LUZ ESPÍRITA
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 5 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:38 am

Darei ordens para que tenha , assim como o casal, uma importância certa para as despesas e incluindo na mesma a manutenção de meus pais.
Quero que transmita a ele esta decisão que tomei, evitando desse modo outra aproximação desagradável.
Chan não pronunciou mais uma palavra sequer; ficou olhando muito tempo para Kiang, sentado à sua frente.
Apesar de ser inculto, era dotado de um coração boníssimo, não podendo compreender como aquele filho, criado com tanto carinho e desvelo, não tivesse um só lampejo de piedade para com seu pai bondoso e amigo.
Ao mesmo tempo sentia por Tung uma compaixão imensa, e quase com satisfação esperava levá-lo para a casa de pedras, junto à senhora, e lá, então, todos poderiam viver tranquilos.
Sempre foi seu desejo que o senhor fosse residir na casa de pedras, onde poderia desfrutar de mais liberdade, porém, ele jamais quis atender o seu pedido, e agora seria forçado a deixar, para sempre, esta casa.
Pensando assim, saiu devagar para transmitir as ordens de Kiang.
Ao entrar, viu que seu senhor ainda estava dormindo.
Cautelosamente, chegou perto da cadeira, e, quando Tung abriu os olhos, sorriu e perguntou:
— Outras notícias, Chan?
— Sim.
— Pode então dizer, que estou pronto para ouvir.
O criado continuou calado; sendo preciso que Tung o interrogasse novamente:
— Vamos, Chan, pode falar, estou calmo e resignado, tudo farei para não molestar meu filho.
O que ele resolveu?
— Senhor, ele ordenou que eu o avisasse que amanhã, à noite, teremos de nos mudar para a casa de pedras, onde pretende deixá-lo na minha companhia.
Tung não demonstrou a menor mágoa ao ouvir as suas palavras.
Calmamente disse:
— Pois bem, meu amigo, cumpra as ordens; estarei pronto para o seguir quando ele quiser.
Arrume tudo quanto me pertence neste aposento, incluindo as duas telas, que desejo que me acompanhem.
O criado deixou Tung para ir providenciar tudo quanto o senhor necessitaria na casa de pedras.
Entrando e saindo constantemente, o velho criado ia levando o que o senhor desejava e, por último, com grande dificuldade, retirou os dois retratos de Kiang, levando para junto do que já estava pronto para seguir.
Quando trazia o último retrato, inesperadamente, apareceu o rapaz que, ao ver as duas telas preciosas, bruscamente perguntou a Chan:
— Diga-me quem autorizou que redrasse essas telas?
— Foi o senhor.
— Para quê?
— Para levá-las, pois deseja que elas o acompanhem sempre.
Kiang, com um sorriso sarcástico, voltou-se para o criado e disse:
— Não permitirei; estas telas são valiosíssimas, não podendo sair da minha galeria.
Chan, desta vez, fitou Kiang como num desafio...
— Mas o senhor deseja e eu cumpro as suas ordens.
Só deixarei de enviá-las se ele autorizar, do contrário elas irão.
Kiang, com o rosto transtornado, aproximou-se do criado que, impávido, não recuou...
Chegou bem perto, porém, notou no olhar de Chan tanta revolta, que não teve coragem para dizer nada.
Assim ficaram os dois junto aos retratos.
Vendo que o criado não se afastava, desesperado, gritou:
— Pode esperar, irei falar com meu pai — e saiu em direcção ao aposento de Tung.
Empurrou a porta e entrou...
Sentado na sua cadeira, Tung não demonstrou o menor receio quando Kiang se aproximou mais do que das outras vezes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:38 am

Notando a indiferença de seu pai, que nem sequer ergueu a vista, enfurecido, o jovem gritou:
— Como teve a ousadia de ordenar que aqueles dois retratos fossem transportados para a casa de pedras?
Tung olhou impassível para seu filho, e depois lentamente respondeu:
— Porque eles me pertencem e eu posso levá-los para onde desejar.
— Não! Eles não lhe pertencem mais:
tudo o que tem nesta casa e meu!
Você já não vive mais...
Irá para o subterrâneo como foi minha mãe e ficará para sempre olvidado... Morto!...
Até então, Tung julgava que seu filho somente desejava que ele fosse residir na casa de pedras, mesmo no subterrâneo, porem com toda a liberdade de acção, nunca preso.
Ele levantou-se da cadeira com imensa dificuldade, pois tinha os pés cheios de feridas entreabertas que o impossibilitavam quase de andar.
Mesmo assim, com um grande esforço, conseguiu caminhar e aproximou-se do filho, que, como hipnotizado pelo olhar alucinado do pai, ficou preso no mesmo lugar, sem poder se mover.
Tung vagarosamente chegou mais perto, ergueu a mão mutilada e, num gesto brusco, tentou bater no rosto do filho que adorava, porém, nesse momento supremo, a porta se abriu e o velho Chan entrou ainda em tempo de compreender o que o senhor ia fazer e, assustado, gritou e correu:
— Meu senhor, não faça isso...
Não faça, é o seu velho servidor que pede...
Tung deixou cair a pobre mão e, soluçando, voltou, amparado pelo criado, para a sua cadeira.
Calados ficaram os três; Chan, junto do senhor, como amigo sincero e dedicado; Kiang, como petrificado, não saiu do lugar até que Tung, com voz trémula, disse para Chan:
— Vá buscar os dois retratos e coloque-os no mesmo lugar.
Depois, voltou-se para o filho e disse:
— Pode retirar-se; amanhã deixarei esta casa que lhe pertence e faça constar que morri...
Kiang abaixou a cabeça e saiu.
***
O dia seguinte, Tung passou-o quase que todo em companhia de Chan, ultimando as coisas que seriam levadas.
Não perguntou pelo filho e, à noite, já estava preparado para seguir.
Levava somente as roupas e insignificantes objectos para seu uso.
De todas as relíquias preciosas, acumuladas há tantos anos, ele só levava o pequenino punhal, assim mesmo muito oculto.
Quando a noite chegou, pela última vez, Tung se aproximou da janela e ficou olhando aquele recanto em que sempre viveu...
Depois, andando devagar, voltou e parou perto dos dois retratos.
Na lembrança esmaecida do seu passado, não muito remoto, reviu, fitando aquelas duas telas, os dias que passou com esse filho, que agora vinha, com todos os requintes de crueldade, arrancá-lo de sua casa para levá-lo e atirá-lo no subterrâneo frio e triste.
Teve, nesse momento, verdadeiro horror do filho ingrato...
Mas. passados alguns instantes, relembrou que ele também praticou o mesmo delito, e, portanto, era justo o seu castigo.
Levantou a cabeça e, corajosamente, desafiou, impávido, o filho.
Sentiu que o criado batia no seu ombro e, resoluto, disse:
— Estou pronto, podemos sair.
Não quis o auxílio do criado e se encaminhou para o corredor, onde encontrou Kiang, que o esperava.
Passou por ele sem demonstrar que o via.
No portão, o carro esperava.
A noite era clara e bela.
Tung tomou assento e o filho também.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:38 am

