Mei-ling, triste, ao lado, olhou Kiang, radiante de felicidade, por satisfazer mais esse capricho seu.
Tieng convidou-o para sentar-se ao seu lado e bondosamente perguntou:
— Já participou ao seu pai essa viagem?
Kiang olhou rápido para Tieng, não encobrindo a contrariedade que esta pergunta lhe causou.
— Não— respondeu.
Acho mesmo que é desnecessário pedir autorização para fazer o que desejo.
— Sim — disse Tieng —, mas é justo e devia ter ao menos avisado que vai partir para uma longa viagem.
— Depois mandarei dizer— respondeu desdenhosamente.
Nai e Mei-ling, sentadas perto, assistiram ao incidente havido entre Tieng e Kiang, mas nada disseram para evitarem novas contrariedades.
Foi Tieng que, passados alguns instantes, disse:
— Kiang, surpreendeu-me o silêncio de Tung; penso que algo de anormal está se passando com ele.
Notei quando, há tempos, veio deixá-lo, que ele ocultava uma grande contrariedade, e depois que partiu tentei diversas vezes, por meio de cartas, fazê-lo dizer por que não vinha passar alguns meses aqui.
Não compreendia como sozinho, podia viver cm Cantão, naquela casa tão grande e tão cheia de recordações dolorosas.
Porém, ele não respondeu às minhas cartas.
Tenho pensado sempre nele e me preocupa muito.
Por que não tenta fazer com que ele venha para junto de nós?
Tung já está envelhecido e, depois que perdeu Li e que você veio estudar longe, não devia ficar sozinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 30, 2021 11:06 am

Tem sólida fortuna e um único filho.
Kiang, de rosto contraído, ouviu Tieng.
Depois disse, com voz áspera, denotando que estava seriamente aborrecido:
— Tieng, meu pai sabe o que faz e o que deseja, por isso não insisto para que ele deixe Cantão e venha residir aqui.
Tenho certeza de que ele se sente satisfeito na sua velha cidade e na sua casa grande, nas margens do rio que ele adora.
Quando sentir vontade de vir, sim, eu o receberei com alegria, mas pedir, não farei isso — e levantou-se bruscamente, despedindo-se e saindo em companhia de Mei-ling.
A tarde findava lentamente, o céu muito escuro encobria toda a cidade; nessa hora, em que todos voltavam apressados para o seus lares, era intenso o movimento.
Os jovens, parados silenciosos junto ao grande portão, olhavam os transeuntes.
Via-se no rosto de Kiang que ele estava irritado, e no semblante meigo e puro de Mei-ling se descobriam os vestígios claros de urna grande tristeza.
Seria porque seu amado ia ficar ausente por longos dias?
Foi essa a pergunta aflita de Kiang, quando demorou o olhar no rosto de Meiling.
Tomou as suas pequeninas e macias mãos, apertando-as fortemente entre as suas, e perguntou:
— Diga-me... o que a preocupa?
Mei-ling sorriu meigamente para ele e nos seus olhos belos e brilhantes havia uma sombra de preocupação, porem disse timidamente:
— Nada...
E Kiang sentiu que era inútil tentar fazer com que ela dissesse o que sentia.
Muito tempo ainda ficaram conversando, até que ele se despediu, deixando Mei-ling junto ao portão.
Imóvel, ficou até que o perdeu de vista, porém não saiu de onde estava.
Olhos muito abertos, contemplava a multidão que, apressada, cruzava em sentido contrário. Pensou naqueles seres desconhecidos e meditou:
— Quantos dramas não escondem eles. Quantas tragédias ocultas...
Quantos crimes não terão praticado e impunes gozam de ampla liberdade...
Imediatamente surgiu, no seu pensamento, Tung, distante, abandonado na casa grande e silenciosa...
Tentou vislumbrar a silhueta desconhecida de Li, por quem cultivava uma grande veneração.
Não sabia explicar por que, mesmo sem conhecê-la, tinha por ela um tão estranho afecto.
