LUZ ESPÍRITA
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Aqueles que amam - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:34 pm

Aqueles que amam
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.

Pelo espírito António Carlos

Índice
Introdução


Capítulo 1 - A mudança
Capítulo 2 - Lourdinha

Capítulo 3 - Incidente
Capítulo 4 - A estalagem

Capítulo 5 - Uma outra mudança
Capítulo 6 - Querendo aprender a amar

Capítulo 7 - José Maria
Capítulo 8 - Com a família

Capítulo 9 - Construção do novo colégio
Capítulo 10 - A casa assombrada

Capítulo 11 - Tramas no convento

Capítulo 12 - O grupo desfeito
Capítulo 13 - Tarefa realizada

Epílogo
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:35 pm

Introdução

Muitas vezes nos entristecemos com as lembranças do passado.

Porém, nossos actos nos pertencem.

As boas acções nos ensinam, é de bom senso que as recordações das más acções nos motivem a repará-las.

Mas mesmo os que já se sentem quites consigo mesmos emocionam-se diante de factos passados.

Espanha. Auge da Inquisição.

Médico esforçado, gostava da profissão.
Tive a honra, era assim que sentia naquela época, de curar de uma doença de difícil tratamento um monsenhor da Santa Inquisição, na região onde residia.

Vivia bem com minha família.
Relativamente bem, já que naquela época todos tinham medo, estavam inseguros.
Era casado, tinha quatro filhos, todos sadios, morávamos numa casa grande e bonita.

Este monsenhor (não citarei nomes porque, para mim, nomes são transitórios, não importam, e ser denominado numa encarnação em que espalhamos terror, medo e ódio é bem deprimente), grato, me elegeu como médico da Congregação.

Não gostei muito, mas até aí, tudo bem, seriam pacientes a mais.
Mas sempre temos um 'mas' que em certas colocações nos incomoda.
Fui chamado para uma conversa particular com o monsenhor.

"Meu caro doutor - disse ele arrogante -, confio em você.
Sabe que gosto que um médico assista às sessões de interrogatório.
E escolhi você para ficar no lugar do médico anterior".

"O que aconteceu com o dr. C...?" - indaguei assustado.
"Ele não é digno de continuar com tão importante trabalho para a Igreja.
É um traidor!"

Diante de sua resposta, não ousei recusar o convite.

Falei gaguejando:
- Não sei se estou à altura do cargo que me oferece."
"Está! Eu acho e está! - respondeu o monsenhor autoritário, me olhando prepotente.
Você não vai se negar a aceitar, não é?
Alerto que se negar considerarei como desfeita".

"É que gosto de clinicar e..."
"Ora, poderá continuar, trabalhará connosco somente alguns dias por mês.
É dinheiro?
Claro, não se preocupe, será bem remunerado.
Começa na quinta-feira, quando teremos um interrogatório."

Deu por encerrada a conversa.

Fui para casa desesperado.
Assim que cheguei, contei tudo à minha esposa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:35 pm

"Fiquei sabendo que o dr. C... apareceu morto no rio - disse ela. - não se sabe bem o que aconteceu, uns dizem que foi assassinado, outros, os mais chegados à família, dizem que se suicidou.

A família está indo embora e levando só as roupas, como dizem por aí, estão deixando todos os bens para a Igreja.
Vão se mudar para a França, onde têm parentes.
Muito estranho, não acha?
Já tinha escutado que ele não queria mais trabalhar para o Santo Ofício. E deu nisto!"
"O que faço?" - indaguei-lhe aflito.

- "Ora, meu caro, você não tem escolha. Trabalhe para eles."
- "Sabe bem que terei que participar de interrogatórios que são realmente sessões de tortura.
Meu trabalho será examinar os torturados para ver se aguentam ou não as barbaridades. não posso aceitar..."

- "Vai aceitar, sim! - gritou ela autoritária.
Vai! Você não tem escolha!
Ou você trabalha ou quem será torturado é você! Ou nós!
Não pensa na sua família?
Que será de mim? Dos seus filhos?"

Tinha muitos argumentos.
Ao ouvi-la, parecia que estava conhecendo apenas naquele momento sua verdadeira personalidade.
Era ambiciosa e pensava nas vantagens que teríamos, seríamos bajulados por muitas pessoas e seríamos ricos.

Mas também havia o medo, o temor de perder tudo, até a vida, e de maneira cruel.
Covarde, achei que não tinha escolha.

Horrorizei-me no primeiro dia.
Escutava falar das barbaridades, mas presenciá-las foi horrível.
Fui para casa arrasado, vomitei a noite toda.

Quis fugir com a família para outro país, mas minha esposa me convenceu a ficar.
"Você se acostuma!
Antes estes hereges do que você ou nós.
Já pensou se não der certo nossa fuga?
Já pensou suas filhas nas nãos destes homens?"

Fui ficando.
Tentava às escondidas, quando era possível, amenizar os sofrimentos dos prisioneiros, dos hereges, como eram chamados.
Muitas vezes levava água em recipientes ocultos na roupa, dando-lhes remédios para aliviar dores.
Pedi perdão a muitos deles.

Anos se passaram, covarde, não fui capaz de dizer não ao Santo Ofício, aos membros inquisidores.
E sempre fui motivado a continuar pela minha esposa.
Mas aqueles interrogatórios faziam-me muito mal.

Tornei-me triste e adoeci.
Fiquei perturbado.
Dizia estar cansado e o monsenhor me afastou.

Minha família sentiu-se aliviada porque muitos doentes mentais eram tidos como possuidores do demónio, torturados e mortos.
Minha esposa me prendeu em casa, contratou empregados para cuidar de mim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:35 pm

Nesta época estávamos bem ricos.
Ou melhor, eles, meus familiares estavam.
As cenas cruéis que vi não me saíam da cabeça, me desequilibrei, perdi a noção de tudo.

Enlouqueci.
Quando meu corpo físico morreu, minha família sentiu-se aliviada e continuaram a gastar a fortuna que acumulei.
Desencarnei e em espírito continuei atormentado, a vagar pelo cemitério e pela antiga casa, mais perturbado do que antes.

Não fui obsediado e ninguém me perseguia querendo se vingar.
Sofri pelos meus próprios actos.
Nenhum indivíduo que vi sendo torturado me julgou culpado.

Mas eu sim! E foi mais que suficiente.
Nossa própria condenação é mais rígida.
Por muitos anos fiquei com as cenas que presenciei na mente, não tinha descanso, lembrava-me delas noite e dia.

Tinha consciência de minha culpa, mas também culpei minha esposa.
Tive raiva dela, depois a odiei.
Era ela, pensava, a maior culpada, a causa do meu sofrimento.

Sempre é mais fácil colocar a culpa dos nossos erros nos outros.
Só mais tarde entendi que nós dois fomos culpados e que não podia fugir dos meus erros.
Mas, naquele momento, julgava-me no inferno, estava desesperado, culpava-a, achava que fora ela a me motivar, a me obrigar a ficar servindo ao Santo Ofício.

Não pensei em vingar-me, não tinha condições.
Mas odiei-a e prometi não a ver nunca mais.
Queria estar longe dela.

Os anos se passaram, até que José Maria, um espírito boníssimo que quando encarnado fora sacerdote e por ter enfrentado a Inquisição foi torturado e morto, veio em meu auxílio.

Conversou muito comigo, ajudou-me.
Tornamo-nos amigos.
Socorreu-me e tive outras oportunidades pela reencarnação.

Muito tempo se passou.
Em outro corpo, outra personalidade, estive empregado como capataz numa fazenda.

