LUZ ESPÍRITA
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Véu do Passado - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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Véu do Passado - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 2 Empty Re: Véu do Passado - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Fev 06, 2015 10:18 pm

IV - AS DIFICULDADES DE KIM

Dois anos se passaram, Xandinho estava mais despreocupado.
Pareceu-lhe que Regina sarara, nunca mais falou nada de esquisito, acharam que a benzeção de Frei Manoel fizera efeito.

Kim não dera mais problemas.
Quando ele via algo, falava somente para o seu avô, que tentava ajudá-lo a conviver melhor com suas visões.

Por isso nem foi procurar João, o Espírita.
Só que Regina continuou a ter suas visões, mas, de opinião, não mais as comentava.

A horta de Afonso era bonita e bem cuidada e as pessoas da cidade iam muito lá para adquirir verduras e aves.
Regina ficava por ali conversando e tentando ajudar a mãe e o avô nas vendas.

- Observe, Regina - disse Dona Tereza, uma compradora.
Pegue nos meus braços.
Percebeu como são tortos?

Regina passou a mão nos braços da senhora que queixava.

- Tenho reumatismo, sinto muitas dores - continuou a senhora a explicar para a menina.

Regina teve outra visão.
Viu Dona Tereza como uma senhora poderosa, dona de muitos escravos.
Andava sempre com um chicote nas mãos, e estava sempre a chicoteá-los, quando suas ordens não eram atendidas de imediato.

Empalideceu e ficou segurando as mãos de Dona Tereza.

Acabou por indagar:
- A senhora gosta de negros?
- Ora, Regina, sou negra! - exclamou Dona Tereza.
Por que pergunta isto?

Xandinho e Rose alertaram, largaram o que faziam e prestaram, temerosos, atenção em Regina.

- Regina! - disse a mãe preocupada.
- É porque, Dona Tereza - falou Regina rápido - penso que negros são muito bonitos.
- Ah! - exclamaram os três juntos.

Xandinho e Rose ficaram aliviados e foi Dona Tereza que respondeu:
- Não sei se negro é mais bonito que branco.
Tanto há negros e brancos feios ou bonitos.
É questão de gosto.

Quando era criança e mocinha, não gostava de ser negra, agora acostumei.
Você não enxerga, não pode entender e eu não sei como lhe explicar.
Creio que deve continuar pensando que negros são bonitos.

Você, Regina, é uma menina educada e boa.
Continue assim. Até logo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Fev 06, 2015 10:19 pm

Xandinho ia comentar com a neta se esta viu algo, mas não o fez, porque ela, ao escutar os elogios, sorriu alegre.

De facto, Regina estava contente e pensou:
"É assim que tenho que agir.
Se tivesse falado o que vi, certamente Dona Tereza não teria gostado e provavelmente me dariam outra surra.
Antes ouvir que sou educada e boazinha do que mentirosa.

Que me importa se ela usou o chicote para castigar?
Agora é negra e não gosta, já sofreu por isto, tem dores, braços e mãos tortos.
É bem melhor não falar mais o que vejo.
Assim, não arrumo confusões."

Regina estava sempre vendo o passado dela e de quem se aproximava.
Não comentou mais, nem com o avô, nem com Kim, seu melhor amigo.

Kim fez dez anos.

Naquele dia, ao chegar à escola um colega foi correndo avisar:
- Kim, seu avô caiu da charrete e está no consultório médico.

A cidade não tinha hospital.
Kim correu para o consultório do médico.
Junto do avô estavam algumas pessoas que o socorreram.

Ao chegar, escutou o avô comentar:
- Meu neto adivinhou e me alertou.
É verdade, Kim adivinha tudo!

Ele me disse:
"Vovô, o senhor irá cair desta charrete velha, não irá morrer, mas seu braço não moverá mais."
Por isto, doutor, cuide do meu braço, mas duvido que fique bom.

Kim entrou e abraçou o avô.
Todos olharam curiosos para ele, o avô entristeceu.

- Desculpe-me, meu neto.
Sempre o aconselhei a não falar o que vê e acabei falando.

Kim foi para casa e todos comentaram o acidente e a adivinhação do menino.
Só não levou uma surra do pai, porque Xandinho não deixou.
Por meses as pessoas o olharam de modo diferente, mas esqueceram e tudo pareceu voltar ao normal.

Xandinho quebrou o braço.
Ao tirar o gesso não conseguiu movê-lo mais e passou a tê-lo imobilizado.
Ficou muito amargurado e arrependeu-se de não se ter desfeito da velha charrete.

Kim começou a ver o cigano.
Primeiramente viu um vulto.
Não teve medo.
Isto lhe pareceu natural, rotineiro, sentiu que já tinha visto muitos mortos do corpo, mas vivos em espírito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Fev 06, 2015 10:19 pm

Dias depois, viu-o e entendeu que era o cigano morto nas montanhas.
Percebeu que podia também falar com ele, que o espectro o ouvia e respondia.
Ivo, o cigano, estava sempre por ali, ora com sua mãe, ora com o pai.
Era feio, tinha o peito ferido, que parecia estar sangrando, barba por fazer, as roupas rotas, aspecto cansado e triste.

- Que faz aqui? - perguntou o menino.
Vá embora!
- Não e não! - respondeu Ivo.
Matou-me sem dó!
Vou ficar com eles.

