LUZ ESPÍRITA
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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

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Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer - Página 4 Empty Re: Calvário Redentor - José Euclides/Antonieta V. Meyer

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:05 pm

IX — Calvário redentor
Enquanto na França, Kiang, em companhia de Tieng, Nai e Mei-ling, resolvia convidar seu pai para vir residir definitivamente em Paris, junto deles, podendo assim lhe proporcionar uma vida mais tranquila, rodeado de todos que o estimavam, na longínqua China, na grande casa à margem do rio Cantão, Tung, sozinho, via se aproximar, assustadoramente, o seu trágico fim...
Há muito que ele vinha vagarosamente subindo o longo calvário... sem ter um braço amigo em que pudesse se apoiar...
Quase que todo mutilado, pois os dedos tinham sido muito atingidos, faltando diversas falanges...
Os cabelos caíram todos, o mesmo acontecendo com as sobrancelhas e os cílios...
O rosto congestionado e intumescido, as orelhas grandes e dependuradas, batendo sempre no rosto disforme...
Os pés, verdadeiras chagas, embrulhados em panos amarelados e húmidos de pus, vindo das feridas abertas...
Sentado sempre na antiga cadeira, junto à janela, era deveras impressionante o quadro, se fosse permitido ser visto.
Aquele monstro horrível sentado na riquíssima cadeira esculpida, tendo ao seu redor uma verdadeira nuvem de moscas que, vorazes, pousavam nas chagas dos seus pés; e bem perto daquele horror, sentado num pequeno banco, um velhinho de cabeça muito alva, curvado pelos anos, cochilava placidamente, alheio ao quadro doloroso que formava junto àquele que tinha sido, não muito longe, o rico e culto Tung Fú.
Chan passava horas seguidas junto ao senhor e só o deixava quando tinha de ir providenciar os arranjos da casa, onde viviam ocultos de todos.
Tung era como uma sombra ou um fantasma que vagarosamente andava arrastando os pés pelos vastos aposentos, ou então pelo salão, tacteando, pois estava quase completamente cego.
Quando Chan, depois de terminado todo o trabalho, vinha para junto dele e sentava-se no pequenino banco, Tung sentia-se feliz e, pondo a mão sobre o ombro do velho e leal criado, dizia:
— Chan... o que seria de mim se não tivesse a sua amizade e o seu amparo?
Chan erguia a cabeça branca e fitava Tung com um olhar repassado do mais terno afecto e da mais sublime dedicação...
— Senhor, só tenho a lamentar que a saudosa senhora tivesse tão cedo desaparecido, pois tenho certeza de que se ela ainda fosse viva, estaria ao seu lado, e o acompanharia com todo o carinho.
Isso Chan pronunciou numa tarde que, em companhia de Tung, juntos à janela, olhavam o pôr do sol no horizonte distante...
Tung sentiu como se uma faísca eléctrica o tivesse inopinadamente atingido, e com voz trémula e triste, disse:
— Chan, tenho que lhe fazer mais uma dolorosa confissão.
Há muito que venho me preparando para este momento difícil em que tenho de depor perante você, meu único e verdadeiro amigo.
É uma confissão difícil e terrível, porém necessária para a minha tranquilidade e para o meu fim próximo.
Chan voltou-se depressa e ficou fitando Tung, que continuava olhando para o céu...
— Senhor, nada quero saber e nada exijo além da alegria que desfruto junto ao meu bom senhor, nesta casa silenciosa...
Esperemos com paciência o nosso fim...
Caso eu parta primeiro, tenho certeza de que serei substituído por outro leal servidor que está somente à espera do chamado para aqui vir servi-lo.
Tung tornou a repetir:
— Chan, preciso fazer esta confissão o mais breve possível, e estou resolvido a fazê-la agora que estamos tão tranquilos, tendo diante de nós a beleza desta tarde que se finda.
Escute a minha dolorosa e trágica história...
Sou, Chan, digno do sofrimento que venho passando nesses últimos anos.
Pratiquei um atentado horrível, e impune sempre estive graças ao prestígio do meu nome e da minha fortuna; entretanto, tenho consciência de que sou um grande culpado, um homem indigno e perverso...
Preciso e quero lhe fazer esta confissão, pois só assim, talvez, possa encontrar um lenitivo para a dor que me tortura há muitos anos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:05 pm

Chan olhava com insistência, receoso de que Tung estivesse delirando, e ele, compreendendo o receio do velho criado, sorrindo bateu no seu ombro, falando alto:
— Não, Chan, não deliro, estou na posse completa das minhas faculdades.
Quero agora, neste momento, confiar a você o meu segredo...
Escute, venha para mais perto de mim, não quero que perca uma só palavra.
O criado obedeceu à ordem e com certo receio trouxe o pequeno banco para mais perto dele.
Sentou-se e, calmo, olhando para Tung, disse:
— Pronto, meu senhor, pode fazer a confissão que deseja, que o seu humilde criado está bem junto e atento para ouvir tudo quanto quiser contar.
Tung ficou ainda calado por alguns instantes, olhando o céu de um azul forte.
O silêncio do aposento era completo e uma penumbra triste invadia todo o recinto, onde bem perto um do outro estava o ilustre Tung Fú e o seu pobre e velho criada.
Era impressionante a tristeza dessa tarde escura que aos poucos findava...
Tung, silencioso, estava à espera desse momento para, com a alma dilacerada pelo remorso implacável, fazer a terrível e demorada confissão.
Chan não interrompeu o silêncio de Tung; mantinha-se imóvel na cadeira, esperando que ele falasse.
A noite já tinha chagado e o aposento estava escuro, só tendo uma réstia de claridade vinda da janela entreaberta.
Depois começou a soprar um agradável vento, que sacudia as folhas das árvores vizinhas da casa.
Foi quando Tung, com a voz que mais parecia um soluço, disse devagar, baixando a disforme cabeça para mais junto do criado:
— Chan, a sua bondosa senhora não morreu...
Está prisioneira na casa grande de pedras há muitos anos...
Chan sentiu um estremecimento percorrer todo o seu corpo curvado, e se ergueu um pouco da cadeira, como querendo fugir de perto do senhor, horrorizado com o inesperado da revelação.
Mas, conseguiu se dominar e voltou para o seu lugar, sem pronunciar uma só palavra.
Ouviu Tung soluçar convulsivamente, mas nada fez que o interrompesse.
Passado o primeiro e doloroso instante, ele continuou:
— Sim, Chan, creia que Li não morreu; ainda vive, presa num desconhecido subterrâneo na distante casa, sob os cuidados do meu velho criado e da muda, sua mulher.
Chan sentia-se tomado de um verdadeiro pavor a cada palavra reveladora que Tung pronunciava...
Com incrível sacrifício conseguiu formular uma interrogação:
— Mas, meu senhor, por que fez prender a bondosa senhora e ainda a conserva prisioneira, quando a podia ter ao nosso lado, para suavizar os nossos momentos de solidão?
Ela era tão meiga e amiga, não posso acreditar no que diz; naturalmente, meu senhor, está delirando...
— Não, Chan...
Não deliro... estou perfeitamente bem e sei o que lhe estou revelando.
Li não morreu, acredite, Chan, ela vive ainda...
— Mas, por que está prisioneira?
— Ouça... Há muitos anos, quando ainda meu filho tinha apenas dez anos, casualmente vim a descobrir que Li estava leprosa...
Foi, meu amigo, um momento de verdadeiro pavor, quando tive a certeza de que habitava no meu lar uma doente da terrível moléstia...
Como sabe, eu tinha um culto de idolatria pelo meu único filho que me fazia esquecer todos os ditames de outro afecto e de outra amizade.
Ele simbolizava, para mim, tudo.
E foi por esse desmedido e alucinante amor que tinha por Kiang que, sem um só lampejo de piedade e de compaixão, brutalmente, de acordo com ele, levei Li, uma noite, para a casa de pedras e, com todos os requintes de crueldade, atirei-a num lúgubre subterrâneo há muito tempo abandonado, proibindo os criados de vê-la, só permitindo que lhe fosse levado, por um pequeno orifício feito na porta, o necessário alimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:05 pm

Tanto eu, como Kiang, não tivemos por ela uma só demonstração de afecto e de compaixão.
Mas, uma força Omnipotente e justiceira abateu-se sobre mim, castigando-me cruelmente...
Pois não encontrei no meu filho a compreensão e a dedicação que esperava...
Tenho, meu bom Chan, recebido a recompensa do meu hediondo atentado, pois não muito tempo depois que a afastei do nosso convívio, constatei horrorizado que eu também estava atacado da mesma moléstia...
Foram dias após dias de tortura, no afã de encontrar um meio de ocultar de Kiang a minha desgraça.
Resolvi levá-lo incontinenti para o estrangeiro e lá o deixar.
Não pode calcular, meu bondoso amigo, o que tem sido minha vida.
Além da moléstia que destrói impiedosa o meu corpo, tenho a alma dilacerada pelo remorso que me tortura dia e noite...
Quando sozinho aqui estou, vejo, sempre vagando perto, o fantasma de Li, ameaçador...
Creia, Chan, que venho subindo vagarosamente o meu calvário, levando uma pesada cruz e só espero poder chegar com coragem ao fim.
Já dei ordens para que a muda tivesse a permissão de visitar Li, assiduamente, porém é tão pouco o que lhe ofertei que não atenuou uma só partícula do meu sofrer.
Chan ouvia estarrecido tudo quando Tung lhe confessava e dos seus olhos pequeninos e tristes afluíam lágrimas que caíam sobre suas trémulas mãos...
Queria falar, mas não podia, a voz morria na garganta ressequida.
Como Tung ficasse calado muito tempo, o criado com dificuldade conseguiu dizer:
— Senhor, ainda e tempo de fazer alguma coisa pela senhora.
Poderei ir buscá-la ocultamente, ou então nos transportarmos para a casa grande de pedras e, todos reunidos, vivermos tranquilamente.
— Não, Chan!
Não quero que Li me veja neste estado.
Daqui não sairei, já lhe disse que esta casa será meu último e definitivo reduto.
Quero somente proporcionar a Li, mais liberdade e mais conforto.
— Mas, senhor, permita ao seu velho criado uma simples pergunta:
seu filho já sabe da verdade?
Sabe que o meu senhor sofre da mesma moléstia que vitimou sua mãe?
Tung, num acesso de desespero, gritou alucinado:
— Não sabe! Não sabe!
Não quero que ele saiba jamais!...
Chan curvou a branca cabeça e nada mais disse...
E como Tung também não pronunciasse uma só palavra, ele levantou-se e, sem fazer o menor barulho, saiu, deixando-o sozinho e no mais completo escuro.
Tão impressionante fora para Tung a revelação do seu segredo, que ficou como se todas as suas parcas forças o tivessem para sempre abandonado.
O seu cérebro, até então de prodigiosa clareza, ficou paralisado, tornando-o um ser à margem da vida, sem orientação e sem energias...
Tudo ao seu redor era confuso.
Parecia um mísero farrapo humano, sem forças nem mesmo para se levantar da cadeira onde o criado o havia deixado.
Mais tarde, refeito do grande abalo provocado pela confissão de Tung, Chan resolveu voltar ao salão para ver como seu senhor estava passando.
Com cuidado abriu a porta, e foi tomado de grande surpresa vendo-o ainda no mesmo lugar, com a cabeça curvada e os braços pendidos para fora.
Comovido, aproximou-se, e então viu que ele estava acordado.
Chamou-o baixinho para não o assustar.
Tung não respondeu.
Chamando-o novamente, ele, devagar, ergueu a cabeça e voltou-se para Chan com um olhar parado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:05 pm