Chan pegou as rédeas e fustigou os animais que, velozes, deixaram para trás a rica residência de Tung Fú.
Durante o longo trajecto, Tung não pronunciou uma só palavra, o mesmo fazendo Kiang.
Foram horas terríveis para aquele infeliz pai...
Foram tão dolorosas que o deixaram sem poder raciocinar; parecia que o seu cérebro estava paralisado, não podia pensar, sentia um desalento tão profundo, que estava alheio a tudo, como se as suas faculdades mentais tivessem recebido um choque violento.
Tentou encostar a cabeça para ver se conseguia adormecer, mas foi vão o seu esforço.
Aliviado ficou quando viu que se aproximavam da casa de pedras.
O criado não tinha sido avisado, pois foi repentina a vinda de Kiang e repentina a sua resolução.
Ao defrontar a grande casa, Chan chicoteou ainda mais os animais, que foram parar ofegantes junto ao portão.
Chan desceu e gritou pelo criado que demorava a ouvir o sinal.
Pai e filho continuaram sentados no carro.
Impaciente, ele tomou a dar o sinal, agora, com violência.
Não demorou muito, a porta se abriu e Chan, retomando ao seu lugar, fez com que o carro entrasse no vasto parque.
Surpreso, o criado aproximou-se e então viu que o senhor vinha também, acompanhado de um jovem que no momento não reconheceu.
Chan levou-o para um lugar afastado e, com ligeiras palavras, explicou-lhe que o jovem era Kiang, e que vinha prender Tung no subterrâneo.
Ansioso, perguntou:
— Onde está a senhora neste instante?
— Está no subterrâneo com minha mulher.
Foi quando ouviram a voz impaciente de Kiang chamando-os.
Quase correndo, voltaram os dois e ajudaram Tung a descer do carro.
Estarrecido, o criado deparou com o senhor, que realmente estava monstruoso, principalmente, depois das emoções por que passou.
Foi quase carregado que Tung entrou no grande salão.
Sentou-se exausto numa cadeira.
O moço chamou o criado e ordenou-lhe que providenciasse uma luz.
Imediatamente foi atendido.
Chegou junto de Tung e, com rispidez, disse:
— Vamos, eu mesmo quero ir deixá-lo.
Tung levantou-se e, arrastando os pés cobertos de chagas, acompanhou o filho.
Recordou-se da última vez que desceram essas escadas para despedir-se de Li.
Muitos anos já foram passados e ele, agora, novamente, descia para ir compartilhar com ela da mesma prisão.
Kiang, à frente, levava a luz.
Não permitiu que os criados os acompanhassem, dizendo que tinha ordens a dar logo mais.
Sozinho, com seu pai, desceu as velhas escadas.
Tung caminhou esse pequeno trajecto como se fosse realmente o começo da subida do seu doloroso calvário.
Quando Kiang abriu a porta, viu que duas mulheres estavam junto a uma janelinha.
Recordou, então, que uma delas era sua mãe...
Voltou-se para seu pai e, levantando alto a luz, disse:
Entre...
Tung entrou e Kiang, bruscamente, fechou a porta com surdo barulho, para depois, quase correndo, voltar ao salão onde os dois fiéis criados o esperavam.
Chamou Chan e disse:
— Não precisa voltar comigo, eu mesmo guiarei o carro.
Pode ficar desde já aqui.
Terá sempre o necessário, assim como meu pai.
Poderá ir receber todos os meses a importância que eu ordenei lhe seja entregue.
Conforme disse, não precisa mandar me dizer nada sobre meu pai.
Confio que saberá compreender e obedecer as minhas ordens, assim como os dois criados desta casa.
Partirei breve para a França, onde pretendo fixar definitivamente a minha residência.
Chan, assim como o criado, em pé ouviram, pela última vez, as ordens daquele jovem que eles carregaram nos braços, quando pequenino.
Foi com alívio que ouviram o barulho do carro se distanciando da velha casa...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:38 am