Conheci Lourdes, a negra Lourdinha, e antipatizei profundamente com ela.
Um dia seu esposo sumiu e coloquei-a no tronco, exigindo que ela me falasse onde ele estava.

Estranhei esta minha atitude.
Achava a escravatura cruel e injusta, nunca havia batido em ninguém.

Naquela fazenda não se aplicavam muitos castigos aos escravos.
Ela dizia não saber dele, não acreditei e a chicoteei.
O senhor da fazenda, vendo o injusto castigo, mandou soltá-la e me despediu.

Não tive no momento remorso algum, aquela negrinha de quem eu não gostava mereceu o castigo. Bati com raiva.

Muito tempo se passou.
Mas o que é o tempo senão a ordem dos acontecimentos?
Uma sequência de factos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:35 pm

A vida é soma do tempo?
A soma de dias, de anos e de séculos?
Se assim for, a vida ficará envelhecida?

A vida é o tempo? Não, a vida não é o tempo.
A vida é a negação do tempo.
O tempo é o produto de nossa consciência e é medido por ela em termos das lembranças do passado entrando em contacto com o presente.

Projecta esperanças para o futuro. Isto é o tempo.
Vida é plenitude, não no sentido de ociosidade, pois é só na relatividade do relacionamento que a vida se manifesta.

Sem relacionamento não há vida.
Quis a espiritualidade que nos reuníssemos novamente, eu e aquela que fora minha esposa e veio a ser Lourdinha, agora reencarnada em outro corpo.
Para reparar nossos erros fomos chamados a fazer um trabalho juntos.

Tornamo-nos grandes amigos.
Antes de ir ao seu encontro, soube de todo o ocorrido.
Calei-me. Deixei que o tempo, este factor imprescindível, se encarregasse de nos amadurecer.

Sabia que um dia ela saberia, se recordaria de tudo. Esperei.
Nosso trabalho passou a dar bons e doces frutos e consequentemente, como acontece sempre, atrapalhamos os que não concordam connosco no momento.
Um destes discordantes, tendo conhecimento dos factos narrados, passou a forçá-la a se lembrar. não interferi.

Aguardei ansioso o desenrolar dos acontecimentos.
Minha companheira de trabalho começou a recordar.
As chicotadas lhe pareciam reais, ouvia o estalar do chicote, parecia que as roupas estavam encharcadas de sangue.

E cismou:
- "Será que no passado chicoteei alguém?"- indagou a si mesma, tristonha.
Logo concluiu que foi ela a chicoteada.
Como também entendeu que o algoz era agora um ente querido.

- "Quem será? - pensou.
Ora, não tem importância, seja quem for, vou continuar a amá-lo.
Tudo tem motivo e ele ou esta pessoa teve os dela.
Tudo já passou e não tem mais importância".

Porém começou a observar todos que a rodeavam.

- "Este? Será aquele ou aquela?"
Até que me olhou profundamente, não enfrentei seu olhar, abaixei a cabeça.
- "Foi o senhor?" - perguntou timidamente.

- "Sim - respondi encabulado -, me perdoa?"
- "Perdoo - respondeu sincera e sorrindo com seu modo delicado.
Por favor, não se sinta devedor.

O espírito discordante que por dias estava com ela abaixou a cabeça e se retirou.

Olhamo-nos emocionados e disfarçadamente enxuguei as lágrimas.

A exemplo daqueles que amam, aprendemos a amar...
E a todos que têm o amor como objectivo maior de suas vidas, dedicamos este livro.

António Carlos São Carlos - SP - 1997
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:36 pm

Capítulo 1 - A Mudança

Nasci na Espanha, filho de pais lavradores e de família numerosa.

Frequentei por pouco tempo a escola onde aprendi a ler e escrever.
Orgulhava-me disto, gostava de estudar, mas infelizmente tive que trabalhar.
Nossa vida não era fácil, trabalhávamos muito e vivíamos pobremente.

Conheci Dolores numa festa e nos apaixonamos.

Foi uma felicidade quando consegui coragem, após uns encontros, para dizer:
- Dolores, amo você. Quer ser minha esposa?
- Lourenço, eu também lhe quero muito.
Aceito! Prometo ser uma esposa dedicada.

Éramos jovens quando casamos.
Ela era meiga, doce e muito bonita.
Ficamos morando com meus pais, pois todos meus irmãos já estavam casados.

Logo vieram os filhos.
O primeiro, menino, chamou José Maria, amei-o profundamente, como também os outros, Joaquim, Maria Imaculada, Eva e Laura, a Laurita.

Dolores e eu nos dávamos muito bem, ela era uma esposa dedicada, trabalhadeira e nos amávamos muito.
Trabalhava na lavoura, porém não era fácil, os invernos rigorosos, pragas nas plantações e, no tempo de vender a colheita, os preços eram baixos.

Nosso esforço era enorme.
Meus pais morreram num curto espaço de tempo e o sítio que tínhamos foi repartido.

Fiquei com uma parte pequena.
Muitos espanhóis estavam vindo para as colónias na América e, pelas notícias, estavam se saindo bem.
Tinha um primo, Amâncio, éramos amigos, nos dávamos muito bem e sua esposa era amiga de Dolores.

Numa tarde, veio nos visitar, chegou eufórico à minha casa.
- Lourenço, vou para o Brasil!
- Por que não para as colónias espanholas? - indaguei-o.

- Prefiro o país que parece ter a forma de coração.
O Brasil é grande e farto, suas riquezas são abundantes.
Prefiro a colónia portuguesa. vou com a família morar lá.

Vamos nos aventurar.
Venho convidá-lo. não quer ir connosco?
Não vejo como melhorarmos aqui.
Trabalhamos muito e vivemos na pobreza.
Lá, trabalhando se progride. Venha connosco!

- Não sei - respondi -, preciso pensar.
Dolores está grávida e não sei se terei dinheiro para as despesas.
- Dolores está no começo da gravidez, terá o filho nas terras brasileiras.
Venda tudo que tem e vamos tentar a sorte em outras terras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:36 pm

- Quer mesmo ir para a colónia portuguesa?
- Quero e vou!
Sonho com aquelas terras onde no inverno não cai neve, em que a terra produz tudo o que se planta.
É pátria generosa!

Entusiasmei-me também.
Conversei com Dolores.

- Lourenço, amo a Espanha - disse ela -, mas não sou apegada.
Sei que Amâncio é muito entusiasmado.
Prefiro ter os pés no chão. Nada é fácil.
Sem trabalho perseverante e honesto não se progride com a consciência tranquila.

Lá não teremos facilidades, mas oportunidades de trabalho.
Sempre foi seu sonho imigrar para as colónias e junto com Amâncio e Marita será mais fácil, não iremos sozinhos.
E, como a colónia portuguesa é tão grande e rica, sempre teremos muitas opções.

- Mas você está grávida!
- Ora - respondeu ela -, gravidez lá ou aqui, os riscos são os mesmos.
Depois, sinto que só terei mais este filho.
Às vezes tenho a sensação de que irei mudar.
Ir embora para um lugar distante, onde sentirei muitas saudades e não voltarei mais.

- Você deve ter previsto nossa viagem, não será uma grande mudança?
E, se der certo, não terá retorno.
- É - disse Dolores baixinho -, talvez seja isto ou então a morte...

Fui atender a um filho que me chamava entusiasmado, nem prestei muita atenção no que Dolores me disse.

