LUZ ESPÍRITA
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:07 pm

O Sonâmbulo
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Espírito António Carlos

Daniel, que é Nic, o sonâmbulo, tem medo de dormir.
Durante o sono, uma força estranha toma conta do seu corpo – e tudo pode acontecer...

Entre as sombras, um vulto movimenta-se atormentado.
Vítimas da violência, mulheres indefesas perdem a vida na madrugada, nas mãos de um cruel e insaciável assassino.

Ao amanhecer, os sapatos de Daniel estão sujos de lama e o seu quarto foi revirado.

Desesperado, não sabe o que fazer...

Até quando a noite vai esconder tantos crimes misteriosos?
Quem é esse homem tão estranho, que não é capaz de declarar o seu amor à única mulher por quem se apaixonou?

Sumário

Capítulo 1 — Um novo amigo
Capítulo 2 — Na fazenda
Capítulo 3 — Orfanato
Capítulo 4 — Sonambulismo
Capítulo 5 — Acontecimentos trágicos
Capítulo 6 — O sanatório
Capítulo 7 — Um amor
Capítulo 8 — De volta ao sanatório
Capítulo 9 — Religiões são setas no caminho
Capítulo 10 — A mudança
Capítulo 11 — Lembranças
Capítulo 12 — Perdão
Capítulo 13 — Decisão
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:07 pm

Capítulo 1 – Um Novo Amigo

Atendendo ao pedido de uma amiga que reside na mesma colónia que eu, fui visitar um interno encarnado num sanatório judiciário.

Deparei-me com um prédio grande, em reforma e envolto em fluidos de angústia, medo e tristeza.
Normalmente, em lugares onde doentes se agrupam, a dor resulta nesses tipos de fluidos que citei, tanto que, actualmente, vejo pessoas alegrando esses ambientes e com bons resultados.

Bons pensamentos, optimismo, orações e alegria produzem energias salutares aos que se recuperam.
Acima da construção material havia outro prédio, que somente poucas pessoas que estão no plano físico vêem.
Era um posto de socorro, local de moradia de socorristas que trabalham lá ajudando os encarnados enfermos e os recém-desencarnados.

Esse prédio do plano espiritual era bonito, moderno, espaçoso, claro e com muitas plantas – contrastava com a construção da matéria densa.

Subi as escadas e bati na porta do posto de socorro.
Enquanto aguardava, observei o local.
A escada que acabara de subir iniciava-se no pátio ao lado do portão de entrada para o sanatório.

A porta à minha frente era simples e de tom claro.
Poderia ter volitado e entrado no posto.
Mas, quando somos apenas visitantes, normalmente não fazemos isso.

Não aguardei muito tempo; a porta se abriu e uma senhora sorridente me cumprimentou.
Expliquei o motivo da minha visita e ela convidou-me a entrar.
Atravessei um pequeno hall e deparei com a sala de recepção muito arrumada.

A senhora passou para o lado de trás de um balcão, pegou uma ficha e leu alto:
— Geraldino, sessenta e três anos, foi casado... – deu-me as informações de que eu necessitava.
Agradeci.

A atendente gentilmente ofereceu:
— António Carlos, você quer que um dos nossos trabalhadores o acompanhe?
— Sim, quero obrigado – respondi agradecido.

Ela se afastou para logo retornar acompanhada de um homem jovem e sorridente.
— Esse é Daniel – disse ela nos apresentando.

Cumprimentamo-nos.
— Vou levá-lo até Geraldino.
Acompanhe-me, por favor – falou Daniel.

Descemos por uma escada interna até o hospital dos encarnados.
Havia muito movimento:
enfermeiras e doentes iam e vinham pelos corredores.

Chegamos a um pequeno pátio cimentado e paramos perto de um banco em que estava sentado um homem que aparentava ser muito idoso.

— Este é Geraldino!
— Fale-me mais sobre ele - pedi.
— Já faz trinta e quatro anos que ele está aqui.
Além das doenças mentais, tem outras graves, está muito debilitado.
Acha que irá desencarnar logo? - indagou Daniel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:08 pm

— Sua filha Jacy me pediu para vê-lo - respondi.
Ela acredita que ele irá logo mudar de plano.
Quer muito que o pai possa merecer um socorro.
Pediu-me para ajudá-lo.

— Jacy é a filha que ele matou! - expressou Daniel.
Percebendo que fora indelicado, tentou suavizar o que dissera, sem, entretanto, conseguir:
— Em quem ele bateu e que desencarnou!

— Geraldino recorda esses factos? - perguntei.
— Sempre! Ele lembra muito, às vezes com desespero, outras, com angústia e remorso.
E ainda tem raiva da esposa.
Você sabe onde a mulher dele está? - curioso Daniel quis saber.

— A esposa de Geraldino reencarnou - respondi.
Está tendo a abençoada oportunidade de um recomeço.
Você sabe o que ele pensa?

— Todos os que vêm aqui para aprender a ser útil, tornar-se um atendente e, no futuro, um socorrista, analisam Geraldino por dois motivos:
primeiro porque ele tem uma história interessante e triste, segundo porque pensa muito numa coisa: na tragédia.
Estou trabalhando nessa área em que ele está e assim sei o que ocorreu com ele.

Daniel fez uma pausa; depois, continuou a falar:
— Geraldino era casado e tinha dois filhos:
um rapaz e uma moça, a Jacy.
Era trabalhador, honesto, porém ia muito num barzinho perto de onde morava.

Isso era motivo de brigas no lar.
Um dia, estava com os amigos, bebendo, e estes falaram para ele que sua esposa o traía.
Deram detalhes, nomes e lugares de encontros.
Era mentira, e eles logo iam desmentir.

Mas aconteceu um acidente na frente do bar, uma charrete atropelou um garoto.
Gritos, discussões, o pai do menino queria esfaquear o charreteiro.
Todos saíram para ver.

Geraldino afastou-se sem que os outros percebessem e foi para casa.
Nervoso, impulsivo, já chegou agredindo a esposa, que revidou, aos gritos.
Ele apertou o pescoço dela.

A filha Jacy foi acudir a mãe.
Não conseguindo fazer com que o pai a soltasse, ela pegou uma vassoura para bater nele.
Geraldino, deixando a raiva dominá-lo mais ainda, jogou com força a esposa contra a parede e atacou a filha, tomando-lhe a vassoura e golpeando-a na cabeça.

Resultado: as duas morreram.
Os vizinhos, acostumados com os gritos e as discussões, nem se importaram.
Mas os amigos de farra, quando resolvida à questão entre o pai do garoto e o charreteiro, não vendo Geraldino, concluíram que ele fora embora.

Resolveram ir atrás dele para desmentir a história e, quando chegaram lá, viram-no assustado, sentado no chão, balbuciando palavras que ninguém entendia, e as duas caídas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:08 pm

Ele foi preso.
O filho, magoado, nunca mais quis vê-lo ou saber dele.
Na prisão, perceberam que ele adoecera, enlouquecera.

Veio para cá e nunca se recuperou.
Os ex-companheiros de bar tentaram dizer-lhe na prisão que mentiram, mas ele não compreendeu.
Nunca recebeu uma visita nesses anos todos que aqui ficou.

Daniel terminou seu relato.
Olhei para Geraldino, que estava magro, com os cabelos brancos, curvado e com um olhar muito triste.

— Observe António Carlos - continuou Daniel, esclarecendo-me —, que ele aperta o lenço na mão.
Às vezes pensa que está apertando o pescoço de sua mulher.

Vi seus pensamentos:
uma sala pequena, entre o sofá e a parede, uma mulher desesperada tinha o pescoço apertado.

Dei-lhe um passe.
Transmiti-lhe energias benéficas e desfiz seus pensamentos, fazendo-o pensar num jardim florido.
Ele se acalmou e se se encostou ao banco.