O criado se aproximou mais e com delicadeza convidou-o a ir repousar, pois já era muito tarde da noite.
Auxiliado por Chan, ele se levantou da cadeira, mas sentiu os seus membros completamente impotentes para o levar até o seu aposento, e caiu outra vez sobre a cadeira, sendo impossível para Chan levá-lo sozinho.
Foi ligeiro à procura de um agasalho, voltando logo com uma espessa coberta com que envolveu Tung, para ali passar o resto da fatídica noite.
Sentou-se ao seu lado e, olhando para aquele monte de carne putrefacta que representava o riquíssimo e fidalgo Tung Fú, sentiu, no âmago da sua humilde alma e no recôndito do seu boníssimo coração, uma profunda piedade, que nem mesmo a tenebrosa confissão que há pouco ele lhe fizera, foi capaz de contribuir para que o velho criado tivesse uma só censura pelo acto praticado pelo seu infeliz senhor.
Sentado muito curvado na pequenina cadeira, Chan procurou um meio de poder resolver como poderia atenuar a solidão em que vivia imersa, há tantos anos, a sua bondosa e linda senhora.
Pensou em deixar Tung sozinho aquela noite e ir apressadamente à casa de pedras contar tudo ao seu amigo e, juntos, retirarem a senhora do mísero subterrâneo e a levarem para cima onde ela pudesse viver livremente...
Mas Tung não o havia autorizado e ele, fiel cumpridor dos seus deveres, achou que devia esperar primeiro as ordens do senhor.
Lembrou-se que Kiang há muito não dava notícias.
Poderia providenciar uma carta pedindo-lhe auxílio para seu pai, mas se ele resolvesse voltar e encontrasse Tung naquele lastimável estado, como agiria?
Chan sempre notou que Kiang, desde pequenino, era dotado de génio forte, desobediente e rebelde...
Recordou-se que quando foi anunciado por Tung o inesperado falecimento da senhora, o menino não demonstrou o menor sinal de pesar pelo desaparecimento de sua mãe, tão carinhosa e tão compassiva.
Foi notado, por todos os criados da casa, o pouco que pai e filho demonstraram pela perda de tão bondosa esposa e mãe. Nem mesmo o nome dela fora depois pronunciado, e agora, sabedor da terrível verdade, via, entristecido, quanto Tung, na realidade, tinha sido desumano e quanto Kiang era ingrato.
E agora, já homem, como iria ele receber a dolorosa verdade?
Teria a compaixão que não teve para com sua mãe?
Chan sacudia a cabeça, incrédulo.
Assim, passou toda a noite sem poder dormir um só instante, e foi contente que viu o Sol despontar pela janela que conservara aberta.
Tung, depois de ter feito a difícil confissão, pareceu sentir uma grande e confortadora paz.
Chan, olhando o seu rosto feio e intumescido, notou que o sono era tranquilo...
Não quis acordá-lo, saindo devagar para ir preparar os primeiros alimentos.
Quando voltou, ele estava de pé, perto da janela, respirando longamente o ar embalsamado e puro da manhã.
Quando chamado, pacientemente acompanhou o criado, como estava acostumado a fazer.
Juntos seguiram, e Chan viu, alegremente, que o seu senhor não demonstrava sinais de grande abatimento.
A noite de repouso serviu para que ele recuperasse as energias perdidas, e a angústia, que há muito o torturava, foi aliviada com a revelação sincera que fez ao criado e amigo.
Comeu de tudo que havia sido preparado para ele, sem o menor esforço.
— Agora preciso sair, para fazer as nossas compras, que estão terminadas.
Voltarei o mais breve possível.
— Pode sair, Chan, eu voltarei para o meu lugar predilecto.
Chan o acompanhou, recebendo as ordens necessárias para fazer as compras, e, tomando o velho cesto, saiu...
Conforme prometera, não demorou muito tempo, tornando apressado para casa, receoso de Tung ter ficado sozinho.
Quando entrou no aposento, trouxe-lhe uma carta, o que há muito não era recebida.
Ao ver na mão do criado o pequenino recorte de papel branco, ele estremeceu violentamente, pois tinha certeza que era carta de Kiang; e todas as vezes que as recebia, sentia um grande e profundo abalo; porém, nessa manhã, depois das emoções sofridas na noite anterior, foi grande a surpresa que teve quando viu nas mãos de Chan a carta há tanto tempo esperada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jan 02, 2022 10:06 pm

Sôfrego a tomou e pediu as outras lentes mais fortes para, mesmo assim, ler com incrível dificuldade.
A proporção que silenciosamente ia lendo, o criado, condoído, via que lágrimas brilhantes deslizavam pelo seu rosto contraído.
Foi forçado a interromper por mais de uma vez a leitura para limpar as lentes embaçadas pelas lágrimas; e quando terminou, deixou que ela caísse junto à cadeira, ficando com os braços pendidos e o olhar perdido no horizonte, que se descortinava pela janela, muito ao longe.
Chan, vendo que seu senhor não fazia menção de apanhar a carta, caída perto ela cadeira, abaixou-se e, pegando-a, colocou-a novamente nas mãos de Tung.
Em seguida, trouxe a sua pequena cadeira, sentando-se, calado, no lugar em que costumava sempre ficar.
Ele compreendeu o gesto de Chan e, devagar, tomando as lentes, com voz pausada, leu para o velho criado a missiva de Kiang:
“Meu pai.
Desesperançado de esperar notícias suas, é que me apresso em enviar esta, pedindo resposta imediata.
Por um descuido do qual peço agora desculpas, ausentei-me de Paris em companhia de alguns amigos, sem avisá-lo.
Foi uma ligeira excursão a vários países que desejava conhecer.
E como a resolução foi inopinada e o tempo escasso para preparar-me, não tive o ensejo de pedir antes o seu parecer, entretanto, o fiz a Tieng, seu substituto.
Foram, meu pai, dias esplêndidos, cheios de surpresas assaz agradáveis, que. tenho certeza, compreenderá, pois é um profundo conhecedor de todos esses países que percorri.
Terminei meu curso no Instituto e iniciarei agora o último, de Direito.
Espero sair-me bem, dando assim ao meu pai motivo de satisfação, pois sempre foi esse o seu ardente desejo.
Agora, entremos no assunto principal desta.
Tenho conversado constantemente com Mei-ling e, não só atendendo aos constantes pedidos dela, é que juntos deliberamos que o senhor deve vir incontinenti residir em Paris, junto aos seus amigos e aos seus filhos, pois Mei-ling já tem quase esse direito de chamá-lo de pai.
Não pode avaliar o quanto ela o quer e só ficará realmente contente se o senhor atender ao nosso pedido.
Tieng e Nai juntam o mesmo apelo.
Aqui terá uma vida mais cómoda e poderá desfrutar outro padrão de existência que tenho certeza, não encontrará ai.
Compreendo que gosta dessa casa onde sempre viveu e guarda relíquias preciosas.
Tem, entretanto, velhos e fiéis criados aos quais poderá confiar a guarda dos mesmos.{1}, quando quiser, poderemos ir, os três, desfrutar de alguns dias nesse recanto, que Mei-ling tão ardentemente deseja conhecer.
Esperamos breve a sua afirmativa resposta, e receba do seu filho e amigo os sinceros votos de verdadeira amizade Kiang.
”Logo embaixo vinha um pequenino trecho escrito com a letrinha miúda e correta de Mei-ling.
Dizia o seguinte:
“Tung, meu pai:
junto ao convite de Kiang, vai também o meu.
Espero que seja benévolo para com a sua filhinha que o adora, e que o quer junto dela para satisfação em todos os seus caprichos que, tenho a lealdade de confessar, são muitos.
Até breve.
Tung, e, com grande abraço, cheio de saudades da filhinha Mei-ling. ”
Novamente deixou cair a carta, que desta vez Chan não fez menção de apanhar...
Passados os primeiros momentos de emoção, foi Chan quem primeiro falou:
— E agora, senhor, que resposta pretende dar aos seus filhos?
— Não sei... Não sei, Chan...
Talvez o mais acertado seja não responder...
Levantou-se e, com dificuldade, foi prostrar-se em frente aos retratos de Kiang.
Tung piorava dia a dia; parecia que a moléstia traiçoeira o tinha deveras tomado para uma rápida destruição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:09 pm

