LUZ ESPÍRITA
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 2 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:21 pm

Mas, uma noite, acordei com uma gritaria.
Assustei-me. Estava no meio do dormitório das meninas.
Saí correndo e voltei para nosso quarto.
Todos no orfanato acordaram.

As meninas reclamaram e, pela manhã, no refeitório, xingaram-me:
— Você é um sem-vergonha!
— Achamos que esse seu sonambulismo é safadeza!
— Você olhou-me de um modo estranho. Tive medo!
— Parecia que ia nos atacar! Malandro!

Ao me ver aborrecido, José Luís conversou comigo.

— Nic, você não se lembra de nada mesmo?
Deve ter visto as meninas de camisola.
Estavam bonitas?
— Não me lembro de nada.
Estou me detestando.
Por que sou sonâmbulo?

O senhor Ciro continuava indo sempre visitar o orfanato e tentava ajudar a resolver a maioria dos nossos problemas.
Ofereceu-se para levar-me ao médico de uma cidade vizinha que, segundo ele, tinha uma especialização.

O senhor Ciro tinha um automóvel, e viajar nele foi uma aventura muito agradável.
Tive de contar inúmeras vezes para a meninada do orfanato essa viagem.
O médico examinou-me e achou-me saudável; receitou calmantes que só me fizeram dormir mais.

Não resolveu meu problema e continuei me levantando à noite.
As meninas passaram a trancar as portas de seus dormitórios.

Dias depois de ter ido ao médico, acordei em cima da caixa-d'água.
Era um lugar alto e difícil de subir.
Senti um medo terrível e gritei.
Foi o senhor Olavo quem me achou.

— Ai, meu Deus!
Que faz aí, menino? - perguntou ele lá embaixo.
— Não sei! Tire-me daqui!

— Nic, você subiu dormindo!
É incrível! Como conseguiu?
Não precisa responder.
É melhor segurar-se e não se mexer.
Vamos tirá-lo daí!

Todos queriam me ver.
A meninada se levantou e foi para o pátio.
Uns riam, outros se preocupavam, receando que eu caísse.
E eu lá em cima, de pijama, com frio, segurando firme sem me mexer, com medo de cair.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:22 pm

O senhor Olavo, a pedido de dona Cármen, foi procurar ajuda.
Uns pintores vieram com suas escadas longas e conseguiram me tirar de lá depois de duas horas.
Terezinha levou-me para tomar um banho quente, que me aqueceu, e deu-me leite morno.

Chorei muito. Não queria ser sonâmbulo.
Fizemos muitas simpatias, tudo o que nos ensinavam.
O padre me benzeu, tomei remédios, chás de ervas e nada.

Continuei com o meu sonambulismo.
O senhor Olavo dormia numa casinha no quintal do orfanato.

Um dia me disse:
— Nic, você tem andado por aqui, pelo quintal e pelo pátio.
Acho até que já saiu para a rua.

Nós, os garotos com mais idade, sabíamos sair do orfanato.

Tínhamos dois locais por onde saíamos facilmente.
Um deles era só subir num abacateiro e, por um galho, ir ao muro.
De lá pulávamos e estávamos na rua.
Outro jeito era por um portãozinho.

O senhor Olavo tinha a chave, mas nós sabíamos onde ele a guardava.

— Senhor Olavo, como eu ando?
Que faço por aqui? Conte-me - pedi.
— Você anda quase sempre devagar, mas às vezes depressa, tão rápido que dá a impressão de que quer se esconder.
Passa pela gente e parece não nos ver.
Já vi você andando com os olhos fechados e também abertos.

— Você tem medo de mim? - perguntei.
— Não, porque dona Cármen explicou-me o que acontece com você.
Mas se ela não tivesse dito, teria medo.
Estou preocupado com você, garoto.
Será que você não é capaz de fazer algo errado?

— Deus me livre! - exclamei.
— Você faz tantas coisas!

José Luís e eu descobrimos que o senhor Olavo gostava de ficar escondido olhando para as meninas maiores.
Não confiávamos nele e até o vigiávamos.
Mas nada mais vimos.

— Nic - disse José Luís —, tenho medo de sair daqui do orfanato!
Não conheço outro lar.
Quando fizermos dezoito anos, teremos de ir embora.
Mas para onde? Fazer o quê?

— Arrumaremos empregos, namoraremos e casaremos - respondi esperançoso.
— Deveríamos aprender uma profissão.
Como iremos arrumar emprego se não sabemos fazer nada? - indagou José Luís, preocupado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:22 pm

Resolvemos falar com dona Cármen.
Ela elogiou-nos, disse que essas nossas preocupações eram sinais de que já tínhamos juízo e que ia conversar com o senhor Ciro.
E esse senhor, como sempre, achou a solução, arrumando com os comerciantes e as oficinas locais estágios em que pudéssemos aprender a trabalhar.

José Luís e eu estudávamos pela manhã e à tarde íamos a uma marcenaria.
Meu amigo gostou muito de lidar com a madeira, aprendeu rápido, era habilidoso.

Eu tinha mais dificuldade.
Saindo mais do orfanato, começamos a ver a vida fora dele.
Passamos a olhar as meninas de modo diferente, achando-as bonitas e interessantes.

Muitas garotas também saíram para aprender a trabalhar como domésticas e vendedoras em lojas.

O proprietário da marcenaria pagou-nos.
Era pouco, mas foi meu primeiro dinheiro.
Comprei presentes, para dona Cármen, Terezinha, Soninha, para quatro funcionários, e um canivete para o senhor Olavo.

Como fiquei feliz em dar presentes!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:22 pm

Capítulo 5 - Acontecimentos Trágicos

— Porém, António Carlos, os anos sossegados terminaram - falou Daniel mudando a expressão.

Na escola, a garotada falava com medo.
Um tarado estava à solta.
Houve muitos comentários sobre o assunto.

— Alguém viu um homem claro de pijama correr pela Rua do Ouvidor.
— A mocinha que morreu chamava-se Iza.
Era bonita, tinha dezasseis anos.

— Foi encontrada morta na quinta-feira, sem roupas, num bueiro da cidade.
Dizem que foi assassinada de madrugada.
— O que uma mocinha estava fazendo na rua à noite? - perguntou José Luís.

— Era uma garota de programa - respondeu um colega.
Quatro dias depois acharam outra mocinha em um matagal, morta do mesmo modo.
No orfanato, na marcenaria, na escola, não se falava de outro assunto.

— Já morreu faz mais de trinta dias!
— Tiveram certeza de que era Maria Tereza pela pulseira que usava e pela mala de roupas que estava ao lado do corpo.
Maria Tereza era uma moça de vinte anos que trabalhava na cidade próxima.