— Quando a filha Jacy vem aqui, se ele a sente apavora-se - explicou Daniel.
— Jacy havia me dito isso.
As duas já lhe tinham perdoado, e ela queria ajudá-lo, mas não estava conseguindo.
Geraldino, sentindo-se culpado, acha que a filha vem para castigá-lo, para cobrá-lo por tê-la assassinado e se desespera.

— O remorso faz adoecer! - exclamou Daniel.
— Devemos arrepender-nos de todos os nossos erros - falei —mas não deixar que o remorso nos destrua!
Necessitamos compreender o erro, ter vontade de repará-lo e, se possível, fazer o bem a quem prejudicamos.
Se isso não for possível no momento, devemos ser bons para outras pessoas.

— Lugares de vícios, como o bar que Geraldino frequentava, devem ter desencarnados ociosos querendo confusão.
Esses desencarnados devem tê-lo influenciado - opinou Daniel.

— Recebemos muitas influências.
Mas temos o livre-arbítrio de atender a quem queremos.
Podemos concluir pela lógica quem são os indivíduos com base nos locais que frequentam.

Em bibliotecas estão os que querem aprender, os que gostam de leituras; em templos e igrejas, os que normalmente oram; em bares, os que apreciam a bebida etc.
Admito, porém, que em todos os lugares há frequentadores de boa e de má índole.

Fiz uma pausa.

Vendo que Daniel aguardava atento minha conclusão, continuei a falar:
— Jacy me disse que seu pai escutou os amigos, acreditou neles.
Com a confusão na frente do bar, saiu sem que ninguém o visse.
Desencarnados que ali estavam rindo incentivaram a brincadeira.

Até disseram a ele para tomar providências.
Como todos saíram para a rua, esses desencarnados, curiosos, foram também.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:08 pm

Quando aconteceu a tragédia, estavam somente os três na casa.
Geraldino, quando compreendeu que tirara a vida física das duas, entrou em estado de choque e adoeceu.

Olhei para Geraldino, examinando-o.
Ele estava com uma doença grave no coração.
Não sabia determinar quando, mas ele fatalmente iria sofrer um enfarte que resultaria na morte do seu corpo físico.

— Voltarei à noite e tentarei conversar com seu espírito quando seu corpo estiver adormecido - disse a Daniel.
— Vai ser difícil - Daniel explicou-me.
Geraldino não é de falar muito, tem um medo terrível de quem não conhece.
E ele está tomando uma medicação forte para dormir, o que dificulta o afastamento do seu espírito do corpo físico.

— Então vou tentar falar com ele agora.

Aproveitando que o pai de Jacy estava calmo, dei-lhe outro passe, fazendo-o adormecer tranquilo.

— "Sou médico" - falei-lhe baixinho e compassadamente.
Seu perispírito, afastado centímetros do corpo físico que dormia sentado no banco, virou-se, observando-me.

Continuei:
— "Geraldino, você precisa pensar em Deus, nosso criador.
Nosso Pai-Amoroso o ama e quer que fique bem."
— Sou um assassino! - falou com dificuldade.

— "Você já foi perdoado!
Por que insiste em condenar a si mesmo?"
— Matei-as! As duas sofreram!
Elas vão se vingar, maltratar-me! Mereço!

— "Sua esposa e sua filha compreenderam-no, perdoaram-lhe e querem que você esteja em paz."
— Tenho de pagar! - exclamou Geraldino e suspirou.

— "Já não pagou?
Todos os que erram e são julgados pelos seus crimes recebem uma pena, ficam presos e pagam.
Você foi condenado a vinte e seis anos, já ultrapassou essa pena.
Ninguém lhe cobra nada."

— Sou infeliz! Matei-as! - repetiu muitas vezes.
— "Sinta-se perdoado!" - insisti.

Vendo-o cansado, não insisti mais.

Geraldino acordou, levantou-se tranquilo, colocou no bolso o lenço que segurava e, vendo um enfermeiro, aproximou-se dele e indagou:
— Você acha que Deus nos perdoa?
Será que já paguei pelo meu crime?

Infelizmente o trabalho ali era muito, e a equipe de encarnados nem sempre tinha tempo para dar atenção aos enfermos.

Tentei instruir mentalmente o enfermeiro indagado e este atendeu ao meu apelo e respondeu:
— Sim, Deus nos perdoa sempre porque nos ama!
E o senhor já pagou pelo seu crime! Não deve se culpar mais!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:08 pm

O enfermeiro afastou-se e Geraldino ficou pensando:
"Posso ter pagado, mas estou vivo, e elas, mortas!".
— "Morrer não é acabar!
Vivemos em outro lugar quando temos nossos corpos físicos mortos!" - transmiti a ele, olhando firme em seus olhos.

— Quando se morre, vive-se em outro local! - falou Geraldino baixinho, sentando-se no banco novamente.
— Que bom! - exclamou Daniel.
Nunca vi Geraldino assim tranquilo.
Pela primeira vez aceitou uma boa sugestão!

António Carlos, Geraldino é doente do corpo, e seu perispírito também aparenta estar enfermo.
Essa doença é reflexo de qual: do corpo ou do espírito?

— Espírito harmonizado tem corpo perispiritual e físico sadios.
Pelo remorso, ele fez adoecer o perispírito e este transmitiu o mal ao corpo físico.
Quando ele se sentir perdoado e compreender que errou, mas que pagou com a dor esse erro poderá sentir-se equilibrado.

Seu perispírito se harmonizará, mas o corpo adquiriu uma doença incurável e não se recuperará mais.
Geraldino, quando desencarnar, deverá ser submetido a um tratamento para se livrar do reflexo do físico.
Quando nos sentimos quites com as Leis Divinas, a recuperação é mais fácil.

Marquei com Daniel de ir outras vezes naquele mesmo horário, logo após o almoço do sanatório, para visitar Geraldino.
Escolhemos essa hora porque era o momento em que ele ia para o pátio e costumava sentar-se num banco.

O pai de Jacy me aceitou, não tinha medo de mim.
Eu lhe dava passes e ele adormecia tranquilo, afastava seu perispírito um pouquinho do corpo físico, que dormia, e então conversávamos.

Depois de algumas conversas, perguntei-lhe:
— "Geraldino, sua filha Jacy queria tanto vê-lo, abraçá-lo.
Você não a receberia?"

— Ela não tem raiva de mim?
Você tem certeza de que ela quer me ver?
— "Quer sim. Amanhã vou trazê-la."

No outro dia, Jacy me acompanhou.

Daniel, ao nos receber, informou:
— Geraldino melhorou, tem estado mais tranquilo.
O médico diminuiu seu medicamento.

Jacy ficou de longe me olhando dar um passe em seu pai e ele adormecer.

— "Geraldino" - falei —, "Jacy está aqui.
Fique calmo! Receba os beijos de sua filha."

Minha amiga aproximou-se devagarzinho.
—"Papai! Meu pai!" Abraçaram-se.

Ambos choraram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:09 pm

— "Eu lhe perdoo, papai!" - exclamou Jacy.
— Não mereço! - disse Geraldino emocionado.
—"Eu lhe perdoo!"

Era emoção demais para o nosso enfermo.
Jacy afastou-se, ele acordou chorando.
E chorou por vários minutos.
Nenhum encarnado prestou atenção naquele choro sentido e sofrido.

Quando se acalmou, fomos embora.
Jacy passou a me acompanhar nas visitas.
Geraldino recebia-a com alegria, deixava-se abraçar, beijar e, o mais importante, sentiu-se perdoado.

Indagou pela esposa e, ao saber que ela também lhe perdoara, alegrou-se.
O progenitor de minha amiga melhorou visivelmente, sua aparência era tranquila, sorria e estava mais sociável.
Nessas visitas, Daniel e eu conversávamos bastante e tornamo-nos amigos.

— António Carlos - Daniel me informou —, Geraldino tem falado aos médicos e enfermeiros que recebe a visita da filha.
Ninguém acredita. E ele está alegre e tranquilo.