Desde o momento em que soube que ela não mais existia, estranhou a atitude de Kiang, que, durante todo esse tempo em que convivia com ele, jamais pronunciou espontaneamente o seu nome...
Por quê?
E o silêncio de Tung?
Qual seria o motivo? – meditou.
Tinha certeza que algo de extraordinário existia entre Tung, Kiang e Li.
A noite tinha descido completamente e no céu apareciam as primeiras estrelas... mas Mei-ling continuava recostada no portão entregue aos seus confusos pensamentos.
Depois, exausta, saiu em direcção do jardim, indo procurar o mesmo banco em que costumava ficar sentada com Kiang.
Era um comprido e antigo banco, encostado a uma velha e frondosa árvore, cuja copa verde dava uma sombra agradável, e nas noites claras e estreladas era poético esse lugar, pois os raios prateados da Lua, infiltrando-se nos galhos, vinham reflectir-se na areia branca.
Mei-ling adorava esse recanto, quer nas manhãs frescas ou nas noites enluaradas...
Quando estava preocupada ou triste, vinha correndo sentar-se no velho banco debaixo da árvore amiga.
Quando menina, ali brincava entretida, fazendo as suas minúsculas casinhas para depois, alegre, sentar-se vitoriosa defronte ao seu grande trabalho; então ia buscar Nai, para que visse a sua habilidade, e orgulhosa recebesse os elogios...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:04 pm

Radiante ficava quando Nai a tomava nos braços, beijando-a carinhosamente, e fazendo depois com que ela se sentasse ao seu lado para juntas conversarem.
Foi ainda debaixo dessa árvore que ouviu pela primeira vez as palavras de amor, pronunciadas com doçura por Kiang... foi ali que a sua alma pura e singela despertou, emocionada, para os prenúncios da vida...
Recostada no velho tronco da árvore amiga, ouviu extasiada e feliz o juramento de Kiang, apaixonado, prometendo a ela um “mundo” de felicidade...
Quando Kiang vinha visitá-la procuravam logo esse banco, pois afastados de todos podiam conversar despreocupados...
Agora sozinha, Mei-ling estava com a cabeça junto ao tronco áspero e rugoso, deixando que o seu pensamento corresse célere e fosse pairar distante na sua pátria desconhecida e querida.
Recordando tudo quanto Nai e Kiang vinham lhe contando, podia perfeitamente fazer ideia da beleza e do encanto da cidade em que havia nascido.
Via o caudaloso rio deslizando mansamente, cheio de embarcações rústicas, levando grandes carregamentos, via a cidade típica, com as suas construções exóticas, porém interessantes e belas... e por último aparecia a grande casa do riquíssimo Tung Fú...
Mei-ling tinha ouvido tantas e tantas vezes Nai descrever essa casa que parecia que ela a conhecia realmente...
Via o luxuoso salão repleto de raridades preciosas, coleccionadas com capricho por Tung... via o vulto gracioso de Li, percorrendo o salão para depois sentar-se com um lindo menino ao lado.
Nai lhe contou que Li tinha uma voz maviosa e cantava delicadas canções, embalando Kiang pequenino...
Tão despreocupada estava que não viu quando Nai desceu para o jardim e sentou-se ao seu lado.
Mei-ling estava de olhos fechados e sua mãe não a despertou.
Quando abriu os olhos e encontrou Nai, sorriu delicada, e abraçando-a começou a soluçar...
Nai, surpresa e aflita, insistia em saber o que estava acontecendo, mas Mei-ling não podia articular uma só palavra, soluçando convulsivamente... foi preciso que Nai tomasse as suas mãos frias e as colocasse junto ao seu coração, perguntando outra vez o que a fazia sofrer...
Mei-ling olhou para o rosto de sua mãe, bem perto do seu e respondeu, finalmente:
— Não sei explicar por que, desde que conheci Kiang, venho sentindo essa estranha sensação... saudades de minha pátria desconhecida... uma recordação insistente de Li, que também não conheci... e quando Kiang está ao meu lado parece-me que ele tem um mistério qualquer que oculta.
