LUZ ESPÍRITA
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 3 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:44 pm

— Acho que não! - respondi.
— Alegro-me que esteja bem.
O capataz vai pagar seu ordenado com o dos outros empregados.
Vou descontar as roupas que lhe comprei.

— Senhor Ciro, será que posso visitar José Luís?
— Pode ir à sua folga.
Sabe onde ele mora?
— A cidade em que ele reside é pequena e eu o encontrarei - respondi.

O senhor Ciro afastou-se e pensei:
"Ele deve estar me ajudando por causa da dona Cármen.
É um homem muito bom, que Deus o proteja".

Esperei ansioso pelo domingo, e ele finalmente chegou.
O dia estava muito bonito, levantei bem cedo, aguei as plantinhas da horta, troquei de roupa e fui para o ponto de ónibus.

A estrada passava a dois quilómetros da sede da fazenda.
Em horários certos, podíamos pegar o ónibus que ia às duas cidades próximas.
Uma delas era onde estava o orfanato, e a outra onde meu amigo agora morava.

Tinha recebido um quarto do meu ordenado e meu dinheiro dava para as passagens de ida e de volta, restando somente um pouquinho.

"José Luís certamente me convidará para almoçar" - pensei esperançoso.
"Temos tantas coisas para conversar...
Será muito bom recordar o passado".

Na cidade, pedi informações para várias pessoas, até que uma senhora que o conhecia me indicou onde ele morava.
A casa era simples, bati palmas no portão com o coração acelerado.

Uma moça veio atender.
Expliquei por quem procurava.

— É aqui mesmo.
Vou chamar meu marido - disse ela.

José Luís veio em seguida, olhou-me como se duvidasse do que via.

— Sou eu mesmo, José Luís, seu amigo!
— Nic - disse ele baixinho.
Que faz aqui? Fugiu?

— Não, tive alta.
Estou trabalhando numa fazenda e vim visitá-lo - respondi.
Não vai me abraçar, convidar para entrar?
— Sim, entra! Como está?

José Luís abriu portão e, em vez de me dar um abraço, estendeu-me a mão.
Abriu a porta e com um gesto convidou-me a sentar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:44 pm

— Como está você, José Luís?
Casou-se? - perguntei, não sabendo como agir ou o que falar.

A moça que me atendeu entrou na sala com um menininho no colo.

— Você é amigo do Zé?
Chamo-me Márcia e este é o nosso filhinho, Roberto.
— Prazer! - falei sorrindo.

— Márcia, por favor, vá para dentro.
Quero conversar com este moço - pediu José Luís.

Senti doer meu peito, foi como se tivesse recebido um balde de água fria no meu entusiasmo.
Olhei sério para ele.

— Desculpe-me, Nic - disse José Luís baixinho.
Não quero que Márcia saiba quem é você.
Naquela época, por ser seu amigo, sofri muito.

Todos no orfanato ficaram com medo de mim.
Dona Cármen tirou-me da escola porque recebi insultos e os meninos se juntaram para me bater, não pude mais sair na rua.

Chorei muito, ninguém queria conversar mais comigo.
Nossa directora me arrumou emprego nesta cidade, vim sozinho e com muito medo.

Dois dias depois, dona Cármen morreu.
Nem voltei para o enterro, não tinha dinheiro.
Aqui, como ninguém me conhecia, passei a ser Zé.

Tive sossego e trabalhei muito.
Hoje tenho um bom emprego, casei e tenho um filho.
Não atrapalhe minha vida, por favor.

— Eu lhe peço desculpas, José Luís - disse baixinho.
Nunca quis que sofresse e lamento o que passou por minha causa. Vou embora!

— Desculpe-me não convidá-lo para almoçar.
É que vamos para a casa da minha sogra.
É melhor ninguém saber que esteve aqui.
Nic foi você quem matou aquelas moças?

— Acho que não!
Não me lembro!
Você não achava que era o senhor Olavo o assassino? Ia investigar.

— Como? Não tive tempo, quase fui expulso do orfanato.
Só que, com sua partida, não houve mais crimes.
Não voltei mais ao orfanato nem para visitar.

Adeus, Nic, seja feliz.
E por favor, não venha mais me ver - disse José Luís, levantando-se para abrir a porta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:44 pm

— Adeus, José Luís!
Que Deus o faça cada vez mais feliz!

Levantei-me e saí rápido.
Voltei para a rodoviária, onde teria de esperar duas horas para voltar.
Sentei-me num banco e fiquei ali quieto, com vontade de chorar.

Compreendi José Luís e senti por ele ter sofrido por minha causa.
Queria visitar o orfanato, mas desisti.
Era melhor ninguém saber que eu tinha saído do sanatório.

Receei que eles sentissem medo ao me ver.
Talvez Terezinha e Soninha me recebessem como José Luís, não querendo se envolver.
E não queria rever o senhor Olavo, que me acusara e que talvez fosse o verdadeiro assassino.

Tentei fazer amigos na fazenda.
Fui convidado para uma festa.
Arrumei-me bem e na noite de sábado fui ao galpão, que estava todo enfeitado.

Lá conheci uma moça, uma mulata encantadora.
Olhamos um para o outro.
Fiquei sabendo que se chamava Rania, era filha de um empregado e morava numa das casas da fazenda.

Tímido, não me aproximei dela.
A festa foi muito boa, passei horas muito alegres.
Passamos a nos ver, Rania e eu, a nos olhar, até que tive coragem de conversar com ela.

Foram somente cumprimentos, comentários sobre o tempo, mas que alegria senti ao escutá-la!

Pensava demais nela.
Ao vê-la, meu coração disparava, eu tremia e até gaguejava.
Estava amando, e esse sentimento trazia-me felicidade.
Quando recebi meu segundo ordenado, pedi para dona Adelaide, que ia à cidade, comprar um presente para eu dar a Rania.

Ela me trouxe um par de brincos.
Quando a vi passar pela horta, chamei-a, ela parou, olhou-me e sorriu.
Corri para perto dela e lhe entreguei o pacotinho.

— Para mim?
Gosto de ganhar presentes!

Abriu, fiquei olhando-a extasiado.

— Que lindos! - exclamou Rania.
Obrigada, Daniel!
Gostei muito, vou colocá-los lá em casa.

Rania era muito bonita, cabelos anelados na altura dos ombros, lábios grandes e bem desenhados, olhos pretos, vivos e alegres.

Mas seu sorriso era especial, lindo e contagiante.
Passei a fazer planos e a sonhar:
em casar, como José Luís, ter filhos, e certamente Rania e eu seríamos muito felizes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

Mas comecei a notar que estava me levantando dormindo.
Pensei até em me trancar.
Mas para isso necessitava da ajuda de outra pessoa.

"Quem?" - pensei aflito.
Ali, somente o senhor Ciro sabia quem eu era.
Todos na fazenda me conheciam por Daniel, um moço que veio de outra cidade a quem o patrão deu emprego.

Não se comentava mais sobre aqueles crimes em que eu, como Nic, era o acusado.
E ficava pensando, tentando encontrar uma solução.

"Se me prender com uma corrente ao leito?
Posso colocar um cadeado.

Mas e a chave?
Se deixar perto abro-o à noite, se jogar a chave longe, não abro pela manhã.
E aí, como me levanto para trabalhar?"

Preocupado, percebi que estava me levantando quase todas as noites.
Acordava com roupas diferentes, com o quarto bagunçado.
Achei numa manhã, no meu quarto, duas abóboras que ainda não estavam na época de serem colhidas.

Notei, outro dia, que meus sapatos estavam sujos de lama.
Compreendi, então, que saía do quarto. Tive medo.
Enamorado, quis pedir Rania em namoro, mas tímido, não conseguia falar.