— Daniel, não há mais razão para que eu venha mais aqui - falei.
Jacy já pode vir sozinha.
- Agradeço-lhe pela ajuda que nos deu.

Abraçamo-nos prometendo nos visitar.

Dias depois, Jacy veio me procurar.
— Algum problema? - indaguei ao vê-la.
— Não com papai.
Embora esteja muito doente - faz dois dias que não consegue levantar-se do leito —, está tranquilo e com certeza poderei socorrê-lo assim que desencarnar.

É com Daniel, ele está tristonho e preocupado.
Eu não quis perguntar o motivo, temi ser inconveniente.
Como sei que vocês dois são amigos, achei que você poderia ajudá-lo.

Agradeci-lhe.
No outro dia fui com Jacy visitar seu pai.
Daniel nos cumprimentou sorrindo e nos acompanhou até Geraldino, que estava acamado.

Observei meu amigo que, de facto, pareceu-me preocupado.
Deixando Jacy com o pai, aproximei-me de Daniel.

— Está com algum problema, amigo?
— É que tenho de tomar uma decisão importante e não sei como fazê-lo - respondeu Daniel.
— Posso ajudá-lo? - indaguei solícito.

— Pode António Carlos.
Se você puder me escutar e aconselhar, ficaria muito agradecido.
Só que a história é longa.
— Gosto de histórias - falei sorrindo.
Vamos marcar um encontro?

Combinamos de nos encontrar naquela mesma noite, em que ele estaria de folga.
Aguardei ansioso o anoitecer, na expectativa de ouvir um relato interessante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:09 pm

Capítulo 2 - Na Fazenda

Na hora marcada, fui ao sanatório.
Daniel me recebeu contente e aliviado por eu ter ido.
Dirigimo-nos a uma das salas, um consultório médico.

— Aqui estaremos sossegados a essa hora da noite.
António Carlos, Geraldino desencarnou.
Seu corpo já foi para a sala do velório e Jacy pôde desligar seu espírito e levá-lo para um posto de socorro.
— Que bom! - exclamei.

Sentamo-nos.
Olhei para ele incentivando-o a contar o que o preocupava.

Daniel suspirou e começou a falar:
— Quando encarnado, fui um nictóbata!
"Nictóbata" - pensei, tentando recordar se sabia o sentido dessa palavra.

Daniel não esperou para saber se eu conhecia ou não o significado e explicou:
— Sonâmbulo!

Sorri e ele continuou a falar:
— António Carlos, estou indeciso se reencarno ou não.
Queria continuar como aprendiz neste trabalho no sanatório, de que tanto gosto.
Fiz planos de estudar, de preparar-me para o retorno ao plano físico.

Quando encarnar, quero ser enfermeiro, um bom profissional.
Mas, ele me pediu para voltar à matéria densa, para reencarnarmos juntos.
E eu não sei o que fazer.

Daniel fez uma pausa, compreendendo que, para opinar, eu teria de saber tudo o que acontecera com ele.

Sendo assim, começou a contar:
— Eu não sabia o que era morte.
Só compreendi seu significado quando me falaram que minha mãe havia morrido.
Com o passar dos dias, senti falta dela, do seu carinho, da sua atenção, e achei que a morte era algo muito ruim.

Éramos pobres, morávamos numa fazenda em que meu pai era empregado.
Nossa casa era simples, sem conforto, mas gostávamos do lugar e éramos felizes.
Ali havia muitas árvores, animais, ficávamos soltos - meus irmãos, eu e a meninada da fazenda.

Corríamos e brincávamos perto das casas dos empregados.
Nossa vida mudou com a desencarnação de minha mãe.
Meu pai, nervoso, exigiu que eu, o mais velho, fizesse o serviço de casa e cuidasse dos meus irmãos.

Eu não sabia fazer o que ele me ordenava e pela primeira vez me bateu.
Chorei muito, queria minha mãe.
Meus irmãos também choravam, sentíamo-nos desamparados e tristes.

Gostava muito dos meus irmãos.
Rodrigo tinha sete anos e Isabel, três.
Minha irmãzinha era linda: cabelos claros, olhos castanho-dourados, rostinho rosado, e era muito esperta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:09 pm

Eu estava com quase dez anos e, mesmo sem saber como, tentei fazer tudo o que meu pai me mandava.
Às vezes duas vizinhas vinham me ajudar. Tive de parar de ir às aulas.
Para frequentar a escola, os garotos que moravam ali se levantavam às cinco horas da manhã e caminhavam bastante.

Voltavam à tarde.
Eu não tinha como continuar indo e deixar meus irmãos sozinhos.
Meu pai, ao chegar a casa depois do trabalho, ia lavar roupas, cortar lenha, cozinhar e estava mal-humorado e triste.

Três meses se passaram e todos ali na fazenda aconselhavam meu pai a arrumar outra mulher.
Eu não queria ninguém no lugar de minha mãe, mas estava muito difícil viver daquele modo.

Uma noite, meu pai chegou a casa com uma moça e nos disse que ela ia morar connosco.
Eulália, assim se chamava, abraçou-nos, disse que éramos bonitos, tentou nos agradar.

Meu irmão me disse baixinho enquanto meu pai mostrava a casa para ela:
— Não gosto dela!

Eu estava tão cansado que, quando meu pai me disse que poderia ir dormir e que não precisava lavar as panelas, fui deitar contente.
Achei que talvez não fosse tão ruim assim ter uma madrasta.

Nos primeiros dias em que Eulália ficou connosco foram bons.
Ela fez a comida, limpou a casa e eu só cuidei dos meus irmãos.

Papai estava alegre e todo atencioso com ela.
Via-os conversando baixinho, pois não queriam que eu escutasse.

Na véspera da folga de papai, ele me comunicou:
— Daniel, amanhã Eulália, Rodrigo, Isabel e eu vamos à cidade.
Você fica e cuida de tudo.

Queria ir também, mas nem pedi, tive receio.
Se meu pai já tinha decidido, era melhor fazer o que ele queria.
No outro dia, quando saíram, estranhei ao ver que levaram as roupas dos meus irmãos.

Fiquei sozinho, fui tratar dos animais e limpar a casa.
Senti uma tristeza que doía o peito e não entendi o porquê.
Meu pai e Eulália chegaram à noite sem meus irmãos.

Papai nem esperou que eu perguntasse por eles e explicou:
— Daniel, dei seus irmãos.
Até que tentei criá-los, mas estava muito difícil para mim.

— Mas agora temos dona Eulália para ajudar! - exclamei, querendo chorar.
— Ora, menino! - falou Eulália.
Eu não quero cuidar de filhos de outra mulher!
Vocês, crianças, dão muito trabalho!
Fizemos o melhor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2015 9:09 pm

— Daniel - disse meu pai —, eles ficarão bem, estão com outras famílias que irão cuidar deles como filhos.
Isso se chama adopção.
— Será para eles bem melhor do que ficar aqui - explicou Eulália.
Demo-los para pessoas que moram na cidade, que residem em casas boas.
Lá eles terão comida à vontade, roupas novas e irão para a escola sem precisar andar tanto.

— Por que eu não fui? - perguntei.
— Porque você já é crescido! - explicou Eulália.
Ninguém quer um garoto com dez anos.
Tivemos sorte de uma família querer Rodrigo.

E depois tenho de ter alguém aqui para me ajudar no serviço da casa e você já está acostumado.

Chorei, meu pai falou passando a mão na minha cabeça, querendo me consolar.

— Não chore Daniel!
Também senti tristeza em deixar Rodrigo e Isabel lá na cidade em casas de estranhos.
Mas não teve outro jeito.
Não deu certo eu cuidar de vocês sozinho.

Sua mãe morreu e não volta mais.
E Eulália tem razão de não querer trabalhar tanto e cuidar dos filhos de outra mulher.
Você ficou e trate de ser obediente!