Já observei que quando insisto em falar em Li, ele se transforma imediatamente e no seu rosto aparecem rugas profundas, denunciadoras de uma ligeira cólera...
Tenho certeza de que algo doloroso ele tem fechado no coração.
Sinto também que ele é pouco amigo de Tung e não tem por seu velho pai as atenções que deveria ter.
Desde que ele partiu para a China, nunca mais procurou manter uma correspondência amiga, suavizando assim um pouco a vida solitária de Tung.
O silêncio de Tung me faz ainda mais apreensiva.
Tudo isso Mei-ling dizia apressadamente, não dando ensejo a que Nai a interrompesse uma só vez.
Depois ficou silenciosa, de cabeça baixa, soluçando...
Nai deixou que ela chorasse livremente...
Só quando, passados alguns momentos, a jovem ergueu o lindo rosto, ainda húmido de lágrimas, foi que Nai falou:
— Sinto a mesma sensação quando olho para Kiang.
E Tung, quando aqui esteve, estava completamente mudado...
Ele encobria uma grande melancolia...
Quanto a Li, sempre estranhei o procedimento dele, ocultando-nos o seu prematuro falecimento.
Mas tudo isso não é motivo para que você esteja constantemente preocupada.
Se não lhe agrada a convivência de Kiang, nos é fácil afastar.
Mei-ling imediatamente respondeu com voz alterada:
— Não... não... eu gosto muito dele e tenho esperança de poder, em sua companhia, conhecer a minha pátria querida, e então terei oportunidade de saber como Li morreu...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:04 pm

Nai continuou olhando para a filha, sentada ao seu lado no rústico banco.
A tarde estava finda e no céu muito escuro despontavam as primeiras estrelas...
Uma agradável viração balouçava a frondosa árvore... e das múltiplas e variadas flores vinha um subtil perfume que inebriava todo o ambiente.
Ao longe, destacava-se a grande casa iluminada...
Sentadas bem juntas, de mãos entrelaçadas, estavam as duas olhando o belo jardim, quando divisaram numa janela o vulto de Tieng, procurando descobrir onde elas estavam.
— Vamos, minha filha, é tarde e seu pai nos espera...
Levantaram-se e, ainda de mãos dadas, encaminharam-se devagar para a casa...
Kiang, em companhia de alguns amigos, conforme tinha planejado, iniciou a longa viagem através de vários países.
Eram todos ricos e alguns nobres, ansiosos de conhecer tudo e de tudo observar.
Kiang era o mais jovem e o único chinês.
Já falava correctamente o francês e era de uma distinção perfeita.
Todos o admiravam muito, não só pela sua fama de fabulosamente rico, como ainda pelo realce de seu nome ilustre.
Os amigos não se enfadavam em ouvi-lo, pois ele era realmente dotado de um raro poder de sedução.
Iniciaram a viagem pela Itália, onde a percorreram toda, seduzidos pelas belezas magníficas daquelas terras privilegiadas.
Quando a deixaram, traziam gravadas, nos seus corações, imorredouras recordações...
Foram à velha Espanha no afã de conhecerem todas as lendas das suas encantadoras filhas, as mais belas mulheres do mundo...
Kiang, dotado de ardente temperamento, ficou preso pela estonteante beleza daquelas jovens, de um moreno claro e de olhos negros, profundos e sonhadores.
Teve diversas aventuras que, depois de afastados da Espanha, ainda eram comentadas pelos amigos...
E tanto gostou que fez com que a viagem fosse alterada só para satisfazer o seu capricho, em desejar demorar mais alguns dias na cidade de Barcelona, onde ele deixou fama, pelas suas excêntricas conquistas e pelo prestígio da sua fortuna.
Conseguiu tudo quanto almejou... Portugal... Lisboa... Porto... Coimbra... Sintra... novamente Lisboa... noitadas no Estoril... noites de maravilhosa beleza nas praias sem par...