Depois, temia que descobrissem que eu era sonâmbulo e que já estivera num sanatório.
Ou pior, que era Nic, o acusado daqueles assassinatos.
O sentimento de amor dá força e alegria a quem o sente.

Eu queria mais a felicidade dela do que a minha.
Será que Rania iria me querer se soubesse do meu passado?
Quem eu era? Será que seria feliz comigo?

Nunca quis tanto curar-me, se de facto sonambulismo era doença.
Não queria ser sonâmbulo.
"Meu Deus" - orava —, "por que tudo isso aconteceu comigo?

Por que não posso ser Daniel, um moço trabalhador, romântico e viver normalmente como qualquer outra pessoa?
Ajude-me, Pai Misericordioso!"

Gelei ao escutar a cozinheira, dona Adelaide, comentar com um empregado:
— Acharam uma moça morta!
Foi estrangulada e estuprada.
A polícia disse que foi morta esta noite!

Senti um mal-estar, meu coração disparou, tonteei, afastei-me escondido e fui para o meu quarto.

Orei chorando:
"Meu Deus, não quero ser assassino!
Por favor, que não tenha sido eu!"
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

Voltei ao trabalho e, quando Rania passou, fingi que não a vi.
Eu estava muito apreensivo, não queria dormir mais, acabei adormecendo de cansaço.

Na fazenda, todos falavam do assassinato, da moça.
Seis dias se passaram, devo ter me levantado todas as noites.
Coloquei em volta da minha cama vasilhames com água, no outro dia, percebi que afastara um deles.

Como estava mais tenso, levantava-me mais, como dissera o doutor Estevo.
Estava quieto, conversava pouco, fugia das pessoas e olhava Rania de longe, que continuava, como sempre, risonha e olhando-me.

Naquela manhã, ao tomar o café, dona Adelaide estava nervosa, com medo, e contou-me, falando depressa:
— Outra moça foi encontrada morta aqui perto da fazenda!
E do mesmo modo que Lourdinha.
Essa era casada, mas todos sabiam que traía o marido.

— Ela tinha filhos? - perguntei.
— Dois garotos: um de cinco e outros de três anos - respondeu dona Adelaide.
Foi estuprada e estrangulada.
Encontraram seu corpo numa casinha abandonada, do outro lado da estrada.

Estava desaparecida, mas ninguém se preocupou, pois ela tinha o costume de passar dias fora de casa.
Um homem, ao passar pela estrada, sentiu um mau cheiro, foi ver o que era e achou o corpo.
Dizem que faz uns três dias que morreu.

Dona Adelaide fez uma pausa, suspirou e continuou a informar-me:
— Esses crimes são parecidos com os que ocorreram numa cidade vizinha há alguns anos.
Um tal de Nic, órfão que morava no orfanato, foi o acusado.

Mas ele está num sanatório em outra cidade.
A polícia bem que poderia ir até lá e verificar se ele não fugiu.

Tomei o café rápido e fui para a horta apreensivo, inquieto e com medo.
Como só se falava nos crimes, ligaram esses aos outros e logo notei que os empregados que passavam perto da horta me observavam e cochichavam.
Fui almoçar dona Adelaide olhou-me de modo estranho e serviu-me o almoço calada.

Quando ia sair da cozinha, ela indagou-me, baixinho:
— Daniel, você não é o Nic?
Dizem que Nic era apelido e que ele se chamava Daniel. Você é ele?
Não respondi, voltei quase correndo para a horta.

Vi Rania e chamei-a:
— Rania!

Ela me olhou com tanto medo que me assustei.
Rania correu desesperada, como se eu a perseguisse.
Chorando, fui para o meu quarto e tomei uma decisão.

Arrumei rápido minhas roupas em sacolas, escrevi um bilhete para o senhor Ciro pedindo desculpas por ir embora sem me despedir e agradecendo-lhe por tudo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

Eu tinha poucos minutos para chegar à estrada e pegar o ónibus para a cidade.
Saí escondido e corri para o ponto.
Cheguei exausto ao local onde o ónibus parava, dois minutos depois ele passou.

Na cidade, desci do ónibus e fui andando apressado para a estação ferroviária.
Lá peguei o trem das quatro e trinta e cinco para a cidade onde ficava o sanatório.
Estava tão triste, apreensivo e com medo que sentia dores no peito e pelo corpo.

Senti, porém, que não voltava sozinho, o amor que sentia por Rania me acompanhava.
Tive vontade de morrer de tristeza.

"Não!" - pensei.
"Quem ama não deve ter vontade de morrer.
Não sentirei mais o peso da solidão.
A lembrança dela me acompanhará, agasalhará meu coração.
Como nos livros que li, é melhor sofrer por amor do que nunca ter amado".

Não prestei atenção em nada, queria chegar logo ao sanatório.
Foi um alívio quando o trem parou e desci.
Vieram à minha mente as outras viagens que fiz de trem: com meu pai e quando fui preso.

Atravessei a estação, rápido, fui para a rua e tive de perguntar como chegar ao sanatório.
Um senhor me informou.

Continuei andando e, quando vi o prédio, senti-me mais aliviado.
Fui ao encontro da construção grande e fechada.

Voltava quatro meses depois.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

Capítulo 8 - De Volta ao Sanatório

Bati na porta, que me pareceu imensa, meu coração disparou, senti a boca seca.
Sabia, ou melhor, sentia que não ia mais sair dali depois que entrasse.

"Ainda tenho tempo de correr, de fugir para longe!" - pensei.
"Fugir para quê: para matar outras pessoas?
Correr o risco de continuar fazendo maldades?
Se for um assassino, meu lugar é aqui, preso por toda a vida" - lamentava-me.

— Você de volta?!
Que faz aqui?! - o porteiro perguntou, espantado ao me ver.

— Por favor, deixe-me entrar.
Quero ver o doutor Estevo - pedi.
— Ele não está, mas entre!
Vou chamar o António.

Entrei, sentei, e logo António veio.
Examinou-me com o olhar e indagou:
— Que aconteceu, Daniel?
Por que voltou?

Chorei alto, estava desesperado, não conseguia falar.
O enfermeiro me abraçou, consolando-me, e esperou que eu parasse de chorar.

— Venha, Daniel, vamos para o seu quarto.
Amanhã você nos conta o que aconteceu.

Ajudou-me com as sacolas e fomos caminhando devagar ate o meu antigo aposento.

— O quarto não foi ocupado, está como o deixou.
Tome um banho quente.
Vou lhe trazer uma sopa.

Obedeci. António ficou comigo enquanto tomava a sopa devagar.

— Daniel, infelizmente não estou alegre por você ter voltado.
Queria que estivesse feliz lá fora.
Mas, uma vez que voltou, digo-lhe que fez falta.

A horta está abandonada, sentimos sua ausência, não há ninguém para consertar as coisas por aqui.
Você quer tomar um calmante?
Um remédio para dormir? Está muito aflito.

— António, sou um infeliz!
Não me curei! - queixei-me.
— Você nunca me pareceu doente Daniel!
— Mas me levanto dormindo, sou sonâmbulo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

— O que você fez meu amigo? - Indagou António.
— Não sei - respondi —, mas de novo duas moças foram mortas.
— Meu Deus! - exclamou António com espanto.
— Quero tomar o remédio para dormir, tranque-me, por favor.

O remédio fez efeito e dormi mais tranquilo, sabendo que estava trancado.
Acordei com um enfermeiro me chamando e me sacudindo.

— Daniel, acorde, o doutor Estevo quer vê-lo!

Levantei-me sonolento.
Depois que troquei de roupa, fui à sala do doutor Estevo.
No corredor, parei para escutar o que meu médico conversava com outra pessoa sobre mim.

— Fernando - disse o doutor Estevo —, Daniel é uma incógnita para a medicina.
Não acredito que tenha matado em estado sonambúlico.
Acho que ele tem duas personalidades.
No tempo em que esteve aqui, não nos causou problema nenhum.