Chan, vendo que seu senhor continuava imóvel junto aos retratos, foi também ficar ao seu lado para, depois, com delicadeza, fazê-lo retornar à sua cadeira, junto à janela.
— Senhor, não podemos continuar assim; reúna as suas energias e tente encontrar uma solução para este dilema.
— Mas Chan, o que posso fazer?
Diga, meu amigo...
— Acho que, primeiro, devíamos tratar de retirar a senhora do subterrâneo e darmos e ela plena liberdade na casa de pedras.
Poderei ir lá e conversar com meu amigo.
E por que o senhor não experimenta ir pessoalmente?
Providenciarei o transporte à noite para que ninguém nos veja.
— Não, Chan, isso não...
Não verei jamais Li, não quero vê-la, assim como desejo que ela não me veja.
Mas estou de acordo que devemos imediatamente providenciar tudo para ela.
Já disse, não sairei nunca desta casa...
Não darei resposta imediata a Kiang, dando assim tempo para que eu possa, com mais cuidado, resolver como devo agir.
Ele não virá até aqui, tenho certeza.
— Mas, meu senhor, e se ele não receber a resposta desejada e vir nos surpreender aqui?
Tung abriu os olhos e ficou em pé, com os braços apoiados nos ombros de Chan, trémulo e angustiado.
— Chan, não sei o que será de nós.
Passo horas seguidas com o pensamento fixo nessa possibilidade e não encontro solução plausível.
Sei, entretanto, que meu filho tem horror desta moléstia e que será capaz de não compreender o meu martírio.
Mas pouco pedirei a ele, caso isso venha a se realizar.
Poderá voltar imediatamente e me deixar morrer sossegado e sozinho nesta casa, em que sempre vivi.
Meu filho não será tão cruel que seja capaz de negar-me este pedido.
Voltará para Paris e no lar amigo de Tieng, tendo por esposa a mais terna e bela donzela, rico e ilustre, poderá viver feliz.
E eu, Chan, aqui terminarei os meus últimos e cruéis dias.
Não sairei desta casa.
Não sairei... Compreende?
— Sim — respondeu, com humildade, o velhinho.
Eu também daqui não sairei.
No dia seguinte, à noite, Chan, conforme resolução de Tung, foi à casa grande de pedras com a incumbência de, junto com a muda e o criado, providenciar a retirada de Li do oculto subterrâneo.
O seu senhor ficaria sozinho na solitária e rica moradia.
Deu a Chan plenos poderes de ir ele mesmo conversar com Li e fazê-la subir para a casa, onde, daquele dia em diante, seria a sua residência, tendo os dois servidores para a sua companhia.
Quando veio se despedir de Tung, este o fez, mais uma vez, sentar-se junto à sua cadeira para lhe fazer novo pedido:
— Quero, Chan, que observe bem Li e que seja o meu mensageiro leal junto dela, fazendo-a sentir o quanto venho sofrendo e como é sincero o meu arrependimento.
Peço também que ainda nada diga sobre o meu estado de saúde.
Quero poupá-la desta dolorosa revelação.
Mais tarde, então sim, poderei confessar tudo; agora não quero e tenho certeza de que obedecerá às minhas ordens.
Pode ir, Chan...
À noite, muito escura, mas agradável, Chan, guiando o pequeno carro puxado por um só animal, saiu veloz da cidade.
Ao iniciar a estrada deserta, deixou que o animal fosse a passos vagarosos.
Era muito larga a estrada, circundada de espessa vegetação, sendo que inúmeras árvores, nessa época do ano, estavam cobertas de agrestes e perfumosas flores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:09 pm

Ele que vivia, há tanto tempo, fechado no estreito recinto de uma casa, sentiu verdadeiro alívio quando sentiu o ar puro da noite.
No seu cérebro cruzavam as mais confusas interrogações...
Desde o instante em que Tung leu a carta, não pôde mais deixar de sentir preocupações, pois conhecia quanto Kiang era dotado de rebeldia e temia pela sorte do seu querido senhor, assim pensando:
“O que poderei fazer?
Nada... Esperemos, portanto; agora o essencial é proteger a infeliz senhora e rodeá-la de todo o carinho, atenuando levemente a sua desventura. ”
Depois de percorrer devagar todo o percurso, foi com um suspiro que divisou ao longe a casa de pedras.
Ao chegar junto ao grande portão, prendeu o animal e ficou ainda alguns minutos parado como para refazer as suas energias.
“Preciso de coragem para poder enfrentar, com calma, a minha bondosa senhora” — meditou.
Parecia ao velho Chan que Li ressuscitava!
Há tantos anos que a julgava morta...
Resoluto, deu o sinal de alarme.
Não demorou muito, o criado apareceu e, ao vê-lo teve certeza que algo de extraordinário ele vinha fazer.
No vasto salão, Chan pôs o criado a par de sua missão, recebendo, de pronto, a seguinte resposta:
— Quer, agora mesmo, descer ao subterrâneo?
A minha mulher está lá.
Eu o acompanharei...
Vamos, Chan, reparar, embora tardiamente, a falta do nosso senhor.
E, juntos, os dois leais criados de Tung desceram.
Chan sentiu um forte arrepio quando deparou com a antiga escada e com o longo corredor escuro que levava ao subterrâneo; ao chegar perto da porta ele sentiu um certo temor, que o fez encostar-se à parede encardida.
Foi, então, guiado pelo amigo que levava bruxuleante luz, dando assim um aspecto ainda mais tétrico ao lúgubre lugar.
Chan, sem forças, tornou a recostar-se à parede, e o criado, compreendendo e sentindo também a mesma comoção, com calma esperou que voltassem as forças a ambos.
Foi Chan que, resolutamente, passado o primeiro e difícil instante, disse:
— Vamos, abra a porta!
Ouviu-se a chave ranger na fechadura enferrujada pelo tempo.
A pesada porta se abriu, e os dois velhos criados depararam, então, com um quadro que jamais pensariam ver.
Li e a muda, muito juntinhas, trepadas no pequenino banco, com as mãos presas às grades de ferro da pequena janela, olhavam a noite maravilhosa.
No momento em que a porta foi aberta, Li cantarolava baixinho...
Era a mesma canção de que ela tanto gostava e os criados puderam ouvir as suas derradeiras palavras:
— Afastai minha grande dor...
Suavizai minha agonia...
Li voltou-se assustada com o ranger surdo da fechadura e, atónita, deparou com Chan e o marido da sua amiga, que não via há muitos anos, encostados à porta.
Vendo Li se voltar rapidamente, o mesmo fez sua companheira, que também ficou atordoada com o imprevisto.
Foi tão tocante a surpresa que nem Li, nem os criados foram capazes, no momento, de pronunciar uma só palavra.
Ela desceu calmamente do banquinho, o mesmo fazendo a muda.
Os criados continuaram prostrados perto da porta.
Vendo que eles nada diziam, com coragem, ela aproximou-se deles e comovida, perguntou:
— O que desejam aqui?
Por que vêm perturbar a minha tranquilidade?
Chan, então, chegou junto dela e, com voz entrecortada pelos soluços, mal pôde pronunciar algumas palavras:
— Senhora, será que não reconhece o seu humilde e velho servidor?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:09 pm

Li abriu muito os olhos, estampando no seu rosto todo o assombro que lhe causava ouvir outra voz além da sua própria.
Há muitos anos que não conversava com quem quer que fosse, pois as sua única companheira era a muda.
Quando ouviu Chan falar perto dela, teve uma verdadeira emoção, difícil de ser explicada.
E o velho criado, vendo o rosto assustado e amedrontado de Li, aproximou-se ainda mais, tentando, desse modo, demonstrar que vinha como amigo.
A muda, temerosa de que eles praticassem qualquer violência com sua querida senhora, veio para perto dela, como se quisesse desse modo defendê-la.
Chan tentou novamente dialogar com ela:
— Senhora, aqui vim a pedido de meu senhor que, arrependido de tudo quanto fez, quer, embora tardiamente, reparar o mal que lhe fez.
Creia que o seu arrependimento é sincero.
Muito tem sofrido, minha senhora, e agora quer demonstrar que não é tão cruel como parece.
Tudo fez pelo grande amor que dedica ao seu filho Kiang.
Li continuou calada, olhando insistentemente para Chan.
O silêncio tornou-se completo no pequeno aposento.
O criado pôde ver que ela continuava, como sempre, muito bela, apesar de ter os cabelos quase todos embranquecidos; porém, no seu rosto perfeito, poucas rugas apareceram e ele, surpreso, notou que ela não tinha sinais evidentes da doença terrível.
Só quando um clarão mais intenso da lua penetrou no pequenino aposento, clareando-o todo, foi que Chan pôde ver que ela estava com as mãos mirradas e os dedos curvos e retorcidos, sinais positivos da verdade dolorosa.
Entretanto, Li ainda era encantadora.
Num rápido exame a comparou com Tung, verdadeiro monstro de fealdade.
E no seu boníssimo coração, mais um sentimento brotou de piedade para com Tung, dedicando-lhe agora, mais do que nunca, um verdadeiro culto de compaixão.
Como seu senhor tem sido castigado!
Chan achava, contudo, que ele, em parte, merecia passar por todo esse transe dolorido, para, só assim, poder compreender que fora, na realidade, ingrato para com a sua companheira.
Tentou novamente aproximar-se de Li e, com delicadeza, tornou a falar:
— Senhora, ouça o seu velho criado...
Creia que só agora é que soube da verdade, pois se antes tivesse compreendido o que tinha se passado, eu aqui estaria, há muito, para servi-la.
Vamos, bondosa senhora, junto com seus amigos, deixar, para sempre, este terrível lugar!
Li não respondeu...
Continuou calada, olhando para os dois criados.
Debalde, Chan tentou pela terceira vez:
— Senhora, peço, atenda ao meu pedido...
Vamos para cima; lá, terá todo o conforto e toda a liberdade...
Inútil... Li não respondia...
Chan e o criado curvaram as cabeças, desanimados...
Foi quando a muda tomou as mãos da senhora e, com carinho, a fez sentar-se no seu pobre leito.
Depois, ajoelhou-se junto dela, abraçando-a com amor.
Li viu, comovida, que ela chorava mansamente; tomou as suas mãos, beijando-as afectuosamente e, depois, acariciou com ternura os seus cabelos brancos.
Chan olhou comovido as duas amigas e compreendeu, pois tinha o mesmo culto de veneração por Tung.
Li fez com que sua amiga se sentasse ao seu lado.
Olhou para Chan e indicou o mesmo banquinho que estava perto da janela, donde ela contemplava a noite bela.
Ele obedeceu.
Sentou-se e ficou em silêncio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:09 pm