Já não gostava mais de morar na fazenda.
Sentia muita falta de minha mãe e de meus irmãos.
Não tinha tempo para brincar. Quis voltar a estudar.
Pedi para meu pai para frequentar novamente a escola.

— De jeito nenhum! - gritou em tom alterado Eulália, que nos escutava.
Se você for para a escola, quem me ajudará nos serviços da casa?
Você não precisa estudar mais, já sabe assinar seu nome, eu nem isso sei.

Minhas tarefas em casa eram inúmeras, eu trabalhava muito, tornei-me um garoto triste e sentia muitas saudades da minha mãe e de meus irmãos.

— Faça isso direito! Anda menino!

Eulália só me chamava de menino e o tempo todo me dava ordens.
Como fazia o trabalho de casa, de mulher como diziam os moradores da fazenda, a meninada ria de mim, chamando-me de mulherzinha.

Não podia nem reclamar, pois, se o fizesse, papai ralhava comigo.
Minha madrasta passou a me bater; surrava-me por qualquer motivo.

Um dia fui buscar lenha, e dois moços, trabalhadores da fazenda, pegaram-me e estupraram-me.
Chorei muito de dor e de vergonha.
Ameaçaram-me:
se contasse para alguém, eles diriam que eu estava mentindo e falariam para meu pai me bater.

Com receio, fiquei quieto.
Tinha medo de pegar lenha no campo, mas, se não fosse, Eulália me batia, e se fosse, os dois me esperavam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:16 pm

Foi um período de muita dor e tristeza. Sofri muito.
Agora entendo que por meio do sofrimento aprendi uma lição: nunca forçar alguém a fazer algo que não quer.
Minha madrasta brigava muito com as vizinhas, arrumou tanta confusão que o dono da fazenda mandou meu pai embora.

— Vamos para a cidade! - exclamou Eulália contente.
Viver aqui é muito ruim.
Vamos deixar o menino no orfanato.

Ao escutar isso fiquei sem saber se seria ruim ou não para mim.
Não sabia o que era orfanato.
Mas gostei de saber que íamos embora da fazenda.

Era infeliz ali.
Meu pai e minha madrasta arrumaram o pouco que iam levar, o resto venderam para os colonos.
Minhas roupas couberam numa pequena sacola.

— Vamos à cidade e lá pegaremos o trem para o orfanato.
Depois iremos para a cidade grande - disse papai.

Fomos à cidade de charrete emprestada pelo dono da fazenda.
Vi então uma cidade pela primeira vez.
Era um lugarejo pequeno.

Encantei-me com as ruas e as casas pertinho umas das outras.
Estava com muita fome, mas como aprendera a não pedir nada, fiquei calado olhando tudo e caminhando atrás dos dois, que estavam muito alegres.

— Aqui é a estação - informou Eulália.
Vamos comprar a passagem e viajar.
É muito bom viajar de trem!

Tive medo do trem, da locomotiva.
Meu pai precisou me puxar para dentro do vagão.
Sentei num banco perto da janela.
Quando o trem começou a se movimentar, meu coração batia tão forte que parecia que ia arrebentar.

Logo me acalmei, gostei e olhei tudo, curioso.
Fiquei pensando como podia aquele veículo gigante deslizar pelos trilhos.
O barulho que fazia parecia uma música agradável, e seu apito me fazia sorrir.

Meu pai comprou pães para nós.
Fui comendo, estava maravilhado com a viagem.
Gostei muito dessa curta aventura.

Daniel deu um longo suspiro.
Fez uma pausa na sua narrativa.

Segundos depois me olhou e indagou:
— António Carlos, estou aborrecendo-o?
Não estou falando demais?
— Está sendo um prazer para eu ouvi-lo - respondi.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:16 pm

— Sendo assim, sinto-me mais à vontade para continuar falando.
Quando minha mãe estava connosco, passamos por muitas privações, mas foi um período tranquilo.
Tenho saudades somente dessa fase da minha infância.
Depois, como tudo mudou!

Daniel fez outra pausa.

Indaguei:
— Você encontrou seus irmãos?
— Enquanto encarnado, não soube deles, de ninguém de minha família - respondeu Daniel.
Quando desencarnei, procurei saber deles.
Mamãe provocou um aborto e desencarnara por causa de uma hemorragia.

Vagou desesperada por ter de nos deixar e por nos ver sofrendo.
Meu irmão Rodrigo e eu teríamos de passar pela orfandade, minha mãe iria desencarnar jovem, mas ela abreviou seu tempo, sofreu com a mudança de planos e com o remorso.

Padeceu muito.
Depois foi socorrida, ficou pouco tempo num posto de auxílio e teve a bênção da reencarnação.

Está encarnada e vou vê-la sempre que posso.
Minha mãe não sabia que abortar era errado, ela era uma pessoa simples e ignorante, mas sentiu-se culpada quando desencarnou, porque achou que era preferível ter mais filhos a nos deixar órfãos.

Visitando meus irmãos, soube que meu pai e Eulália os levaram à cidade e lá ofereceram os dois para as pessoas.
Rodrigo ficou com uma família que já tinha muitos filhos.
Ele cresceu escutando que tinha sido rejeitado e que estava com eles de favor.

Dormia nos fundos da casa, comia quando todos já o haviam feito, mas foi à escola e aprendeu uma profissão, a de marceneiro.
Casou-se bem jovem, dá muito valor ao seu lar, é feliz, tem quatro filhos e adoptou um menino.

Sua mãe adoptiva desencarnou, seu pai adoptivo ficou sozinho e doente.
Os filhos verdadeiros não o quiseram, e meu irmão o levou para morar com ele.
Deu-lhe o melhor quarto e o trata muito bem.

E esse senhor fala sempre:
— Tive muitos filhos, mas é o adoptivo que cuida de mim!

Em uma visita que fiz a Rodrigo, escutei-o conversando com o pai adoptivo:
— Meu pai, peço-lhe, por favor, que não trate meu filho adoptivo desse modo.
Ele sabe que o adoptamos, não lhe estamos fazendo nenhum favor e não quero que ele se sinta rejeitado.
Não fazemos diferença entre eles.
Todos são nossos filhos!

— Não o tratamos bem, não é, Rodrigo?
Agora entendo que não fomos bons para você.
— Mas me criaram e educaram e sou grato a vocês.
Só quero que o senhor não faça diferença entre seus netos.

Compreendi que Rodrigo sofreu muito, mas superou.
Tem um lar onde ama e é amado.
É honesto, uma pessoa boa.
Ele, quando ficou adulto, foi nos procurar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:16 pm

Lembrava-se vagamente do lugar onde morávamos.
Na fazenda, disseram que tínhamos ido embora e que ninguém sabia para onde.
Meus pais vieram de outra região e não tínhamos parentes por ali.

E Rodrigo não soube de nós.
Isabel teve mais sorte porque foi adoptada por um casal que tinha somente filhos homens, por isso uma menina foi uma alegria para eles.
Quando mudaram da cidadezinha, eles a registaram como filha deram-lhe outro nome e ela nunca soube que era adoptiva.

Estudou, é professora, casou, tem filhos, está bem.
Meu pai e Eulália viveram muitos anos numa cidade grande, cometendo erros.
Meu progenitor nunca sentiu saudades de nós três.
Nem quando desencarnado quis saber dos filhos.

Ambos desencarnaram e vagam no umbral.
Espero poder ajudá-los quando reconhecerem seus erros e quiserem se melhorar.

Até isso acontecer, oro por eles.

Capítulo 3 - Orfanato

Depois de ter me contado o que aconteceu com seus familiares, Daniel continuou a narrar suas lembranças:
"Que pena a viagem ter terminado" - pensei — "estava tão gostoso no trem".