A família morava num sítio perto da cidade.
Ela viera passear, visitar a família, ficara uns dias no sítio e depois fora embora.
Foi a pé até a cidade, onde pegaria o ónibus para a outra cidade em que trabalhava.

Era empregada doméstica.
Os pais acharam que ela estava no emprego, onde morava.
Como Maria Tereza não regressou na data certa, seus patrões esperaram uns dias, depois escreveram para o sítio perguntando o porquê de ela não ter voltado ao trabalho.

Os pais, então, pensaram que a filha fugira com o namorado, que morava na cidade em que ela trabalhava.
Mas, quando o moço apareceu desesperado à procura dela, os pais se preocuparam, foram à polícia e aí começaram as investigações.

Souberam que Maria Tereza não chegara à cidade nem pegara o ónibus.
Começaram a procurá-la e encontraram-na morta, sem roupas - fora estuprada.
Fiquei chocado, ficava triste ao saber de qualquer violência.

As meninas do orfanato estavam com muito medo, não ficavam sozinhas.
Terezinha foi dormir com as garotas maiores.

Ao irmos à marcenaria, passávamos por uma casa que tinha um quintal enorme.
Da rua víamos as árvores frutíferas.

— A laranjeira está carregada!
Vamos pedir algumas laranjas para a mulher que mora aí? - disse José Luís.

Pedimos e a mulher deu uma laranja para cada um de nós.
Agradecemos e fomos embora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2015 9:22 pm

— Essa mulher merece que a roubemos! - expressou José Luís.
— Na volta, podemos pular o muro e pegar algumas frutas - sugeri.

E assim fizemos.
Nos galhos da laranjeira, arranhei o peito, os braços e o rosto.
Não comentei isso com José Luís.

Ao tomar banho, vi os arranhões.
Estava cansado e fui dormir mais cedo.
Acordei com Terezinha chacoalhando-me.

— Acorde Nic!
Dona Cármen quer falar com você!

O que se passou depois foi um pesadelo.
Não consegui entender nada.
Tonto de sono fui para a sala da directoria puxado por Terezinha.

Dona Cármen estava muito preocupada e indagou-me:
— Você não se lembra mesmo, Nic, do que faz dormindo?
Não tem nenhuma lembrança?
— Não, senhora.
Que fiz desta vez? - perguntei preocupado.

— Algo grave!
O delegado está aqui, quer falar com você.
Três policiais estão vasculhando o orfanato.

Nic estão acusando você de ter cometido esses crimes.
Esta noite mataram mais uma garota.
Ela estava desaparecida desde ontem à tarde.

Não voltou para casa depois das aulas.
Acharam-na morta numa casinha abandonada perto de uma estrada.
Estava como as outras, sem as roupas.
Foi estuprada e morta por estrangulamento.

— Por que acham que fui eu?!
Juro que não fui! - falei gaguejando apavorado.
— Porque você é sonâmbulo!
E porque foi visto um homem de pijama, que dizem ser parecido com os que vocês usam, correndo aqui perto na noite em que Iza foi morta.

O delegado entrou na sala e examinou-me, senti um medo terrível, um frio na barriga.
Ele pegou meus braços, abriu meu pijama, olhou meu peito.

Depois falou para dona Cármen:
— Meus homens encontraram escondido no quintal do orfanato, perto do muro, um pijama sujo de sangue.
Você, Nic, está com uns arranhões.
O que aconteceu?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:14 pm

— Arranhei-me na árvore! - respondi baixinho.
— Ou a mocinha tentando se defender arranhou você?
Conte essa história direito!

Queria que fosse um sonho, queria acordar daquele pesadelo.
Dona Cármen, chorando, pediu para o delegado não me levar preso.
Ele ordenou que pegassem uma roupa minha e Terezinha o atendeu.

Mandou que eu me trocasse e me levou preso.
Entrei num carro e fiquei entre dois policiais.
Na cadeia, fui levado a uma sala.

O delegado mandou que me sentasse e disse:
— É melhor falar toda a verdade!
Como você matou as moças?
Por quê? Para estuprá-las, não foi?
— Eu não matei!

Recebi dois tapas, um em cada lado do rosto.
Tonteei, quase caí da cadeira, o sangue veio à boca.

— Delegado, é melhor não marcá-lo com pancadas.
Ele é menor de idade e não sabemos se foi ele! - disse um policial.

— Tenho certeza de que foi ele! - afirmou o delegado.
Mas você tem razão.
A directora do orfanato, aquela dona Cármen, é capaz de vir aqui defender esse monstro assassino.
Diga que foi você, Nic, e não lhe bateremos mais.

— Não fui eu! Não sou assassino!
Por favor, por Deus, acreditem em mim! - gritei.
— Como põe Deus em histórias sujas?
Matou e depois pede por Deus!
Será que suas vítimas também não pediram clemência em nome de Deus? - expressou o delegado.

Com um sinal de cabeça, dois policiais me pegaram pelos braços, levantaram-me e levei uma surra de bastão de borracha.
— Fale! Confesse! - gritava o delegado.

Não sabia o que falar, pedi e supliquei.
Acho que o delegado cansou, parou e mandou que me levassem.
Fui conduzido e deixado numa cela pequena, onde fiquei sozinho, todo dolorido e apavorado.

As outras celas, onde trancafiavam muitos detentos, eram maiores.
Eles conversavam, riam e me ofendiam.
Foi servido o almoço deles, não me deram nada, mas não estava com fome.

Apavorava-me quando via um policial.
De repente, a cela se abriu, e o senhor Ciro entrou.
Joguei-me nos seus braços, chorando.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:15 pm

— Senhor Ciro, por Deus, ajude-me!
— Estou aqui para isso, Nic!

Assobios e vaias.
Os presos riram ao ver aquele acto de desespero.
Porque, apavorado como estava, ao ver uma pessoa que sempre ajudou o orfanato, conhecida, abracei-a como se fosse uma tábua para um náufrago.

O senhor Ciro afastou-me com delicadeza.

— Isso aqui é um horror!
Ai do delegado se deixar você ficar na cela com esses assassinos!
Cármen procurou-me pedindo auxílio.

Vim com um advogado, que está falando com o delegado.
Eles bateram em você?

O senhor Ciro falava depressa, olhou-me, afirmei com a cabeça e ele continuou a falar:
— Sou amigo íntimo do juiz, vou falar agora mesmo com ele.
Fique calmo, Nic, vou resolver isso.
E não dê confiança a esses presos nem converse com eles.

Deu um sinal, um policial abriu a cela.
Quis segurá-lo para que não me deixasse sozinho, mas fiquei parado, olhando-o sair, sentindo um medo terrível.