A senhora sentiu um atordoamento, como que se uma vertigem lhe turvasse os olhos.
Ao ouvir a voz de Chan e do criado, sentiu uma sensação estranha, pois, há muitos anos, não ouvia o timbre de outra voz amiga...
Anos após anos, no mais completo alheamento, no sombrio e aterrador subterrâneo foi, para a desolada infeliz, ao ouvir novamente a voz de outra pessoa, como uma ressurreição inesperada que tivesse paralisado todas as suas energias, até mesmo a sua própria voz, pois, no momento, não lhe era permitido articulá-la com facilidade.
Fazia ingentes esforços, porém inútil...
Parecia-lhe que tudo aquilo não passava de uma alucinação...
O seu estado de saúde estava muito alterado!
Tanto Chan, como o criado, eram fantasmas do seu cérebro enfraquecido...
Foi uma luta titânica que Li manteve consigo mesma...
Talvez, a mais difícil, pois, quando repudiada por Tung e por seu filho, era ainda muito jovem e forte, e possuía, além da fortaleza física, a fortaleza de um espírito esclarecido que a confortou e a encorajou fazendo com que não esmorecesse e encontrasse, no estreito recinto do seu pequenino aposento, a felicidade e a calma para poder enfrentar com coragem o seu cativeiro.
Viveu esses longos anos um alheamento completo, esquecida completamente de tudo, só procurando viver na realidade da sua precária situação.
Foi feliz porque, sem grandes esforços, conseguiu compreender e isolar para sempre da sua vida todos os liames que a prendiam ao seu filho e ao seu esposo.
Raramente pensava neles.
Vivia sossegada no seu pequenino quarto e com o decorrer dos anos podia dizer a si mesma que ali era feliz.
Depois, teve a ventura de poder conviver com a muda e dedicou a ela todo o seu afecto.
Só pedia e esperava morrer nos braços da sua única e leal amiga.
Só isso ela desejava presentemente.
Veio muito tardiamente a liberdade ofertada por Tung.
Depois dessa meditação foi que Li, ainda num esforço, pôde dizer a Chan:
— Peço transmitir ao seu senhor que agradeço a liberdade que me oferece.
Sinto-me bem aqui e nada me falta.
Só desejo ter sempre a companhia de minha amiga.
Tomou novamente as mãos da muda e ficou com elas apertadas às suas.
Chan levantou-se do banquinho com dificuldade e veio prostrar-se bem junto à senhora, colocando no seu ombro a sua mão grande e rugosa.
Ela estremeceu ao contacto, mas não fez menção de retirá-las.
Chan curvou a cabeça que, semelhante à da muda, estava toda alva.
Li olhou para a muda e para Chan, seus antigos servos, e sentiu, no seu coração, uma grande e sincera gratidão pelo conforto e pelo afecto que aqueles dois simples e rudes criados lhe testemunhavam:
— Chan, creia que sou feliz aqui, não necessito mais de liberdade, tenho tudo quanto desejo e, se vier a precisar de qualquer coisa, fique certo que lhe mandarei pedir.
Nesse momento, o aposento estava todo iluminado pela Lua, que pairava bem defronte à janela.
A muda se levantou e fez com que Li se levantasse também; depois, tomando o braço dela, encaminhou-se para a porta.
A senhora seguiu sem relutância e os dois criados, admirados, deixaram que ela fizesse o que desejava.
De braços com Li transpôs a porta seguindo pelo escuro corredor.
Chan tomou a luz e as acompanhou silencioso.
Devagar, começaram a subir a velha escada.
Li deixou que ela a guiasse.
Quando chegaram ao vasto salão, a muda a fez sentar-se numa cadeira e, ligeira, saiu para logo voltar trazendo um agasalho com que a resguardasse.
Tomou, outra vez, o seu braço e desceu para o jardim, encaminhando-se para as margens do rio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:09 pm

Ali chegando, sentaram-se na areia muito branca...
Com o dedo mostrou a luz e pediu-lhe para cantar, pondo os dedos sobre os lábios...
Atrás, os dois criados estavam mudos de espanto e, atentos, contemplavam as duas.

Li atendeu ao pedido da amiga e cantou docemente:
I
Felicidade é sonho... é quimera...
Nas alegrias suaves do amor...
Esperança que um dia nos espera,
Já libertos dos acintes da dor...
II
Felicidade é leve encanto
De luz e bênção que envolve o amor...
É tão belo e subtil o seu manto
Que de esperanças acalma a dor...
III
Felicidade é pranto e é agonia...
Felicidade é canto e é alegria...
Felicidade é bálsamo para o amor
Felicidade é a inimiga da dor...

A muda olhou extasiada Li cantar para ela, que não a pôde ouvir, mas sentia, na sua alma privilegiada e pura, que a sua senhora, assim fazendo, demonstrava que a queria muito.
Não pôde ouvir a voz de sua amiga querida, mas, pela expressão de seu rosto, sentia que cantava divinamente bem.
Quando Li terminou, a muda levantou-se e saiu pelas margens do rio levando-a para um pequeno passeio.
Voltando, momentos depois, encaminharam-se para o salão, onde a senhora tornou a ocupar a mesma cadeira.
Li chamou, depois, Chan e pausadamente disse:
— Pode voltar e diga ao seu senhor que estou bem, e que agradeço a lembrança bondosa dele dando-me novamente a liberdade, há tanto tempo perdida.
— Nada mais deseja que lhe diga?
— Não, Chan, somente isso.
— Senhora, não quer saber como passa o seu filho?
Li sorriu indiferente...
— Sei que passa bem, que deve estar um belo jovem, que estuda no estrangeiro e que possivelmente já deve ter escolhido uma linda donzela para com ela compartilhar a sua vida...
Como vê, nada mais preciso saber...
Para quê? Não existo mais...
Sou na sua mente uma visão esmaecida ou, talvez, quem sabe, totalmente esquecida.
— Mas, senhora, e o seu esposo?
— O meu esposo, Chan?
Parece que o perdi há muitos anos...
— Não, minha boa senhora, não o perdeu; ele vive e, talvez, ainda venha a precisar bastante do seu carinho e do seu perdão...
Li levantou-se e, aproximando-se de Chan, delicadamente disse:
— Transmita os meus agradecimentos ao seu senhor.
É muito tarde e eu quero voltar para o meu aposento.
Estou cansada.
— Mas por que voltar para aquele frio subterrâneo?
Pode ficar aqui em cima, num aposento mais confortável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:10 pm

— Não, Chan, não quero abandonar o meu quarto onde tenho estado sempre.
Sairei dele somente para a grande e definitiva partida.
Pediu ao criado a luz e, resoluta, encaminhou-se para a escada, sendo acompanhada pelo criado que, obediente, seguiu os seus passos.
Chan não saiu da cadeira onde estava e ficou à espera do companheiro que não demorou.
Quando ele viu novamente ao criado, ficou mais calmo, pois parecia que tudo rodava em torno dele no vasto salão...
Estavam sentados, bem defronte um do outro, calados e com as cabeças pendidas, sem poderem articular uma só palavra, quando a muda veio e, aproximando-se de Chan, procurou fazer com que ele compreendesse os seus gestos.
Mostrava a escada que Li há pouco descera e, batendo no peito e em seguida com os braços em volta de si mesma, olhava para ele como que prometendo que conseguiria tudo da senhora.
Tanto Chan, como seu marido, tiveram plena certeza de que realmente ela conseguiria, com mais facilidade do que eles, convencer Li de que devia sair do subterrâneo e vir gozar, embora muito tarde, a liberdade oferecida por Tung.
Momentos depois, Chan tomava o carro e, veloz, voltava para junto do senhor, depois de ter fielmente cumprido as suas ordens.
Com o despontar da aurora, ele transpôs o portão da residência de Tung.
Vinha exausto, mas notou que a janela do aposento estava aberta, compreendendo que ele o esperava, naturalmente, muito ansioso.
Assim que desvencilhou o animal do pesado carro e deu-lhe alimento necessário, encaminhou-se para transmitir ao seu senhor todo o ocorrido.
Abriu com cuidado a porta e viu Tung sentado, cabisbaixo, na sua cadeira junto à janela toda aberta.
Não demonstrou sinal de que tinha visto Chan chegar.
Foi preciso que o velho criado se aproximasse bem junto dele para que, então, devagar, Tung erguesse os olhos para depois, com sofreguidão, o interrogar:
— Então, como encontrou a sua senhora?
Chan demorou a responder.
Mais uma vez, Tung repetiu a pergunta, desta vez, em tom ríspido:
— Não ouviu o que perguntei?
— Sim — respondeu ele.
— E por que não diz logo o que viu?
— Senhor, fiz tudo quanto mandou, a senhora passa bem e manda agradecer pela liberdade que lhe foi oferecida.
— Mas, Chan, diga-me como Li está.
— Senhor, ela continua bem e creia que a moléstia, apesar de terrível, não a deformou muito.
— Saiu do subterrâneo?
— Sim, para um ligeiro passeio em companhia da muda, voltando depois para lá.
— Como? – gritou, alto, Tung.
Então não mandou preparar outro aposento para ela?
— Mandei, porém, a senhora fez questão de voltar para o seu antigo aposento, mas espero que, breve, a muda consiga que ela venha definitivamente para cima.
Tung se manteve calado por muito tempo, sem olhar para o criado que, sentado na pequenina cadeira, com paciência, esperou que o senhor falasse.
Momentos depois, Tung se voltou para ele e, com voz trémula, tornou a perguntar:
— Chan, a sua senhora não está muito deformada?
Diga-me sinceramente, quero saber toda a verdade sobre o seu estado.
— Senhor, creia que não estou faltando com a verdade, nem estou exagerando no que digo.
A senhora está tão bonita como quando daqui saiu; só mesmo com muita atenção é que se pode ver que ela é doente.
— Mas, Chan, não é possível que depois de tantos anos Li não esteja completamente deformada.
Não quer me contar a verdade para me poupar mais sofrimentos...
Compreendo isso, meu bom Chan...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:10 pm

— Não! Não estou faltando com a verdade.
A senhora está bonita e só nas mãos mirradas e nos dedos curvos é que se pode ver que ela é doente.
Meu senhor, por que não nos mudamos para lá?
Com um pouco de paciência e de carinho, tenho certeza que a senhora o perdoará e, assim, poderíamos todos viver com mais liberdade, cercados de mais afecto; enfim, com mais alegria aguardaríamos tranquilamente o nosso fim.
— Não, Chan, já lhe disse, mais de uma vez, que daqui não sairei.
Não quero ver Li, assim como não desejo que ela me veja.
Nesta casa esperarei a morte que, talvez, não tarde muito.
O dedicado criado não disse mais uma só palavra e, silencioso, deixou o aposento de Tung.

1. [N.R.] Continuação Não identificada. Repetindo: PDF "truncado"
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:10 pm