Meu pai e minha madrasta conversavam baixinho e pediam informações para as pessoas que encontravam na rua.
Eu estava encantado olhando as pessoas, as casas e as ruas.

Paramos numa praça e meu pai falou:
— Daniel, aqui está seu registo de nascimento; coloque-o na sua sacola.
Vou levá-lo a um local onde ficará por uns dias.
Depois virei buscá-lo.

Tive medo, senti um frio na barriga e perguntei baixinho:
— Vou ficar sozinho?
— Claro que não - respondeu Eulália.
Onde você vai ficar é uma casa grande e bonita, e lá moram muitas crianças.

Nós o deixaremos na porta, você baterá e pedirá para ficar por uns dias.
Nós dois vamos arrumar emprego e uma casa para morar.
Quando isso acontecer, voltaremos para buscá-lo.

Choraminguei e ela me deu um beliscão.
Fiquei quieto e os acompanhei.

— É ali! Agora vá! - ordenou Eulália.
— Adeus, meu filho, que Deus o abençoe! - meu pai falou e me empurrou.

Fui andando devagar.
Depois de ter dado alguns passos, olhei para trás e vi os dois andando rápido, quase correndo, e virando a esquina.

Chorei baixinho. Senti um medo terrível.
Caminhei lentamente até a frente do prédio, parei e bati na porta.
Um senhor que passava, vendo que eu batia de leve, bateu com força.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:17 pm

Ele nada disse e foi embora.
Que agonia estar ali sozinho num lugar estranho, apavorado e chorando.
A porta se abriu e vi uma senhora que sorriu para mim.

Chorei mais alto, soluçava.

— Por que está chorando, meu menino?
Está sozinho? Entre!

Eu não conseguia falar, quando ela me abraçou, aconcheguei-me nos seus braços e chorei mais ainda.
Uma outra senhora me deu água.
Quando me acalmei, levaram-me para uma sala grande, o refeitório, onde me ofereceram alimentos.
Não sabia se comia ou se chorava.

A senhora me disse:
— Chamo-me dona Cármen, não tenha medo de mim... De nós.
Conte-nos o que lhe aconteceu.
Por que você está sozinho?
De onde veio?

— Da fazenda Bujão - respondi.
Meu pai me trouxe até a esquina, ordenou-me que batesse na porta e pedisse para ficar aqui por uns dias.
Ele vai voltar para me buscar.

— Buscar? Muitos dizem isso e... - disse uma moça, que parou de falar porque dona Cármen a olhou séria.
— Como você se chama? - perguntou dona Cármen.
— Daniel! - respondi, e lembrando-me do documento que meu pai me dera, abri a sacola e o entreguei a dona Cármen.
Aqui está meu registo.

Ela pegou, abriu, leu e sorriu para mim.

— Daniel, vou guardar para você este documento.
Agora coma, meu bem.

Parei de chorar e comi bolo e frutas, que achei muito gostosos.
Dona Cármen me olhava com carinho.

— Você ficará bem instalado aqui - disse.
Vamos abrigá-lo até seu pai voltar para buscá-lo.
Irá dormir com outros garotos, no dormitório, onde terá uma cama e um armário para guardar seus pertences.
Daniel, conte-me o que aconteceu com você.

— Éramos felizes - disse —, embora às vezes não tivéssemos o que comer ou roupa para vestir.
Mas minha mãe morreu e tudo ficou difícil.
Meu pai não deu conta de trabalhar, cuidar da casa e de nós.
Não tínhamos parentes, aí ele arrumou uma outra mulher e tudo piorou.

Deram meus irmãozinhos.
Meu pai brigou com o dono da fazenda e tivemos de mudar de lá.
Eles foram procurar emprego e meu pai me ordenou que ficasse aqui.
Ele disse que voltará para me buscar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:17 pm

Dona Cármen passou a mão pelos meus cabelos.
Eu sorri e senti-me mais aliviado.

— Vou pedir para a Soninha cortar seus cabelos e para a Terezinha ensiná-lo a usar o banheiro.
Irá tomar um banho e verei umas roupas melhores para você.
— Não precisa - falei baixinho.
— Precisa sim. Gosto de ver a garotada bonita.
Venha, não tenha medo.

Ainda estava receoso, mas aquela senhora tão agradável me deu segurança e a acompanhei.
Nunca havia visto uma casa tão grande.
Olhei tudo, admirado, achei-a muito bonita e limpa.

"Se eu tiver de limpar tudo isso, estou perdido!" - pensei, lembrando que limpava nossa casa na fazenda.

Dona Cármen pareceu ler meus pensamentos e explicou:
— Daniel, neste lar as crianças não trabalham, só os maiores fazem pequenas tarefas.
Aqui todos estudam e brincam.
— Legal! - exclamei.

Dona Cármen riu ao me ver alegre.

Chegamos a um local com muitas camas e ela me esclareceu:
— Aqui é o lugar que chamamos de dormitório.
Esta é a sua cama e este é o seu armário.
Coloque sua sacola aí.

Soninha, uma moça negra, muito bonita, gorda e risonha cortou meus cabelos.
Gostei do resultado.
Terezinha, uma moça delicada e miudinha, me ensinou a usar o banheiro, pois eu nunca havia visto um.

Depois do banho, vesti as roupas que me deram, estavam limpinhas, cheirosas e achei-as lindas.
Ganhei também uma sandália e um chinelo.

— Agora - disse Terezinha — venha conhecer seus novos amiguinhos.
— Vou ter de devolver estas roupas quando meu pai vier me buscar?
— Estamos lhe dando e são suas - respondeu ela.
Daniel, tudo o que você quiser saber, pergunte a mim.
São muitas novidades e você poderá esquecer.
Não se acanhe de perguntar.

Havia muitas crianças no refeitório.

Dona Cármen, vendo Terezinha e eu entrarmos, apresentou-me:
— Meninos, esse é o Daniel!
— Boa tarde! - gritou a meninada.

Gostei deles e nos tornamos amigos.
O medo foi sumindo e fui me adaptando ao orfanato.

"Isso que é vida!" - pensava alegre.
"Não trabalho, tenho amigos, posso brincar e ainda vou à escola".
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:17 pm

Éramos todos muito bem tratados ali no orfanato.
Dona Cármen nos amava e pela primeira vez desde que minha mãe morrera fiquei alegre.

Não queria ir embora, nem que meu pai viesse me buscar.
Dois dias depois conheci Olavo, um funcionário do orfanato que trabalhava nos jardins e na horta.
Tive medo, lembrei-me da violência que sofrera com os moços da fazenda, mas logo minhas preocupações acabaram.

Olavo era um senhor bondoso, que gostava da meninada e a respeitava.
Nivaldo, José Luís e eu tornamo-nos inseparáveis, gostávamos uns dos outros.

— Estou aqui desde que era nené, ninguém sabe quem são meus pais.
Não conheço outra vida, não sei o que é ter um lar.
Queria ter pai e mãe, morar uma casinha - lamentou José Luís.

— Nem sempre morar numa casa é o melhor - eu disse, consolando-o.
Mãe sim, isso é bom.
Mas gosto mais daqui do que de morar com meu pai e minha madrasta.

— Por que você não pede para dona Cármen para ficar?
Se seu pai vier buscá-lo, ela pode impedir - opinou José Luís.
Pensei no que ele me falou e resolvi conversar com ela, fazer meu pedido.

Dona Cármen me escutou atentamente e respondeu:
— Daniel, seu pai tem direitos sobre você.
Mas, pelo que tenho visto, pela minha experiência, acho que ele não virá buscá-lo.
Mas, se vier, vou pedir ao juiz para que você fique aqui connosco.
Estou contente de saber que você gosta de morar aqui.
— Gosto muito!

Recebi abraços, o que era muito importante para mim.
Gostei de dona Cármen.
Para mim ela era como uma segunda mãe.
Na verdade, era isso que ela era para todos nós: uma mãe.