— Toma aqui, Nic!
Mandaram do orfanato comida e roupas para você.
Nada como ter uma pessoa importante para ajudar. - falou o guarda.
O senhor Ciro não quer que você seja mais interrogado, nem que o maltratem!

Assustei-me, mas peguei as duas sacolas.
Numa havia uma marmita, na outra, algumas roupas minhas.
Comi sem vontade.

Ao ver o senhor Ciro novamente, meu coração disparou aliviado.
Ele voltava com um senhor muito bem vestido.

— Nic, este é o juiz da cidade.
Doutor Mário - disse o senhor Ciro para o homem —, este é o preso de que lhe falei.
Compadeça-se deste garoto, que foi abandonado no orfanato, tem somente dezasseis anos, embora vá completar dezassete daqui a dois meses.

Sei que as evidências são contra ele.
Embora achando que seja culpado, ele assassinou as moças dormindo.
Tem de receber um tratamento, não castigo.
Transfira-o antes que seja linchado ou que os policiais o castiguem.

O juiz olhou-me demoradamente; depois me indagou:
— Você se lembra de alguma coisa?
— Não, senhor - respondi.
— Você se acha culpado?
— Não, senhor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:15 pm

— Ciro - concluiu o juiz —, pela minha experiência, parece que este jovem não mente.
Vou mandá-lo para o sanatório.
Lá os médicos irão analisá-lo para dar o diagnóstico se está ou não doente.

— Obrigado, Mário! - agradeceu o senhor Ciro.
— O que você não faz pela Cármen, hein, Ciro? - expressou o juiz sorrindo.
— Faço pelo orfanato e pelos órfãos - respondeu o senhor Ciro.

— Você é um sujeito bondoso! - disse o juiz.
Ajudará com essas suas atitudes seu filho na política.
Vou comunicar ao delegado a minha decisão e ordenar que Nic fique numa cela sozinho e que não seja molestado.
— Obrigado, Mário - o senhor Ciro agradeceu novamente.

O juiz foi embora e o senhor Ciro ficou conversando comigo:
— Nic, não se desespere.
Estou tentando ajudá-lo.
Você irá para um hospital.

— Um sanatório de loucos?
Mas não estou doente! - exclamei indignado.
— Como não?
Está doente sim, é bom que acredite nisso e, lá no hospital, peça e queira se tratar.
É melhor você ir para longe desta cidade.

As famílias das vítimas querem fazer justiça.
E você não pode ficar nesta cadeia.
Se esses presos o pegam...

— O senhor acha que sou culpado? - perguntei.
— Acho! Muitos factos vieram ao conhecimento do delegado.
Que você fingia estar dormindo para roubar bolachas, alimentos na cozinha, para dar nós na roupa de uma interna.

Que estava muito interessado nas meninas.
Um colega de quarto contou que você quis matá-lo apertando seu pescoço.
E foi achado um pijama sujo de sangue no quintal do orfanato.

Ficamos sabendo também que os meninos maiores, principalmente José Luís, o finado Nivaldo e você saíam do orfanato com muita facilidade.

Depois, você tem arranhões pelo corpo.
José Luís confirmou sua versão, que foram roubar frutas, mas que não viu seus arranhões.
Você, Nic, é sonâmbulo, pode ter assassinado essas mulheres dormindo ou fingindo dormir.
Ninguém tem dúvidas de que foi você.

— Não fui eu! Juro que não! - falei rogando.
Queria que pelo menos ele acreditasse em mim.
— Você não se lembra mesmo?
Será que realmente estava dormindo?
Se for isso, precisa mesmo de tratamento!

Foi embora e fiquei desesperado.
"Não fui eu! Não pode ter sido eu!" - pensei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:15 pm

Que angústia! Eu estava na cela sozinho graças ao senhor Ciro, porque os presos estavam com muita vontade de me pegar.
Ameaçavam-me rindo.

— Não vou dormir! Não posso dormir!

À noite, os presos sossegaram.
Escutei-os roncarem e ressonarem.
Sentia dores físicas, mas as morais e o medo eram maiores.
Cansado, triste e infeliz, acabei dormindo.

Acordei com barulho, de manhã.

O guarda me deu café com um pãozinho e falou:
— Nic, você tem sorte.
O juiz mandou transferi-lo para um hospital, um sanatório psiquiátrico.
Dizem que você é doente!

- Você não pára mesmo!
Acordei à noite e vi você andando dormindo.
Seus olhos estavam parados!

Deve ser verdade, matou dormindo.
Que desculpa! Por que não pensei nisso? - falou um preso.

Eu soube que iria partir no outro dia, pela manhã.
Dona Cármen veio trazer meu almoço e despedir-se de mim.
Choramos abraçados.

— A senhora acha que fui eu? - perguntei.
— Não sei Nic, quero acreditar que não foi, mas...
Talvez se eu tivesse cuidado mais de você.
Se você for doente, necessita tratar-se.

Foi uma despedida muito triste.
Ela foi embora chorando e eu senti uma dor tão forte que parecia que meu peito ia estourar.
Pedi para falar com o delegado, o guarda comunicou meu pedido e ele mandou que me levassem para a sala em que fui interrogado.

— Então quer falar comigo?
Vai confessar seus crimes? - indagou o delegado.
— Senhor, não fui eu!
Se me levanto dormindo, como posso ter ido à tarde encontrar com Maria Tereza, a primeira vítima?

— Isso você responderia se pudesse falar, mas o senhor Ciro arrumou um advogado e o juiz me proibiu de interrogá-lo.
Acho que você cortejava essas mocinhas, deve ter marcado encontro com elas à noite, e as coitadas o esperaram no mato.
Foi encontrado ao lado do corpo de uma delas um pedaço do tecido do seu pijama.

— Como sabe que era do meu pijama?
— Só pode ter sido você! - gritou o delegado.
— Essa última moça que morreu sumiu à tarde, e nesse horário eu estava na marcenaria e não fiquei sozinho - tentei explicar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:15 pm

— Isso é verdade!
Com certeza você foi à noite onde ela estava esperando-o e a matou.
— Como eu a levei para lá? - perguntei.

— Você é quem tem de nos dar as respostas!
Você a estava namorando?
Muitas pessoas viram essa mocinha passar em frente do local em que você trabalhava e repararam que você a olhava, cobiçando-a.

— Olhava como fazia com todas as mocinhas, achando-as bonitas. Foi só isso.
— Você não me engana! - falou o delegado em um tom de voz alto e furioso.
Fingia ser sonâmbulo para tentar esconder seus crimes.

Queria as meninas e as matou.
Mas não se alegre, pois para onde irá não será agradável.
Terá o castigo que merece!