X — Nos sombrios caminhos da ingratidão
Enquanto em Cantão se passavam todos os factos descritos, Kiang, Nai, Tieng e principalmente Mei-ling, em Paris, esperavam ansiosos a resposta de Tung.
Porém, os dias iam se passando e a carta tão desejada não chegava.
Todos os dias, Kiang ia à casa de Mei-ling, que o esperava no jardim junto ao portão e, antes mesmo de qualquer pergunta, o interrogava aflita:
— Chegaram notícias de Tung?
Kiang então respondia:
— Não, Mei-ling, até agora nada...
Não sei explicar o que se passa com meu pai...
Não sei...
Ao entrar, Tieng e Nai faziam as mesmas perguntas.
Depois, reunidos na grande e confortável sala, ficavam entregues às mais desconcertantes dúvidas.
Mei-ling dizia:
— Tenho certeza de que Tung está seriamente doente, pois do contrário não deixaria de nos dar notícias.
Principalmente a última carta, ele responderia.
— E se Tung, assim como aconteceu com Li, tivesse morrido repentinamente? — interrogou Nai.
Um brusco arrepio percorreu todo o corpo de Kiang, uma palidez repentina cobriu o seu rosto de traços másculos e, no seu olhar arrogante, uma nuvem de dúvida perpassou ligeira.
Mei-ling notou tudo isso e, pegando com afecto as suas mãos, disse com meiguice:
— Não, Tung não morreu, só pode estar doente, precisando muito de nós.
Kiang deve ir imediatamente a Cantão para ver o que se passa e trazê-lo para junto de nós.
Seus pais concordaram com a jovem e foram unânimes em pedir a Kiang para que fizesse esse pequeno sacrifício por seu pai.
Ele, de cabeça baixa, não disse uma só palavra e, no seu cérebro exaltado, cruzavam as mais atrozes conjecturas.
Foi preciso um esforço sobre-humano para que ele controlasse os seus nervos e mantivesse uma calma aparente.
Demonstrando real interesse pelo pedido de Mei-ling, prometeu pensar mais demoradamente antes de tomar qualquer resolução.
A mocinha, entretanto, insistiu:
— Kiang, e preciso urgentemente ter notícias de Tung; não podemos abandoná-lo assim; você tem de ir imediatamente à China.
— Sim, Mei-ling, prometo que irei o mais breve possível — e, despedindo-se de todos, voltou para a sua residência, procurando coordenar melhor os planos para a breve partida à sua pátria, em busca da verdade.
Muito tempo ficou Kiang sentado no seu aposento, relembrando diversas cenas passadas entre ele e seu pai, desde a partida de Cantão até à chegada a Paris; e só agora, na plenitude das suas energias, é que podia fazer um exame mais concreto e ver que algo de anormal perturbava seriamente o seu velho pai.
Recordou quando, alegres, se preparavam para vir a Paris e, inesperadamente, ao entrar no salão, encontrou Tung sentado e com o rosto molhado de recentes lágrimas.
Interrogou-o e ele, com dificuldade, confessou que não estava passando bem.
Quis até deixar de vir a Paris...
E, desde então, sua transformação foi completa.
Ele era muito jovem para analisar, como deveria, todos os gestos e todas as atitudes de Tung; só agora é que, ao recordar todos esses pormenores, ficou acabrunhado e desolado.
— Meu pai me disse, muitas vezes, que se sentia seriamente enfermo, mas nunca procurou tratar-se como devia fazer.
E qual seria essa doença que o fazia chorar tão sentidamente e nunca mais o deixou ser o mesmo homem altivo e forte? — interrogou a si mesmo.
Recordou-se, depois, de sua mãe, leprosa, e, talvez, ainda vivendo.
Kiang sentia verdadeiro horror só em pensar na vaga possibilidade de seu pai vir a ser também um leproso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:11 pm

Levantou-se e, nervoso, percorreu com passos largos o aposento, em profunda meditação:
— Preciso ir à China...
Tenho de ir...
E se eu deparar com o meu pai leproso?
Como poderei agir?
Não quero que Mei-ling saiba, e jamais saberá se isso for verdade!
Terei de empregar todas as minhas forças, terei de calcar todos os sentimentos para encobrir, como ele fez, a verdade sobre minha mãe.
Essa nódoa terrível terá que desaparecer...
Jamais permitirei que saibam que Kiang Fú é filho de monstruosos e repugnantes leprosos.
Mas, como poderei fazer?
Como?...
Era muito criança quando meu pai enclausurou minha mãe.
Pouco me recordo sobre o que ele contou da casa de pedras, porém sei que existe um subterrâneo oculto, onde foi minha mãe feita prisioneira.
Caso venham a se concretizar as minhas suspeitas, poderei usar o mesmo subterrâneo e nele forçar meu pai a viver oculto para sempre...
Naturalmente, minha mãe não vive mais.
Nesse momento, lembrou-se também das preciosidades acumuladas por Tung durante muitos anos de peregrinação pelo mundo, e ainda as obras de arte dos seus antepassados, verdadeiras e valiosas relíquias que ele teria de possuir como último descendente.
Surgiram ante os seus olhos de avarento e ambicioso as porcelanas magníficas que valiam uma fortuna...
— Tenho de ir à China... Tenho de ir...
E as telas? as miniaturas... as jóias... as armas... os livros...
Preciso ir imediatamente.
A casa de pedras — pensava Kiang — deve valer muito, assim como deve ter muitas preciosidades, porém, terei de sacrificar alguma coisa; e só quando vir é que poderei resolver tudo isso, procedendo de modo que salve tudo quanto for de real valor.
E assim passou toda a noite procurando se recordar, pela primeira vez, de sua casa esquecida e silenciosa, nas margens do poético rio.
A imagem de Tung não se afastava da sua mente perturbada.
Sozinho, Kiang falava alto:
— Mas, será possível que meu pai esteja enfermo?
Pode ser...
Mas, por que penso que ele pode estar leproso?
Donde me vem esta ideia terrível?
Preciso ir à China o mais breve possível, preciso desfazer toda essa angústia horrorosa que sinto...
Novamente a mesma perturbação e outra vez falou alto:
— Será que minha mãe morreu ou será que meu pai teve a insensatez de ir viver junto dela na casa de pedras?
Se ele assim fez, não perdoarei... Não!...
Ele seria incapaz de procurar uma leprosa, sei quanto essa moléstia o apavora.
Eu também sinto o mesmo horror...
Já são passados tantos anos e, ainda agora, só em recordar que minha mãe foi uma leprosa, sinto o sangue deixar de circular normalmente nas minhas veias.
Não posso conceber nem sequer ver, ao longe, um leproso; o seu aspecto causa-me um asco que não sei explicar.
Tenho por essa moléstia um verdadeiro pavor.
Acho que todos os seres atingidos por essa doença nefasta e incurável, deviam ser imediatamente eliminados, evitando assim o contágio terrível e a possibilidade de poderem perturbar, com os seus aspectos monstruosos, com as suas chagas putrefactas, os não atacados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 03, 2022 12:11 pm

Não posso nem mesmo pensar em ver, perto de mim, um desses doentes miseráveis.
Seria para mim a maior desgraça, caso viessem a saber que sou filho de uma desgraçada leprosa.
Kiang não conseguiu dormir; muito cedo se levantou e saiu.
Não procurou um carro para levá-lo ao Instituto, como costumava fazer.
Preferiu fazer todo o percurso a pé, pois a manhã estava linda e fresca.
As árvores que enfeitavam algumas ruas, por onde o jovem passava, estavam maravilhosamente verdes, pois era plena primavera.
Quando defrontou com o Instituto, resolveu não assistir às aulas e continuar o passeio.
Devagar, seguiu até uma grande praça onde sentou-se em um banco e ficou outra vez entregue às suas meditações, sem forças para interrompê-las.
A praça possuía frondosas árvores e inúmeros canteiros, que nessa época do ano estavam todos floridos.
Chegava até Kiang o subtil perfume das flores entreabertas.
Tudo nessa manhã era belo; o céu, muito claro, era premindo de um soberbo dia.
Bandos ruidosos de crianças chegavam para gozarem do esplêndido recanto.
Kiang, alheio a tudo em seu redor, só pensava na próxima viagem.
Sentia já uma saudade infinda de Mei-ling, preocupado em passar sozinho os longos e enfadonhos dias de travessia.
— Mas tenho de ir...
Preciso ir... — pensava, decidido.
***
Tendo providenciado rapidamente tudo, dias depois Kiang deixou Paris, rumo à China.
Combinou com Nai e Tieng que, assim que chegasse, trataria logo de convencer Tung a vir com ele para residir definitivamente na França.
Os seus importantes negócios estavam entregues a sólidas companhias e as vastíssimas propriedades tinham velhos e interessados empregados à frente, que sabiam perfeitamente administrá-las, como vinham fazendo há longos anos.
Mei-ling fez inúmeras recomendações a Kiang, assim como uma carta de que ele era portador, pedindo a Tung que tudo deixasse e que viesse o mais breve possível para junto dos seus filhos.
Foram dias intermináveis para o moço.
Sozinho, ficava horas seguidas arquitectando os planos que teria de executar logo que chegasse.
“Como irei encontrar minha cidade?
Guardo tão poucas recordações dela...” — meditava.
Não quis comunicar a Tung e pediu a Tieng para também não avisá-lo; queria lhe proporcionar uma surpresa.
Chegaria sem que ninguém soubesse, subiria pelas margens do rio e iria surpreender seu pai...
Queria ver como ele o receberia...
E os criados, que o viram partir ainda tão jovem?
Com toda a certeza não o iriam reconhecer...
Lembrou-se do velho Chan; será que ainda vivia?
Devia estar muito velhinho.
Kiang saiu, uma tarde, para um ligeiro passeio pelo navio, pois era abrasador, nesse dia, o calor.
Foi até o tombadilho, recostou-se numa pequena coluna e ficou olhando o mar...
Novamente seu pensamento foi pairar em Cantão, agora bem perto.
Reviu o vasto salão e a galeria sumptuosa de Tung.
“Trarei tudo e tenho certeza de que farei inveja a muitos coleccionadores franceses” — meditou.
As telas passavam pela sua mente e de todas elas, ele meticulosamente calculava o valor...
Lembrou-se da colecção de armas que seu pai tanto se orgulhava de possuir.
Realmente eram dignas de um rei...
Por último, pensou nos dois grandes retratos enviados por ele, pintados na Itália e na França, imortalizando-o numa exuberância de tons magistrais, que só mesmo dois génios da pintura poderiam ter executado com tanta riqueza de expressão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:01 pm

Lembrou-se quando Tung pediu para ele posar para essas duas telas, que desejava levar para a China.
Nessa ocasião, Kiang riu bastante do capricho de seu pai, mas, agora, já fazia cálculos de quanto valeriam os dois quadros.
E nesse constante exame das riquezas de seu pai, via se aproximar o fim da viagem.
Faltavam poucos dias para o término, e ele já iniciava o preparo das grandes malas e dos inúmeros presentes que Mei-ling, com capricho, preparou para Tung.
Numa tarde, muito triste e cinzenta, o rapaz chegou.
Não lhe impressionou ver, ao longe, o casario branco da sua cidade...
Nem depois, o rio lendário em que ele, criança, tanto gostava de brincar nas suas margens...
Indiferente, tomou a rústica e típica embarcação que o iria deixar nas escadarias de sua residência.
Em pé, seguiu todo o percurso do rio, alheio ao vozerio dos outros passageiros e tripulantes da embarcação, que com seus largos chapéus lhe davam um aspecto interessante e original.
Quem visse aquele chinês distinto, de porte elegante, correctamente vestido à moda europeia, não poderia calcular que era o mesmo chinesinho que há anos saíra, indeciso, guiado pelo rico Tung Fú, para ir estudar numa das mais adiantadas capitais da Europa.
Os anos foram passando lentamente, e lentamente foi também quase que esquecido o chinesinho, filho do ilustre comerciante.
Ninguém reconheceu Kiang na embarcação; julgaram que fosse qualquer chinês de outra cidade que eles costumavam transportar.
Ele mesmo se admirou de como ainda falava com facilidade o seu idioma.
A pronúncia correta, sendo esse também um motivo para que ninguém suspeitasse.
Quando a embarcação parou junto aos degraus da sólida escada de pedras, e as suas malas foram depositadas, o moço recompensou fartamente os humildes remadores e, satisfeito, os viu se afastarem depressa.
Como aconteceu com Tung, quando voltou, Kiang também sentiu uma fortíssima comoção ao se ver sozinho na escada.
Subiu alguns degraus e divisou a majestosa casa em que tinha nascido.
Subiu mais outros degraus e, comovido, reviu os mesmos lugares, onde, em criança, costumava vir com sua mãe e fazer as casinhas que tanto gostava.
As mesmas árvores, as mesmas flores, tudo, enfim, como deixou.
Caminhou devagar e já bem perto da casa admirou-se de a ver toda fechada; e nem um só criado aparecia.
Aproximou-se ainda mais.
O silêncio era impressionante.
A tarde quase finda e já um tanto escura.
Kiang chegou junto ao portão que dava entrada à ala que levava ao começo da casa.
Empurrou o antigo portão que estava somente encostado.
Entrou. Olhou ao redor e não viu ninguém.
Quando já deparava com a primeira porta foi que divisou, do outro lado, uma janela aberta e uma ténue luz.
Cada vez mais surpreendido, resoluto, empurrou a porta e entrou.
No longo e quase escuro corredor, nem um criado aparecia.
Ele ficou parado alguns momentos à espera.
O silêncio era completo e nem uma claridade havia que pudesse guiá-lo.
Vendo que não vinha ninguém, com cuidado tomou o corredor.
Já perto de terminá-lo, ouviu barulho de uns passos vagarosos que vinham em direcção onde estava.
O jovem esperou e não demorou muito a porta abriu e apareceu, aos seus olhos surpresos, um velhinho bem curvado, de cabeça muito alva, trazendo com dificuldade uma pequena bandeja e uma luz bruxuleante.
Era Chan...
Kiang o reconheceu...
Porém, foi tão chocante a surpresa que lhe causou a aparição do velho criado, que ele ficou por alguns instantes impossibilitado de se mover.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:02 pm