A morte era a última coisa em que pensava naquele momento.
Motivado por Amâncio, fui ver a possibilidade de irmos.
Os familiares incentivaram, embora ninguém mais se aventurasse a ir connosco.

Achando que me daria bem em terras novas, cheio de sonhos e esperança fui com meu primo conversar com o proprietário do navio.

A embarcação iria para o Brasil, mas para todos seu destino era as colónias espanholas.
O preço me pareceu razoável, com a venda do meu pedaço de terra e com nossas economias pagaria as passagens do navio e ainda sobraria dinheiro para investir em alguma coisa no Brasil.

Vendi as terras para um dos meus irmãos e esperamos ansiosos pela partida, hás vésperas de viajar, o proprietário do navio quis mais dinheiro.

Alegou que cobrara barato e que a procura era grande.
Inconformados, pagamos a diferença e nossas reservas financeiras diminuíram.

As despedidas foram alegres.
Todos familiares e amigos nos desejaram êxito.
Saímos da Espanha numa manhã bonita, nos acomodamos do melhor modo possível no navio.

Éramos quatro adultos e onze crianças, cinco nossos e sete de Amâncio e Marita.
Quando o navio se afastava da costa espanhola, senti um aperto no coração.
Ficamos no convés, olhando. Todos calados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:36 pm

Senti que não voltaria mais.
Consolei-me pensando que estavam comigo todos que amava e nada me prendia à terra natal.
Ali deixamos irmãos, sobrinhos, tios e primos.
Agora nossa família éramos somente nós e ficamos muito unidos.

Marita foi quem quebrou o silêncio.
- Adeus, Espanha querida!
Creio que não voltarei mais! Adeus!

Logo vi que não ia ser fácil a viagem, estávamos muito mal acomodados, a comida era ruim e a maioria enjoava com o balanço do navio.

Temíamos as tempestades e possíveis ataques de piratas.
Eva, minha filhinha, após uns dias de viagem começou a vomitar mais que os outros e a obrar muito.
Remédios e chás foram dados, mas não fizeram efeito, piorava, até que desencarnou.

Tinha quase quatro anos, era linda, cabelos castanhos claros e cacheados, esperta e activa.
Mas ao desencarnar estava magra, com olheiras profundas e muito pálida.
Segurei seu corpo inerte por meia hora. Que profunda dor!

O tempo passa e ao recordar episódios de separação de entes queridos sentimos um pouco da dor do passado.
Amâncio tirou-a dos meus braços e a levou para que fosse jogada ao mar, não quis ver, Dolores também não.

Dolores entristeceu-se profundamente, parecia arrependida por ter se aventurado naquela viagem, mas nada disse.
Percebendo que ela sofria muito, talvez mais do que eu, passei a ser mais atencioso com ela.

Amava minha esposa e foi ela quem me consolou:
- Lourenço, não chore assim.
Nossas lágrimas poderão molhar as asas do nosso anjo, de nossa filhinha que agora é um anjinho, e podemos impedir que ela suba ao céu.

- Você tem razão, Dolores - disse, tentando sorrir.
- Quando nascemos, a única certeza é a de que iremos morrer. Todos morremos!
É algo que deveria ser natural, porém complicamos tanto e sofremos.
Devemos nos conformar, Deus quis assim...

Não acreditava muito no que a religião ensinava. Éramos católicos.
Tinha muitas dúvidas, mas não achava ninguém que me ajudasse a esclarecê-las.
Tinha certeza de que a vida continuava após a morte do corpo, mas não no Céu ou no inferno.

Tentei me conformar pensando que Eva estava bem do outro lado.

Mas, dias depois, Dolores começou a se sentir mal.
Tudo indicava que o parto ia ser prematuro. Apavorei-me.
Sabia que com o tempo de cinco para seis meses, se o nené nascesse, iria morrer.

Marita, que cuidava dela, me chamou e disse baixinho:
- Lourenço, Dolores passa mal, não sei bem o que ela tem, parece que não é só o parto prematuro.
- Acha que é grave? - indaguei preocupado.
Mas ela já teve cinco filhos!
- Complicações podem ocorrer em qualquer parto. Ela não está bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:36 pm

Viajava connosco um médico, um senhor de quase 40 anos.
Morava no Brasil, fora visitar parentes na Espanha.
Fui até ele e pedi para assistir minha esposa.

- Cobro - disse ele, - é tanto...
A quantia era alta, mais da metade do meu dinheiro.
Mas paguei e ele foi para perto dela.
O médico esforçou-se para ajudá-la, creio que fez o melhor que podia.

Porém minha Dolores desencarnou.
Chorei desesperado, senti morrer um pedaço de mim.
Amava-a profundamente. Marita aproximou-se de mim.

- Lourenço, reaja, você tem quatro filhos para criar!
- Sei, Marita - respondi -, é por isso que não morro junto.
Agora tenho que ser pai e mãe deles.

Embrulharam o corpo dela num lençol branco e fomos para o convés, vê-lo ser jogado ao mar.

Meu filho José Maria agarrou-se em minhas pernas e perguntou inocentemente:
- E o nené?
- Morreu junto - respondi desanimado.
- Os dois vão subir ao céu?

- Vão!
- Que pena mamãe não ter nos levado.
Seria bem interessante subir ao céu.
Será que eles criaram asas?
Ou outros que morreram vieram buscá-los?

Não respondi, não sabia o que dizer.
Mas desejei ardentemente que Dolores não fosse para o céu e que ficasse connosco, nem que fosse em espírito.
Então a senti perto de mim e a ouvi.
Foram palavras sussurradas ao meu ouvido.

"Meu esposo, amo-o também. Devo partir, deixe-me ir.
É só uma despedida! Nos reencontraremos!
Tenha fé e ânimo! Cuide dos nossos filhos!"

O barulho do corpo caindo na água ficou para sempre na minha mente.

Fiquei apático.
Conversava só o essencial, mas me esforçava junto dos meus filhos, tentava agradá-los.
Sofri muito, mas por amor a eles, ainda pequenos, resolvi lutar, tentar superar a falta que a minha companheira me fazia.

Amâncio sentiu-se responsável.
- Ah, Lourenço, se soubesse não teria nem vindo e nem convidado vocês.
Que tristeza! Pior que nem dinheiro temos para voltar.
Temos que ficar no Brasil pelo menos até conseguir ajuntar dinheiro para pagar nosso retorno.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Fev 17, 2015 9:36 pm

- Voltar? Que adianta? - respondi - não será a mesma coisa.
Que farei na Espanha sem Eva e Dolores?
É melhor ficarmos no Brasil e nos ajeitarmos do melhor modo possível.

Foi uma viagem triste.
Às vezes revoltava-me e indagava o porquê de tantos acontecimentos tristes.

Pensava aflito:
"Será que se tivéssemos ficado na Espanha Eva e Dolores teriam morrido?"

Sentia-me culpado e Amâncio também, não queria responsabilizá-lo, ele só nos convidou, resolvi não reclamar mais e passei a ficar cada vez mais calado.
Viajava connosco um senhor alemão que lia muito a Bíblia, tentou me consolar, só que ele falava muito mal o espanhol e, como nós, estava tentando aprender o português. não nos entendíamos, mas ele orava por nós e sentia-me melhor.

Foi ele, sua atitude bondosa, que me fez pegar a Bíblia de Dolores e ler, hábito que adquiri e passei então a ler quase que diariamente e tentar entender o que lia.

Isso me foi de grande consolo e minha revolta foi amenizando até que acabou.
Entendia que necessitava me esforçar, viver e lutar pelos meus filhos.
Olhava-os, eram lindos, e eles me olhavam como que pedindo ajuda, protecção, agora só tinham a mim.