Bom moço, educado, simples e trabalhador.
Queria tanto se curar, mas pelo visto não se curou.

Se quer tratá-lo, o paciente é seu.
Você é novo, recém-formado, e terá nele campo para suas experiências.
— Obrigado, doutor Estevo - falou a outra pessoa, cuja voz me era desconhecida.

Bati na porta e, ao escutar que podia entrar, assim o fiz.

— Bom dia, Daniel!
Como você está?
Por que voltou? - indagou o doutor Estevo.

Tive vontade de chorar, mas me contive e respondi:
— Doutor Estevo, eu estava muito feliz lá na fazenda:
trabalhava, fiz amigos, só que continuei com o meu sonambulismo, e não tive como me trancar.

Percebia que me levantava dormindo pela bagunça que fazia, e tudo indicava que eu saía do quarto.
Quando duas moças foram mortas perto da fazenda, fiquei apavorado.

Fugi de lá e voltei para o sanatório.
Estou muito infeliz! Desesperado!

— Calma Daniel! - ordenou o doutor Estevo.
Este é o doutor Fernando, o médico que veio ajudar-me está trabalhando connosco agora e irá tratar de você.
— Sim, senhor! - respondi.

Doutor Fernando me pediu para acompanhá-lo à sua sala.
Lá me examinou, mediu minha pressão etc.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:45 pm

Depois fez algumas perguntas:
— Sente alguma dor?
— Na alma, estou sofrendo muito - respondi.
— Acha que está doente?
— Não sei. Só tenho certeza de que sou sonâmbulo.

— Acha que matou aquelas mulheres? - o doutor Fernando continuou me interrogando.
— Não sei, quero acreditar que não.
Não quero ser um assassino!

Chorei. O doutor Fernando esperou que passasse minha crise de choro.
— Vou tentar curá-lo, Daniel! - disse o médico com firmeza.

Olhei então para ele.
Era jovem, não devia ter trinta anos.
Seu semblante era calmo, seu olhar, inteligente e entusiasmado.

Confiei e roguei:
— Por favor, doutor, por Deus, se o senhor acredita Nele, cure-me!

Ele me deu umas palmadinhas nas costas e pediu:
— Volte a viver aqui como antes, Daniel.
Trabalhe na horta, ajude os funcionários.
Vou lhe receitar um remédio para que durma melhor.

— Sempre dormi bem.
Agora, trancado, não terei medo de dormir - respondi.
— Está bem, tome o remédio até se sentir mais tranquilo.
Quero conversar com você mais vezes.

Por três dias não fiz nada, somente lastimava e chorava.
António, à noite, ao me dar o remédio, deu-me também uma bronca.

— Daniel, você precisa reagir!
Assim como está, parece um fraco!
Você é jovem e, se quer curar-se, precisa ser forte e lutar por isso!

— Você acredita em mim?
Que não finjo e que não sei o que faço dormindo? - perguntei ansioso.
— Acredito. O doutor Estevo e o doutor Fernando também acreditam.

No outro dia, fui para a horta.
Trabalhei muito, pois ela estava feia e mal-cuidada.
Cansei-me e não tive tempo para lastimar.

Só que, às vezes, parecia que eu estava na horta da fazenda e que iria ver Rania passar me olhando e sorrindo.
Mas então lembrava-me da última vez que a vi, do seu olhar assustado, da sua expressão de medo, e ficava com vontade de chorar.

O doutor Fernando chamou-me para conversar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 24, 2015 9:46 pm

— Daniel, um delegado e um investigador estiveram ontem aqui perguntando de você e, ao saberem que saiu do sanatório e depois voltou, tiveram certeza de que foi você o autor dos três crimes.
— Três?! - perguntei admirado.

— Sim, uma outra moça foi morta na noite em que você voltou.
Falei a eles que era impossível o autor desse último assassinato ter sido você, uma vez que estava no seu quarto trancado.
O delegado investigou, indagando ao porteiro e ao António, mas não se convenceu.

Ele acha que você chegou aqui mais tarde, ou que saiu à noite.
Provamos a ele que era impossível e que você passou a noite aqui.
Ordenou-nos que o mantivéssemos aqui até o julgamento.

— Vou ser julgado? - perguntei.
— Acho que sim - respondeu o doutor Fernando.
Pelo menos você é acusado.
Mas há algo estranho nisso tudo.

A terceira moça assassinada, uma prostituta, foi morta à noite, disso não há dúvida, porque ela foi vista à tarde e comentou com as amigas que ia a um encontro, estava alegre e bem.

Acharam-na pela manhã, morta na beira da estrada próxima à fazenda.
Você foi visto no ónibus à tarde e estava aqui às dezanove horas.

Mesmo que tivesse fugido, seria impossível você ter ido até a fazenda, matar a moça e retornar.
Eu o vi às oito e trinta da manhã.
A terceira moça não foi você quem matou!

— Se não fui eu, talvez não tenha assassinado as outras! - falei alto.
Esperançoso, olhei para o doutor Fernando e implorei:
— Doutor Fernando, ajude-me!
O senhor não calcula como estou sofrendo com a possibilidade de ser um assassino!
— Estou estudando seu caso, Daniel, e vou ajudá-lo!

Doutor Fernando ia três vezes por semana ao sanatório e, em quase todas às vezes, recebia-me.
Contei a ele tudo sobre mim, sem esconder nada.
Ele tomava nota, fazia perguntas.

Suspendeu minha medicação e me trazia livros e revistas para que lesse.
Esperançoso, passei a fazer tudo como antigamente:
lavar minhas roupas, trabalhar com carinho na horta, que logo ficou bonita de novo, fazer pequenos consertos e pintar algumas paredes e salas.

— Daniel - doutor Fernando me informou — você foi julgado e condenado.
Recebemos do juiz o comunicado ou a ordem para não deixá-lo sair daqui.
Foi condenado a prisão perpétua.

— Como fui condenado? - perguntei indignado.
Não tive chance de falar, de me defender, não fui a júri!
— Comentou-se que você é perigoso demais para sair daqui e condenaram-no.
Não entendo o que ocorreu, nem se isso é possível ou legítimo.

Mas foi a ordem que recebemos.
Daniel, se eu tiver certeza de que não foi você quem cometeu esses crimes, arrumo-lhe um bom advogado e reverto esse processo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:24 pm

Prometo a você!
Eles justificaram dizendo que o terceiro crime, o que aconteceu na noite em que você estava aqui, pode ter sido cometido por outra pessoa e que estão investigando.
Mas que não resta a menor dúvida de que foi você o assassino dessas duas moças e das outras três na época do orfanato.

Fiquei muito chateado e senti-me injustiçado.
Fui para a horta e lá desabafei sozinho.

Resmunguei:
"Deus, o Senhor é o culpado!
Que lhe fiz para ter sido órfão, para aqueles moços abusarem de mim e para meu pai ter me deixado no orfanato?
Além do mais, fez-me sonâmbulo!

O Senhor me criou num dia de mau humor?
Descontou em mim algum desaforo que recebeu?
Por que me fez isso?
Por que não gosta de mim?

Será que me usou para matar aquelas moças que não agiam correctamente?
Se foi isso, por que me deixa preso?
Se matei, por que não me lembro?"

Por três dias fiquei revoltado, mas depois passou.
Não conseguia sentir raiva por muito tempo.
Deveria haver explicações para esses acontecimentos em que estava envolvido, e certamente um dia compreenderia o porquê de estar sofrendo.

Embora procurasse ficar tranquilo e confiar, às vezes revoltava-me e reclamava aborrecido, mas passava, porque queria confiar em Deus, amava-o, e lá no íntimo sentia que o Pai-Criador também me amava.

Escrevi para o senhor Ciro, coloquei o remetente e o endereço de António.
Tinha dinheiro, que guardara dos salários que recebi.