Queria muito aprender, esforçava-me tanto que consegui acompanhar a classe.
Embora estivesse com dez anos, cursava a segunda série.

— Fiz xixi na cama de novo! - exclamou Nivaldo, triste, esforçando-se para não chorar.
Não consigo parar!

Percebi que eram muitas as crianças que urinavam na cama.
Pela manhã, ao acordarmos, escutávamos as reclamações.
Nenhuma delas gostava de amanhecer molhada.

Dona Cármen e Terezinha não ralhavam.
Às vezes, elas pediam para as crianças ajudarem a trocar as camas e levarem os colchões para o pátio para tomar sol.
Fiquei com pena do Nivaldo, ele estava realmente aborrecido.

Tentei consolá-lo e ele acabou por desabafar:
— Acho que estou preocupado, e é por isso que faço xixi na cama.
Não conheci meu pai nem sei quem ele é.
Minha mãe me colocou aqui quando eu estava com oito anos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:17 pm

Ela me disse que não tinha como cuidar de mim.
No começo, vinha me visitar. Agora sumiu.

Faz oito meses e dezasseis dias que ela não vem me ver nem manda notícias.
O Olavo foi atrás dela, mas ela lhe disse que está muito ocupada para vir até o orfanato.

— Não fique triste, Nivaldo.
Sua mãe deve estar mesmo ocupada.
É melhor você se preocupar com a prova de matemática, e não esqueça que a directora da escola nos prometeu uma surpresa no recreio.

À tarde conheci o senhor Ciro.
A meninada me informou que ele era um homem rico e que ajudava muito o orfanato.
Vinha sempre visitá-lo e, nessas ocasiões, trazia doces, frutas e brinquedos.

Ele me deu brinquedos.
Pela primeira vez tive um brinquedo meu.
Como gostei de brincar!

No orfanato havia crianças de ambos os sexos que ficavam em dormitórios separados.
Mas nos encontrávamos nos pátios, no refeitório e nas salas, que eram de uso comum.
Saíamos todos juntos e estudávamos na escola perto do orfanato.

Ficávamos eufóricos quando recebíamos visitas e elas nos traziam presentes ou organizavam festas e brincadeiras.
Éramos todos carentes; então, como era importante para nós essas atenções!
Às vezes, grupos de jovens passavam à tarde connosco, organizavam jogos, traziam bolos, balas e brinquedos.

Gostava muito quando eles tocavam violão e nos ensinavam a cantar.
Como é importante para os internos de orfanatos receber essas atenções e carinhos!
Hoje, depois de tantos anos, sou grato a essas pessoas que trocaram suas horas de lazer para dedicar-se ao próximo e alegrá-lo.

Que bem que fazem!

Em uma manhã de domingo, logo cedo os garotos comentaram:
— Foram deixados esta noite na porta do orfanato dois bebés: um menino e uma menina!
— Vamos vê-los!

E lá fomos nós, curiosos, ver os nenés.
Dona Cármen os mostrou.

— Estão dormindo, demos mamadeira a eles.
Vejam e depois vocês devem trocar de roupa e ir para o refeitório.
Vi os bebés e achei-os lindos.
Eram tão pequenos!

— Como pode alguém abandoná-los? - comentei.
— Não foram abandonados - explicou dona Cármen.
Foram deixados aqui. Cuidaremos deles.
Aqui não existem crianças abandonadas.
Essa casa é nosso lar. Amamos vocês!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:17 pm

As meninas maiores ajudavam a cuidar dos pequeninos.
Mas eles não ficavam muito tempo no orfanato, pois eram logo adoptados, e esses dois, uma semana depois, foram embora com seus novos pais.

Lembrei que meu pai falou que dar filhos era adopção.
Senti muita saudade dos meus irmãos.
Como aprendera a rezar, orei bastante para que estivessem bem.

— É sempre assim - disse Nivaldo.
Quase todos os bebés acabam sendo adoptados.
— Eu não quero ser adoptado, estou bem aqui - falei.

— Eu não posso porque tenho mãe e ela não me dá para ninguém - explicou Nivaldo.
Nivaldo era muito bonito e José Luís me disse que um casal quis adoptá-lo, mas a mãe dele não deu autorização.
Quando ia um casal escolher uma criança para adoptar no orfanato, era uma agonia.

Muitos queriam ser adoptados, outros não, e a preferência era pelos pequenos e pelos nenés.
Acho mesmo que não ter um lar é uma grande lição para o espírito! - expressou Daniel com um suspiro.

Após uma pausa, continuou:
Um dia, um soldado trouxe um garotinho que estava perdido perto de uma estrada.
Estava muito machucado.
Dona Cármen cuidou dele com carinho, deu-lhe banho, fez curativos, ofereceu alimentos.
Ele não falava.

— Acho que ele é mudo! - opinou José Luís.
— Escutei Terezinha falar que pode ser choque - informou Nivaldo.
— Será que tem pais?
Será órfão? - perguntei.

O médico veio e logo ficamos sabendo que o garoto era mudo.
Como não sabíamos o nome dele, dona Cármen o chamou de José.

Era o Zezinho.
Com os cuidados e a atenção de todos, seus machucados sararam, ele ficou corado e brincava connosco.

Soninha nos informou:
— Ninguém sabe de onde esse menino veio.
Se tiver pais, se ele está perdido ou se foi abandonado.
A polícia está investigando.

Enquanto isso, Zezinho fica connosco.
Ele é muito educado: sabe comer com talheres e usar o banheiro.
Vinte dias depois, um casal aflito entrou no pátio do Orfanato, onde estávamos todos.
Era hora do recreio.

A senhora, ao ver Zezinho, gritou:
— Gerson, meu filhinho!
Ele correu para a mãe e foi aquela choradeira.

Lembrei-me da minha mãe e me deu uma vontade de receber, como Zezinho ou Gerson, um abraço dela.
Acho que foi por isso que toda a meninada sentiu e chorou a falta de um abraço maternal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:18 pm

Gerson foi embora com os pais.
Soninha nos contou que o garoto estava na frente de sua casa brincando quando um casal desconhecido o pegou.
Deduziram que só mais tarde esses sequestradores descobriram que ele era mudo e aí o abandonaram.

— Não deveriam nunca tirar uma criança de seus pais! - exclamou Nivaldo.
É muita crueldade!
— Que será que Deus faz com essas pessoas tão más? - perguntei.
— Não sei talvez as faça crianças de novo e outras pessoas as pegam e maltratam - respondeu José Luís.

Escutei muitos comentários das crianças que desejavam que seus pais viessem buscá-las como aconteceu com Zezinho.
Acho que todos nós queríamos isso.
Mas logo esquecemos o Zezinho, pois o orfanato era movimentado.

Os meninos gostavam de assustar as meninas.
Um dia Nivaldo achou um sapinho e o colocamos perto de onde um grupo de garotas estava sentado.

Quando elas viram o pequeno animal, foi uma gritaria.
Rimos muito.
José Luís colocou sal no açucareiro e foi o senhor Ciro quem tomou o café.

— Ai! Que é isso no café? - perguntou ele.
Depois examinou o açucareiro e riu.
Quando ele foi embora, dona Cármen ficou brava.

— O senhor Ciro é um homem bondoso, que sempre nos ajuda.
O que ele irá pensar de nós?
Quem fez isso que se apresente!
Senão vou separar os prováveis culpados e castigar todos.

José Luís se apresentou e se desculpou:
— Dona Cármen, achei que seriam as meninas que usariam esse açucareiro. Desculpe-me.
— Desculpo, mas você irá tomar o café com o seu 'açúcar'.

Colocou café e sal na xícara e mandou que José Luís o tomasse.
Mas, como dona Cármen era muito bondosa, colocou pouco café e sal.

Ele tomou fazendo careta e a meninada riu.
Havia muitas árvores nos fundos do orfanato.
Brincávamos muito nesse espaço, fazíamos cabanas, esconderijos e nos alimentávamos de seus frutos.