- Amo-os - dizia abraçando-os.
Tudo farei para que vocês sejam felizes.
Nunca mais vou amar outra mulher, amarei sempre Dolores e não vou lhes dar madrasta.
Viverei por vocês e para vocês.

Presenciamos duas tempestades, mas não foram fortes e a viagem prosseguiu monótona.
Um dia, um navio emparelhou connosco.

O comandante nos explicou:
- É um navio negreiro.
Traz negros da África para as colónias.
- Tráfico? - indagou um passageiro.

O comandante não respondeu, estava preocupado.

Um bote com três tripulantes se aproximou.
Logo os três subiram ao navio e foram conversar em voz baixa com o comandante.
Porém deu para entender que estavam com problemas.

- Dr. Antero, por favor... - disse o comandante.
O médico os escutou, relutou, mas acabou indo com eles ao outro navio.

Ficamos parados esperando.
Duas horas depois, o médico retornou preocupado e foi se limpar, e nosso navio seguiu viagem.
Ficamos sabendo que havia uma peste, uma doença epidémica no navio negreiro.

Muitos negros e até tripulantes haviam morrido e muitos outros estavam enfermos.
O médico não pôde fazer nada, não havia remédios.

Amâncio comentou triste:
- Lourenço, tenho que lhe pedir perdão.
Aventurei-me nesta viagem e não deveria tê-lo incentivado. Se soubesse...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:43 pm

- Deixe este 'se' - pediu Marita.
Sempre colocamos o 'se' nas nossas amarguras e arrependimentos.
Quando resolvemos vir, não sabíamos o que poderia acontecer, não se sabe o futuro, e se tivéssemos ficado, iríamos com certeza nos indagar:
"E se tivéssemos ido?
Estaríamos melhor?" Viemos e pronto!

- Que terra escolhemos para morar! - exclamou Amâncio amargurado.
Lugar onde tem escravos, umas pessoas escravizando outras!
Escravos por serem negros!
E ainda vão lá nas terras deles e os prendem.

- Não se amargure tanto - pedi.
Vamos confiar! Tudo que acontece é por vontade de Deus e Ele deve ter motivos que desconhecemos.
Marita tem razão. Tenho pensado muito e não vejo outra maneira de agir.

Devemos ter esperanças e tentar levar adiante nossos planos.
Só que não dá para comprar nada.
Mas arrumaremos empregos.
Talvez um dia conseguiremos retornar à Espanha.

Quero dizer a você, meu primo, que viemos porque quisemos.
Dolores e eu decidimos e vocês não devem se sentir culpados.

Nossa amizade deve ser mais forte que antes.
Agora somos um pelo outro e devemos ficar unidos e sem culpa.
Foi Dolores que morreu, mas poderia ter sido Marita ou qualquer um de nós.

Quanto aos negros, será melhor nos acostumarmos, iremos conviver com a escravidão e devemos nos adaptar aos costumes da pátria que nos acolherá.

- A escravidão me entristece - disse Marita.
Será que nas colónias não existem pessoas que lamentem isso?
- Devem existir - falou Amâncio -, porém devem ter interesses maiores que os fazem calar.
Os negros são mão-de-obra barata, e o interesse financeiro sempre é muito forte.

- Sou contra a escravidão - disse -, espero não me envolver com esse facto.
- Dizem horrores sobre o sofrimento dos negros - falou Marita.
E deu para ver muito bem o que eles passam.
O médico disse que eles viajam piores que animais. Coitados!

Suspirei. Achei que havíamos feito uma escolha ruim, não deveríamos ter mudado.
Lá na Espanha não seria pior do que o que estávamos passando e do que certamente ainda passaríamos aqui, não falei nada.

Fizemos a escolha e teríamos que nos adaptar a ela.
Aproximamo-nos das terras brasileiras e um dia, logo pela manhã, avistamos a costa do Rio de Janeiro.
Ficamos maravilhados.

- Que lugar maravilhoso! - exclamou Marita.
Lindo assim, só pode ser abençoado!

Cansados da viagem, olhamos esperançosos a bonita paisagem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:44 pm

Capítulo 2 - Lourdinha

Achamos bom pisar em terra firme! Admiramos tudo.
O Rio de Janeiro era mesmo bonito.
Orientados pelo comandante, fomos a uma estalagem de uma senhora lusitana, Pousada da Portuguesa, que nos recebeu muito bem.

- Como tudo é diferente da Espanha! - exclamou Marita.
Não dá para explicar aos nossos patrícios por carta.
Acho que não sei descrever o que vejo.

Concordamos com ela.
Todos nós estávamos gostando.

- Que mistura de raças! - falou, admirado, Amâncio.
- Em um lugar com tantas diversidades, não pode haver racismo, preconceito.
Ou certamente não haverá no futuro.

As crianças estavam eufóricas, esqueci minhas tristezas e participei com elas da alegria de tomar uma refeição bem-feita, com alimentos frescos.

Logo depois, Amâncio e eu saímos à procura de trabalho.
Fomos ao mercado onde vendiam escravos, para entrar em contacto com fazendeiros.
Não foi agradável ver seres humanos serem vendidos como animais, mas tentamos não prestar atenção nesse facto que nos chocava, fomos ali atrás de trabalho.

Dias depois arrumamos emprego como capatazes, por entendermos de lavouras.
Fomos para fazendas diferentes, porém próximas entre si e também da cidade do Rio de Janeiro.
Gastamos todo nosso dinheiro com a estalagem e para comprar objectos de casa e roupas para usar no clima quente.

Fomos esperançosos.
Nossos patrões nos mandaram buscar de carroça.

A fazenda em que Amâncio iria morar ficava mais perto da cidade.
Despedimo-nos, as crianças choraram, mas prometemos que de 15 em 15 dias nos visitaríamos.

- Fiquem com Deus! - disse Marita.
Obedeçam a seu pai e o ajudem.
- Adeus, meus primos! - disse Maria Imaculada.
Para vocês que têm mãe será mais fácil.

Olhei-a triste, sabia que tinha razão, mas faria de tudo para facilitar a vida deles.

Abracei-os, seguimos viagem.
Agora éramos somente eu e os meus filhos, e fiquei com o coração apertado.

José Maria me olhou tentando sorrir e disse:
- Coragem papai! Ajudo o senhor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:44 pm

Capítulo 3 - Incidente

Gostamos da fazenda. Era um lugar bonito.
A casa que nos foi dada para morar era pequena, mas nova e confortável.
Acomodamo-nos do melhor modo possível.

Organizei as tarefas de casa.
Levantava de madrugada e deixava o almoço pronto.
José Maria, meu filho mais velho, me ajudava a tomar conta dos menores e também nos serviços de casa.

Eles fizeram amizade com as crianças da fazenda e iam muitas vezes tomar as refeições na senzala, junto com as crianças negras.
Gostei do meu trabalho, tinha que repartir o serviço entre os escravos, organizar horários e também cuidar dos cavalos.

Ali os negros eram bem tratados e os castigos, escassos.
Eu podia castigar, mas me limitei só em chamar a atenção.
Quem castigava era o feitor, mas só depois de muitas advertências.

Tínhamos folga aos domingos.
Pela fazenda passava um rio de pesca farta, muito bonito e com águas limpas, onde pescávamos nesses dias.

Aproveitava também os domingos para limpar a casa, lavar as roupas e ficar com as crianças.
Acostumamos logo com a vida na fazenda e facilmente aprendemos o idioma:
as crianças menores já falavam sem sotaque.