Então dei a um enfermeiro amigo, em quem confiava o dinheiro para o selo.
Contei na carta tudo o que aconteceu, pedi desculpas, disse que o doutor Fernando me ajudaria e que confiava nesse médico.

Disse ainda que quisesse descobrir o assassino e que contava de novo com a ajuda dele, e que achava que o assassino devia ser o senhor Olavo.
Ele certamente soube que eu estava na fazenda, cometeu os crimes e o fez de tal forma que a culpa caísse sobre mim.

Como não obtive resposta, escrevi mais três cartas.
Então recebi uma correspondência - era de dona Maria Amélia, esposa do senhor Ciro.
Foi um bilhete pedindo para não escrever mais, porque o senhor Ciro havia falecido.

Chorei a morte dele, pois foi uma pessoa que sempre me ajudou e que com certeza iria me auxiliar novamente.

Poderia contar agora somente com o doutor Fernando, e foi com ele que desabafei numa das consultas:
— Não tenho mais nada para falar com o senhor, já lhe contei tudo sobre mim.
— Não pense que não tenho pesquisado seu caso.
A mente humana, nosso cérebro, é um campo vasto para pesquisas.

Sabemos muito pouco sobre como funciona esse órgão maravilhoso.
E doenças mentais são um desafio para nós, médicos, e muitas delas não sabemos como tratar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:24 pm

Escrevi a seu respeito para um dos meus ex-professores da universidade, um mestre estudioso e pesquisador.

Doutor Emílio se interessou pelo seu caso e virá aqui no próximo feriado para examiná-lo.
Ele hipnotiza seus pacientes e os faz falar algo de que se esqueceram ou que repelem.

— Como assim? - perguntei.
— O doutor Emílio o induzirá a dormir e o interrogará, e você com certeza responderá - explicou o doutor Fernando.

— Se assassinei aquelas moças em estado sonambúlico, irei dizer?
Ou se tenho duas personalidades irei falar? É isso?
— Sim, é - respondeu o médico.

Aguardei ansiosamente o tal professor vir, e ele veio.
O doutor Fernando apresentou-me.
O doutor Emílio devia ter uns sessenta anos, era calvo e simpático.

— Prazer, Daniel - disse ele.
Vim aqui para ajudar Fernando a curá-lo.
Fique calmo, deite-se, relaxe, preste atenção na minha voz e obedeça.

Tentei fazer o que me foi recomendado.
Escutei a voz do doutor Fernando e adormeci.
Acordei no meu quarto, no meu leito.

Levantei-me confuso e tonto, bati na porta e escutei António:
— Daniel, você está acordado? Responda!
— Estou sim, António.
O que aconteceu?
Eu não estava na sala do doutor Fernando?
Por que estou aqui?

— Acordou mesmo! Vou abrir!
António abriu a porta, observou-me bem e depois perguntou:
— Está se sentindo bem, Daniel?
— Não sei - respondi.

Olhei o corredor, tudo quieto, era noite.

— António, já é noite? É seu plantão?
— São duas horas da madrugada - respondeu o enfermeiro.
Você dormiu dezasseis horas seguidas.

O doutor Fernando deixou-me ordens para que, quando acordasse, lhe desse comida e remédio para que dormisse novamente.
Quer comer?
— Quero água! - respondi.

Peguei água no pequeno pote que ficava no meu quarto e tomei.

— Vou ao banheiro - falei.
Fui e lá vi um esparadrapo no meu braço, tirei-o e vi que havia tomado uma injecção intravenosa.
Voltei ao quarto, onde António me esperava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:24 pm

— Que quer fazer, Daniel?
Volto a trancá-lo?
Quer tomar remédio para dormir?
— António, você sabe por que me aplicaram injecção?

— Não sei, mas pelo tanto que dormiu, deve ter sido um sedativo.
Não sei o que lhe aconteceu, Daniel.
O outro enfermeiro contou-me que você foi à sala do doutor Fernando e que um médico professor veio examiná-lo.

Houve muito barulho por alguns minutos e depois fez-se silêncio.
Nem uma hora depois o doutor Fernando mandou buscá-lo com a maca, colocá-lo no seu leito e trancá-lo.
Deixou por escrito o que eu deveria fazer se você acordasse de madrugada.

— E como você sabia que, de facto, eu estava acordado? - perguntei.
— Quando você faz barulho dormindo, raramente conversa, e, quando o faz, fala de modo estranho.
Já lhe perguntei, como fiz hoje, se estava acordado.
Se fica quieto ou se responde e eu não entendo, é porque está dormindo.

— Quero tomar o remédio, António.
Acho que é melhor eu dormir novamente - pedi.

Tomei o comprimido e dormi de novo.
Acordei sentindo-me normal como sempre.
Não me lembrava de nada, não sabia o que acontecera na sala do doutor Fernando.

Fui trabalhar e tive de esperar dois dias para ver meu médico.
Estava ansioso para falar com ele.
Aguardei-o na frente da sua sala.

— Entre, Daniel, vamos conversar.

Entrei e ele fechou a porta.

Indaguei-o, aflito:
— E aí, doutor Fernando, o que aconteceu?
Sou inocente, não sou?
— Daniel, não tenho boas notícias.
Você não se recorda de nada do que aconteceu nesta sala enquanto o doutor Emílio o examinava?

— Lembro somente de o médico professor me pedir para relaxar, para dormir, e que acordei às duas horas da madrugada no meu quarto.
Por favor, conte-me o que aconteceu.

— Você dormiu, ou foi hipnotizado, e nesse estado o doutor Emílio não conseguiu fazer com que você falasse muito.
Respondeu às perguntas dele com monossílabos e de maneira confusa.
Ele achou que não estava dando resultado e tentou acordá-lo.
Você o agrediu, fui acudi-lo e você me machucou, tive de enfaixar meu braço.

Foi então que notei o braço esquerdo do doutor Fernando enfaixado e um pequeno corte nos seus lábios.
Tentei falar alguma coisa, pedir desculpas, mas não consegui.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:24 pm

Doutor Fernando continuou a falar:
— O doutor Emílio trouxe com ele um remédio, uma droga que não usamos habitualmente, mas que tivemos de aplicar-lhe.
Fez efeito rápido e você ficou quieto, então ele o interrogou.

— E aí, o que falei? - perguntei apreensivo e com dor no peito.
— Não deu para entender direito.
Você falou de forma confusa e algumas palavras aparentemente não têm nada que ver com você.

Disse:
senzala, mulata, negra, negrinha.
Daniel, as moças que foram assassinadas eram negras?

— Não sei - respondi.
— Mas você falou nitidamente que matou, repetiu muitas vezes: eu matei!
Disse que bateu, mandou bater e usou palavras grosseiras para dizer que estuprou.
Sinto muito, Daniel!

— O senhor acha então que de facto matei aquelas moças? - indaguei com a voz trémula.

Sofri tanto ao escutar as explicações do doutor Fernando, que senti dores físicas pelo corpo, especialmente no peito.
Eu preferiria ter sido morto por tortura a ter certeza de que matara aquelas mulheres.

Olhei para o médico aguardando sua resposta.

— Não sei, não posso afirmar.
Você escutou tanto sobre esses crimes, sofreu sendo acusado, preocupa-se tanto com a possibilidade de ser o assassino, que pode ter respondido o que o aflige.
Meu ex-professor, o doutor Emílio, bem como o doutor Estevo, têm a mesma opinião:
que você tem dupla personalidade.

A que conhecemos:
o Daniel trabalhador, prestativo, educado, e a outra, o Daniel mau-carácter.
Somente não entendemos por que esse facto ocorre à noite com você supostamente dormindo.

E como uma personalidade não aceita a outra, você esquece.
Num ponto, nós três concordamos:
achamos impossível cometer uma violência como assassinar dormindo.