Foi um período tranquilo para mim, do qual me recordo com carinho e gratidão.
Admiro aqueles que se preocupam com outras pessoas, que respeitam e educam crianças carentes.
Cada uma de nós no orfanato tinha uma história triste, de acontecimentos infelizes de orfandade, de abandono e de carência afectiva.

Às vezes brigávamos. Dona Cármen, Terezinha e Olavo estavam sempre tentando nos harmonizar.
— Vocês têm de gostar um do outro como irmãos! - pedia dona Cármen.

Ela nos amava e sabíamos disso.
Crianças sentem quando são queridas.
Meu pai não veio me buscar, nunca deu notícias, eu não soube dele e dei graças por isso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2015 9:18 pm

Capítulo 4 - Sonambulismo

A expressão de Daniel suavizou com as lembranças agradáveis; ele continuou a narrar:
— Daniel, você se levanta à noite, dormindo! - informou-me Nivaldo.
— Eu não! É mentira sua! - repliquei.

— Você se levanta dormindo, sim! - afirmou Paulinho.
Eu vi! Você anda por todo o dormitório.

Não me lembrava de nada, mas ficou confirmado que me levantava e andava dormindo.
No começo ficava somente pelo dormitório.

— Daniel, você mexeu no meu armário!
Devolva o meu lápis - ordenou Ronaldo.

Abri o meu armário e lá estava o lápis dele.
Fiquei envergonhado e Ronaldo queixou-se para dona Cármen, que veio conversar comigo.

— Daniel, você não se lembra mesmo que se levantou à noite e pegou o lápis do Ronaldo?
— Não, senhora, eu não lembro. Juro!
— Não precisa jurar!
Diga somente a verdade.

— Não me lembro de nada - afirmei.
— Isso se chama sonambulismo.
Há pessoas que, como você, levantam-se dormindo, andam, fazem determinadas coisas, voltam para a cama e não se lembram de nada.

— Não quero fazer isso!
Por favor, ajude-me! - roguei-lhe.
Dona Cármen sorriu, abraçou-me e consolou-me.

— Isso passa.
Vou explicar a todos o que é isso.
Eles vão entender.

Ao entrarmos juntos no refeitório, dona Cármen esclareceu o que era sonambulismo, falou que no orfanato já havia tido uma menina que se levantava dormindo, que isso aconteceu por um tempo e passou.

Falou também que ninguém deveria ter medo de mim, pois existiam muitas pessoas com sonambulismo.
Eu sentia que a meninada tinha medo de mim, especialmente os colegas de quarto.
Um dia José Luís chegou da escola e me deu um pedaço de papel.

— Daniel, copiei para você o que é sonâmbulo.
Minha professora nos deu o dicionário para acharmos sinónimos.
A primeira palavra que procurei foi sonâmbulo e escrevi no caderno.

Você acredita que dona Maria foi conferir?
Nem ela sabia que nictobata é o mesmo que sonâmbulo.

Peguei o papel, agradeci e li:
— Sonâmbulo: que, ou aquele que anda, fala ou se levanta dormindo.
O mesmo que nictobata.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:20 pm

À tarde, jogando bola, José Luís gritou:
— Nictobata, vai pegar a bola ou não?

Os garotos pararam o jogo para rir.

— Nic o quê?
— Nictata?
— Que é isso?

— Nictobata - explicou José Luís.
É o mesmo que sonâmbulo.
Se Daniel é sonâmbulo, é nictobata.

Tentei disfarçar que achava ruim.
Não gostava de ser sonâmbulo, não queria ser, mas era.
A meninada começou a me chamar de nictobata, mas, como era difícil de dizer, abreviaram e ficou Nic.

Todos no orfanato passaram a me chamar assim.
Até os funcionários e dona Cármen esqueceram que eu me chamava Daniel, ficou somente Nic.

Numa noite em que chovia muito me levantei, saí do nosso quarto, fui à sala da frente e abri a janela.
No outro dia, a sala estava toda molhada.
Descobriram que fora eu, porque deixara um dos meus chinelos lá.

Foram muitas as manhãs em que eu acordava nu, sem o pijama, ou com ele do avesso, com outras roupas, ou até mesmo com o uniforme escolar.
Às vezes colocava uma roupa em cima da outra ou vestia as roupas dos colegas, e eles achavam ruim, ficavam bravos comigo.

Nivaldo e José Luís me defendiam.
Eu nada respondia, ficava aborrecido e envergonhado.

E pensava triste:
"Por que faço isso?
Por que mexo nos objectos deles?
Não quero fazer essas coisas!"

Se eu era um problema para dona Cármen, ela não demonstrava.
Explicava sempre aos meus colegas que sonambulismo era algo natural.
E quando eu ia chorar reclamar com ela, dizia para ter paciência que isso passava.

— Nosso plano é perfeito! - concluiu Nivaldo.
Fingimos dormir.
Quando a Terezinha for para o quarto dela, Nic, fingindo estar dormindo, vai até a sala de visitas, pega as bolachas e nos traz.
Comemos e ninguém desconfiará de nada.

— Isso é roubo! - opinou José Luís.
— É nada! Por que não podemos usar o sonambulismo de Nic? - perguntou Nivaldo.

Nosso plano deu certo.
Levantei-me fingindo estar dormindo, peguei as bolachas e comemos nos divertindo.
Dona Cármen achou vestígios de bolachas no dormitório.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:20 pm

— Você, Nic, nunca antes comeu dormindo.
E depois eram muitas bolachas para comer sozinho.
— É que ele nos fez comer - defendeu Nivaldo.
Nic nos chacoalhou e nos fez comer.
Tivemos medo e obedecemos.

Dona Cármen olhou-nos, nada falou e saiu.
Achei que ela não acreditou, mas não se importou com a nossa brincadeira tão criativa.

Dorinha era uma menina chata, não gostávamos dela.
Era briguenta e fofoqueira.
Tudo o que ela ficava sabendo contava para dona Cármen, especialmente o que os meninos faziam de errado.

Numa manhã, no refeitório, enquanto tomávamos o desjejum, Dorinha começou a rir de mim.

— Nic, o sonâmbulo!
Levantar dormindo é coisa do demónio!
Você deve ser tão mau que o demónio usa seu corpo para fazer maldades.

— Não faço maldades! - gritei nervoso.
— Roubou as bolachas!
É ladrão! - continuou Dorinha, rindo.

Avancei, quis dar-lhe uns tapas, mas José Luís e Nivaldo seguraram-me.

— Não suje suas mãos batendo nessa menina feia!
Diabo é você, Dorinha!
Linguaruda! - gritou Nivaldo, defendendo-me.

Dona Cármen nos levou, Dorinha e eu, para a sua sala.

— Dorinha - disse nossa directora — você está falando muito!
Não pode ofender seus colegas.
E você, Nic, não pode agredir ninguém.
Peçam desculpas!

Dorinha, fingida, choramingou e disse:
— Não quis ofender! Sou boazinha!
Claro que me desculpo. Nic desculpe-me!

Senti muita raiva, mas respondi:
— Desculpo e também peço desculpas.
— Pronto! Podem ir para o refeitório acabar de tomar o café! - ordenou dona Cármen.

Não consegui tomar café, engolir nada.

Fomos à escola e José Luís falou enquanto caminhávamos mais afastados dos outros:
— Essa Dorinha precisa de uma lição urgente!
E será você, Nic, quem a dará.
Você se vingará dela por nós e por você.
Linguaruda! Nivaldo e eu já planeamos tudo.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:21 pm

Vamos dar um tempinho.
Daqui uns três dias, você, fingindo dormir, irá até a Sala dos Deveres, pegará a bolsa de escola dela e rasgará seus cadernos.
E como daqui a três dias é sexta-feira, dia em que Terezinha lava as roupas das meninas, no varal como sempre estará o vestido cor-de-rosa dela, de que Dorinha se gaba tanto de que foi presente da madrinha.