Kiang passou dias alucinantes nesse recanto...
E foi com verdadeira tristeza que deixou Portugal, reclamando dos amigos os poucos dias que foram destinados para gozarem de tantas surpresas agradáveis.
Seguiram então numa ligeira visita à Inglaterra, pois dois dos companheiros eram ingleses e queriam mostrar também o encanto da sua pátria.
Kiang não gostou tanto da Inglaterra como tinha gostado dos outros países, pois dotado de temperamento ardente e impetuoso, sentia-se enervado com o clima nublado e frio de Londres, onde demoraram mais, porém não o demonstrou para não molestar os amigos delicados e atenciosos.
Esperava ter outro aspecto a velha capital inglesa.
Os dias que passou em Londres foram dias completamente escuros, sem um só raio de sol para clarear... os grandes monumentos, enegrecidos pela pátina do anos, que dava aos mesmos um cunho de tristeza... foi sem reclamações que seguiu para outra etapa da viagem.
— Estou ansioso por ir à Suíça — dizia Kiang.
Tenho por esse país um culto de admiração, talvez motivado pelo entusiasmo que meu pai sempre demonstrou pela sua civilização ímpar e pela bondade característica dos seus filhos.
Quero conhecer toda a beleza desse país...
E foi com intensa satisfação que penetrou na decantada capital Berna.
Ali demoraram poucos dias, seguindo numa rápida excursão pelos outros cantões.
Foram dias cheios de alegria, pois, incorporados a outros excursionistas, percorreram todos os cantões e voltaram engolfados no mais puro contentamento, depois de terem tido a feliz oportunidade de ver os mais belos e empolgantes recantos do mundo; a paisagem verde dos Alpes, salpicada das mais delicadas e raras flores, deixava na alma dos excursionistas, gravada para sempre, a mais feliz e imorredoura lembrança.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:04 pm

Foram dias estonteantes para os jovens ávidos de prazer...
Queriam gozar nesses dias de férias, tudo quanto lhes era permitido, dada a escassez de tempo que tinham para tão longa excursão.
Tiveram de dividir os poucos dias de estadia nos vários países, o que muito contrariou Kiang, mas como tinha certeza de poder voltar quando quisesse, procurou se divertir o mais possível.
Fez questão de ir, embora ligeiramente, conhecer a Áustria e a Hungria, países que ele tinha grande vontade de percorrer, seduzido pelo encanto das suas músicas, desde as valsas lânguidas e melodiosas, às puras sinfonias de Schubert, até às divinas rapsódias do genial Franz Liszt.
Empolgado do mais vivo contentamento, Kiang percorreu a tradicional e encantadora cidade de Viena, centro máximo da boémia europeia.
Foi em Budapeste que ele teve a mais forte e séria aventura de sua mocidade.
Se não fosse tão arraigada a grande paixão que Mei-ling tinha despertado no seu coração, talvez ele tivesse ligado para sempre o seu destino a uma loira e alva jovem dos arredores de Budapeste.
Com verdadeira saudade partiu, depois de uma luta titânica dos seus companheiros para conseguirem que ele continuasse a excursão.
Queria ficar até que eles voltassem, para poder ter por mais alguns dias a companhia da sua bela e sedutora húngara, que o tinha feito prisioneiro dos seus encantos.
De todos os lugares, Kiang não deixou de procurar uma lembrança para Mei-ling, testemunhando assim perante ela, que não a esqueceu nunca...
Porém, de Budapeste nada levou, pois ali ele quase olvidou a sua linda e meiga chinesinha...
Rapidamente fizeram uma visita a Berlim, onde, desconhecendo por completo o idioma alemão, foi um tanto difícil para Kiang conhecer a majestosa capital.
Teve nos últimos dias, porém, uma surpresa agradável, quando ao entrar numa casa de diversões deparou com um chinês numa roda de excursionistas e, ao ser apresentado, teve a ventura de poder conversar no seu próprio idioma, coisa que há muito não fazia, porque em Paris só conversava com Mei-ling e seus pais em francês.