O doutor Emílio me contou que soube de um homem que era sonâmbulo, que dormindo pulou de um prédio, suicidou-se.
Mas ao investigar, a mulher dele contou que viu o marido dormindo no peitoril da janela do apartamento em que moravam, no sexto andar.

Ele estava parado, quieto, mas ela, com medo, gritou seu nome, ele acordou assustado e caiu.
Ela se culpava, pois certamente ele desceria de lá do mesmo modo que subira.

O doutor Emílio até nos propôs levá-lo para o hospital-escola, na capital, mas você, por ordem do juiz, não pode sair daqui.
E as experiências o fariam sofrer, uma vez que a droga que ele usa poderia viciá-lo.
É melhor que fique aqui connosco.

— Sou um monstro ou doente? - perguntei baixinho e envergonhado.
— Doente! - afirmou doutor Fernando.
— Vou me curar?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:25 pm

— Não sei! Estou sendo sincero Daniel, eu não sei!
O doutor Emílio e o doutor Estevo também não sabem.
— Peço-lhe desculpas pelo braço e pelo machucado nos lábios - falei, esforçando-me para não chorar.

— Não vamos falar a ninguém sobre o que aconteceu aqui - ordenou o doutor Fernando.
— É melhor os outros não saberem que sou culpado.
É melhor para mim que tenham dúvidas, não é? - falei com deboche.

— Você não é perigoso, Daniel.
Não tem por que alguém ter medo de você.
Dormindo trancado não oferece perigo.
E quero ser comunicado de qualquer facto diferente que lhe ocorra.

Agradeci, saí e não tive ânimo para nada naquele dia.
Estava sofrendo muito e fiquei chorando no meu quarto.
Mas, no outro dia, um senhor trouxe mudas e sementes e fui para a horta.

Trabalhei muito até o cansaço doer.
E todas as noites António, ou o enfermeiro de plantão, verificava com atenção se a porta do meu quarto estava trancada.

Era ordem do doutor Estevo.
O doutor Fernando passou a falar comigo cada vez menos.
Ele achava que eu era o assassino, não teve mais vontade de me ajudar, não queria correr o risco de responsabilizar-se por mim, de eu sair e cometer outros assassinatos.

Compreendi.
"Não me sinto criminoso!
Não quero ser assassino!" - pensava triste.

Talvez o doutor Emílio estivesse certo:
eu repelia tanto esses actos horríveis que os esquecia.
Concluí, depois de muito pensar, que deveria ficar preso mesmo e tentar ser bom, agir do melhor modo possível e tentar ser perdoado por Deus.

Eu pensava muito em Rania.
Orava por ela pedindo a Deus que a fizesse feliz.
Fazia preces também para José Luís, dona Cármen e para o senhor Ciro.

Às vezes iludia-me, parecia que via Rania passar sorrindo pela horta, olhando-me, usando o brinco que lhe dera.
Mas em outras lembrava-me de sua expressão de medo ao me ver.

"Ainda bem que não a matei!" - pensava.
E resolvi não me recordar mais dela com expressão de medo, apenas sorrindo.

Procurei ter somente bons pensamentos, lembrar dos bons momentos, e voltei a ser alegre.

A saudade é suavizada quando se recordam os doces momentos, e esse sentimento, em vez de maltratar, pode nos sustentar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:25 pm

Capítulo 9 - Religiões São Setas No Caminho

E o tempo para mim foi passando lentamente, monótono e sem novidades.

Conversava com os funcionários, enfermeiros, era amigo de todos.
Como havia muito serviço no sanatório, passei a ajudar os que trabalhavam ali mais para estar com pessoas sadias e conversar.

Sabia tudo sobre eles, suas famílias e lhes dizia que eram privilegiados por terem com quem se preocupar e por saber que alguém se preocupava com eles.
Foi internado no sanatório um homem de família de posses, e logo todos nós sabíamos quem era e por que estava ali.

António me informou:
— Tem o apelido de Dodô porque seu nome é complicado.
Matou a mulher, que o estava traindo.
E, em vez de ir para a prisão, veio para cá porque disseram que ele ficou possesso e matou numa crise de loucura.

Eu, que sempre me senti carente e com vontade de conversar com pessoas sadias, fiz amizade com Dodô.
Ele encontrou em mim alguém que o escutava e entendia.
Logo percebi que ele não estava doente.

— E não estou mesmo, Daniel - afirmou Dodô.
Meu advogado instruiu-me para fingir que estava perturbado e que matei minha mulher em estado doentio.
Devo, com isso, livrar-me da prisão.
Ficar aqui é mais fácil e não fico preso em celas.

— Você conseguirá enganar os médicos? - perguntei.
— Estou prestando muita atenção no que falo a eles.
Doutor Fernando é honesto, mas reconhece que é complicado diagnosticar distúrbios mentais.
Acredito que ele não terá como afirmar que estou mentindo, que matei num acto tresloucado.

Depois, Daniel, quem é rico não fica muito tempo nas prisões.
Talvez no futuro esse facto mude, mas agora os advogados conseguem inocentar quem tem como remunerá-los.

"Talvez" - pensei —, "se eu tivesse família e fosse milionário, teriam feito uma investigação mais detalhada e descoberto que o assassino foi outra pessoa, o senhor Olavo.
Ou eu poderia ter feito um tratamento mais específico e me curado.

Mas, como não tenho dinheiro nem família, tenho de conformar-me.
Será que não seria bom para Dodô pagar pelo que fez?
Quem não paga fica devendo.

Será que não lhe será cobrado?
E ele terá de pagar com juros?
Quando se deve, o melhor é pagar e ficar livre".

Dodô ajudava-me na horta e nos consertos para ter o que fazer, não gostava de ficar à toa.
Ele recebia a visita dos familiares, que lhe traziam alimentos, e os dividia comigo.

— Recebi a visita dos meus filhos! - contou ele.
Tive de fingir, não quero que eles me odeiem por ter matado a mãe deles.
Fingi tão bem que eles me abraçaram e beijaram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:25 pm

— Não sei por que você a matou, traía-a também - comentei.
— Homem pode mulher não!
Não a amava, mas ela tinha tudo o que queria:
casa boa e empregadas.

Mas traiu-me e não me arrependo de tê-la matado, ela mereceu.
Daniel, você não sonha com as moças que matou?
Não as sente perto de você, odiando-o?

— Não, nunca me recordo do que sonho.
E não sinto nada disso, parece que essas moças nunca existiram para mim - respondi.

— Sorte sua!
Eu tenho sonhado com a falecida, vejo-a sempre nos sonhos com expressão de ódio e, por duas vezes, disse-me que irá se vingar.
E quando acordo, parece que a sinto perto, até me arrepio.

Foi então que comecei a preocupar-me com as moças assassinadas.
Se fui eu quem as matou, muitas pessoas deveriam me odiar.
Chorei algumas vezes por isso.

Aquelas mulheres eram jovens, talvez fossem felizes, e eu tirei suas vidas físicas, seus sonhos, privei-as de viver.

Evitei pensar nesse facto.
Dodô ficou onze meses no sanatório, foi julgado e o júri o considerou inocente.
Como já havia recebido tratamento e ia continuar a ser medicado em casa, recebeu alta.

Ele deu-me todas as suas roupas e um relógio.
Gostei muito de ter um relógio.
Dodô mandou-me alguns presentes, livros, revistas, roupas e alimentos.

Escreveu cartas contando que estava bem, que os filhos acreditavam nele, mas que os sonhos com a ex-mulher continuavam.
Depois, esqueceu-se de mim e não deu mais notícias.
O doutor Fernando chamou-me à sua sala e deu-me um envelope.

— Daniel, doutor Emílio enviou-lhe uma carta.
Ele lhe escreveu informando o que é sonambulismo e o que é dupla personalidade.
Aqui está.