— Sou inocente! - exclamei.
— Cale a boca! - gritou o delegado, batendo com a mão na mesa.
Senão esqueço a ordem do juiz e lhe dou uma surra!
Volte para sua cela! Guarda, trancafie esse monstro!
Não sei como pude falar isso tudo.

Acho que foi pelo desespero de ser acusado de algo que não fiz ou que não me lembrava de ter feito.
O guarda me puxou e voltei para a cela.
Não queria acreditar que isso estava acontecendo comigo!

Nada disto devia ser verdade!
À tarde, José Luís veio me ver.

— Oi, Nic!
— Oi, José Luís!
Como deixaram você entrar aqui?
— O dono da marcenaria me trouxe.
Aproveitando que o delegado saiu, ele pediu a um guarda que é amigo dele para me deixar entrar.
Como está você?

— Muito mal, apavorado, desesperado - respondi, chorando.
Os outros detentos vaiaram e riram.
— Estou com medo deles - falei baixinho.
Querem pegar-me.
José Luís, você sabe que não matei ninguém.
Pelo menos você acredita em mim, não é?

— Acredito! - afirmou meu amigo.
Falei para eles que você é inocente, mas também não acreditam em mim.
Tive medo do delegado.
Ele foi ontem à tardinha ao orfanato interrogar-nos.

Aquele safado do Júlio César disse que você quase o matou apertando o pescoço dele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:15 pm

Nunca ouvi tanto falatório!
Ainda bem que dona Cármen acompanhou o delegado nos interrogatórios.
Por ser seu amigo, a polícia insinuou que participei também desses assassinatos.

Apavorei-me! Jurei que você realmente se levantava dormindo, que fizemos algumas brincadeiras, mas que de facto era sonâmbulo.
Nic, perto do cadáver dessa última moça assassinada encontraram o canivete que você deu para o senhor Olavo.

— Então foi ele! - exclamei esperançoso.
— Também acho - afirmou José Luís —, só que não pude dar minha opinião.
Quando o delegado comentou que foi achado o canivete, ele mesmo concluiu que você devia ter comprado dois.

Dona Cármen disse que isso era fácil de saber, que era só perguntar ao dono da loja.
Interrogado, o senhor Olavo falou que o canivete dele havia sumido.
Conversando com os meninos, a polícia ficou sabendo que mexíamos nos objectos do senhor Olavo, que pegávamos a chave do portãozinho, por isso concluíram que pegamos outras coisas.

O senhor Olavo acusou-o, disse que o achava culpado, que sempre desconfiou de você por ser muito estranho.
Velho safado! É ele quem está sempre olhando as meninas!
Mesmo com medo, defendi você, contei ao delegado que achava que o senhor Olavo era o assassino.

Dona Cármen o defendeu.
Mandou que me calasse e disse para o delegado que não poderia ter sido seu empregado, uma pessoa de confiança, que trabalhava havia mais de vinte anos no orfanato.

Quando ficamos sozinhos, dona Cármen confidenciou-me:
— José Luís, também quero acreditar que não foi Nic, mas não foi Olavo.
Ele, por um acidente, é impotente, não consegue ter relações sexuais, entendeu?
Não o acuse mais!

— Não acredito nisso! - exclamei.
— Nem eu! Para mim o senhor Olavo inventou tudo isso para despistar.
O delegado bateu em você?
Pensei que ele ia me bater quando me fez perguntas.
Contei o que aconteceu.

— Que horror! - falou José Luís.
Você foi corajoso indo falar com o delegado.
Ainda bem que temos o senhor Ciro!

Se não fosse ele, o que seria de você, meu amigo?
O melhor é você ir para esse hospital e fazer um tratamento.
Talvez você melhore!

— É um alívio você acreditar em mim.
Nunca menti para você - disse.
— Sei que você não está mentindo, Nic!
Mas estão falando que você matou dormindo e que não se lembra.

— Não posso ter feito isso! Não posso!
— Vá e se cure amigo.
— Obrigado! - falei baixinho.
— Acho Nic, que ficarei marcado para sempre por ser seu amigo! - comentou José Luís, desolado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:16 pm

Abraçamo-nos e ele foi embora.

Chorei e escutei os comentários dos outros presos e dos policiais:
— O monstro mata e chora!
— Como queria pegá-lo e castigá-lo!

Embora com medo, não me importei com os comentários e chorei até cansar.
Sofri muito, estava exausto, desesperado e com dores.

À noite, temi dormir, mas acabei adormecendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:16 pm

Capítulo 6 - O Sanatório

Acordei de manhã com o guarda trazendo-me o café.
Tomei-o devagar, pensando como seria o hospital para onde me levariam e como seria tratado.

Se o delegado falou que iria sofrer, certamente o sanatório era um lugar horrível.
— Nic!

Era o senhor Ciro.
O guarda abriu a cela e ele entrou com uma mala.

— Cármen colocou aqui tudo o que é seu.
Não se esqueça de colocar nessa mala as roupas que vieram ontem.
Partirá às dez horas.

— Senhor Ciro, sou inocente.
Não fiz nada do que me acusam.
Por favor, não tem como eu ficar na cidade e voltar para o orfanato?

— Nic, as evidências apontam para você.
Tudo nos leva a acreditar que você cometeu esses crimes.
Se não está fingindo, cometeu-os dormindo.

Você não pode ficar livre, senão matará de novo.
E não posso pedir para deixá-lo aqui.
Esta cela era ocupada por outros e, para que ficasse sozinho, eles foram para outras celas, com outros prisioneiros, mas deverão voltar.

Se você ficar com outros detentos, eles o maltratarão.
Para onde irá, os internos são doentes e não lhe farão mal.
Vou acompanhá-lo até a estação.
Paguei as passagens para transferi-lo rápido.

O senhor Ciro saiu da cela, ouvi-o conversar com o delegado.
Arrumei meus pertences.
O guarda veio buscar-me.

Colocaram as algemas nos meus pulsos.
Entramos no automóvel do senhor Ciro.
Ele pediu que me abaixasse para que ninguém na cidade me visse sair.

O trajecto foi rápido, quase correndo atravessamos a estação ferroviária e entramos no trem.

O senhor Ciro ficou parado, olhando-me, mas eu só consegui dizer:
— Obrigado!

Eu estava muito triste e esse sentimento doía-me no peito.
Colocaram-me sentado num banco, algemado, no meio de dois soldados.

A viagem foi monótona.
Quando chegamos à estação de uma outra cidade, pegamos um carro que já estava nos esperando e fomos para o sanatório.
Era de tarde, estava frio e nublado, e de cabeça baixa, não me interessei em ver nada.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 2 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:16 pm

Paramos diante de um prédio grande e fechado.
O portão se abriu, entramos.
Fomos até uma sala, onde sentamo-nos e nos ofereceram água.