Mas, passado o primeiro momento de emoção, seguiu os passos de Chan.
Mantinha uma certa distância e com cuidado procurava não despertar a atenção do criado.
Assim, viu quando ele empurrou outra porta e entrou num pequeno compartimento que representava a cozinha.
Colocou a bandeja sobre uma pequenina mesa e depois, com visíveis sinais de cansaço, sentou-se junto à mesma.
A luz colocada perto da bandeja inundava todo o compartimento de uma estranha claridade.
Kiang, num vão da porta, fazia o exame alarmante.
Confuso, dizia a si mesmo:
— Mas, o que se passa aqui?
Onde estão os criados e por que esta escuridão horrível?
Será que meu pai está viajando?
Mas se assim fosse não entregaria esta casa aos cuidados de um velho quase inválido como Chan.
Preciso saber a verdade.
E, decidido, empurrou a porta, entrando no aposento.
Tomado de surpresa, Chan bruscamente se levantou, atemorizado.
E ao ver, à sua frente, um desconhecido, deu um pequeno grito.
Foi então que o moço, colocando a mão pesada sobre o seu ombro, disse:
— Que é isso?
Não me reconhece mais?
Chan, ouvindo aquela voz, foi tomado de um grande tremor que sacudiu o seu corpo curvado.
Queria falar e não podia, sentindo que tudo rodava em torno dele...
Porém, passado o primeiro abalo, tomou a luz e a ergueu para poder ver se não estava sonhando...
E surgiu positivo e real à sua frente — Kiang...
Assim mesmo não pôde falar, pois foi muito profundo o abalo que recebeu...
Sentou-se novamente e ficou pensativo.
Kiang olhou ao redor à procura de uma cadeira, trouxe-a para junto dele e sentou-se também.
— Chan, por que não fala?
Onde está meu pai?
Vim lhe fazer uma surpresa.
Por acaso está viajando?
Chan não respondeu, Kiang insistiu:
— Por que vejo minha casa tão abandonada, sem os criados e às escuras?
Vamos, Chan, diga o que se passa imediatamente — e fez menção de se levantar, o que Chan, alarmado, tentou impedir.
— Sente-se, Kiang, e tudo explicarei.
Kiang, embora impaciente, tornou a sentar-se para ouvir, voltando rápido ao diálogo:
— Meu pai está aqui?
— Sim.
— Então quero vê-lo já.
— Espere, Kiang, espere...
— Mas, por que esperar, se estou ansioso por vê-lo?
— Vou avisá-lo para que não fique, como eu fiquei, tão surpreendido...
Kiang riu alto e, batendo na mesa com os dedos, tornou a dizer:
— Estou ansioso para vê-lo; não é necessário avisá-lo, Chan, meu pai não ficará assim, como diz, tão alarmado...
E, sem que o criado pudesse impedi-lo, ligeiro saiu pelo corredor que o levaria aos aposentos de Tung.
Chan, quase correndo, seguiu em seu encalço.
O rapaz caminhava apressado, e quando deparou com a porta empurrou-a e entrou no salão, que era, agora, o aposento de seu pai.
O velho chinês entrou também como para defender seu querido senhor...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:02 pm

Tung estava sentado na sua cadeira, perto da janela aberta.
O aposento, relativamente iluminado, permitia que o filho pudesse vê-lo muito bem.
Ouvindo o barulho da porta ele não se moveu, julgando que era Chan que voltava, permanecendo com o olhar fixo no céu, os braços pendentes da cadeira e os pés enrolados em panos, apoiados num pequenino banco.
Era impressionante, visto de longe.
Kiang, parado junto à porta, olhou horrorizado o quadro que tinha diante de seus olhos.
Assim como Chan, ficou trémulo, porém era muito forte o tremor que, inopinadamente, sacudia todo o seu corpo.
Queria falar, mas sentia a garganta ressequida, não podendo murmurar uma só palavra.
Continuou olhando aquele ser disforme que estava sentado junto à janela...
Seria seu pai?
Com esforço aproximou-se mais e foi, então, tomado de alucinante pavor...
Viu que estava defronte a um leproso e que esse leproso era seu pai...
Não pôde reprimir a emoção, e, foi tão brusca a surpresa que emitiu um pequeno grito, ouvido por Tung, que, ao se voltar, defrontou com Kiang.
Quis erguer-se da cadeira, porém não conseguiu devido ao estado dos pés, completamente chagados.
Olhou o jovem e disse simplesmente:
— Meu filho!!!
Kiang se afastou bruscamente ao ouvir estas palavras.
Chan se aproximou da cadeira do senhor e ficou ao seu lado.
Kiang foi aos poucos se afastando até que ficou junto à porta entreaberta.
Tung, vendo que ele não se aproximava, tornou a falar:
— O que veio fazer aqui?
Por que não avisou?
Devia ter-me avisado para ser poupado deste doloroso quadro que vê.
Eu não teria jamais permitido a sua volta...
Por que veio, meu filho?
Foi quando da porta, Kiang, cheio de ódio, e o rosto sulcado de rugas, gritou exasperado:
— Não pronuncie nunca mais estas palavras:
“meu filho”.
Não quero ouvir... Não quero...
Tung curvou a cabeça e chorou baixinho.
Chan, também chorando, procurou o seu banquinho e sentou-se junto ao senhor, tomando-lhe as mãos mutiladas...
Kiang, impassível, olhou os dois...
Examinou, minuciosamente, todo o aposento, e satisfeito viu que ele estava todo desguarnecido, só tendo os dois retratos dele, um junto ao outro, perto da cadeira de Tung.
Teve um gesto de contrariedade, pois não queria que aqueles quadros ali estivessem; eram telas valiosíssimas e desejava levá-las a Paris.
Onde estavam as outras telas e tudo que seu pai possuía?
Alarmado com a perspectiva de que seu pai pudesse ter-se desfeito de seus bens, Kiang resolveu sair, levando o criado para que lhe desse as explicações que desejava.
Sem se afastar da porta, chamou por ele:
— Chan, venha, preciso falar logo com você.
Chan não demonstrou ouvir o chamado, pois continuava junto à cadeira.
O moço tornou a chamá-lo e desta vez em tom ríspido.
Tung, então, muito baixinho disse:
— Vá, meu bom amigo, e o atenda em tudo.
Chan saiu devagar e Kiang o acompanhou, voltando para a cozinha de onde tinham saído minutos antes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:02 pm

Sentados, foi o rapaz quem primeiro falou:
— Chan, desde quando meu pai está doente?
— Creio que desde que voltou.
— O que fez de tudo quanto guarnecia esta casa?
Quero saber.
— Guardou cuidadosamente.
— Mas guardou tudo ou se desfez de alguma coisa?
— Guardou tudo.
Vendo que o velho criado não dizia nada além das perguntas que formulava, Kiang viu que era inútil perguntar mais.
— Providencie para mim um aposento, porém desejo que seja o mais afastado possível de onde está meu pai.
Chan olhou fortemente para Kiang, sentado perto dele, e sem pronunciar uma só palavra levantou-se e saiu.
O jovem ficou sozinho na pequena cozinha mal iluminada, cuja luz bruxuleante dava ao aposento um aspecto muito triste, e não demonstrando o menor sinal de receio, ficou entregue às suas cogitações.
Tentava, num esforço tremendo, coordenar a sua mente turvada das mais alucinantes dúvidas...
Será que meu pai já estava leproso quando me acompanhou ao estrangeiro?
Recordava a travessia longa e penosa...
Relembrava de diversos factos ocorridos quando em Paris compartilhavam do mesmo aposento.
Sentiu então verdadeiro pavor...
E agora, como poderei contar tudo a Mei-ling?
Ao lembrar-se da moça, sentiu fortíssimo abalo e um suor frio escorreu pelo seu rosto congestionado.
— Não... Jamais Mei-ling saberá desta verdade horrível; terei de ocultar para que nunca isto venha a ser conhecido.
Farei como ele fez com minha mãe, que até hoje nunca foi descoberto o seu verdadeiro fim...
Agora, mais do que nunca, necessito que essa tragédia seja desconhecida.
Amanhã mesmo, começarei a providenciar como devo agir, pois quero sair o mais breve possível deste detestável ambiente — meditou seriamente.
Nesse instante, Chan voltou e da porta disse:
— Podemos ir, o quarto está preparado.
Kiang tomou a frente do criado, que o acompanhava; chegando ao quarto, o rapaz entrou e fechou a porta, e Chan voltou para junto de Tung.
Entrou sem fazer barulho e encontrou Tung no mesmo lugar e na mesma posição.
Apressado, chegou junto à cadeira e viu, então, que ele estava acordado.
Sentou-se e esperou que este o interrogasse.
Momentos depois, o senhor perguntou:
— Chan, o que se passou?
— Ele só perguntou há quanto tempo estava doente, meu senhor.
Depois quis saber onde estavam as coisas que guarneciam a casa...
E pediu um quarto bem afastado daqui.
Só isto.
— Você deu resposta a todas as suas perguntas?
— Sim.
— Talvez amanhã ele volte a perguntar; deve responder tudo, assim como deve orientá-lo nesta casa.
Sabe de tudo e tem autorização minha para satisfazê-lo, plenamente.
Ele é o senhor de tudo.
Foi para ele que tudo guardei, portanto pode retirar o que lhe pertence.
Quero só este quarto para viver os meus últimos dias.
Depois, poderá destruir este pequeno pedaço da casa, desaparecendo todo o vestígio da minha permanência aqui.
Vamos descansar, meu bom amigo, precisamos de forças para enfrentar o combate, que será tremendo.
Levantou-se apoiado em Chan e foi para o seu leito.
***
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:02 pm