Agradeci e fui para meu quarto para ler sossegado.

"Ainda bem que ele mandou escrito à máquina" - pensei.
No escrito, havia termos científicos e nomes de pesquisadores de que não me recordo.
Mas soube então que sonambulismo é uma palavra que em latim significa "além".

É um fenómeno que ocorre durante ou além do sono.
É um despertar incompleto.
Nesse distúrbio, uma parte do cérebro acorda sem que a pessoa recobre a consciência, o que faz com que ela aja sem inteligência, mas com todas as reacções, como fugir ou atacar.

Dizia também que o sonambulismo podia ser genético, que era comum em crianças e mais raro em adultos.
Não existia tratamento ou este era bastante difícil, que o sonâmbulo não reconhece pessoas e que deve ser conduzido com delicadeza de volta à sua cama.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:25 pm

O que me impressionou nesse relato do doutor Emílio estava no final:
raramente relatou-se homicídio ou suicídio durante episódios de sonambulismo.

"Se ele escreveu raramente é porque acha possível!" - lamentei.
Continuei a ler:
dupla personalidade é um distúrbio dissociativo da identidade, é uma condição na qual duas ou mais identidades ou personalidades alternam-se no controle do comportamento de um indivíduo e na qual ocorrem episódios de amnésia.

Pode ser causada por stress avassalador, abuso emocional ou físico sofrido durante a infância, ou trauma de uma perda.
A maioria das pessoas que tem esse distúrbio apresenta sintomas de depressão, ansiedade, fobias, crises de pânico, disfunções sexuais e alimentares; muitas passam a ouvir vozes e a ter algumas alucinações.

"Não tenho esses sintomas, mas fui vítima de actos que podem provocar esse distúrbio dissociativo da identidade" - pensei.

Embaixo, na folha, escrito à mão, que reconheci ser a letra do doutor Fernando, estava:
"O que sabemos com certeza é que pouco se conhece sobre o cérebro humano e as reacções dos indivíduos.
E tudo de que a medicina no momento dispõe parece-me especulação.

Aguardo ansioso por maiores conhecimentos.
Queria curá-lo, Daniel, mas confesso que não sei como".

"Posso tanto ter assassinado" - concluí tristemente —, "em estado sonambúlico ou por esse distúrbio de identidade.
Mas não me sinto assassino!
Infelizmente, posso ter matado aquelas moças.
É melhor eu dormir trancado enquanto for vivo".

Rasguei a carta e tentei esquecer-me dela.
O doutor Estevo aposentou-se e veio para ficar no seu lugar uma médica, a doutora Maria Luísa.

Ela era pequena, magra, cabelos muito pretos e expressão bondosa.
Ela e o doutor Fernando fizeram algumas modificações no sanatório:
ampliaram os horários de visitas e colocaram três aparelhos de rádio - no refeitório, no salão de visitas e no pátio.

Gostamos muito, escutávamos músicas e notícias o dia todo e, à noite, até o horário de dormir.
Passamos a cantar; isso nos distraía e acalmava-nos.
Fizeram de uma sala um local de encontros fraternos, esta recebeu o nome de Sala Comunitária.

Foram colocadas uma mesa e muitas cadeiras, e convidaram grupos religiosos para fazerem seus cultos ali.
Representantes de três religiões se prontificaram a nos visitar:
evangélicos, católicos e espíritas.

Eu ia a todos os encontros.
E como me fez bem conhecer religiões!

No começo, o grupo católico que nos visitava era composto de algumas mulheres que vinham rezar o terço, depois, o padre vinha alguns domingos rezar a missa.
Conversei com ele.

— Senhor padre, acho que matei umas pessoas.
Será que Deus me perdoa?
— Se está arrependido, o Pai o perdoará.
Deus nos perdoa sempre!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:25 pm

— É que não sei o que aconteceu.
Mas se cometi esses crimes, arrependo-me muito.
— Venha se confessar - convidou o padre gentilmente.

Disse a ele, resumindo, o que me aconteceu, e o sacerdote perdoou-me e deu-me como penitência orar com o grupo que vinha rezar o terço.
Rezar para mim não era penitência, gostei de orar.
Aceitei agradecido o consolo e a orientação do padre.

Os evangélicos liam textos da Bíblia, gostei de ouvi-los e conversei com o pastor:
— O senhor acha que Deus nos perdoa?
Irá me perdoar?

— Você deve ter sido instrumento do demónio.
Mas se quer ser filho de Deus, o Pai o aceita.
Ele o perdoa!

O grupo dos espíritas conversava connosco, ouvia-nos com paciência.
Falavam de Jesus como eu nunca havia escutado que Ele foi um mestre, era nosso irmão.

Também lhes fiz a mesma pergunta:
— Deus me perdoaria?
— O Pai perdoa sempre quando nos arrependemos - respondeu um senhor.
— Vocês não poderiam pedir a Ele por mim?
Digam a Deus para me perdoar - roguei.

— Daniel - esse senhor continuou a me elucidar — sua conversa com Deus é entre você e Ele.
Nosso Criador o escutará.
E por que você também não pede perdão a quem ofendeu?

— Posso fazer isso?
Mas elas já morreram! - perguntei admirado.
— Claro! Você deve!
O espírito sobrevive à morte do corpo físico, e essas moças onde estiverem irão ouvi-lo.

Pedi a eles livros emprestados e com essas leituras tive outra compreensão da vida.
A mudança que o doutor Fernando e a doutora Maria Luísa fizeram no sanatório apresentava resultados positivos e eles estavam contentes.

A religião e a alegria melhoram os pacientes, que agora estavam mais calmos e receptivos ao tratamento.
Um professor de educação física vinha três vezes por semana fazer ginástica connosco.

Eu participava de todas as actividades.
Grupos de jovens passaram a nos visitar, faziam festas, organizavam jogos, tocavam instrumentos musicais e cantavam.

Fizemos um coral e todos os dias ensaiávamos.
Cantar é uma terapia que traz resultados benéficos.
Uma moça, Maria Cecília, que fazia parte do grupo de jovens, conversava muito comigo.

Dava-me atenção e trazia-me presentes.
Numa tarde, um moço brincou com ela, na minha frente, dizendo que ela estava apaixonada por mim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 25, 2015 9:26 pm

Notei então que ela me olhava muito.
Passei a evitá-la e a não ir ao pátio ou ao salão quando os jovens vinham.
Não queria que Maria Cecília se iludisse e sofresse por mim.

Eu não iria sair do sanatório - e nem queria, estava condenado, tinha medo de matar outras pessoas.
Depois, amava Rania e não amaria mais ninguém.
Senti falta da alegria deles, mas queria evitar Maria Cecília.

Eu era um homem forte pelos exercícios do trabalho pesado, bronzeado por ficar muito ao sol, tinha aspecto agradável, e a sonhadora Maria Cecília se entusiasmou a ponto de ir à horta conversar comigo.

— Daniel, por que não foi nos receber?
— Tenho muito que fazer hoje na horta - respondi.
— Está me evitando? - perguntou Maria Cecília, olhando-me fixamente.

— Estou!
— Então não lhe sou indiferente e...
— Maria Cecília - interrompi-a —, sou acusado de assassinar mulheres, você sabe da minha história, já contei a vocês.
Sou condenado, não vou sair daqui, nem quero, não enquanto tiver dúvida se fui eu ou não.

— Não foi você! Não pode ter sido!
Você não parece nada com um assassino! - ela também me interrompeu.

— Quem parece ser assassino?
O facto é que sou condenado.
Depois, amo outra pessoa.
Por favor, não insista e não me aborreça!

Senti em ter de dizer isso, ofender uma jovem tão meiga e sonhadora.
Maria Cecília disfarçou, esforçando-se para não chorar, virou-se e rápido voltou para perto dos outros.