Um senhor leu os papéis que um dos policiais lhe dera, pediu para me tirarem as algemas, e dispensou-os dizendo-me:
— Daniel, sou o enfermeiro António.
Venha comigo!

Atravessei os corredores como se me arrastasse.

— Aqui é o quarto em que ficará.
Sabe usar o banheiro? Sim?
Então tome um banho e coloque outra roupa sua.
Aqui temos uniformes, mas como estes são poucos e alguns doentes trazem roupas, eles vestem o que têm.

Você tem agasalho?
Está muito frio, se não tiver, peça-me que lhe arrumo um.
Trarei uma sopa quentinha para você.

Tomei um banho quente, troquei de roupa e tomei a sopa.
Senti-me melhor.
Fui para o dormitório, que era parecido com os do orfanato, só que tinha mais leitos.

Deitei-me na cama que António me indicou.
Estava cansado. Observei o local.
A pintura era velha, como o mobiliário e as camas, feias.

— Oi! Sou José!
— Eu sou Geraldo! Como se chama?

Respondi com monossílabos.
O dormitório era ocupado por homens e achei-os estranhos.

"São doentes" - pensei.
Arrumaram-se para dormir.
António veio e foi dando remédio para todos.

Deu-me um comprimido e ordenou:
— Tome Daniel. Com este remédio deverá dormir melhor.
Amanhã o médico o examinará.

Tomei e dormi.

No outro dia, após o desjejum, um enfermeiro conduziu-me a uma sala onde um médico já idoso me cumprimentou:
— Sou o doutor Estevo, bom dia!
Daniel, você é sonâmbulo!
Levantou-se esta noite e andou pelo quarto, apavorando seus companheiros.

Nisso, um enfermeiro entrou na sala e os dois me ignoraram - ficaram conversando sobre mim:
— Ele é acusado de assassinar três moças.
Está aqui no relatório que o juiz nos mandou.
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 2 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2015 9:16 pm

Esta noite levantou-se e andou pelo quarto.
O enfermeiro António não conseguiu acordá-lo.
Pode ser perigoso!

— Sonâmbulo normalmente não acorda fácil - explicou o médico.
E não acredito que alguém mate em estado sonambúlico.
— Então ele finge muito bem! - comentou o enfermeiro.

— Vou tratar dele!
É um caso novo e digno de estudo.
Pode sair, vou examiná-lo.

O enfermeiro saiu.

O doutor Estevo olhou-me, sorriu e indagou:
— Sente alguma coisa de diferente? Dor?
— Tenho dores pelo corpo, o delegado me bateu - respondi.

— Essas dores passam.
Para melhor tratá-lo, você não pode mentir para mim.
Sou médico e vou curá-lo!

— Sim, senhor. Só falo a verdade.
Também quero curar-me - falei esperançoso.
— Isso é bom, a vontade interfere no tratamento.

O doutor Estevo me fez várias perguntas, examinou-me e concluiu:
— Seu corpo está saudável!
Um pouco magro, mas nada que uma alimentação adequada não resolva.
Por hoje é só. Vou receitar uns medicamentos.

O remédio me deixou prostrado, ficava somente deitado e meu sono era estranho.
Acordava com alguém me chacoalhando para que me alimentasse.

Sentia-me muito mal.
Queria raciocinar, levantar, andar e não conseguia.
Mas levantei-me dormindo.

Antes de tomar o remédio, fui conduzido à sala do médico.

— Doutor Estevo - pedi —, por favor, não quero ficar assim, só dormindo.
— Mesmo tomando esses remédios, você tem se levantado dormindo.
É incrível! Piorou com o stress, com todas essas mudanças!

— Doutor, por favor, por que o senhor não me deixa trancado?
Vi uns quartinhos perto do dormitório.
— Você quer ficar trancado? - perguntou o médico.
Aqueles quartos são para pacientes perigosos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:21 pm

— Quero ficar lá apenas à noite, para dormir.
Por favor! - roguei-lhe.
— Está bem, vou suspender sua medicação.
Vou ter de conversar com você para saber que doença tem para depois tratá-lo.

Vou pedir para arrumarem um daqueles quartinhos e você dormirá trancado.
Acho que é o melhor a fazer.
Assim você não assustará mais os doentes.
— Obrigado!

Perto dos dormitórios havia um corredor com cinco quartos pequenos com grades nas janelas.
António arrumou um para mim, ele tinha um armário e uma cama.
Coloquei com dificuldade meus pertences no armário e fui dormir.

Sem os remédios, dois dias depois estava bem.
Percebi que os doentes levavam uma vida muito monótona.

Havia horários para tudo:
dormir, acordar, alimentar-se, tomar banho e ir para o pátio.
Achei-os estranhos e às vezes tinha medo de alguns deles.

"São doentes, e se eu não estiver, vou ficar!" - pensava.
Vi um doente usando a minha roupa e reclamei para António.

— Aqui é difícil saber o que é de quem.
Só tem um jeito de não misturar suas roupas:
se você mesmo as lavar.

Como estava me sentindo bem, fui lavar minhas roupas.
No sanatório, não se passavam as roupas - nós as vestíamos amarrotadas.
A alimentação não era boa, a maioria dos alimentos era doada.
Não era um lugar de muita higiene.

Existia espaço para fazer uma horta, mas nada estava plantado.
Havia poucos funcionários e muito trabalho.
Conversei com o doutor Estevo sobre isso.

— Acho que algumas tarefas para os internos serão como uma terapia.
Vou conversar com o prefeito da cidade sobre isso, talvez ele nos ajude - respondeu o médico.

Dois dias depois, dois homens, empregados da prefeitura, vieram com ferramentas e mudas.
Ofereci-me para ajudar e outros internos também.
Somente usávamos as ferramentas com os empregados por perto, vigiando-nos.

Algumas mulheres internas passaram a ajudar na limpeza e na cozinha, melhorando a higiene.
A horta logo ficou bonita e tivemos mais opções nas refeições.

Também pedi tintas para pintar o sanatório.
Vieram outros homens e pintamos o prédio, melhorando seu aspecto.
E muitos internos sentiram-se melhor com a terapia do trabalho, como dizia o doutor Estevo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:21 pm

Não recebi nenhuma notícia do orfanato, escrevi cartas para dona Cármen e José Luís, mas não obtive respostas.
Desconfiei que o secretário do sanatório não as colocasse no correio, porque eu não tinha dinheiro para os selos.

"Mas" - pensava sentido - "eles poderiam escrever-me, mandar selos!
Será que acreditam que sou assassino e não querem mais manter nenhum contacto comigo?"