Era um chinês muito instruído da cidade de Xangai, que vinha à Europa tratar de importante missão.
Juntos saíram, sendo que o companheiro falava correctamente o alemão, permitindo assim que pudesse conhecer outros centros nocturnos de requintada elegância.
Os amigos quiseram voltar de Berlim, o que Kiang não concordou, pois queria, ainda, embora ligeiramente, visitar a Suécia, Dinamarca, Noruega, Bélgica e Holanda...
Os últimos dias foram passados na pequenina e encantadora Holanda, onde se cultivam as mais belas flores, como a papoula, de que Kiang gostava muito.
Fez questão de levar bulbilhos para Mei-ling cultivar no seu jardim.
Estava quase terminada a excursão, pois tinham poucos dias para o retorno e o começo das aulas no Instituto, onde ele já cursava o último ano, podendo logo dar início a outros estudos que ele tanto queria.
Foi em Haia, numa noite muito calma, quando, exausto de um dia todo cheio de passeios, que, ao entrar no seu luxuoso aposento para repousar, inesperadamente sentiu, sem saber explicar por que, uma saudade pungente do seu velho pai, há muito quase que esquecido. Kiang, deitado, revia a sua infância na vasta residência, às margens do rio...
Sem poder conter o seu pensamento, pela primeira vez depois que se tornou realmente homem, lembrou-se de sua mãe Li e nesse retorno apareceu bem perto dele o gracioso vulto de sua pequenina e terna mãe...
Lembrou-se dela perfeitamente, e numa visão nítida a viu sentada na areia branca do rio, nas margens silenciosas, com um tenro raminho verde escrevendo devagar...
Pôde até se lembrar da frase, pois tinha nessa época precisamente dez anos, repetindo com certa dificuldade:
“Dor... és o estilete que nos fere, que nos humilha... que nos tortura... mas és também o caminho que nos eleva, altaneiros, aos paramos celestiais...”
Kiang repetia as palavras, umas após outras, como desejando arrancar do seu sentido exacto a essência pura da alma privilegiada de sua desconhecida mãe...
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 3 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:04 pm

Sentou-se bruscamente no leito e, aflito, perguntou a si mesmo:
— Teria ela morrido?
Por que esse silencio de meu pai?
Não... Não é possível...
Ele jamais a procurará.
Tenho certeza...
Ele tem horror dessa terrível moléstia, assim como eu tenho.
Não quero mais pensar no passado distante...
Não quero...
Dois dias depois, Kiang partiu para a França onde chegou exausto e ainda apreensivo com o prolongado silêncio de seu pai.
Imediatamente foi rever Mei-ling, encontrando-a muito alegre e, como sempre, belíssima.
Ela ficou surpresa ao ouvir, pela primeira vez, o jovem dizer que estava preocupado com a falta de notícias de Tung.
Ela, então, amorosamente lhe tomou as mãos e, sensibilizada, lhe disse:
— Precisamos, logo, providenciar a vinda de Tung para junto de nós; é impossível ele continuar sozinho e tão distante.
Ele olhou agradecido para Mei-ling, que nessa radiosa manhã de primavera estava vestida singelamente com um simples vestido branco, com os cabelos negros e sedosos penteados com capricho, não tendo um só adorno além de algumas flores, negligentemente colhidas no momento e presas aos cabelos.
Era, entretanto, impressionante a sua beleza.
Tinha uma tez de um moreno claro e nessa ocasião, talvez motivada pela emoção da vinda inesperada de Kiang, o seu rosto estava coberto por um leve colorido, de tom rosado, como se fosse pintado pelo pincel de um grande pintor.
Ele, mudo, na contemplação soberba, pensava consigo, que Mei-ling era, nessa manhã, um modelo perfeito para a tela de um mestre sedento de encontrar para a sua inspiração algo de grandioso e sublime.