Ela não retornou ao sanatório.
Senti que agi certo e foi um alívio não vê-la mais.
Voltei a participar das reuniões com os jovens.

Gostei demais dos livros espíritas, lia-os com atenção e o que não entendia indagava a um deles nas reuniões que aconteciam de quinze em quinze dias.
A sessão começava com a leitura de um texto do Evangelho, em seguida, alguém fazia uma explanação, e depois nos davam passes.

Numa das palestras, um senhor falou sobre religiões.

Gostei do que ouvi:
— Religiões devem ter como objectivo principal levar as criaturas ao encontro do seu Criador.
Seus membros não devem criticar um ao outro nem as outras crenças.
A maioria das religiões tem como ensinamento fazer o bem e evitar o mal.

Existem infelizmente pessoas que agem incorrectamente dentro de suas seitas, mas isso não as desmerecem.
Religiões são setas no caminho, não é bom ficar somente olhando-as e parar encantado para admirá-las.
É necessário observá-las e seguir adiante, caminhar rumo ao progresso.

Pensei muito no que o palestrante falou: são setas!
E eu estava tendo o privilégio de ver essas setas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 26, 2015 9:47 pm

Caminhar cabia somente a mim, eu quis rumar para o progresso e passei a esforçar-me para isso.
Depois dos passes e da oração final, o grupo ficava conversando connosco.

Perguntei ao senhor Rómulo:
— O senhor tem algum livro que explica o sonambulismo?
— Temos, sim.
Leia O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.
É um livro de estudo muito importante para nós, espíritas.

Encantei-me com essa leitura.
O livro de perguntas e respostas elucidou-me, encontrei nele tudo o que queria saber sobre Deus, alma e directrizes do bem viver.
Li e reli muitas vezes no oitavo capítulo, da parte segunda - "Mundo espírita ou dos espíritos" -, as questões sobre sonambulismo.

Pensei bem e não consegui entender se me encaixava naquelas explicações.
Parecia que ali havia elucidações para um tipo de mediunidade que eu achava não ser meu caso.

Fiquei ansioso pela reunião seguinte, para que um deles me explicasse.
Meditei muito sobre o que lera, sobre se matara aquelas moças, se prejudicara muitas pessoas, se as ofendera, e resolvi pedir perdão àqueles a quem magoara.
Eu, que fora órfão e que me preocupava tanto com a orfandade, deixara duas crianças sem mãe, pois uma das vítimas tinha dois filhos pequenos.

Numa tarde, entrei na Sala Comunitária, fechei a porta e senti uma sensação agradável.
Lugares de orações têm fluidos benéficos.

Conversei com Deus:
"Pai-Amoroso, perdoa-me!
E por seu intermédio rogo perdão a todos a quem ofendi.
Se sou um assassino, minhas faltas são gravíssimas.
Por favor, vocês a quem ofendi, perdoem-me.

Por Deus, desculpem-me!
Estou pagando pelos meus erros e levem em conta que devo ser doente.
Perdoem-me vocês que foram prejudicados por mim!
Perdoem-me!"

Lágrimas escorreram abundantes pelo meu rosto, meu pranto dessa vez era diferente, senti-me aliviado.

Acho que perdoado.
Passei a ajudar todos os internos; com paciência, escutava-os, aconselhava-os, levava-os para o pátio, dava alimentos na boca dos que não conseguiam alimentar-se sozinhos, trocava-os etc.

Na reunião seguinte do grupo espírita, o senhor Rómulo não veio, e o grupo não podia ficar para a agradável conversa.

Falei a uma senhora:
— Li O Livro dos Espíritos e queria saber mais sobre sonambulismo.
É pena que o senhor Rómulo não tenha vindo, queria fazer-lhe umas perguntas.

— Leia este também, O Livro dos Médiuns, talvez você encontre explicações para o que quer saber.
Na próxima reunião certamente o senhor Rómulo virá, então você poderá indagar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 26, 2015 9:48 pm

Li e reli o livro que me foi indicado e emprestado.
Ia mais cedo para meu quartinho e nem sentia o tempo passar.
Encontrei em vários textos informações sobre o sonambulismo, e concluí que realmente o fenómeno deveria ser uma forma de mediunidade.

Gostei especialmente dos textos que explicavam o assunto:
a primeira parte, quarto capítulo, questão 45 - "Sistema sonambúlico" -, e a segunda parte, 14º capítulo, item 6 - "Médiuns sonâmbulos".

Outra questão que me impressionou foi a 162:
"Sabe-se que o sonambulismo natural cessa geralmente ao ser substituído pelo sonambulismo magnético".

Fiquei contente ao ver o senhor Rómulo na reunião espírita e disse a ele que queria conversar.

No final, ele gentilmente atendeu-me:
— Senhor Rómulo, li O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, interessado em saber sobre o sonambulismo.
Sou sonâmbulo desde menino.
Não me lembro de nada que acontece comigo quando durmo.

— Você é o Nic, não é?
Foram muito comentados aqueles acontecimentos.
— Sou sim, senhor.
Não tem medo de mim?
Não acha que sou um monstro?

— Não temos medo de você nem achamos que é um monstro.
Daniel, agora que o conheço, acredito que realmente você não sabe o que aconteceu.
— Não sei mesmo e sofro com isso.
Os médicos acham mais provável que eu tenha distúrbio dissociativo da identidade ou múltiplas personalidades, só que acham estranho o facto acontecer somente quando estou adormecido.

Do que tenho certeza é que me levanto dormindo.
Pelo que li, posso ser médium?
Esse distúrbio de personalidade seria uma obsessão?
Seria curado se trabalhasse com a mediunidade?

O senhor Rómulo escutou-me com paciência e respondeu elucidando-me:
— Nós usamos mais o termo anímico para denominar os médiuns sonâmbulos.
Você pode ser sonâmbulo por algum distúrbio de sono.
Você sente a presença de espíritos?
Algo diferente? Escuta vozes ou vê vultos?

— Não, senhor, não sinto nem vejo nada de sobrenatural - respondi.
— Aqui não fazemos nem está nos nossos planos fazer Sessões com os fenómenos mediúnicos.
Não posso responder com segurança sem pesquisar primeiro, mas acho que você não é médium e que o sonambulismo não tem nada que ver com esses crimes de que você é acusado.

Daniel existem muitas doenças quando se está desorganizado espiritualmente.
Obsessões podem ser confundidas com distúrbios físicos e vice-versa.
Mente sã, espírito harmonizado corpo sadio.
No nosso centro espírita, vou pedir orações para você e conselhos aos espíritos.

Peguei a obra de Kardec para ler e concluí que aquelas leituras eram e são setas seguras que levam os que lêem a raciocinar e a compreender a vida.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 3 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 26, 2015 9:48 pm

E, como prometido, o senhor Rómulo conversou comigo na outra reunião.
— Daniel, existe uma lei justa, que é a Lei da Acção e Reacção.
Actos bons, consequências de aprendizados agradáveis, actos ruins, reacções de dor para nos forçar a caminhar e a aprender a não fazer mais o mal.
Fomos aconselhados pelos espíritos que trabalham connosco a lhe dar toda a atenção e a orientá-lo.

Eles lhe pedem para ter paciência.
Não irá trabalhar com a mediunidade e não é para induzi-lo.
Não temos ninguém no grupo para magnetizá-lo.
Não achamos que é médium, mas que tem um distúrbio físico.
Paciência, Daniel, tudo passa!

Agradeci.
"Tudo passa!
Mas estava demorando a passar!" - lamentei.

A doutora Maria Luísa deixava-nos sair do hospital em excursões com os grupos religiosos que nos visitavam.
Que gostoso era sair e passear!
Fomos a uma fazenda com o grupo evangélico e ao cinema com o grupo católico.