Ficava lembrando-se do dia-a-dia no orfanato, se estivesse lá, o que estaria fazendo...
A saudade doía!

O doutor Estevo, no começo, conversava comigo uma vez por semana depois, essas consultas foram escasseando, pois eram muitos doentes para um único médico.

Ele fazia muitas perguntas - sobre minha infância, o orfanato, sobre os crimes, como eu dormia, e se realmente não me lembrava de nada dos meus sonhos.

Continuei me levantando dormindo.
Todas as noites o enfermeiro de plantão trancava a porta do meu quarto e somente a abria de manhã.
Sabia que continuava sonâmbulo porque mexia nas roupas do armário, trocava de roupa, acordava no chão, e uma vez o fiz dentro do armário.

Certa vez, acordei com os dedos machucados.
Percebi que tentara desparafusar os parafusos da janela.

Numa manhã, o enfermeiro destrancou a porta do meu quarto.
Ele disse que o fez como de costume, e que eu respondi ao seu cumprimento.
Só que não acordei e levantei-me dormindo.

De pijama, fui para a portaria e quase saí do prédio.
O porteiro gritou comigo, chacoalhou-me.
Acordei apavorado, empurrei-o e ele caiu.

Fiquei confuso, envergonhado, pedi desculpas ao porteiro.
O doutor Estevo veio depois conversar comigo.

— Que aconteceu, Daniel?
— Não acordei quando o enfermeiro abriu meu quarto e levantei-me dormindo.
Quando finalmente acordei, estava confuso, durante alguns minutos não sabia quem era nem onde estava.
Foi horrível!

— Isso acontece com os sonâmbulos quando são acordados.
Sentem-se confusos e podem agredir, achando-se atacados.
— Não é perigoso acordar sonâmbulos quando eles estão andando? - perguntei.

— Não é perigoso - explicou doutor Estevo.
O que pode acontecer é eles ficarem apavorados e agredir, como você fez.
Se o porteiro tivesse falado com você normalmente, pedindo para que voltasse a se deitar, certamente você o teria obedecido.

— Vou ser castigado? - indaguei com medo.
— Não, pode ir.

Os internos indisciplinados eram castigados com medicações mais fortes ou ficavam trancados nos quartinhos; isso quando não tomavam choques que diziam acalmá-los.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:21 pm

Todos os internos temiam os castigos que, para o doutor Estevo, eram tratamento, pois no momento não havia outras terapias.
O enfermeiro que me acordava passou a abrir a porta, olhar-me e pedir que eu respondesse se estava acordado, conforme orientação do doutor Estevo.

Pedi ao médico que me deixasse ler.
Ele não só permitiu como me trouxe livros e revistas.
Eu gostava dos romances, emocionava-me com as histórias, sorria e chorava ao lê-los.

Numa das conversas com o doutor Estevo, ele me confessou:
— Daniel, não sei como tratá-lo.
Aparentemente você é sadio.
— Por que me levanto à noite dormindo?

— A ciência ainda não nos dá uma explicação convincente.
Não acredito que você tenha matado dormindo.
Não há registos de sonâmbulos que tenham se suicidado ou assassinado.
Acho que teria acordado ao usar de violência.

— Doutor, eu falo a verdade, não minto, não finjo!
— Daniel, você pode ser doente, ter duas personalidades, ter matado e esquecido.
Você não finge, esquece!

— Meu Deus! Isso é muito triste!
Não quero ser um assassino! - exclamei chorando.
— Não se desespere!
Ainda não consegui diagnosticar seu problema.
Não sei o que aconteceu.

Pelo que está escrito no relatório que o juiz nos mandou, eles não têm dúvida de que foi você quem assassinou aquelas moças.
E você tem um histórico:
sua mãe morreu e você sentiu muito essa perda, seu pai deu seus irmãos; sua madrasta o maltratou, o abandono do seu progenitor, que o deixou no orfanato.

O pior foi a violência que sofreu sendo estuprado pelos moços da fazenda.
Na adolescência, cobiçou as garotas e, como não sabia conquistá-las, você usou da força de sua outra personalidade.

— Se fiz tudo isso, por que não me lembro? - indaguei.
— Porque você é doente e vamos tratá-lo e curá-lo.
"Se não faço tratamento nenhum, como vou melhorar?" - pensei, somente temendo os tratamentos usados ali, não ousei comentar.

— Quando vou sair daqui? - perguntei.
— Não sei, quando acharmos que está curado.
Você não é um doente comum, é acusado de assassinato!

Passei o resto do dia no meu quarto, chorando.
Concluí que nunca iria sair do sanatório.
Pensei então em fugir.
Era difícil sair dali, o prédio era todo cercado de muros altos, sem árvores por perto, apenas se entrava ou saía pela portaria, que era vigiada.

Depois, o castigo era terrível para os que tentavam.
E para onde ir se não tinha nenhum centavo?
Distraía-me com os livros e aprendi muito com eles.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:22 pm

Sentia falta de conversar.
O doutor Estevo quase não conversava mais comigo.
Os enfermeiros estavam sempre ocupados, e os internos eram doentes.

O hospital em que estava internado atendia enfermos que pagavam pelo tratamento; outros como eu recebiam atendimento gratuito.
Certa vez foi internado no sanatório um senhor que, conforme me disseram, matou a neta de treze anos.

Deram a ele muitos medicamentos que o fizeram ficar dormindo.
Senti muita pena ao vê-lo.

— Não parece criminoso! - opinei.
— Quem tem cara de criminoso? - perguntou o enfermeiro António.

Passaram-se uns dias, diminuíram a dosagem dos remédios e ele ficou mais desperto.
Conversei com ele. Para mim, não era doente.
O doutor Estevo diagnosticou que ele matou em um surto de loucura.

Passamos a conversar e um dia ele me confidenciou:
— Daniel, não matei minha neta, amava-a muito.
Não é possível matar e esquecer.
Não posso tê-la assassinado e esquecido!

O senhor José, esse era seu nome, tinha alguns bens, viúvo e teve dois filhos, um casal.
O filho e a nora desencarnaram jovens, num acidente, deixando uma filha recém-nascida, a neta, que ele e a esposa criaram.

Sua filha casou-se e lhe deu três netos.
A esposa dele desencarnara fazia três anos, depois de muito tempo doente.
Numa manhã, acordou assustado com os gritos da empregada e, ao se levantar, viu que estava com as roupas de dormir ensanguentadas.

E foi encontrado assim, atordoado e sujo de sangue.
Soube então que sua neta fora esfaqueada na cama dela, e a faca, o instrumento do crime, estava com ele, na cama dele.