E, como prometemos, uma vez por mês íamos à casa de Amâncio e eles também nos visitavam.
Quando eles vinham, Marita fazia o almoço, ela cozinhava bem, e as crianças adoravam rever os primos e brincavam o dia todo.

Também era agradável ir à casa deles.
Conversávamos muito, relembrávamos o passado, a Espanha.
Tínhamos poucas notícias dos nossos parentes, escrevíamos, mas as cartas demoravam e aos poucos foram rareando.

Tinha muitas saudades de Dolores, sentia a falta da companheira, da amiga que sempre me motivava.
As crianças também sentiam a falta da mãe.

Sempre as escutava dizer:
- Se mamãe estivesse aqui...

Evitava falar dela com os meninos, mas desabafava com Amâncio e Marita, que me escutavam com carinho.

Marita sempre me confortava:
- Lourenço, você tem se saído bem.
É um pai maravilhoso!
As crianças o adoram, não desanime nunca!

- Às vezes me entristeço em pensar o que poderá acontecer com eles se eu morrer!
- Não diga isso! - disse Amâncio.
Você não irá morrer deixando-os pequenos.
Mas tem a nós como temos a você, um contando com o outro nas dificuldades.

Logo que vim para a fazenda, vi uma negra, Lourdes, a Lourdinha, que trabalhava lavando as roupas da casa-grande.
Não gostei dela, antipatizei com ela sem saber o porquê.
Embora não tendo motivos para isso, passei a evitá-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:44 pm

Ela era faceira, trabalhadeira e conversava muito.
Tinha por companheiro Zé e era mãe de dois filhos.

Um dia, meu patrão me chamou:
- Lourenço, o Zé está sumido.
Desapareceu desde ontem.
Procurei-o e não encontrei.

- Será que fugiu? - indaguei.
- Não sei, há tempo não me foge um escravo.
Mas, se tratando de negros, tudo é possível. Investigue!

Saí à procura do Zé.
Ninguém o vira nem queria falar.
Então fui até Lourdinha.

- Onde está seu marido? - indaguei autoritário.
Ela, porém, não se intimidou, me enfrentou com o olhar e respondeu altiva:
não sei, não é o senhor quem o está procurando?
No meu bolso ele não está!

- Negra insolente!

Armei a não para lhe dar um tapa, uma escrava que nos escutava interferiu:
- Não lhe bata, sr. Lourenço!
Ela está nervosa com o sumiço do marido.
É que ele anda se engraçando com uma negrinha da fazenda ao lado.
Lourdinha acha que ele foi procurá-la ontem à noite e por lá ficou com a sirigaita.

Desarmei a mão e fiz algumas perguntas que a velha escrava respondeu, Lourdinha ficou quieta.

De posse das informações, fui para a fazenda vizinha.
O Zé não tinha aparecido por lá e a escrava por quem ele parecia estar enamorado não o vira e também estava preocupada com o sumiço dele.

Voltei com raiva.
Primeiro fui saber se havia alguma notícia do fugitivo, mas ele continuava desaparecido.

Passei em minha casa, já passava da hora do almoço.
Maria Imaculada tinha se queimado.
Foi esquentar a comida e se queimou com a panela, e Joaquim havia batido em Laurita.

Fiquei mais nervoso ainda.
Parecia que tudo dava errado.
Cuidei do ferimento de minha filhinha, organizei a casa e saí irritado.

Fui à procura novamente de Lourdinha.
- Não encontrei seu marido - disse autoritário.
Ele só pode ter fugido!
E você deve saber para onde.
Espertinha, me deu uma pista falsa.
Ele nunca foi à outra fazenda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:44 pm

- Nunca foi? - indagou.
Então o Zé mentia.
Ah, me disse que sempre ia lá.
- Quero saber onde ele está!
É melhor que me diga logo a verdade.

- Não sei!
- Sabe!
E vai me dizer! - falei com raiva.
- Não sei! Não sei! - gritou ela nervosa.
E se soubesse não lhe diria, iria falar ao 'meu senhor'..:

- Escrava boba! Que pensa que é?
- Um ser humano!
- Insolente! Ou me diz onde está o Zé ou lhe castigo.

- Não sei onde o Zé está - falou ela assustada.
Não faço a menor ideia.
- Ele fugiu e você deve estar se preparando para ir se encontrar com ele.
Me fez perder tempo falando que ele podia estar na fazenda vizinha, vou castigá-la!

Peguei-a pelo braço e arrastei-a.

Suas companheiras imploraram:
- Senhor Lourenço, não faça isso!
Ela não sabe mesmo! Não a castigue!

Ela, porém, não disse nada, mas desafiou-me com seu olhar.
Nervoso, amarrei-a no tronco, peguei o chicote e bati com força.
Ela só gemeu baixinho.

Após algumas chicotadas, parei.

Meus pensamentos eram confusos:
"Por que faço isso?
Meu Deus, como posso estar batendo nesta mulher?
Tenho raiva dela. Ela é culpada! Claro que é!

Sabe onde o marido está e não quer dizer. Irá aprender a não desafiar um branco.
Branco? Não somos todos iguais?"

Cheguei perto dela e perguntei nervoso:
- Lourdinha, onde está o Zé?

Ela não me respondeu, esforçava-se para não gemer.
Continuou com a cabeça baixa e nem me olhou.
Estava com as costas todas ensanguentadas.

-Ficará aí até que me diga - falei.

Quando amarrei Lourdinha no tronco, as companheiras que viram e ouviram nossa conversa correram e foram avisar o patrão.
Este veio ver o que estava acontecendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:45 pm

Ao ver Lourdinha, ordenou às escravas que foram chamá-lo:
- Tirem-na imediatamente do tronco e cuidem dela!
E você, Lourenço, venha comigo!

Acompanhei-o aborrecido até a sala da casa-grande.

- Por que bateu em Lourdinha? - indagou-me aborrecido.
- O senhor me mandou procurar o Zé - respondi, tentando justificar-me.
Ninguém sabe dele, ela me deu uma pista falsa.
Ele fugiu e Lourdinha sabe onde ele está e não quis me dizer.
Ainda foi malcriada comigo.

- Não gosto de castigos injustos!
Você estava incumbido de procurar, não de castigar.
Está despedido! Aqui está seu ordenado.
Não trabalha mais para mim.
Mude daqui o mais rápido possível. ....

Peguei o dinheiro e saí depressa.
Era de tarde e logo iria anoitecer.
Fui para casa, estava nervoso e perturbado.

José Maria me indagou:
- Papai, por que o senhor veio mais cedo?

Fiquei envergonhado.

Embora não estivesse arrependido, tive vergonha de dizer o que tinha feito e menti:
- Fui despedido!
Fui mandado embora porque me neguei a castigar uma escrava.
Até lhe dei umas chicotadas.
Como não quis bater mais, o patrão me demitiu.

- O senhor agiu certo - disse José Maria. - não se preocupe, trabalho não há de faltar.
Amanhã cedo vamos para casa de Amâncio.
Emprestaram-me a carroça, um escravo irá nos levar.
Lá verei o que fazer.

Fomos dormir cedo.
Queria mudar dali o mais depressa possível.
Não queria que meus filhos escutassem os factos como realmente aconteceram e percebessem que eu menti ou, pior, que fui maldoso.

Acordei de madrugada e me pus a arrumar tudo.
Meus filhos foram se despedir dos amigos, das crianças escravas.
- Não demorem, já estamos de partida - recomendei.