Kiang não pôde conciliar o sono, pois tinha a mente cansada e os mais sérios problemas para resolver.
Quando viu surgir o dia levantou-se e foi à janela para rever a paisagem linda que tinha diante dos olhos.
Ao chegar já era tarde e quase escuro, não podendo ver nitidamente.
Mas agora, com o despontar maravilhoso da aurora, tinha, diante de si, um espectáculo grandioso.
Primeiro, da sua casa, que, vista da janela, podia ainda ver um grande trecho da mesma; depois, o belo jardim e, ao longe, o rio de águas mansas e azuis... e, distante, o casario...
Kiang, debruçado, aspirava o ar fresco da madrugada.
Sentia, sem poder conter, uma sensação agradável ao se recordar da sua infância, passada nesse mesmo lugar.
Teve vontade de sair e, tomando um agasalho, abriu a porta, dirigindo-se ao jardim.
Percorreu tudo, indo depois para junto da escada.
Sentou-se num dos degraus e ficou pensativo.
Quando ergueu os olhos reconheceu bem perto a grande árvore onde costumava brincar e sua mãe se assentava para vigiá-lo.
Não podendo mais suportar a angústia que invadia sua alma, levantou-se, e, devagar, voltou para a casa, encontrando o velho Chan à sua espera.
Ficou muito tempo calado, tomando a refeição preparada pelo criado.
Viu quando ele arranjou a pequenina bandeja e saiu para levá-la a Tung.
Não demorou muito, ouviu os passos vagarosos do criado que voltava.
— Chan! Sente-se aqui para conversarmos.
— Mas por que não vai conversar com seu pai?
— Não, Chan...
Conversarei primeiro com você; não quero ver meu pai, tenho horror daquilo...
O criado sentou-se e esperou.
Calados ficaram os dois muito tempo, até que Kiang começou a lhe fazer perguntas:
— Diga-me, você tem as chaves de todos os compartimentos da casa?
— Tenho.
— Vá buscá-las agora mesmo.
O velho criado prontamente atendeu à ordem e foi à procura das chaves, entregando-as depois.
— São de todos os aposentos?
— Sim, de todas as gavetas e de todos os móveis.
— Bem, irei agora mesmo ver o que desejo.
Levantou-se e saiu apressado, ficando Chan sentado no mesmo lugar, pensativo e triste.
— O que irá fazer esse desalmado com seu bondoso pai? — meditava, temendo pela vida de Tung.
Devo ir para junto dele e de lá me afastar só quando houver muita necessidade.
Saiu fechando a porta e se encaminhou para os aposentos de Tung. Já no fim do corredor ouviu barulho numa das salas, cuja porta estava entreaberta.
Curioso, aproximou-se e viu, pela pequena abertura, Kiang que, sentado perto de um grande móvel, com uma caixa na mão, observava meticulosamente o conteúdo da mesma.
Sentiu repugnância pelo gesto mesquinho daquele filho ingrato que, esquecendo todos os carinhos e todos os desvelos de seu pai, o abandonava tão covardemente para só mirar a riqueza que ele possuía...
Voltou para junto de Tung que, quando viu o criado chegar, perguntou aflito:
— Onde está Kiang?
— Entreguei-lhe as chaves e ele, neste momento, está examinando tudo quanto meu senhor guardou para ele.
Tung, desta vez, não curvou a cabeça, mas procurou olhar, pela janela, o céu...
Assim passaram as horas longas e silenciosas.
Chan viu que era preciso deixá-lo e ir preparar os alimentos, pois era o único criado da casa.
Saiu sem que ele notasse sua ausência.
Ao passar novamente pelo corredor, viu que o jovem ainda continuava com seu exame.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:02 pm

Tendo recebido as chaves, Kiang, ansioso, quis ver logo tudo, no afã de averiguar se realmente seu pai não se desfizera de nada.
Aliviado, respirou, ao entrar na primeira sala, onde seu pai tinha colocado todas a telas que faziam parte da galeria.
Examinou uma por uma, notando que, efectivamente, estavam todas, só faltando os dois últimos retratos dele.
Contrariou-se, mas disse consigo mesmo:
— Providenciarei a retirada desses quadros, pois quero que eles façam parte desta galeria que tenciono ampliar mais ainda.
Em seguida, foi para uma sala menor, onde encontrou três grandes armários.
Experimentou diversas chaves até que conseguiu abri-los, deparando, contente, com as preciosíssimas porcelanas, pertencentes a diversas gerações da família Fú.
Com cuidados especiais, foi retirando algumas e abriu a janela para poder ver melhor.
Ficou extasiado com um valiosíssimo vaso de finíssima e transparente porcelana, pintado à mão por um pintor que havia ornamentado as porcelanas pertencentes aos antigos imperadores da China.
Com o vaso na mão, ficou muito tempo calculando como iria causar admiração, em Paris, essa preciosidade.
Cautelosamente, voltou a colocar no mesmo lugar o rico vaso, continuando depois a examinar outras porcelanas, constatando que todas eram de inestimável valor.
Era uma fortuna o que Tung possuía só com essas peças tão avaramente guardadas.
Em seguida, abriu outro móvel antigo e deparou com a famosa colecção de armas, muito bem acondicionadas, testemunhando, assim, o zelo que Tung tinha por elas, adquiridas nas suas longas viagens, e por preços fabulosos.
Só faltava o pequenino punhal que ele conservava em seu poder.
Kiang meticulosamente examinou as armas com um pequenino catálogo e constatou logo o desaparecimento da minúscula arma.
Pôde saber, entretanto, que fora adquirida em Pequim, num bairro afastado e que era uma arma perigosa.
— Por que será que meu pai tirou esse punhal?
Não devia ter desfalcado a colecção... — falou consigo mesmo.
A seguir, dirigiu-se a outro salão, após fechar, com cuidado, a porta.
Numa grande sala, Kiang encontrou todos os móveis que guarneciam a rica residência, com excepção da antiga cadeira em que Tung se sentava junto à janela.
Ao abrir uma das gavetas de um dos móveis, que ele reconheceu ser do aposento do seu pai, teve a maior surpresa ao encontrar um cofre riquíssimo, incrustado de madrepérolas e ouro; abrindo-o, viu diante dos seus olhos de avarento, todas as jóias da família Fú, e junto um pequenino cartão onde ele reconheceu a letra de seu pai:
“Para Mei-ling Pei esta recordação de Tung Fú.”
Era o último presente que ele ofertava àquela que viria, brevemente, ser a senhora Kiang Fú, por quem ele tinha verdadeiro afecto e admiração.
Satisfeito buscou Kiang quando terminou o exame, não só das preciosidades artísticas, como da certeza de todos os negócios de seu pai, desde o fabrico de seda e grandes negócios de importação, até as imensas propriedades que ele possuía em diversos lugares da vastíssima China.
Teve plena certeza de que a fortuna que ia possuir era fabulosa.
— Bem, agora só falta resolver como devo fazer para que seja desconhecida esta terrível tragédia, que é a doença de meu pai.
Não quero ninguém venha a saber dessa mancha que paira sobre mim...
Mas como poderei fazer? Como?
Sei que muito distante daqui meu pai possui uma casa muito antiga, feita de pedras, para onde levou minha mãe.
Poderei levá-lo para lá e deixá-lo no mesmo subterrâneo em que ela estava.
Deve ser um lugar bem oculto e bom, pois, do contrário, meu pai não teria escolhido para ocultar, naquela época, como eu desejo agora fazer, a mesma nódoa que o atemorizava.
Estou decidido; levá-lo-ei para lá, imediatamente, com Chan, que poderá servi-lo.
E assim fazendo, pouparei também esta casa, que é de grande valor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:03 pm

Está resolvido: ele irá para o mesmo subterrâneo.
Não quero ficar neste lugar muitos dias e nem que saibam da minha estadia aqui.
Preciso ver logo Chan— meditou.
Fechou a porta e guardou as chaves com cuidado.
Em seguida, saiu à procura do velho criado, indo encontrá-lo, já à sua espera, com a refeição pronta.
Depois de ter comido com muito apetite a gostosa refeição preparada pelo velho criado, que era também óptimo cozinheiro, o moço decidiu conversar seriamente com ele.
Quando terminou todo o trabalho e Kiang viu que ele estava desocupado, amigavelmente o chamou:
— Chan, preciso com urgência conversar com você; venha para perto de mim.
O velho chinês obedeceu.
— Sente-se aqui, Chan.
Quando saí de Paris para vir até aqui, foi para levar meu pai; infelizmente, o encontrei nesse lamentável estado.
Não posso compreender, como ele teve a coragem de me ocultar, por tanto tempo, essa terrível verdade.
Teria sido melhor que eu soubesse, antes, de tudo, pois assim seria poupado desta longa viagem, bem como teria também providenciado para ocultar para sempre essa tragédia que me atingiu.
Igual ao meu pai, tenho verdadeiro pavor dessa moléstia, e portanto, ele irá também compreender a minha resolução.
Estou muito moço e não posso deixar de temer que venham a saber que meu pai é um leproso, asqueroso e horripilante.
Tenho de fazer com que essa nódoa terrível seja para sempre extinta.
— Mas, o que pretende fazer com o seu bondoso pai? — indagou Chan.
— Pretendo tirá-lo desta casa e levá-lo para a casa de pedras, que você deve conhecer perfeitamente e lá, então, deixá-lo no antigo subterrâneo, onde ele poderá viver isolado.
— Mas por que retirá-lo desta casa, onde ele tem vivido sempre e até agora não foi descoberto?
— Mas poderá ser e eu não quero que ele fique aqui.
É uma casa de inestimável valor, e não permitirei que ela seja prejudicada pelo capricho doentio de um leproso.
Chan olhou, com insistência, para o rosto do rapaz e não descobriu um só vislumbre de piedade pelo pai, que tanto o adorava.
Abaixou a cabeça branca e ficou silencioso.
— Diga-me, Chan, conhece bem a casa de pedras?
— Conheço.
— Ainda moram lá os antigos servidores?
— Ainda.
— Pois bem, está resolvido: meu pai será, o mais breve possível, transportado para lá e poderá fazer companhia a ele.
O velho chinês tornou a levantar a cabeça e com voz compassada respondeu:
— Não é preciso dizer-me, que eu o acompanharei, pois fique certo de que jamais o deixarei, como tenho feito até agora.
Junto dele ficarei até morrer.
Kiang fingiu não compreender as palavras do criado.
— Levarei tudo para a França.
Deixarei preparado de modo que, quando lá chegar, possa providenciar, por intermédio dos correspondentes de meu pai, a remessa do que pedir.
Quero que vá logo avisar meu pai, para depois eu ir rapidamente falar com ele.
Iremos, breve, levá-lo; não quero que fique por mais tempo nesta casa que é minha.
Chan, num último esforço, ainda tentou convencer Kiang, dizendo:
— Seu pai sempre me disse que esta casa seria o seu último reduto, que daqui não sairia jamais...
Por isso providenciou tudo de modo que pudesse, logo que ele desaparecesse, ser enviado, o mais breve possível, para a França o que lhe pertencia, mas sair daqui ele não sairia.
— Como não sairia se “eu quero”?!
Como pode um miserável leproso ter o desplante de dizer que não quer fazer uma coisa?
Como?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:03 pm