O desespero foi enorme, foi tachado de louco e internado no sanatório.

Na mansão, naquela noite, estavam somente os dois - a neta e ele.
A casa não fora arrombada nem roubada.
Tive muita pena dele, e ele, de mim.

— Acho que somos assassinos sem querer - disse-lhe.
— Não é possível!
Se fiz isso, sou um monstro! - queixou-se o senhor José.
Nosso sentimento era o mesmo.

Um enfermeiro foi contratado.
Achei-o esquisito, mas não tínhamos nada a reclamar dele.
Era ele quem estava de plantão naquela noite e me trancou.

Como estava sem sono, fiquei orando.
De repente, vi-me no corredor, fui até o dormitório do senhor José e vi o enfermeiro colocar um pozinho incolor no copo de água que estava na cabeceira do leito do meu amigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:22 pm

Em seguida, deu o copo e um comprimido para o senhor José tomar.
Senti que ele não deveria tomar.
Apavorei-me, quis gritar, bater no braço do enfermeiro, mas não consegui.

Estava de novo no meu quartinho.
Levei um susto, não entendi o que me aconteceu.
Senti que algo ruim ia acontecer com o senhor José.

Bati na porta desesperado, chamando o enfermeiro.
Ninguém me atendeu. Cansado, adormeci.

No outro dia, António, ao abrir a porta, deu-me a notícia:
— Daniel, o senhor José morreu esta noite.
— De quê? - perguntei entristecido.
— Achamos que foi do coração. Quer vê-lo?

A família já foi avisada, e a filha virá buscar o corpo agora de manhã.

— António, se eu batesse na porta, você escutaria se estivesse de plantão?
— Escutaria e não daria atenção, pois você normalmente faz barulho no seu quarto - respondeu ele.

Resolvi não falar nada do que vira, não saberia como explicar o ocorrido.
Como eu poderia ter visto algo se estava preso?
E não adiantaria mais, pois o senhor José morrera.

Um mês depois, o enfermeiro suspeito demitiu-se.
Nunca me esqueci desse acontecimento.
Quando desencarnei, já estando bem, recebi a visita do senhor José.

Pedi-lhe que me contasse o que acontecera e ele me atendeu:
— Não fui boa pessoa encarnado, enriqueci de maneira desonesta e com o sacrifício de muitos.
Fui cruel tomando bens de pessoas que me deviam dinheiro.
Quando meu filho desencarnou, sofri muito e parei de agir assim, mas não reparei esses erros, e acho que não me arrependi com sinceridade.

Tive nessa mesma encarnação as reacções dos meus actos.
Com a minha desencarnação, minha fortuna ia ser dividida em duas partes iguais:
uma para minha neta e a outra para minha filha.

Meu genro, seguindo meu exemplo, ambicionou receber mais.
Naquela noite de horror, no jantar, ele colocou um sonífero no meu copo de água e foi embora.
Como minha filha morava perto de minha casa, eles vinham jantar connosco três vezes por semana.

Meu genro deu também sonífero para minha filha para que ela não o visse sair.
Facilmente entrou no meu lar, matou minha neta e me sujou de sangue.
Agiu com perfeição, e todos tiveram certeza de que fui eu o assassino.

Depois, contratou um matador, que se fez passar por enfermeiro para me envenenar.
Assim, ficou com todos os meus bens.
Fiz muitas maldades nessa encarnação e sofri, desencarnei e padeci muito até que, arrependido, pedi perdão, perdoei, desejei me melhorar e fui ajudado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:22 pm

— O que aconteceu com seu genro? - perguntei curioso.
— Começa a arrepender-se, meu dinheiro não lhe deu a felicidade que almejava.
Tenho um neto viciado em drogas e uma neta doente.
Já tive raiva dele, mas não tenho mais, oro para que se arrependa e melhore sua maneira de agir.

Minha filha nunca desconfiou dele e acha que eu fui um assassino.

Contei a ele que vi o enfermeiro dar-lhe veneno e que não pude fazer nada.

— Você deve ter saído em perispírito do corpo físico e ter visto - concluiu o senhor José.

Despedimo-nos e fiquei sabendo que, para algumas pessoas, as reacções às acções, boas ou más, praticadas vêm rápidas, para outras, são mais demoradas, mas que de qualquer forma somos donos dos nossos actos.

A minha vida no sanatório continuava monótona.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:22 pm

Capítulo 7 - Um Amor

— Daniel, tem uma vista para você! - o enfermeiro António veio avisar-me sorrindo.

Estava na horta.
Sorri também, não acreditando.

— Estou trabalhando, António, não é hora para brincadeiras - respondi,
— É verdade!
Você tem uma visita! - afirmou António.

— Quem viria me visitar? - indaguei.
— Um senhor distinto que está conversando com o doutor Estevo.
Ande logo! Lave as mãos e o rosto e vá para a sala do doutor.
Rápido, garoto!

António não costumava brincar, mas achei que ele brincava comigo.
Resolvi ir, mesmo não acreditando, achando que depois iriam rir de mim.

Lavei o rosto e as mãos, ajeitei minhas roupas e fui para a sala do doutor Estevo.
No corredor ouvi vozes.

"Será que é verdade?" - pensei.
"Será que tenho mesmo visitas?
Um senhor distinto?

José Luís? Ele não é senhor.
Mas, para o António, todos os homens bem vestidos são senhores.
Meu amigo veio me ver!"

Bati na porta e escutei doutor Estevo dizer para entrar.
Meu coração disparou.
Tremendo, abri a porta.

— Senhor Ciro! - exclamei.
Tive impulsos de abraçá-lo, mas ele me estendeu a mão, que apertei.

— Que alegria! - exclamei.
— Como está? - perguntou ele.
— Bem...
— Vou deixá-los sozinhos - falou doutor Estevo, saindo da sala.

O senhor Ciro sentou-se e com um gesto de mão convidou-me para sentar ao seu lado.

— Aqui eles o chamam de Daniel, não é?
Pois vou chamá-lo assim.
Nic deve ser esquecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:22 pm

— Senhor Ciro, por favor - pedi —, dê-me notícias do orfanato.
Escrevi cartas e não obtive respostas.
— Houve muitas mudanças no orfanato.
Tudo muda! Quinze dias depois que você veio para cá, Cármen faleceu.
Foi encontrada morta pela manhã, vitimada por alguma doença no coração.

Terezinha ficou uns meses no lugar de Cármen.
Soninha e ela são semi-analfabetas e certamente não sabem escrever cartas.

Olavo está como sempre.
Sujeito estranho! É melhor que ele não saiba de você.
Agora no orfanato tem nova directoria:
é dona Alda, que fez uma campanha para que adoptassem os órfãos.