XI — Nos luminosos caminhos do amor e do perdão
Li, em companhia da muda, estava tão entretida, contemplando a noite, que não demonstrou o menor sinal de curiosidade quando ouviu o bater forte da porta.
Julgou que fosse o criado.
E assim continuou algum tempo junto à janela.
Tung, encostado à parede, imóvel, esperava que ela se voltasse e deparasse com ele.
Quando cansada, resolveu sentar-se.
Foi Li a primeira que desceu do banquinho, ajudando em seguida a muda.
E ao se voltar, então, viu aquele ser disforme e horrível dentro do seu quarto.
A Lua, reflectindo em cheio no rosto de Tung, ainda o tornava mais horripilante.
Li, apavorada, deu um grito estridente, e caiu sem sentidos sobre o pobre leito.
A muda, também, tomada de pavor ao ver Li tombar desfalecida e aquele ser horrível parado perto da porta, ficou sem saber o que devia fazer:
amparar Li ou sair em busca do marido.
Mas vendo Li estendida no leito, pálida e fria, abaixou-se e, pegando a sua cabeça, começou a acariciá-la ternamente, procurando encostá-la junto ao seu coração.
Tung, ainda recostado à parede, não conseguiu dar um só passo.
Era por demais doloroso o que presenciava.
Afinal, Li, aos poucos, foi recobrando o sentidos para sentar-se depois no leito e, com coragem, fitar aquele monstro que ainda não reconhecia.
Com voz trémula, conseguiu perguntar:
— Quem é você?
O que vem fazer aqui?
— Sou Tung!
— Não!... Não!... Não!... — gritou Li.
Ele veio para mais perto dela que, amedrontada, abraçou-se à muda.
— Sou Tung...
Olhe bem, que me reconhecerá.
Os olhos de Li, muito abertos, fixaram-se em Tung, junto dela.
Depois, começou a chorar baixinho...
A muda nada compreendia, no momento.
— O que vem fazer neste subterrâneo?
Por que deixou a sua casa confortável para vir aqui?
— Vim para sempre...
— Não!... Não!... — tornou a gritar Li.
Não o quero aqui!
Estou acostumada só e só quero viver...
Você é rico, pode ter muitos criados...
Por que vem, depois de tanto tempo, perturbar a minha tranquilidade?
Por que só agora é que lembrou que ainda vivo?
Pode voltar e, se e pelo meu perdão, há muito que o perdoei...
Mas quero viver sozinha neste subterrâneo; ele é meu...
Saia... Saia logo... Eu quero...
Ele ouvia silenciosamente as palavras de Li.
Atónito, olhava o seu rosto lindo e perfeito.
Os cabelos embranquecidos davam a ela um auréola de dignidade que Tung, comovido, via nesse inolvidável momento de sua vida.
Vendo que ele não se afastava, Li levantou-se e foi até a porta para abri-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:39 am

Apavorada, viu que ela estava fechada por fora.
Voltou mais assustada ainda, e chegando bem perto dele, perguntou-lhe:
— Como veio até aqui e por que a porta está fechada?
Responda... Responda...
Tung olhou bem para o rosto de Li e, muito baixo, respondeu:
— Vim até aqui porque meu filho assim exigiu e foi ele, naturalmente, que fechou a porta, prendendo-me para sempre neste subterrâneo.
Ela continuou olhando para Tung encostado a parede.
A muda, sentada no leito, continuou sem nada compreender do que estava se passando; quase não reconheceu o seu senhor.
Foram momentos terríveis para os três.
Li não sabia como agir, estava completamente transtornada, e Tung, impassível, não fazia o menor movimento, continuando como se estivesse preso à parede.
Fechados, era impossível tomar qualquer resolução.
Tinham que esperar com paciência que os criados viessem libertá-los.
Li, outra vez, perguntou a ele, já com voz mais branda e olhar bondoso:
— Desde quando você está doente?
— Desde que fui levar Kiang ao estrangeiro.
— E desde quando ele soube?
Tung abaixou a cabeça e começou a soluçar...
Ela se aproximou ainda mais dele e, penalizada, viu quanto a moléstia o tinha deformado...
Ele estava horrível...
Li era realmente muito boa.
Na sua alma pura e bela não abrigava nenhum sentimento de ódio para com aquele que a fizera tanto sofrer...
Só em pensar que ele estava no mesmo subterrâneo onde, há tantos anos, ele, sem um só lampejo de piedade, atirou-a, pelo grande afecto que dedicava a seu filho que, agora, sem compaixão, quando ele mais precisava de carinho e amor, o havia jogado no mesmo subterrâneo, onde ela vivia esquecida...
Só ao pensar nisso foi o bastante para que Li tudo esquecesse e se voltasse com ternura para Tung, que estava muito pior do que ela.
Tornou a perguntar:
— Desde quando ele soube?
Tung, então, confessou tudo a Li.
Contou como soube que estava doente; depois, a viagem, a atitude rebelde de Kiang, o encontro com os velhos amigos Nai e Tieng, e com saudade recordou de Mei-ling, descrevendo-a para Li...
Contou a viagem que fez à Itália, descreveu os retratos de Kiang e, por último, as decisões tomadas e a firme resolução de viver sempre na sua casa.
E agora, inesperadamente, apareceu Kiang para levar todas as preciosidades que guarneciam a casa e, não contente ainda, arrancá-lo de lá e vir pessoalmente atirá-lo ali...
Li ouviu, atenta, a confissão de Tung.
Ele, encostado à parede e ela à sua frente.
Quando terminou, ela tinha os olhos cheios de lágrimas.
Fez ainda uma pergunta:
— Disse a ele que eu ainda vivia?
— Sim, foi a minha última tentativa para evitar que ele me trouxesse aqui, perturbando a sua tranquilidade.
Mas foi debalde...
Ele riu alto e disse que seria melhor, pois teríamos a companhia um do outro.
Nesse momento, ela tornou a dar um grito e caiu, sem sentidos, junto de Tung.
A muda correu e ele se abaixou para ajudar a bondosa amiga a levar Li, desacordada, para o leito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:39 am