Quando voltaram, Maria Imaculada indagou:
- Disseram que o senhor bateu em Lourdinha. É verdade?
- E foi por não bater mais que vamos embora.
Ele bateu, mas foi obrigado! - disse José Maria me defendendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:45 pm

Arrumei todas as nossas coisas na carroça o mais depressa que pude e partimos.
Chegamos à casa de Amâncio, ele estava trabalhando, contei a minha versão a Marita.
Ela nos acolheu com carinho.

Quando Amâncio veio almoçar, contamos o que aconteceu e meu primo tentou me animar:
- Empregados por aqui têm que obedecer!
Talvez tenha sido melhor assim!
Vou conversar com meu patrão, pedirei para que lhe arrume emprego.

Companheiro nosso, um empregado, parece que irá se mudar, vai embora.
E você poderá ficar no lugar dele.
Morar na mesma fazenda vai ser bem melhor.
Marita poderá olhar seus filhos.

Esperançoso, aguardei.
E Lourdinha? Embora não estivesse interessado, soube notícias dela.
Ela estava mal quando a desamarraram do tronco.

Grávida de quase quatro meses, começou a ter fortes dores abortivas.
As amigas que a pegaram levaram-na para um cómodo na senzala que era usado pelos doentes.
Trataram na com chás, que somente amenizaram as dores.

Lourdinha abortou.
Ficou dias sob os cuidados das negras, mas, como era forte e sadia, recuperou-se logo.

Cinco dias depois, acharam o corpo do Zé no rio.
Apareceu boiando e já em decomposição.
Deduziram, e foi o que aconteceu, que fora pescar e caiu no rio e, como não sabia nadar, afogou-se.

Mesmo sabendo disso, não senti nenhum arrependimento.
Pensava nela com raiva e sofria com isso.
Tinha consciência do injusto castigo que a fez sofrer, dos ferimentos das chicotadas, do aborto e do facto de ter perdido o seu companheiro.

Mas, não entendendo o porquê, tinha raiva dela e achava que tudo que lhe aconteceu foi merecido.

Amâncio me arrumou emprego, passei a morar perto deles, isso me facilitou muito.
Marita passou a tomar conta dos meus filhos.
A fazenda em que trabalhei era vizinha da que eu estava agora e houve comentários sobre o facto.

Amâncio e Marita nada me disseram, preferiram acreditar em mim, porque me conheciam e julgavam-me incapaz de ter feito uma maldade.

Calei-me envergonhado.
Nunca, enquanto estava encarnado, comentei o assunto, mas também nunca o esqueci.
Lourdinha continuou com seu trabalho após ter se recuperado.

Preferiu esquecer e, quando a indagavam sobre o facto, respondia sem rancor:
- Ser escravo é assim mesmo, castigado com ou sem motivo.

Anos depois, seu dono, o senhor, que tinha a fazenda, enviuvou.
Ele repartiu a fazenda com os filhos, ficou com a sede e as terras ao redor.
Repartiu também os escravos, mas sem prejudicar ninguém.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:45 pm

Os escravos puderam escolher para onde ir, isso para não separar as famílias.
Lourdinha com os filhos ficaram com o senhor e ela foi servir a casa-grande, onde tempo depois passou a ser amásia dele.

Ele a libertou e também seus dois filhos, e ela teve mais dois filhos que herdaram aquele pedaço de terra..
Este senhor foi bom para ela, mas Lourdinha retribuiu.
Ele ficou doente e ela cuidou dele com carinho.

Lourdinha desencarnou velha, entre filhos, netos e bisnetos.
Contava a história do seu castigo, quando esteve imerecidamente no tronco.
Ela me perdoou.

O facto ficou só nas suas lembranças, um caso para contar e nossa vida ficou mais fácil por estarmos próximos dos nossos familiares e amigos, piorou na questão da moradia: a casa era desconfortável, tínhamos que buscar água longe.

José Maria passou a trabalhar muito para me ajudar.
Marita também labutava muito, tomávamos as refeições em sua casa, ajudávamos nas despesas.
Nessa fazenda tinha muito mais coisas para fazer, Amâncio e eu trabalhávamos muito e continuávamos a ser grandes amigos.

Fazia um ano que estávamos ali e dois anos no Brasil.
Os amigos aconselharam-me a casar novamente.

Recusava e dizia:
- Não. Prometi aos meus filhos não lhes dar madrasta.
Vivemos bem assim e tenho medo de casar e piorar.
Amo meus filhos!

As crianças se sentiam seguras ao ouvir isso.
Estavam crescendo fortes e sadias.
Maria Imaculada já cozinhava com a ajuda de Marita.

Achava que meus filhos estavam trabalhando novos demais, mas a vida não era fácil.

Porém sonhava em proporcionar uma existência melhor para eles.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:45 pm

Capítulo 4 - Estalagem

Um dia, estávamos Amâncio e eu vendo uma plantação, quando uma cobra o picou.
Matei-a e vimos que era venenosa.
Fiz um curativo como sabia e o levei para sua casa.

- Lourenço - disse ele preocupado -, não estou bem.
Será que me safo desta?
Era peçonhenta aquela maldita!

- Calma, Amâncio, não devemos nos apavorar.
Você deve estar sentindo o efeito do veneno, mas não será mortal.

Senti que Amâncio estava com medo e eu também, porém tentei sorrir e lhe dar ânimo.

Queria acreditar que ele sobreviveria.
Marita e as crianças assustaram-se com a nossa chegada.
Acomodei-o no leito e corri para a senzala.
Busquei uma negra que entendia de ervas e fazia benzeduras e remédios.

Ela o examinou, chamou Marita e a mim para que nos afastássemos do leito e cochichou:
- Ele está morrendo! Não posso fazer nada.

Amâncio estava inquieto no leito, suava muito e tinha dores;
chamou-me, sua voz estava fraca, e falou com dificuldades:
- Lourenço, meu primo, meu amigo! Estou morrendo!
- Claro que não! - respondi.
Você é forte e logo estará bem.

- Não precisa mentir.
A cobra era venenosa!
Preocupo-me com Marita e as crianças.
Tome conta deles, Lourenço. Por favor!
Só temos você. Case com Marita.
Um ajudará o outro. Prometa-me!

Olhei-o comovido. Que situação difícil.
Ele me olhava implorando, apertando minha mão.

Respondi emocionado, contendo-me para não chorar:
- Prometo, Amâncio, cuidar deles! Prometo!

Tentou sorrir, mas seu semblante era de dor.
Ficou mais tranquilo.
Marita ficou ao seu lado, desesperada.

Depois de uma agonia lenta, com a negra benzedeira cuidando dele, Amâncio desencarnou.
Foi muito triste, as crianças choraram e Marita tentava consolá-las.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Fev 18, 2015 9:45 pm

Enterramo-lo junto com os escravos, no cemitério da fazenda.
Era costume em algumas fazendas sepultar os empregados e escravos ao lado ou aos fundos da capela;
apenas os senhores iam para a cidade ser enterrados em jazigos.

Já em outras, todos os mortos eram levados para o cemitério da cidade mais próxima.

Marita estava preocupada.
- Lourenço, acho que o patrão vai querer a casa para que outro empregado a ocupe.
Se pelo menos pudesse trabalhar no lugar de Amâncio...
- Marita, não se preocupe, vamos achar uma solução.

- Será que o dinheiro que tenho daria para voltar com as crianças para a Espanha?
- E fazer o que lá? - indaguei.
Viver da caridade dos parentes, tão pobres quanto nós?