Tão corada ela estava que o moço lembrou-se da Suíça, onde, recentemente, tivera oportunidade de ver as soberbas frutas cultivadas naquele rincão altamente beneficiado pela natureza.
Mei-ling, nesse momento, tinha para ele o mesmo encanto das magníficas e coloridas maçãs, cujas tonalidades assemelhavam-se com o rosado natural do seu lindo rosto.
Radiante com a transformação de Kiang, tinha um sorriso sedutor bailando na sua boca de contornos encantadores.
Enfim, tudo nela era perfeito e de uma graça espontânea.
E se o jovem a examinava ocultamente, ela fazia o mesmo.
Assim, como ele a encontrava contente, transbordando de felicidade, que a tornava ainda mais sedutora, ela também via no rosto largo e expressivo de Kiang traços, até então, dela desconhecidos.
Só ao ouvir quando ele disse que estava saudoso de Tung e ansioso por revê-lo, Mei-ling notou que haviam desaparecido milagrosamente as rugas que lhe davam, em certas ocasiões, um aspecto desagradável...
Kiang, desde aquele momento, teve para a delicada Mei-ling um novo e sedutor encanto.
Surgia para ela uma nova fase; já antevia a vinda de Tung, e como seria feliz tendo mais aquele bondoso e sincero amigo pronto para, como seus pais, torná-la a pequenina soberana daquele encantado reino que era a casa grande e austera que ela via do rústico banco quase que encoberta pelas árvores verdes e frondosas.
Recostou a linda cabecinha junto ao rugoso tronco da velha árvore para ouvir dois encantadores passarinhos que, bem juntinhos, num ramo delgado que balouçava levemente, tangido pela aragem fresca da manhã, emitiam livremente os mais ternos e harmoniosos gorjeios...
Eram duas avezitas de luzidia plumagem, sendo que o mais esbelto tinha as peninhas arrepiadas, como testemunhas eloquentes do prazer grandioso, que tinha recebido da sua linda companheira que, também de cabecinha levantada e orgulhosa, o desafiava impávida, cantando alegremente...
Kiang não perturbou o silêncio de Mei-ling, deixando que ela ficasse entregue aos seus devaneios...
Esperando, recostou a cabeça no mesmo tronco e fechou os olhos à espera que ela o chamasse.
Sentiu quando a macia mãozinha pousou sobre a sua, estremeceu ao contacto delicioso, abriu imediatamente os olhos e a viu com o rosto quase que encostado ao seu...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:05 pm

Amorosamente apertou as mãozinhas que estavam sobre as suas, dizendo baixinho:
— Adoro-a, Mei-ling!
Ao mesmo tempo ouviram a voz de Nai que de longe os chamava.
Levantaram-se e com passos vagarosos se encaminharam para atender o afectuoso chamado.
Ao se aproximarem, viu Nai que sua filha estava alegre, pois no seu rostinho belo eram visíveis os vestígios de felicidade e de ventura.
Juntos, foram à procura de Tieng que, folgadamente sentado perto da sua janela predilecta, gozava também a fresca...
Quando viu Nai junto da sua cadeira e, logo depois, se sentou enlaçado pelos braços da filha querida, notou que algo de extraordinário elas vinham lhe comunicar; foi então logo dizendo sem se levantar de onde estava:
— Qual o motivo de todo este agrado?
Mei-ling sorriu contente e mostrou Kiang que estava oculto atrás de sua mãe...
Tieng, tomado de surpresa, pois não o esperava, levantou-se e o abraçou fortemente, enquanto Mei-ling foi logo participando:
— Temos uma novidade para contar!...
E uma grande surpresa!
Kiang resolveu convidar Tung para vir morar definitivamente junto de nós...
Tieng e Nai aproximaram-se de Kiang e, sorrindo bondosamente, o abraçaram comovidos, o mesmo fazendo, mais uma vez, Mei-ling...

1. [N.R.] Pode ser trajes.
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