Deitada com todo o cuidado, a muda sentou-se, pôs a cabeça dela no seu colo e, com delicadeza, afagou os seus cabelos grisalhos.
Tung sentou-se do outro lado e, tomando, nas suas mãos mutiladas, as mãos ressequidas de Li, contemplou demoradamente os seus dedos curvos, atestados da moléstia impiedosa...
Comovido, beijou-as, deixando cair sobre elas as lágrimas claras e puras do seu sincero arrependimento.
Quando ela tornou a recobrar os sentidos, Tung abaixou-se, e, bem perto do seu rosto, pediu:
— Li, perdoe-me!...
Nesse instante, ouviram o barulho da chave na porta e, logo mais, apareceram Chan e o criado.
Ao encontrá-lo sentado ao lado de Li, Chan sorriu contente dizendo:
— Senhor, ele já se foi e a porta está aberta; podem ir para cima, onde ambos encontrarão mais conforto.
Li sentou-se no leito e com calma respondeu:
— Jamais sairei deste subterrâneo.
Aqui desejo finalizar meus dias:
se Tung desejar, pode subir, eu ficarei.
— Meu bom amigo Chan, eu também aqui ficarei, pode providenciar um leito para mim, assim como as minhas refeições.
— As suas ordens serão cumpridas, meu senhor, e se resolver sair para um pequeno passeio, a porta estará sempre aberta; aqui terá plena liberdade.
— Só sairei se Li me acompanhar...
Li, outra vez, tombou desmaiada sobre o leito.
Desta vez, foram quatro que correram juntamente para socorrê-la.
A muda tentou explicar que ela nunca tinha sentido isso...
Foram momentos angustiosos, até que ela voltou a si e contou que, há muito, vinha sentindo essas fortes dores no coração.
Tung, ao olhar para Li, compreendeu que ela, além da lepra, estava atacada de outra moléstia traiçoeira que poderia levá-la bruscamente.
— Será — pensou ele — o mais rude golpe que poderá atingir-me.
Perdê-la, agora, seria uma dor tão profunda que talvez não tivesse forças para suportar.
Seria o cume do meu calvário...
Mas Li foi, aos poucos, melhorando e todos, satisfeitos, viram que ela voltava normalmente...
***
Passados alguns dias, estavam já habituados à convivência no mesmo aposento.
Conversaram muito; ela, deitada e Tung, sentado ao seu lado.
Como ele já quase não podia ler, certo dia, pediu à Li para que lesse; chamou Chan e mandou-o trazer alguns livros.
Com que prazer ouvia a sua leitura com voz suave e clara...
Sentia-se tão feliz ali que não tinha vontade de sair.
Inúteis foram os convites de Chan:
— Não... só irei quando Li desejar — respondia sempre.
A noite, desciam os três criados e ficavam conversando, animadamente.
Certa noite, muito bela, quando o luar invadia todo o aposento com sua luz brilhante e todos estavam reunidos conversando, a muda se levantou e, chegando perto de Li, pegou sua mão e puxou-a para junto da janela; com o dedo mostrou a Lua e depois a porta, convidando-a desse modo para o passeio que faziam juntas.
Li sorriu bondosa e pediu o agasalho.
Ligeira, atendeu-a e o colocou nos seus ombros.
— Vamos, Tung, fazer um pequeno passeio pelas margens do rio?
A noite está convidativa...
Vamos todos...
E, sem esperar resposta, de mãos dadas, saiu com a muda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:39 am

Tung, contente, seguiu seus passos, o mesmo fazendo os criados.
Era a primeira vez que ele saía depois que Kiang o tinha deixado.
Acompanhou Li, vagarosamente.
Quando defrontaram com o rio, que estava belíssimo, coberto pelo luar esplêndido, Tung respirou feliz e, vendo Li sentar-se na areia branca, sentou-se também junto dela e da muda...
Viu quando a criada fez um gesto como que pedindo qualquer coisa...
Esperou e, surpreendido, não demorou muito a ouvir Li, muito baixinho, cantar:
Felicidade é pranto e é agonia...
Felicidade é canto e é alegria...
Felicidade é bálsamo para o amor...
Felicidade é a inimiga da dor...

Quando terminou, apressada, levantou-se e saiu sem olhar para Tung.
Nunca mais eles pronunciaram o nome de Kiang...
Um dia, Tung despertou muito cedo e viu que ela já estava olhando pela janela, como que procurando descobrir qualquer coisa oculta nos ramos frondosos da árvore que ficava defronte.
Curioso, perguntou:
— Li, o que você procura aí?
Ela voltou-se e, sorrindo, disse:
— Estou à espera dos filhotes de Mei-ling que não tardam a vir...
Tung olhou espantado e perguntou:
— Quem são?
Li passou a contar-lhe a história da primeira Mei-ling.
Ele ouviu atento e no seu pensamento passou célere o vulto de outra Mei-ling, que, com certeza, agora já era a senhora Fú.
Quando ela terminou, Tung ficou ainda pensando na delicada criaturinha que ele adorava...
Profundamente concentrado, não reparou que a esposa estava calada, observando a sua atitude, detalhadamente.
Vendo que ele não erguia a vista e, receosa de que estivesse sentindo qualquer dor, levantou-se e, pousando a mão de leve sobre seu ombro, chamou-o:
— Tung! Tung!
O que está sentindo?
— Nada...
Apenas sentindo saudades...
Uma grande e profunda saudade...
— Mas, de quem?
Será que sente assim tanta saudade do nosso... — e não finalizou a frase.
— Não, Li, não estou sentindo saudade do nosso filho... Não...
Estou recordando simplesmente uma delicada criança, que você conheceu também muito pequenina e que se transformou na mais bela donzela que pode imaginar, e que, talvez, já esteja ligada ao nosso filho, pois um grande amor já os unia quando partiu... recordo-me de Mei-ling Pei, filha dos nossos velhos amigos, Tieng e Nai...
Juntos, com as cabeças quase encostadas, mãos entrelaçadas, olharam o céu de um azul terno e suave...
Na árvore frondosa, bandos apressados de pássaros ali estavam, cantando alegres e felizes, com o despontar da manhã clara e fresca...
A senhora via, desolada, a faina da moléstia destruidora sobre Tung.
Dia a dia, ele ficava mais deformado, assim como ia perdendo, assustadoramente, a visão.
Estava, já, quase cego.
Li continuava lendo para ele e, nessa manhã, depois do abalo sofrido com a recordação de Kiang e Meiling, Tung pediu:
— Li, escreva para mim...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:40 am

Aí, nesse mesmo livro.
Quero deixar uma pálida lembrança minha...
Talvez seja a última.

Li, então, escreveu o que Tung pediu:
Lembrança
I
Vivendo triste pensando...
Na minha vida simplesmente
Lembrando do mundo ausente
Do passado recordando!
II
Na recordação passando
Me esquecendo do presente
Do passado indiferente
Só de tristezas vibrando.
III
Belas lembranças do mundo
Guardo saudades profundas
E porque sou desgraçado?
Quero esquecer... e no fundo
Sinto amarguras tão fundas
Melhor é ser crucificado.
Tung Fú.