Vai ficar, ajudo você.
Juntos acharemos um modo de resolver isso.
O dinheiro que recebo dará para nos sustentar.

Quinze dias depois que Amâncio havia morrido, um outro empregado da fazenda tentou entrar na casa de Marita à noite.
As crianças se apavoraram.
Tinha que tomar uma decisão, a qualquer momento o proprietário pediria para ela se mudar.

Estava em casa pensativo e as crianças me rodeavam.
- Papai - disse José Maria -, está pensando nos nossos primos?
- Sim, filho, estou - respondi.
- Por que o senhor não casa com Marita? - perguntou Maria Imaculada. - não prometeu a Amâncio?

- Prometi cuidar deles.
Mas antes prometi a vocês não lhes dar madrasta.
- Ora - disse Maria Imaculada sorrindo -, Marita não será madrasta.
Gostamos muito dela, ela será como mãe.

- Papai - disse José Maria -, Maria Imaculada tem razão.
O senhor nos prometeu, mas queremos livrá-lo da promessa.
Nós todos queremos que o senhor se case com ela.

Fui conversar com Marita naquele dia mesmo:
- Marita, estou preocupado com vocês.
- Lourenço, não quero que se sinta obrigado.
Amâncio estava agonizando quando fez você prometer, mas não quero nada que lhe seja sacrifício.
Tenho pensado muito, talvez mude para a cidade.

- Marita, quero-lhe bem, como também aos seus filhos, que sinto como se fossem meus.
Não vou deixar você se aventurar por aí sozinha com as crianças.
Vou me mudar para cá.
Moraremos juntos, dormiremos em quartos separados.

- Obrigada, Lourenço, não quero casar de novo.
Aceito sua ajuda.
- Ajudamo-nos mutuamente, Marita.
Vocês, você sempre me ajudou muito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Fev 19, 2015 9:56 pm

Conversei com o patrão pedindo autorização para mudar, ele sentiu-se aliviado.

- Está agindo certo, Lourenço, não sabia o que fazer com a viúva.
Case-se e seja feliz!

Mudamos no outro dia, as crianças gostaram e se acomodaram do melhor modo possível.
O proprietário permitiu que eu aumentasse a casa, e construímos outros cómodos.

As crianças davam-se bem, brigavam às vezes, mas estavam felizes juntas.
Os meninos mais velhos ajudavam-me e as meninas colaboravam com Marita.

Depois de seis meses, Marita e eu conversamos e decidimos viver como marido e mulher.
Não amei Marita, mas lhe queria bem e combinávamos muito.
Ela também não me amava, mas me tratava com carinho.

Porém um elo muito forte nos unia, o amor das crianças.
E nunca existiu os meus ou os seus, foram sempre os nossos filhos.
Tivemos uma filha e Marita estava grávida novamente quando aconteceu um incidente.

Estava indo para a lavoura quando vi um negro correndo e o senhor da fazenda vizinha seguindo-o a cavalo.

O negro, cansado, parou encostado numa grande pedra, o fazendeiro apeou do cavalo e o enfrentou:
- Agora, negro imundo, lhe darei a lição que merece!

Caminhou para perto do escravo com um chicote na mão.
O negro lhe deu uma pesada, um golpe de capoeira que arrancou o chicote das mãos do fazendeiro, que caiu longe.

O escravo tirou da cintura uma faca e desafiou:
- Vem me dar a lição agora, branco animal!

O fazendeiro assustou-se, não tinha como correr e tentou conversar:
- Tião, veja o que você faz!
Se me matar ou ferir será pior para você.
- Está com medo?

Apeei do cavalo e me aproximei sem fazer barulho, e, quando o negro ia atacar o fazendeiro, interferi, minha intenção era só desarmá-lo, mas eu e o escravo lutamos, rolando pelo chão.

Não estava armado, mas não me intimidei, tentei não ser atingido por ele.
Porém o negro era forte e levei alguns murros que me tontearam.
O escravo ia me matar; com intenção de me defender e querendo sobreviver, esforcei-me para segurar seu braço para a faca não me atingir.

Acabei empurrando-o e ele caiu em cima de sua arma, ferindo mortalmente o abdómen.
Levantei-me e olhei-o assustado, tremia, ele sangrava, já respirando com dificuldade.

Escutei um trote de cavalo, aí me lembrei do fazendeiro e o olhei.
Ele havia, assim que interferi, montado no seu cavalo e se afastado, vendo que o escravo estava ferido, voltou.

Falei com medo:
- Não queria matá-lo, foi um acidente. Serei preso?
Ele riu.
- Preso por matar um negro?
De jeito nenhum. Você me salvou a vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Fev 19, 2015 9:56 pm

Fui imprudente em perseguir este fujão sozinho.
Não sabia que ele estava armado com uma faca.
Você me prestou um favor.

Deixe o negro aí, vou mandar buscar o cadáver e, quanto a você, receba isto.
Sei ser grato!

Tirou de sua bolsa uma grande quantia de dinheiro e me deu.
Foi embora deixando ali o negro agonizando.
Corri tentando acudi-lo.

- Perdoe-me! Perdoe-me! - disse.
Ele me olhou, estava sangrando muito e disse com dificuldade:
- Você lutou do lado errado.
Eu ia matá-lo. Esquece...

Morreu nos meus braços.
Sujo do sangue dele e de meus ferimentos, voltei para casa e chorei muito.
Nunca pensei que pudesse matar alguém.

Marita fez os curativos e me consolou:
- Você agiu certo.
Foi defender aquele que julgou indefeso.
Lutou com ele, o que vale é a intenção e você não queria matá-lo, só desarmá-lo.
Ele caiu em cima de sua própria arma.

Meu patrão conversou comigo.

- Este vizinho e eu já tivemos muitas desavenças, mas ele mandou me agradecer por ter sido salvo por um empregado meu.
Gostei disso, a inimizade dele não me é interessante.

Por dias fiquei angustiado, me esforçava para não pensar no assunto, mas as cenas vinham à minha mente.

Por muitas vezes acordava assustado, sonhava com o acontecido.
Fiz o possível para me livrar do remorso, consegui, mas enquanto estive encarnado, lembrava com tristeza deste facto.

O escravo não teve ódio de mim e nem me julgou culpado.
Perdoou-me. Mas sofri por ter sido envolvido nesse incidente que resultou na morte física de um ser humano.

Marita teve o nosso filho dias depois, e coloquei o nome do escravo morto, Abelino.
Houve comentários nos primeiros dias, depois já não se falava mais nisso, pensei que tudo estivesse esquecido e que a rotina tivesse voltado.
Então recebi uma visita, um capataz da fazenda vizinha, do senhor que eu havia salvado da ira do escravo, veio falar comigo.

- Meu patrão me mandou aqui para convidá-lo a trabalhar para ele.
Você com a família irão morar numa casa mais confortável e terá melhor ordenado.

Senti um aperto no coração.
Todos por ali conheciam a fama desse fazendeiro.

Ele era arrogante, autoritário e mau.
Castigava de forma cruel seus escravos e não respeitava mulheres bonitas.
Não podia aceitar e tentei recusar educadamente.
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Aqueles que amam - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. Empty Re: Aqueles que amam - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Fev 19, 2015 9:56 pm

- Agradeço muito o convite, mas não posso aceitar.
Peço-lhes desculpas, por favor, diga ao seu senhor que estamos acostumados aqui e que não queremos mudar.
- O patrão não vai gostar da recusa...

O capataz saiu e ficamos, Marita e eu, apreensivos.
E não gostou mesmo.
No outro dia meu patrão veio me procurar.