Se você não conseguir rasgá-lo, dê vários nós.
Aí, quem sabe, essa menina fica com medo do demónio que ela fala que entra no seu corpo e pára de nos atormentar!

Se fosse a outra ocasião, eu me negaria, não faria isso.
Mas achava que Dorinha estava de facto abusando.
E lembrei-me de seu olhar fingido diante de dona Cármen e dos castigos que ela fez os garotos levarem.

Aceitei. Daria uma lição em Dorinha.
José Luís, Nivaldo, e desta vez Ronaldo e Paulinho ajudaram-me.
Levantei-me fingindo dormir e fui à sala que chamávamos de Sala dos Deveres, local onde fazíamos as lições da escola.

Uma vez lá, abri a bolsa de Dorinha e rasguei dois de seus cadernos.
Fui ao quintal directo ao varal, e dei nós no vestido rosa dela.
Voltei ao dormitório e fui parabenizado como herói pelos garotos.
Vinguei-me dela por mim e por eles.

No outro dia, quando fomos pegar nossas bolsas para irmos à escola, Dorinha, ao ver sua bolsa aberta e seus cadernos rasgados, chorou.
Aguentamos firmes para não rir.

— Dorinha - falou Nivaldo sério —, você deve rezar mais!
O demónio que pega o corpo de Nic não deve estar contente com você.
Não deveria ser tão linguaruda!
Se eu fosse você, teria mais cuidado.
Não será nada agradável ver você toda rasgada como seus cadernos.

Dorinha ficou com medo e, ao ver seu vestido estragado, chorou mais ainda.
Mas melhorou o seu comportamento, pelo menos parou de fuxicar sobre os meninos e nem passava perto de mim.

Rimos bastante.
Pelo menos umas três ou quatro vezes por mês eu fazia meus passeios nocturnos.
Terezinha colocou uma bacia com água ao lado da minha cama.

— É nesse lugar que você coloca os pés quando sai da cama.
Se você se levantar dormindo, a água o despertará.

Mas não deu certo.
Tirei a bacia do lugar e levantei-me mesmo assim.
Ao acordar, não me recordava de nada, nem dos meus sonhos.
Até que me esforçava para lembrar, mas nunca consegui.

Numa manhã, ao acordar, Júlio César queixou-se:
— Esta noite, Nic, você quase me matou!
José Luís e Nivaldo é que me acudiram.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:21 pm

— Eu?! Ai, meu Deus, que foi que eu fiz? - indaguei-lhe aborrecido.
— Levantei-me para ir ao banheiro - explicou Júlio César.
Quando voltei para o quarto, você se levantou da sua cama, aproximou-se de mim e pegou-me, colocando as mãos no meu pescoço.

Senti muito medo, não consegui gritar, mas fiz barulho e eles me acudiram.
Nivaldo puxou você e mandou que voltasse a se deitar, e você obedeceu.
Todos os meninos acordaram menos você.

— Desculpe-me, Júlio César.
Por Deus, perdoe-me! - roguei com sinceridade.
— Tudo bem!

Acho que para ele realmente ficou tudo bem, mas não para mim.
Fiquei alguns dias, aborrecido.
Fui queixar-me para dona Cármen, que conversou comigo animando-me.

Ela me disse que já havia me visto muitas vezes levantar-me dormindo, e que o fazia normalmente, não com os braços erguidos, como os garotos imitavam.
Somente meus olhos ficavam abertos, parados.

— Nic - disse dona Cármen —, tentei uma vez conversar com você.
Perguntei-lhe aonde você ia e você me respondeu algo parecido com 'senzala'.
Também indaguei como você se chamava, mas não consegui entender o que respondeu.

Depois você falou palavras soltas, como cozinha, mingau e afastou-se.
Acho que não devo perturbá-lo mais e deixar que dê seus passeios nocturnos.
Você não faz nada de mau, devemos esquecer esse assunto.

Resolvi atender dona Cármen e não me preocupar mais com esse facto.
Gostava do orfanato, lá crescia forte, brincava, estudava, estava bem alimentado e tinha amigos.

Na adolescência, começamos a nos interessar pelas meninas e a trocar confidências sobre sexo.
A mãe de Nivaldo veio visitá-lo depois de ter ficado anos sem vê-lo.

Meu amigo era bonito, forte, tinha olhos verdes.
Agradou-o dando presentes, explicou que ficara doente, que passara por muitas dificuldades, por isso não tinha vindo vê-lo.

— Não acredito na minha mãe - confidenciou-nos Nivaldo.
Ela me deixou aqui para não atrapalhá-la.
Criança dá trabalho.
Acho, ou melhor, tenho certeza de que ela é prostituta.
Está ficando velha e me vê como uma fonte de renda.

Ela acha que vou sustentá-la, trabalhar para ela.
Sou mais velho que vocês, vou fazer dezassete anos e vou ter mesmo de sair daqui.
Então é melhor ir com ela.
E se mamãe não me der o que quero, fujo e vou viajar pelo mundo.

Dois meses depois, a mãe dele veio buscá-lo.
José Luís e eu choramos ao nos despedir de Nivaldo.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:21 pm

— Escrevo para você, prometo! - o expressou, comovido.
Senti muita falta desse companheiro, compreendi que Nivaldo nos liderava.
Ele era inteligente e sempre achava soluções para nossos problemas.

Ficamos, José Luís e eu, desolados.
Nivaldo, como prometera, escreveu-nos.
Contou que, de facto, a mãe era prostituta, e que tinha ido morar com ela numa pensão.

Na segunda carta meu amigo escreveu que fugira e que fora para uma cidade grande, e a descreveu com entusiasmo.
Na terceira missiva disse que arrumara emprego de entregador, morava numa pensão e tinha muitas saudades do orfanato.

Depois de cinco meses que ele partira, dona Cármen chamou José Luís e eu para irmos à sua sala.

— Recebi da polícia - disse ela séria — um comunicado, uma notícia muito triste.
Encontraram Nivaldo morto!
Entraram em contacto connosco porque acharam cartas de vocês dois no bolso dele.
Foi morto com dois tiros.

José Luís e eu choramos muito.
Dona Cármen nos abraçou chorando também.

— Por quê? Por que alguém ia querer assassinar Nivaldo?
A polícia sabe quem foi? - perguntou José Luís.
— Acho que Nivaldo foi enganado - opinou dona Cármen.
O trabalho que fazia era de entregador de drogas.
Ingénuo, não sabia que era perigoso.

A polícia não sabe quem foi que o matou.
Pode ser algum policial, ladrão ou traficantes rivais para ficar com o pacote que ele ia entregar.
Vamos orar por ele!

— A mãe dele é que é a culpada!
Antes ser órfão que ter uma mãe como ela! - exclamou José Luís.
— Vão para o pátio, meninos!
E não fiquem por muito tempo tristes - aconselhou nossa directora.

Mas ficamos.
Daniel fez uma pausa, levantou-se e deu alguns passos pela sala.

Depois de alguns segundos de silêncio, informou-me:
— António Carlos, depois que desencarnei, encontrei-me com Nivaldo.
Ele contou-me que sabia o que entregava, pois esse foi o único modo que arranjou para se sustentar.
Só que, de facto, foi ingénuo, pois não sabia que era perigoso.

Foi socorrido logo que desencarnou.
Faz pouco tempo que reencarnou e é filho de um casal que o recebeu com amor.
Ele se propôs a dar valor à família e aos pais, espero que consiga.

Daniel sentou-se, olhou para mim, sorriu e disse:
— Vou retornar às minhas lembranças.
Estou contando a você, António Carlos, às vezes em que me levantei dormindo e que causei algum problema, pois na maioria das vezes dava apenas passeios nocturnos sem consequências pelo orfanato.
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