Ao terminar, Li fechou, com cuidado, o livro e, sem que ele pudesse pressentir, pois quase não enxergava mais, apertou com força as mãos sobre o coração e deu um pequeno gemido, caindo sem sentidos, junto ao esposo.
Estavam sós no aposento.
Tung, ao ouvir o gemido e o barulho da sua queda, ficou completamente desorientado.
Abaixou-se e, às apalpadelas, conseguiu pegar as mãos frias de Li...
Gritou muitas vezes por Chan, que não pôde ouvi-lo...
Sentou-se, depois, e conseguiu colocar a cabeça dela em seu colo.
Passou as mãos sobre o seu rosto e pôde ver que ela estava lívida...
Não tinha dúvidas, estava atacada de uma doença do coração que poderia levá-la repentinamente.
Queria colocá-la no leito, mas não tinha forças...
Instantes alucinantes...
Sentindo que ela não retornava, num esforço supremo deixou-a deitada onde estava, e, cambaleando, abriu a porta e saiu pelo longo corredor, chamando pelo criado.
Chegou à escada e começou a subir os degraus, sempre gritando.
Já perto do topo, quase sem forças para continuar, gritou desesperado:
— Chan!... Chan!... Chan!...
Nesse momento difícil, Chan estava no salão e ouviu, muito ao longe, alguém chamar por ele.
Aflito, correu e, ao aproximar-se da escada, encontrou Tung tentando subi-la.
Alarmado, amparou-o e perguntou-lhe:
— Senhor, o que foi que aconteceu?
— Chan, corra, a senhora está muito mal!
Chan o fez sentar-se e saiu ligeiro em busca da muda e do marido.
Voltou depressa e, passando junto de Tung, desceu a longa escada para ir socorrer Li.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:40 am

Quando chegou, a porta estava toda aberta e Li estendida no mesmo lugar.
Ao vê-la, Chan teve a impressão de que ela estava morta, mas ao colocá-la no leito, Li abriu os olhos, fitando-o demoradamente.
Nesse instante, Tung, amparado pela muda e o criado, entrou no aposento.
Todos, à volta do leito de Li, aflitos, a contemplavam e reconheciam que ela estava seriamente doente.
Desde esse dia, Li não se levantou mais, tendo sempre ao seu lado Tung e a muda.
Os criados, sempre atarefados e amedrontados com a possibilidade de Li vir a falecer...
O que seria, então, de Tung?
Fazia, já, três dias que ela estava doente.
A noite, como de costume, todos reunidos conversavam baixinho, mas o senhor não pronunciava uma só palavra.
Tinha as mãos de Li fortemente presas às suas, e, em dado momento, sentiu que ela procurava retirá-las.
Deixou para ver o que ela queria fazer.
Li ergueu-se no leito e, chamando Tung para mais perto, disse-lhe, confidencialmente:
— Tung, não me sinto bem, e se eu desaparecer quero levar comigo a certeza de que perdoará o nosso filho, assim como eu já o perdoei...
Tung demorou a responder.
Sentiu, ao ouvir Li pedir, ainda, por aquele filho tão perverso e ingrato, uma profunda revolta...
Mas, ao olhar para o seu rosto pálido e lindo, sorriu e respondeu:
— Está perdoado!
Li tomou outra vez a sua mão e colocou-a junto ao coração.
Todos estavam calados.
A noite estava bela.
O céu pontilhado de brilhantes estrelas, uma fresca aragem sacudia, de leve, as árvores.
Um perfume muito subtil emanado das flores, invadia o pequeno aposento.
Li deitada, tendo ao seu redor os velhos e dedicados servidores, e junto, Tung arrependido.
Olhava para a janela aberta e parecia ver surgir dois rostos alegres que a fitavam muito.
Ergueu-se ainda mais no leito e ficou com o olhar parado na visão querida.
Kiang, seu único e adorado filho, que, apesar de ingrato, ela ainda amava muito... Muito...
Vê também Mei-ling, tão linda e meiga como lhe descreveu Tung...
Ela sorriu para Li e levantou a mão, como que para dizer adeus!
Tung, curioso, acompanhou todos os seus gestos; Li recostou novamente a cabeça e ficou de olhos fechados.
Todos se aproximaram do leito.
A muda, bem perto, não retirou um só instante o olhar do rosto calmo e belo da sua única amiga.
Era muito linda a expressão de Li, adormecida.
Pálida, os cabelos, quase totalmente brancos, emolduravam a cabeça perfeita, como se fosse uma auréola prateada.
E, para dar mais realce à sua beleza impressionante, um raio de luz veio bater no seu leito, cobrindo-o todo.
Já vinha, ao longe, rompendo a madrugada quando Li abriu os olhos.
Viu que todos estavam juntos dela.
Puxou a muda para mais perto.
Pegou a sua mão e, depois de acariciá-la muito, beijou-a com ternura.
Em seguida, chamou o velho e dedicado Chan, tomou-lhe também a mão e, como fez com a muda, conservou-a muito tempo presa à sua.
Em seguida, muito baixinho murmurou:
— Chan, entrego-lhe o senhor.
Seja, até o fim, seu amigo bondoso e leal; eu lhe agradeço, neste momento, por tudo quanto fez.
Despediu-se depois do marido da muda e, por último, chamou Tung.
Este compreendeu que era chegado o momento supremo que ele tanto temia.
Viu que ela iria deixá-lo para sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jan 05, 2022 11:40 am