Encantei-me com o filme, deslumbrei-me ao ver imagens se mexendo e conversando na tela.
O grupo espírita nos fez uma surpresa:
levou-nos ao parque, onde almoçamos, dançamos e brincamos.

Foram várias as excursões que fizemos.
Como essa terapia deu certo!
Os doentes, sentindo-se alegres, melhoraram, e muitos tiveram alta.

A religião nos fizera muito bem, como faz a todas as pessoas.
Esses grupos tinham como objectivo despertar nos doentes o Amor Divino e seguiam os ensinamentos de Jesus:
amar uns aos outros, independentemente de suas crenças.

Eram pessoas especiais que faziam parte desses grupos - eram realmente religiosos.
A movimentação no hospital era imensa, se alguns saíam, outros doentes eram internados no sanatório e este estava sempre com todos os leitos ocupados.

Embora tivesse mais afinidade com a Doutrina Espírita, eu ia a todos os encontros e tinha amizade com todos eles.
Foram bênçãos que recebemos dessas pessoas, como também o grande ensinamento:
Que religiosos não devem brigar entre si nem com os outros!

Numa reunião do grupo espírita, o senhor Rómulo perguntou a um recém-internado que ele reconhecera:
— Zé, você por aqui?
Que lhe aconteceu?
Está doente?

— Foi essa mediunidade que me deixou louco - respondeu ele.
— Não, Zé, foi o abuso.
Tentamos avisá-lo, mas você não nos escutou.

Zé esperava ansioso pelo grupo espírita.
Passamos a conversar e eu soube que ele afastou-se das pessoas sensatas que tentavam ajudá-lo e orientá-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 26, 2015 9:48 pm

Era orgulhoso e achava-se importante, assim, tornou-se instrumento fácil para os espíritos mal intencionados que queriam enganá-lo.
Tornou-se ridículo praticando actos que levaram os familiares a achá-lo doente e a interná-lo.

— Leia Zé, O Livro dos Médiuns - aconselhei.
Se você entender direito o que é mediunidade e como trabalhar com ela para o bem compreenderá que o errado foi você e não a doutrina.

Não deve ficar decepcionado com a religião espírita nem com sua mediunidade.
Mas ele não tinha paciência de ler, de estudar, então eu lia para ele, principalmente alguns textos que achei que lhe seriam úteis, como a introdução:
— "A experiência nos confirma todos os dias que as dificuldades e as decepções que encontramos na prática do Espiritismo têm sua origem na ignorância dos princípios dessa ciência".

E lia mais vezes a questão 47:
— Preste atenção, Zé, medite sobre o que está escrito aqui:
"A confiança cega nessa superioridade absoluta dos seres do mundo invisível resultou em grandes decepções para muitos, eles aprenderam, à sua custa, a desconfiar de alguns espíritos, assim como de alguns homens".

— Tudo isso está escrito aí? - perguntou Zé, interessando-se.
Mas é muito bom!
— Ninguém devia usar da mediunidade sem conhecer esse fenómeno.
Estude Zé! - pedi.
Se você entender e colocar em prática os ensinamentos desse livro maravilhoso poderá trabalhar com sua mediunidade, sem risco.
É seta segura!

Com o meu incentivo e do grupo espírita, Zé melhorou.
O senhor Rómulo disse que ele estava obsediado e que os espíritos que zombavam dele foram orientados e afastados.
Zé conversava muito com o grupo e eu os escutava, recebendo preciosas lições.

Recebeu alta do hospital, mas vinha nos visitar com o grupo espírita, ao qual se integrou.
Passou a estudar e fez planos de trabalhar com a mediunidade quando estivesse seguro e de não se afastar mais do centro espírita.
No final de uma reunião, Marcelo, um jovem que fazia parte do grupo, ficou conversando com o senhor Rómulo.

Eu estava perto e ouvi:
— Você não acha mesmo ruim receber essas críticas?
Não são verdadeiras! - exclamou Marcelo.
— Marcelo - respondeu o senhor Rómulo —, que bom que não são verdadeiras.
Pior se fossem!

Não acho ruim, somos livres para agir e fazer, para ficar observando os outros fazerem e criticar.
Analiso todas as críticas que recebo boas ou ruins, e sempre tiro algo de bom para mim.
Não quero criticar!
Se às vezes acho que devo orientar alguém, faço-o em particular ou por carta.

— Mas ele foi maldoso com você! - falou Marcelo, indignado.
— Marcelo, você já ouviu o ditado "a caravana passa e os cães ladram"?
Quero caminhar com a caravana, dar passo por passo com aprendizado e trabalho no bem.
Não devo parar e dar atenção ao cachorro que late.

Se for responder, perco tempo, que poderia ser usado em algo útil.
Se paro e bato o pé, certamente o cão late mais e posso até correr o risco de latir também.
Cabe somente a eu fazer minha tarefa e é dela que terei de prestar resultados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 26, 2015 9:48 pm

Também, Marcelo, não páro para receber as pétalas de flores dos elogios.
Sorrio educadamente, agradeço os incentivos e continuo a andar.
Não quero perder a companhia dos companheiros da caravana.

— Compreendo-o e admiro-o! - Marcelo disse entusiasmado com a lição aprendida.
O senhor Rómulo sorriu e foi conversar com uma senhora que via fantasmas, ou seja, desencarnados.

E fiquei pensando:
"Será que eu fazia parte de alguma caravana e estaria caminhando?
Pelo menos" - concluí — "não ficava latindo como os cães, não criticava ninguém nem ficava jogando pétalas".

Mas não bastava somente não ficar, era preciso caminhar.
E seguindo as orientações do senhor Rómulo, de que em qualquer lugar que estejamos sempre temos oportunidade de fazer o bem, esforcei-me dentro das minhas poucas possibilidades em ajudar a todos, porque fazendo o bem é que damos passos seguros.

Essas mudanças no sanatório foram muito boas para mim.
Não tinha tempo de pensar na minha vida e tornei-me mais sociável.
Mas tinha medo de prejudicar alguém.

Ao pensar que poderia ser um assassino, entristecia-me e chorava escondido, como também chorava de saudades de Rania, dos sonhos que tivera e que não foram realizados.

Esforçava-me para não ficar deprimido, não queria ter matado ninguém.
Não sei se era coincidência ou providência, mas todas as vezes que me sentia infeliz alguém me pedia auxílio e, ao ajudar o próximo, esquecia-me de mim.
Numa das palestras do grupo espírita, uma moça falou obre um assunto conhecido para mim, algo que já tinha lido.

Comentei isso com o senhor Rómulo, que me esclareceu:
— Alegro-me, Daniel, em saber que você tem gravado o que lê!
Temos sempre mestres quando estudamos, sejam eles encarnados ou desencarnados.
Aprendemos muito com o que lemos.

Nós, cristãos, repetimos muito os ensinamentos de Jesus.
O mesmo acontece com os espíritas, que citam as orientações de Kardec, os ensinos contidos nos livros de Chico Xavier, de Divaldo Pereira Franco e outros.
É natural o aluno repetir o que dizem seus mestres.

Passaram-se os anos.
Eu estava tranquilo, participava de todas as actividades do sanatório.
Ainda me levantava dormindo, mas bem menos, sentia-me bem.

Fizemos uma festa para António, que se aposentou.
Era um enfermeiro competente e bondoso, todos gostavam dele.
Senti a falta desse amigo querido.

Mas, para nossa alegria, ele vinha sempre nos visitar e conversava muito comigo.

Numa dessas conversas, ele me afirmou:
— Daniel, acho, com certeza, do fundo do meu ser, da minha alma, que você não é assassino!
— Obrigado, António!

Emocionei-me e depois chorei sozinho, António foi à única pessoa que me julgou inocente.
Nem eu mesmo tive a certeza que ele teve.
Eu tinha amizade com todos os funcionários do sanatório.
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