Mostrarei como ele sai imediatamente.
— Kiang! Tenha piedade de seu velho pai!
Piedade de um leproso!
— Nunca! Nunca!
Tenho horror...
Se pudesse, eliminaria todos os leprosos, evitando assim o contágio tremendo.
— Mas esse contágio não é tão perigoso como diz; veja... trato de seu pai, convivo diariamente com ele e nada tenho.
— Tem certeza disso?
Poderá subitamente ser atingido, meu velho Chan.
Quero resolver logo tudo, preciso sair depressa desta casa, do contrário ficarei louco.
Vá, Chan, conversar com ele.
Depois irei dizer o que resolvi.
O criado deixou o jovem sozinho e devagar dirigiu-se aos aposentos de Tung.
Ao chegar à porta, ficou parado, sem coragem de entrar...
— Como poderei dizer ao meu senhor tudo quanto ouvi de seu filho?
Mas preciso dizer, é preferível que eu diga primeiro — pensa.
Resoluto, abriu a porta e entrou.
Aproximou-se, tomou pequenina cadeira e sentou-se bem juntinho do seu senhor...
Quando ouviu Chan sentar-se ao seu lado, o senhor compreendeu que ele vinha dizer algo terrível, tal a expressão do seu rosto bondoso.
No olhar suave do velho criado notava-se estampada uma profunda tristeza.
Tung, amigavelmente, pôs a mão sobre o seu ombro e perguntou:
— Vamos, diga-me logo o que tem a dizer.
Chan continuou calado e Tung insistiu:
— Fale, Chan, estou calmo e sei que não é portador de boas notícias.
O que foi que meu filho resolveu?
Conte-me tudo...
O criado olhou bem para Tung, e no seu boníssimo coração uma onda de compaixão invadiu toda sua alma...
Quis falar, porém, os soluços embargaram a sua voz...
Foi preciso que o seu senhor, afectuosamente, tornasse a dizer-lhe:
— Chan, estou preparado para ouvir, não sofrerei tanto como você julga, sei que meu filho incumbiu-o de desagradável missão; entretanto, tem de me dizer tudo, por mais cruel que seja...
Comece, Chan, o que ele quer?
— Quer que meu senhor saia desta casa...
Tung ergueu-se da cadeira num esforço tremendo...
Todo o seu corpo foi sacudido de violento tremor...
Com as mãos mutiladas, segurou na cadeira.
De pé, com dificuldade, ficou muito tempo...
Depois, devagar, tornou a sentar-se.
— Continue, Chan, o que deseja mais?
— Quer que vá para a casa de pedras, habitar o antigo subterrâneo.
Ao ouvir o que Chan transmitia, Tung deu um grito que assustou o criado e começou a soluçar alto.
O criado não teve coragem de levantar a cabeça e, comovido, chorou com ele.
Quando deixou de ouvir os soluços de Tung, ergueu a cabeça e viu o seu senhor caído nos braços da cadeira.
Num grande esforço conseguiu ergue-lo, chamando-o muitas vezes.
Quando ele recobrou os sentidos, Chan respirou aliviado.
Estes poucos instantes cruciantes, representaram para Tung anos longos e difíceis.
Nunca julgou que Kiang chegasse ao extremo de arrancá-lo da casa que ele tinha construído, na qual desejava sempre viver.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:03 pm

Nunca pensou que seu filho fosse capaz de atirá-lo no mesmo subterrâneo em que, anos passados, Li fora enclausurada.
— Chan, vá chamar meu filho...
Vá logo...
O criado saiu...
Tung, sozinho, continuou falando desorientado:
— Quando ele souber que a sua mãe ainda vive, compreenderá que é impossível a minha saída desta casa.
Ele não sabe... ele não sabe...
Não demorou muito, ouviu passos e logo Kiang entrou em companhia de Chan.
Ficou junto à porta.
O criado aproximou-se e sentou.
Tung ficou olhando para o filho por muito tempo.
Vendo que ele não saía de perto da porta, falou:
— Kiang, não exijo que venha até perto de mim, pode ficar onde está.
Recebi, por intermédio de Chan, a sua ordem.
Quer que eu saia desta casa e vá morar na casa de pedras, no antigo subterrâneo?
— Quero, pois e la que poderá ocultar essa doença terrível...
— Mas quero que saiba, agora, que sua mãe ainda vive no mesmo subterrâneo...
Kiang estremeceu com essa nova revelação, porém, logo readquiriu a calma habitual e, com firmeza, respondeu:
— Então, ela lhe fará companhia...
Tung continuou olhando para o filho, insistentemente, como não querendo ainda acreditar no que ouvia...
— Kiang, sua mãe ignora que estou doente; não quis nunca que ela soubesse disso, pois seria aumentar o seu martírio.
Pode levar tudo desta casa; ela lhe pertence, assim como minhas propriedades, porém, não sairei jamais daqui.
Aqui terminarei meus últimos dias.
Foi quando Kiang, de olhar sombrio, aproximou-se mais de seu pai e, com os punhos cerrados e voz ríspida e cortante, gritou:
— Sairá porque eu quero; terá de ir para o subterrâneo, nada o impedirá!
Eu mesmo o levarei como fez com minha mãe!
Seguirei o seu exemplo...
Apesar de ser, naquela época, uma criança, tenho bem nítida a sua conduta...
Sei, portanto, como devo agir!
Não ficará nesta casa!
Tem de ir para o subterrâneo e lá sepultar para sempre esta vergonha e esta infelicidade.
Jamais será divulgado que sou filho de leprosos!...
Eu mesmo o levarei!
A proporção que Kiang ia proferindo essas palavras dolorosas, Tung curvava a cabeça...
O mesmo fazia o velho e dedicado criado.
Kiang, vendo que seu pai não falava, saiu bruscamente do aposento, fechando a porta com violência.
Chan levantou-se e foi ficar junto à janela.
Viu quando Kiang desceu e se encaminhou para as margens do rio.
Voltou para junto de Tung e, baixinho, perguntou:
— Meu senhor, deseja alguma coisa?
— Não, Chan, quero somente ficar só, preciso de silêncio para poder pensar.
Vá, meu bom amigo, deixe-me por alguns momentos.
Saiu devagar deixando Tung sozinho no aposento vazio e triste.
Quando ele viu o velho criado se afastar, com dificuldade se levantou e procurou andar pelo aposento, mas os pés feridos não permitiam que ele ficasse muito tempo andando, nem mesmo parado.
Ainda com grande dificuldade, foi à procura do pequenino punhal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 04, 2022 12:03 pm

Firme, pegou a arma e veio sentar-se outra vez na sua cadeira, junto à janela.
Com o punhal seguro na mão mutilada, ficou olhando vagamente o firmamento azul, que tinha diante dos seus olhos quase sem luz.
— Seria tão fácil acabar com essa tortura...
Tenho, ainda, algumas forças, que serão suficientes para finalizar rapidamente esta vida infeliz e dar paz e tranquilidade ao meu filho — pensou.
Procurou firmar, novamente, o punhal nos dedos, alguns já sem as primeiras falanges, e quando ia corajosamente levantar a mão, sentiu, como aconteceu a bordo, surgir diante dele o vulto de Li...
Abaixou rapidamente a mão e deixou cair o punhalzinho aos seus pés.
Sentiu um grande arrependimento, teve vergonha da fraqueza que ia demonstrar ao seu filho.
Disse resoluto:
— Irei para a casa de pedras como ele deseja.
Lá, talvez, encontre a felicidade, alcançando o perdão de Li.
Sentiu que uma paz suave invadiu toda a sua alma...
Pela primeira vez, depois que voltou de Paris, sentiu essa sensação.
Foi preciso que Kiang voltasse com toda a crueldade para fazer com que ele tivesse a coragem para, destemido, ir reparar o seu grande pecado...
Sentiu-se tão aliviado, que encostou a cabeça no alto do espaldar da cadeira e adormeceu tranquilo...
***
Quando Chan voltou, surpreso encontrou Tung dormindo.
Não o acordou.
Saiu devagar e foi para a cozinha, encontrando Kiang sentado à espera.
— Chan, quero que vá providenciar, com urgência, um carro para levarmos meu pai, amanhã à noite, para a casa de pedras.
O criado, pela última vez, tentou pedir-lhe para que deixasse Tung viver sempre naquela casa, de que ele tanto gostava.
Porém, o moço foi inflexível:
— Não peça nada, Chan, já resolvi e não voltarei atrás na minha decisão.
— Mas Kiang, reflicta, será doloroso o meu senhor ir para aquele subterrâneo frio e triste, ele que está acostumado nesta casa; tenha piedade, Kiang, eu lhe peço.
— Não, Chan, ele também não teve piedade de minha mãe, quando ela adoeceu...
Compreendeu que era preciso recalcar todos os sentimentos...
Como quer, então, que eu não tome as mesmas providências que ele julgava necessárias?
Sei que eles não sofrerão muito, tal o estado em que se encontram.
Calculo como minha mãe deve estar depois de todos esses longos anos.
— Engana-se, Kiang, sua mãe continua bela como sempre foi.
Ele sorri, irónico, ao ouvir as palavras de Chan.
Entretanto, o velho criado não se perturba e torna a dizer:
— Kiang, a senhora está perfeita; para ela, a moléstia foi benigna, acredite, eu a vi recentemente.
Quer ir lá, antes de partir, só para ver como estou dizendo a verdade?
Kiang olhou o criado e, de rosto sombrio, rispidamente, respondeu:
— Não, Chan, não quero ver, basta ver meu pai.
Ordeno que providencie tudo para a noite.
Ficará com ele e o outro criado na casa de pedras.
Fecharei definitivamente esta.
Voltarei breve para a França e depois, com vagar, agirei melhor.
Quando ele falecer é desnecessário me avisar, pois farei constar que o encontrei seriamente enfermo, falecendo logo depois.
Fique, portanto, bem avisado.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

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