Quis falar e não pôde, quis chorar e não tinha lágrimas...
Li fez com que ele ficasse bem junto dela.
Tinha ambas as mãos presas às dele.
Olhou com piedade para as mãos de Tung, cujos dedos, alguns já estavam sem falanges, deixando cair sobre elas, abundantes e transparentes lágrimas.
Ele, com o olhar penetrante fixo em Li, acompanhou todos os seus movimentos.
No horizonte distante, vinha aparecendo o Sol rubro...
Despontava lentamente a manhã encantadora.
Nas árvores, os bandos alegres de pássaros já entoavam trinados maravilhosos.
As flores abertas deixavam exalar um perfume muito ténue.
No velho subterrâneo, de paredes encardidas pelos anos, o sol invadia clareando-as todas.
Pela janela podia-se ver o verde forte dos arvoredos e, nas grades de ferro, um ramo florido entrava, ousadamente, deixando pendente uma braçada de flores, como derradeira oferenda à gentil moradora daquele pequenino aposento.
Li olhava tudo... e sorria feliz, pois encontrara naquele humilde cantinho uma paz perfeita, uma amiga sincera e dedicada que a fizera passar tantos anos quase que esquecida de seu drama quando, na realidade, era urna prisioneira.
Agora, quase liberta desta prisão, sentiu que sua alma de escol ansiava por galgar o Infinito e fruir da única e verdadeira liberdade.
Olhos fitos na amplidão azul, tendo Tung, arrependido, ao seu lado e os velhos amigos, num simples suspiro, deixou que a sua alma se desprendesse facilmente e voasse para o céu...
Tung sentiu que as mãos de Li se desprendiam das suas...
E, ao contemplá-la, viu que ela já não estava mais ali...
Debruçou-se sobre seu corpo e chorou, o mesmo fazendo os criados...
***
Li foi sepultada debaixo da frondosa árvore que ficava defronte à janelinha do subterrâneo.
Era um lugar maravilhoso, circundado de grandes árvores, cuja sombra acolhedora e amiga convidava ao repouso e à meditação.
Tornou-se o lugar preferido de Tung.
Logo pela manhã, vinha, amparado por Chan, sentar-se debaixo da grande árvore e, muitas vezes, só voltava à tarde para o subterrâneo.
Eram inúteis todos os esforços para fazê-lo subir.
— Não, Chan, daqui não sairei; só quando for para ir definitivamente, e quero que seja bem perto de Li, debaixo da mesma árvore amiga.
Todas as noites, como era de costume, desciam os dois criados.
A muda, desde que Li morreu, tornou-se triste, não fazendo nunca mais o menor gesto.
Vinha silenciosa e sentava-se no leito de Li, que agora era de Tung.
Certa noite, o criado desceu só...
Tung, aflito, perguntou pela muda e ele contou que ela, desde cedo, não quis levantar-se, recusando todos os alimentos.
— Por que você não avisou logo? – reclamou Tung.
Vamos já para lá.
Não podemos deixá-la sozinha.
Levantou-se e saiu, o mesmo fazendo Chan.
Quando entrou no pobre quartinho da amiga querida de Li, deparou com ela, deitada, com as mãos sobre o coração.
Tung aproximou-se e, vendo que ela estava de olhos fechados, como que adormecida, em silêncio, sentou-se junto do seu leito.
Chan chegou e sentou-se, também.
Momentos depois, entrou o criado e, ao pegar a mão de sua mulher, recuou, assustado...
Tung levantou-se, chegou bem perto da muda e tomou as suas mãos, que já estavam frias... muito frias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:06 am

A muda morreu como sempre viveu... calma... feliz... porque encontrou, nos seus derradeiros anos, uma boníssima amiga que a compreendeu e a estimou com sinceridade.
Tung sentiu muito a morte da muda, entristecendo-se mais ainda.
Tinha, agora, só a companhia do velho Chan, que, aos poucos, ia também perdendo as forças.
Era quase que servido pelo criado.
Chan não podia ir mais à cidade receber o que Kiang tinha reservado para Tung.
Era, agora, o marido da muda que ia.
Nunca mais Tung pronunciou o nome do filho, o mesmo fazendo Chan.
***
Dias após dias...
Meses após meses...
Chegou, enfim, o primeiro ano da morte de Li.
No subterrâneo, a vida continuava morosa.
Era com imensa dificuldade que Chan e o criado carregavam Tung para debaixo da árvore onde ele passava horas seguidas.
Pedia sempre para Chan colher algumas flores agrestes e enfeitar a sepultura de Li.
Muito contente ficava quando ouvia os gorjeios da passarada inquieta e barulhenta nos ramos verdes.
Um dia, pela manhã, quando a saudade de Li era mais intensa, ouviu o trinado de uma avezita atrevida, muito perto dele; tentou vê-la, porém, os seus olhos quase sem luz não permitiam descobri-la.
Lembrou-se, porém, da história que Li lhe havia contado e alto chamou:
— Mei-ling! Mei-ling!
O passarozinho, como se entendesse o apelo amigo, voou para mais perto e entoou, com entusiasmo, outro delicado gorjeio, que Tung ouviu em profundo silencio.
Vivendo da recordação dos dias passados em companhia de Li, Tung, aos poucos, ia se definhando...
Já estava quase no fim...
Pela manhã de um esplêndido dia, quando Chan o convidou para subir, ele disse:
— Chan, não posso mais...
Porém, quero despedir-me de Li...
Leve-me pela última vez.
Carregado por Chan e o criado, ele foi para debaixo da árvore, onde passou poucos instantes.
— Quero voltar para o subterrâneo... Levem-me...
Tung não se levantou mais...
Estava irreconhecível.
Era um verdadeiro monstro de fealdade.
Dificilmente se encontraria um doente que tivesse chegado ao extremo que ele chegou.
Completamente cego, com o corpo coberto de chagas, mãos mutiladas, sem cabelos...
Perdera as forças e Chan, paciente e sublime de bondade, tudo fazia para ele.
Nunca se poderia imaginar que aquele rústico criado pudesse chegar a ser um amigo tão dedicado e tão desprendido.
Tinha, pelo senhor, verdadeira e sincera veneração.
Não o deixava sozinho um só instante...
Sentava-se ao seu lado o dia todo, procurando confortá-lo com palavras cheias de afecto e coragem.
A noite, tinha por companheiro o outro criado que, compreendendo o seu grave estado, vinha ficar também no subterrâneo.
Nunca ouviram de Tung uma só palavra de queixa, de revolta...
Por mais que os criados conversassem, ele se mantinha constantemente calado.
Só uma vez, disse:
— Meus bondosos companheiros, estou finalmente subindo os últimos degraus do meu longo e torturante calvário...
Breve chegarei ao fim...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:06 am