Actualmente há poucas crianças lá.
Senti vontade de chorar ao saber do falecimento de dona Cármen.
Esforcei-me para não o fazer, pois não queria estragar o prazer de receber uma visita.

Perguntei:
— E José Luís, o senhor sabe dele?
— Uma semana depois que você veio para cá, ele saiu do orfanato e foi para uma cidade vizinha.
Não sei dele, somente o nome da cidade onde foi morar - respondeu o senhor Ciro.

Fez-se um silêncio em que escutei meu coração bater forte.

O senhor Ciro olhou-me e falou:
— Cármen preocupava-se com você.
Ela queria tê-lo ajudado mais, era uma pessoa muito caridosa.
Daniel tive de vir aqui, a esta cidade, a negócios, lembrei-me de você e vim vê-lo.

O doutor Estevo falou-me muito bem de você, disse que é calmo trabalhador e que não é perigoso.
Deve ter se curado.
Por isso vou levá-lo embora, se quiser, é claro.

— Como?! Levar-me daqui?
Posso ir? - indaguei afobado.

O senhor Ciro sorriu e explicou:
— Daniel, você não foi julgado.
Acho mesmo que arquivaram seu processo.
Você era menor de idade na época e, se está bem, curado, não tem por que ficar preso aqui, uma vez que vai fazer vinte e dois anos.
Está aqui há muito tempo.

— Vou fazer vinte e um anos - informei.
— Não, Cármen e eu sempre achamos que você era mais velho, que deve ter sido registado com data errada.
Já é maior de idade e não tem por que ficar mais neste hospital.
E, segundo a opinião de um especialista, o médico que o tratou, você está bem.

Posso me responsabilizar por você e levá-lo comigo, para minha fazenda, onde lhe darei emprego.
Trabalhará na horta e terá um ordenado. Quer ir?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:23 pm

É difícil descrever o que senti naquele momento.

Ajoelhei-me no chão aos pés do senhor Ciro e exclamei emocionado:
— Senhor Ciro, sou-lhe profundamente grato.
O senhor me ajudou quando eu estava na prisão e está me auxiliando agora.
Deus lhe pague!
Quero ir sim e farei de tudo para que não se arrependa.

Ele sorriu e me puxou pelo braço, levantando-me.
Abriu a porta e bateu em outra, e o doutor Estevo abriu.

— Doutor Estevo - disse o senhor Ciro —, Daniel irá embora comigo.
— Posso ir mesmo? - perguntei, receando ainda ser uma brincadeira.

— Claro que pode! - respondeu o doutor Estevo, sorrindo diante do meu contentamento.
— Vá arrumar suas coisas.
Iremos embora já - ordenou o senhor Ciro.

Fiquei apreensivo, não tinha nada para arrumar.
Minhas roupas, as que trouxera do orfanato, haviam acabado, tinha algumas doadas, mas eram velhas.

Ao me ver indeciso, o doutor Estevo explicou ao senhor Ciro:
— O sanatório passa por diversas dificuldades.
Os internos esquecidos pela família ou os que não a têm vestem roupas que recebemos de doações, pois não temos verbas para uniformes.
Acho que Daniel não tem nada para levar.

— Não tem importância - disse o senhor Ciro.
Compro algumas para ele.
Daniel vá trocar de roupa.
Coloque uma limpa, se possível, e despeça-se dos amigos.
Volte logo, estarei esperando-o.

Rápido, fui ao meu quarto trocar de roupa, estava afobado, com o coração disparado.

Parei um instante e pensei:
"Curado! Será que estou curado?
Não seria mais honesto eu dizer ao senhor Ciro que ainda sou sonâmbulo?
Ele me levará embora se souber?
Quero sair daqui!

Depois, foi o médico, o doutor Estevo, quem afirmou que me curou.
Eu não falei nada, não me perguntaram.
O médico sabe mais do que eu.

Não me sendo culpado.
Mereço esta oportunidade!"

Despedi-me dos enfermeiros e de alguns doentes.
Eufórico, fui para a sala onde era esperado.
Despedi-me também do doutor Estevo, agradecendo-lhe, e saí do sanatório com o senhor Ciro.
Ave sem Ninho
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O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 2 Empty Re: O Sonâmbulo - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2015 9:23 pm

O carro dele estava estacionado na frente do prédio.
Sentei-me no banco da frente, como ele ordenou.
Estava muito feliz.

— Vamos a uma loja comprar algumas roupas para você.
O senhor Ciro comprou para mim calças, camisas, sapatos, barbeador e roupas íntimas.
Foi a primeira vez que comprei roupas para mim, que as tive novas e que as escolhi.

— Senhor Ciro, não sei como lhe agradecer!
— Desconto do seu ordenado - respondeu ele.

Tive vontade de cantar, mas me contive, ria sem parar, deliciando-me com a viagem.
A impressão que tinha era de que o céu nunca estivera tão lindo.

Era encantador ver as árvores na estrada.
O ar me pareceu puro e cheiroso.
Chegamos à fazenda do senhor Ciro, que era perto da cidade onde estava o orfanato.

— Aqui é o quarto em que dormirá.
Irá fazer as refeições na cozinha da minha casa.
Ali está a horta. Amanhã, comece a trabalhar.
Quero a horta muito bonita!
Se precisar de sementes, peça ao capataz.

No lado direito e nos fundos da casa-sede havia três quartinhos, todos vazios.
Eram cómodos com banheiro; instalei-me num deles.
Era confortável, tinha uma cama, guarda-roupa, uma mesa e três cadeiras, tudo limpo e arrumado.

Guardei minhas roupas, tomei banho e fui jantar.
Achei a comida deliciosa, e a cozinheira, dona Adelaide, era agradável, educada e conversou comigo, informando-me os horários da casa.
Achei que não ia conseguir dormir de tão feliz que estava.

No outro dia, observei o quarto com medo de ter me levantado dormindo.
Não notei nada de estranho.

"Feliz como estou, não devo me levantar mais dormindo.
Vou acreditar que me curei do sonambulismo" - pensei.

Viver ali era muito bom, eu trabalhava com prazer e alegria.
Dias depois já se via o resultado: a horta ficou linda.
Todos ali tratavam-me bem.
Raramente via a esposa do senhor Ciro, dona Maria Amélia.

Ela me pareceu séria e infeliz.
Senti dó do meu patrão, achei que sua mulher não o compreendia.
O senhor Ciro viajou, e quando retornou, foi à horta conversar comigo.

— E aí, Daniel, está gostando daqui?
— Muito, quero agradecer ao senhor novamente.
Estou muito feliz.
— Você tem se levantado dormindo? - perguntou meu patrão.
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