- Lourenço, meu vizinho exigiu que o mande embora.
Disse que recebeu uma desfeita sua.
Não quero brigas, tenho feito de tudo para evitar discórdias com ele.

Ontem à noite ele exigiu que o despedisse.
Não acho justo, mas vou ter que demiti-lo.
Porém vou lhe dar uma boa quantia de dinheiro.
E se você quiser emprego, ele lhe dará. Gosta de você.

- Que modo estranho de gostar, de ser grato - respondi.
Gosto daqui e não queria mudar, por isso não aceitei a proposta dele, não quis fazer desfeita nenhuma.
Só que não quero trabalhar para ele, vou embora deste lugar.
- Resolva como achar melhor.
Não precisa mudar logo, faça-o quando puder.

Fui para casa e contei a Marita.
- Temos um bom dinheiro - disse ela me animando.
Vamos para a cidade, para o Rio de Janeiro.
Lá poderemos pôr os meninos para estudar.

- Você tem razão!
Vamos tentar a vida em outro lugar.
Vou amanhã para o Rio e você e as crianças ficam aqui.
Verei um lugar para nos estabelecermos e volto para buscar vocês.

No outro dia fui no cavalo que o fazendeiro me emprestou, como também me emprestaria as carroças para a mudança.

A cidade do Rio de Janeiro me fascinava, era bonita, com pessoas alegres.
Fiquei na Pousada da Portuguesa, no mesmo local em que ficamos anos antes.
Estava disposto a procurar já no outro dia algo que pudesse fazer, mas foi ali mesmo que achei.

Esta portuguesa já estava cansada e julgava-se idosa para tanto trabalho, tinha somente um filho, seus outros dois haviam falecido.

Seu filho estava de partida para a província das Minas Gerais e queria levá-la com ele.
Ela estava em dúvida, se fosse, teria que vender a pousada.
Achei que seria bom ter a estalagem.

Conversei com o filho dela:
- Gostaria de comprar a pousada e de me instalar aqui com minha família.
Mas não tenho todo o dinheiro para comprá-la.

Conversamos por horas e acabamos fazendo negócio.
Daria a ele uma quantia, que era três quartos do meu dinheiro, e depois de um ano e três meses ele viria ao Rio e eu lhe pagaria o restante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Fev 19, 2015 9:56 pm

Foi para ambas as partes um bom negócio.
Voltei feliz logo no outro dia para buscar minha família.
Alegres, começamos a nos preparar para a viagem.

Nossa família era numerosa e nossos filhos se davam bem.
Os mais velhos de Marita me chamavam pelo nome, como José Maria e Joaquim chamavam minha esposa de Marita, os menores nos chamavam de pai e mãe.
A segunda filha de Marita, Leonor, era muito boa menina, ela e José Maria se davam muito bem, estavam sempre juntos.

Nessa época ele tinha 15 e ela, 13 anos.
Estávamos eufóricos, todos ajudavam, falando ao mesmo tempo.
Foi do agrado de todos a mudança para o Rio de Janeiro.

Já tínhamos nos despedido de todos os amigos, faltavam os últimos preparos, quando Leonor pediu a Marita:
- Mãe, posso ir à beira do riacho?
Volto logo, só vou me despedir do meu lugar predilecto.
- Vá, mas volte rápido - disse Marita. - Vamos partir logo.

Ela saiu correndo.
O riacho era perto, um lugar bonito, de águas claras e rasas e com muitas pedras.
As crianças gostavam muito de brincar lá.
Leonor demorou e já estávamos prontos para partir.

José Maria foi atrás dela.
Alguns minutos se passaram e ele voltou aos gritos.
- Pai! Leonor está caída e tem sangue na cabeça! Acudam!

Corri desesperado e a encontrei morta.
Leonor escorregou, bateu a cabeça e desencarnou.
Como ficamos tristes! Choramos desolados.

Velamo-la na sala vazia.
Tirei das carroças só o necessário.
Seu sepultamento foi no outro dia cedo, ao lado de Amâncio.

Foi doloroso cobri-la de terra, ela parecia dormir, seu semblante estava tranquilo, estava bonita como sempre.

Enterramo-la e partimos.
Não foi uma viagem alegre como sonhávamos.
Marita estava abatida, se esforçava para superar, minha companheira era forte, tantos sofrimentos e permanecia tranquila, conhecendo-a sabia que sofria muito.

Ela abraçou o nené, Maria Imaculada cuidou da outra pequena.
Nunca iríamos esquecer Leonor, ela era alegre, bondosa, cativava a todos.
Não percebi que José Maria sofria demasiado, mais do que qualquer um de nós.

Não notamos, talvez, porque ele, não querendo aumentar nosso sofrimento, fechou-se e procurava, como sempre, ser útil aos irmãos menores.

Ao passarmos pela porteira da fazenda, Maria Imaculada disse tristemente:
- Quantas perdas tivemos em curto espaço de tempo, desde que saímos da Espanha para estas terras novas.
Queira Deus que não tenhamos mais nenhuma e que possamos ser felizes no Rio de Janeiro.
Adeus, Leonor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Fev 19, 2015 9:57 pm

José, filho de Marita, perguntou inocentemente:
- Maria Imaculada, Leonor escutou seu adeus?
- Não sei, espero que sim, mas quero que ela esteja no Céu com mamãe e seu pai.
- Também quero ir para o Céu! - disse José.

Marita interferiu:
" - Vamos para o Rio de Janeiro!
Falemos do mar, das praias.
Vamos conversar sobre coisas alegres.

Começaram a conversar sem entusiasmo, mas o assunto terminou logo.
Fizemos a viagem calados. Mas estávamos esperançosos.
Resolvi deixar ali as lembranças ruins.
Queria esquecer a morte daquele escravo, o incidente desagradável e tudo que nos magoou.

Esforcei-me para tentar agradar às crianças.
Ao cair da tarde estávamos no Rio de Janeiro.
Acostumamo-nos a trabalhar no pesado, não estranhamos.

- Como está sujo! - exclamou Marita.
Tudo aqui necessita de uma boa limpeza.

E foi o que fizemos, limpamos, consertamos e duas semanas depois a estalagem parecia outra.
Era uma casa grande com vários quartos, a cozinha era enorme.
Havia dos dois lados da frente da casa canteiros onde plantamos flores, o quintal também era grande e fizemos uma horta em que plantamos vários tipos de verduras.

Logo na entrada da casa havia a recepção e o refeitório, com muitas mesas e cadeiras.
Havia muitas janelas grandes e a casa era arejada e fresca.

Entusiasmados, fizemos muitos planos.
Repartimos o serviço, cada um de nós tinha uma tarefa a fazer.
Mas sentíamos a falta de Leonor e falávamos dela.

- Se Leonor estivesse aqui - dizia um de nós -, limparia tudo isso sozinha.
- Leonor iria gostar daqui! - dizia um outro.
- Deixem Leonor em paz! - exclamou, aos gritos, Laurita.

Assustamo-nos, parei o que estava fazendo e cheguei perto dela.
Laurita estava imóvel, com os olhos parados.
- Por que diz isso filha? - perguntei.
Por que fala tão alto?

- Para todos escutarem que Leonor quer ficar em paz onde está!
Ela não quer que a chamemos.
Não entendem que é doloroso para ela saber que sofremos sua falta?
Leonor está lá e deve ficar.

- Está onde? - indagou José Maria aflito.
Onde está Leonor?
- No lugar em que deve estar... - respondeu Laurita e pôs-se a chorar.
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