Já antevejo, ao longe, a claridade brilhante do cume sacrossanto...
Logo o alcançarei...
Chan olhou para o amigo e, voltando-se depois para Tung, viu que, na realidade, estava muito próximo o seu fim.
Constataram, entristecidos, a faina implacável da moléstia hedionda...
Tung estava agonizando...
Entretanto, não pronunciara uma só palavra de desespero.
A sua resignação era de um santo...
Reparou, nesses poucos anos, todos os seus erros.
O seu arrependimento foi sincero...
Uma tarde, depois de longos dias de martirizante agonia, Tung pediu:
— Chan, fique ao meu lado...
Venha para bem junto de mim...
Era o fim...
Os dois criados, um de cada lado de Tung, compungidos, assistiram aos seus derradeiros momentos...
Aos poucos, a tarde foi-se findando, muito vagarosamente... e também, muito devagar, Tung agonizava no frio e triste subterrâneo, onde fora adrado{1} pelo seu único filho...
Em dado momento, ele procurou se erguer mais no leito e, amparado por Chan, que chorava baixinho, começou a pronunciar entrecortadas frases que os criados, emocionados, ouviam:
— Deus meu...
Amor. Senhor... Creio...
Acalma minha dor...
Parou alguns instantes, e nos seus olhos sem luz brotaram transparentes lágrimas que rolavam pelo seu rosto deformado.
Ainda com maior dificuldade continuou a falar, agora, com um imperceptível murmúrio...
Os criados ajoelharam-se e puderam ouvir, então, as suas últimas palavras:
— Perdão!
Peço, ó Pai!... pequei... errei... lutei... sofri...
Tung ficou outra vez calado.
Chan sentiu que as suas mãos estavam ficando frias... e seu olhar ficou parado como que à procura de algo que desejava insistentemente ver...
Tung estremeceu e, num esforço supremo, ainda disse, contrito:
— Perdão, Senhor!
Deus de amor!...
Pai, também imploro e choro pela redenção da criatura que pecou mais que sofreu, perdoa, ó Senhor... o filho ingrato...
Chan e o criado soluçaram emocionados, quando Tung terminou.
Calados, não desviavam o olhar do senhor que morria lentamente...
Tung procurou apertar a mão de Chan e os dois servidores ainda conseguiram ouvir um subtil murmúrio:
— Adeus... Adeus... Li... Li...
E, santamente morreu.
No subterrâneo, quase todo escuro, ficaram os dois velhinhos olhando o seu bondoso senhor: morto e horrivelmente deformado.
Foi Chan que, passados alguns momentos, com a voz trémula e entrecortada pelos soluços, exclamou, numa derradeira homenagem ao seu grande e sofredor amigo:
— Senhor, o seu último degrau foi atingido...
Foi muito longo o seu calvário, mas conseguiu subi-lo com coragem até o cume luminoso...
Adeus!...
***
Tung foi sepultado conforme seu desejo:
debaixo da mesma árvore onde jazia Li.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:06 am

Teve, para acompanhá-lo, os dois velhos criados.
Foi sepultado pela manhã, muito cedo.
Terminado, Chan encaminhou-se para a margem do rio e ficou muito tempo sentado na areia branca e húmida.
O rio, muito calmo, deslizava mansamente, indiferente à dor daquele mísero velhinho que soluçava na sua margem...
Indiferente era, também, a natureza que, naquela manhã clara e formosa, despertava para mais uma etapa do seu curso normal...
Tudo era belo em volta de Chan...
Ele voltou-se e olhou para a casa de pedras, cenário silencioso do drama pungente vivido por aqueles dois seres amoráveis e sofredores...
Imponente era o aspecto da antiga mansão.
Recordou-se, o velho Chan, dos dias longínquos do passado, quando o seu senhor, no apogeu da mocidade, aureolado pela fortuna e pelo brilho excepcional do seu fulgurante talento, volvia das longas viagens através do mundo, e vinha procurar, na solidão da vasta casa de pedras, o repouso preciso, recordava-se, também, de uma das vezes em que veio com Tung, Li e Kiang pequenino, passar alguns dias na casa acolhedora.
Via, então, na sua mente cansada, o vulto branco de Li.
Era tão linda, tão linda a sua senhora...
Chan via, nitidamente, o rosto perfeito de Li...
Olhando para a casa de pedras, tinha a impressão de que via aparecer, ao longe, Li, esbelta e delicada, trazendo pela mão um forte menino que tentava se desprender, e que, finalmente, conseguia e saía correndo pelas margens do rio...
Parecia que ouvia a voz compassiva e suave de sua senhora chamando aflita:
— Kiang! Kiang! Kiang!.
Meu filhinho... Venha... — e Kiang corria cada vez mais até que, cansado, caía ofegante na areia branca...
Li, sorrindo, vinha para junto dele e, tomando carinhosamente a sua cabecinha, o beijava ternamente...
Depois, o velhinho se recordava de quando ele veio, inesperadamente, já então um bonito jovem, para com toda a crueldade retirar da casa da cidade o seu bondoso pai, doente e velho, com todos os requintes de maldade e avareza, e atirá-lo no mesmo subterrâneo onde jazia, há muitos anos, a sua adorável mãe...
Todas essas recordações vinham à mente exausta do dedicado amigo, do servo fiel, que demonstrou, até os últimos momentos, quanto queria aos seus senhores.
O que seria agora dele.
Tinha ordem severa de Kiang para não mandar dizer nada sobre a morte de Tung.
Teria de ficar só, apenas com o amigo, que também já estava velho.
Mas, talvez, breve seria o seu fim.
Quando ele desaparecesse, o criado poderia fechar a casa e ir entregar as chaves ao correspondente de Kiang, que, convenientemente, se entenderia com o jovem proprietário.
Levantou-se devagar e voltou para o subterrâneo, onde tinha ainda uma missão a cumprir.
Destruir tudo o que pertencera a Tung e Li.
Comovido, foi, aos poucos, retirando aqueles objectos que tinham acompanhado os seus senhores durante todos os anos do seu longo martírio.
Com que emoção retirou os pequeninos trabalhos executados por Li, e que enfeitavam as paredes encardidas do subterrâneo.
Destruiu tudo..
Nada mais restava dela...
Nada mais...
Depois, procurou tudo que pertencera a Tung.
As suas lentes, os seus livros, e, finalmente, encontrou o pequenino punhal que Tung tinha tão bem guardado.
Com o punhalzinho nas mãos. ele pensou:
— Não sei por que meu senhor tinha tanto amor a este punhal.
Deve ter uma história que só ele sabia.
Vou guardar, para mim, esta recordação... — e colocou-o com cuidado no seu velho bolso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:07 am

— É meu... Quando eu morrer façam o que quiserem, mas agora é meu.
É meu...
Guardarei com todo o carinho e zelo como o meu senhor guardava.
Ele deve ter uma linda história - murmurava Chan.
Quando terminou de destruir tudo, olhou demoradamente para o aposento triste e vazio.
Foi até a janelinha, quebrou um ramo florido que pendia para o aposento, e, com esforço, atirou-o para fora, dizendo:
— Adeus... meu senhor...
Fechou a pesada porta e saiu devagar pelo longo corredor, subindo os degraus da comprida escada para nunca mais ali voltar...
Passou a viver calmamente com o amigo, sozinhos e esquecidos na solitária casa de pedras.
Dois anos depois da morte de Tung, o velho Chan morreu.
Atendendo ao seu último pedido, foi sepultado junto de Tung e Li, debaixo da mesma árvore, frondosa e verde...
O criado fechou a casa e foi entregar as chaves que seriam, em breve, remetidas a Kiang, que residia feliz e tranquilo na famosa capital francesa...

1. [N.R.]“Levado” ou “sepultado”. Não consegui definir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:07 am

XII — Reencarnação redentora
Kiang deixou, imediatamente, Cantão.
Aproveitou, entretanto, a oportunidade para fazer uma ligeira viagem.
Dias depois. participou a Tieng o falecimento de Tung, que já estava seriamente enfermo quando ele chegou, disse ele.
Tranquilo, pôde desfrutar os dias em que passou viajando.
Tinha plena confiança no velho Chan.
Sabia que ele jamais desobedeceria as suas ordens.
Quanto a Tung, não lhe restava a menor dúvida: ele viveria pouco.
Durante a travessia, muitas vezes pensou no pai enfermo e em sua mãe prisioneira... mas, logo recordava que ambos eram leprosos e sentia um horror tão grande que o deixava, para sempre, insensível a qualquer gesto de compaixão.
— Na casa de pedras possuem todo o conforto, nada mais posso fazer, estou tranquilo...
Quero agora viver livremente.
Tenho tudo quanto é necessário para ser um vitorioso — meditava.
***
E realmente fui.
Alcancei tudo quanto desejei...
Casei-me com Mei-ling Pei e tive a mais terna e bela esposa.
Paciente e amiga, jamais se esqueceu de Li e de meu pai.
Cultivou sempre a memória de ambos.
Durante muitos anos fomos imensamente felizes.
Quase olvidei, por completo, meus pais.
Raríssimas vezes lembrava-me deles e, assim mesmo, muito vagamente.
Tieng morreu alguns anos depois e Nai breve o acompanhou.
Não tivemos filhos.
Passados muito tempo, quando já lhe surgiam os primeiros cabelos brancos e as primeiras rugas, a minha doce Mei-ling deixou-me sozinho.
Como já estava no outono da vida e riquíssimo, transformei-me num peregrino.
Percorri todos os recantos do mundo; só não voltei à China, minha pátria...
Muitas vezes estive para ir revê-la, porém, recordava-me dos meus pais, e ainda sentia um forte abalo percorrer meu corpo, na lembrança de que eles foram leprosos...
Assim vivi muitos anos...
Estava já velho e morava ainda em Paris.
Conservava a casa que tinha pertencido a Tieng e onde sempre vivi com Mei-ling.
Era o meu refúgio quando, exausto das longas viagens, volvia a Paris.
Foi, pois, nesta mesma casa, onde morreram Tieng, Nai e Mei-ling, que me instalei ao sentir-me enfermo, próximo do meu fim.
Tinha nos dois irmãos de Mei-ling grandes e sinceros amigos.
Fiz doação a eles de todas as colecções preciosas de meu pai, agora grandemente aumentadas por mim, só exigindo uma condição: que essas relíquias continuassem sempre em poder da família Pei.
Nos meus últimos meses de enfermo, vivi na minha casa luxuosa, cercada de inúmeros criados e amigos, incluindo as famílias dos dois irmãos de Meiling.
Estive pouco tempo doente e, durante esse período, nas minhas noites de vigília, mais de uma vez vi o vulto de minha mãe e senti a presença de meu pai...
Não tinha nenhuma Fé.
Vivi até os últimos instantes como um incrédulo; nada me demoveu e morri com as minhas arraigadas convicções de que nada existia além do que nós víamos...
Foi preciso que a morte, como já disse no início desta obra, quebrasse os pesados grilhões para que eu compreendesse que existia algo mais grandioso do que todas as maravilhas que vemos no mundo material.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 06, 2022 11:07 am

Foi, pois, quando despojado da vil matéria, que vim a reconhecer o meu erro e quanto é infinita a bondade do Supremo Criador, que até os filhos ingratos e perversos tem o consolo de poder receber dele, Pai Amantíssimo, a dádiva grandiosa de uma reparação.
Assim, recebi no Além, para reparação do meu grande erro e da minha imensa ingratidão, oportunidade de aqui voltar, como voltei: pobre e leproso — pois só assim eu poderia expiar o meu passado infeliz.
Ao ditar este singelo trabalho — que servirá de estímulo aos meus irmãos leprosos, atirados{1} nos leprosários do mundo —, corporificando uma mensagem de esperança e de conforto, esclarecedora de que todo o sofrimento tem origem nos nossos próprios actos e na nossa rebeldia em agirmos egoisticamente, não reconhecendo as verdades tão claras à nossa frente, que nos mostram a Suprema Existência de um Deus força, de um Deus bondade, de um Deus amor...
Contando a minha história para os meus irmãos leprosos, quis auxiliá-los deste modo a poderem enfrentar corajosamente a grande desdita, convictos de que são passageiros os anos, que, quando ainda aí prisioneiros, julgamos infindáveis...
Todos vocês, meus irmãos, naturalmente tiveram, também, uma história em vida passada, que é a causa justa dessa provação...
Lendo, irmãos, a minha simples mensagem de esperança, espero que tenha contribuído com uma pequenina parcela de conforto que possa suavizar, transitoriamente, a grande tortura que os tem tolhido das suas liberdades em “estreitos pedaços da terra”... mas, quando libertos, poderão, como eu, ter, no Infinito, a suprema ventura de reconhecer que foi dadivosa a oferta de Deus, para saldarmos os nossos grandes débitos e, então, agradecidos, renderem, como eu rendo, o meu preito de Amor ao Supremo Criador.

1. [N.R.] “adrados “ optei por “Atirados”.

§.§.§- Ave sem Ninho
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