Kim, sem saber o que fazer, contou ao avô.
Este se pôs a orar para que o cigano tivesse e desse paz.
Mariana, sua mãe, ficou doente, sua doença foi agravando e o menino ficou muito triste.

Isabela era a única que o fazia rir.
Ele a amava muito.
Ia sempre à casa do avô, continuava ensinando Regina.

Mas esta não gostava mais de escutar seus problemas.
Como jurou não mais falar, não quis escutá-lo.
Ele respeitou a prima e nada mais comentava com ela do que se passava com ele.

Kim passou a trabalhar ajudando a cuidar do gado.
Mas dava sempre um jeitinho para ir ver o avô e Isabela.
Naquela tarde de outono, o céu se carregava de nuvens.

Kim conversava com as primas, quando Rose as chamou para o banho.

Ele ficou sentado num banco na frente da casa.
"Vai ser depois de muitos dias de chuva que terras e pedras cairão da montanha!"

Pensou e suspirou.
Muitas vezes tivera esta visão.
Sabia que ia demorar, aconteceria dali a uns anos, pois se vira moço, a correr aflito para o local.

Mas não sabia por que ia para lá e o que aconteceria após.
Viu um passarinho, esqueceu a visão que lhe parecia ser desagradável e se pôs a observar o pássaro.

- Olá, passarinho! -exclamou baixinho.
Que faz aí sozinho?

O pássaro voou em círculos.
Kim levantou-se e olhou o pequeno reservatório d'água, perto da casa, que chamavam de lago.

Lá estavam muitos pássaros.
Certamente este que via pertencia ao bando.
Sabia que eles partiriam com a aproximação do inverno.

Boa sorte, meu pássaro! Boa sorte! - exclamou sentando novamente.
O pássaro trilou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Fev 06, 2015 10:19 pm

No íntimo Kim sentiu sua resposta.
"Obrigado, necessitarei de sorte, a travessia é longa e tempestades podem nos amedrontar."
- Por que não fica? - disse o menino baixinho.

"Meus companheiros vão.
Temos que ir, sempre vamos.
Tenho meus ovos para botar."

- É fêmea?
"Sim. Não vê minha cor e delicadeza?
Sou mais bonita!"

- Por que você não vem para perto de mim? - pediu o garoto.
"Tenho medo!
Os homens costumam nos fazer muito mal.
Nos trancam ou nos matam."

- Eu não faria mal a você!
"Adeus! Necessito ir.
Partiremos em breve."

Num voo mais alto, partiu para o lago em direcção ao bando.
Kim se pôs a pensar, teria conversado com o pássaro ou imaginado?

- Conversando sozinho ou com aquele passarinho? - indagou o avô, que abrira a porta atrás do banco onde ele estava sentado.
- Passarinha, vovô, é fêmea.
- De facto, pelo porte e cor é fêmea.
É sempre bom conversar com os animais.

- Verdade, vovô?
- Sim, animais também são criação de Deus.
E não foram criados para serem maltratados.
Eles gostam de homens, mas os temem.
Necessitam de protecção.

- O senhor conversa com eles? - perguntou o menino.
- Às vezes, porém não respondem.
- Pois a mim essa passarinha respondeu.
- Quando usamos o coração como intuição, até os pássaros nos respondem.
Amor é comunicação.

- Vovô, mamãe está falando tão pouco!
Estou triste em vê-la tão doente.
- Minha filha Mariana agoniza, como a tarde - falou Xandinho, triste.
Seu olhar é doce e cheio de carinho.

- Não quero que ela vá embora, vovô, não quero!
- Não lamente!
Quando alguém morre é só o corpo que some, a alma, o espírito emigra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Fev 06, 2015 10:19 pm

É como os pássaros, mudam de lugar, mas voltam.
Sua mãe os ama e o Amor é laço forte.
Tenho a certeza de que ela olhará por vocês e, quem sabe, voltará um dia.

Kim levantou-se e olhou o lago.
Não viu a passarinha, mas sabia que estava lá.
Seria assim com sua mãe?

Iria mudar com a morte, mas voltaria.
Quem cria raízes sempre volta.
O garoto foi para sua casa.

Dias depois Mariana desencarnou, deixando Sebastião mais triste ainda.
Kim passou a ver o cigano com mais frequência.

Não o temia e resolveu seguir o conselho do avô, conversar mais com ele.
Ivo lhe contou sua vida e o menino escutou pacientemente.

Terminou dizendo:
- Vivemos muitas vezes, menino!
Amei Mariana em muitas encarnações e esta ingrata sempre preferiu Sebastião, sempre este maldito.
E nesta ele me matou!

- Ivo - falou o garoto bondosamente - não podemos forçar ninguém a nos amar.
Mariana, minha mãe, quando o conheceu já era casada e tinha dois filhos.

- Eu sei! Mas eu a queria.
Se não fosse este maldito que me matou, ficaria com ela.
- Onde está seu povo, onde estão seus familiares?
Não vieram Procurá-lo? - perguntou o menino.

- Eles não têm parada, mudam sempre.
Não concordaram comigo quando quis raptar Mariana, então me separei deles.
Nem sabem que morri.
Minha morte não foi vingada, por isto vingo eu mesmo.

Ivo afastou-se triste.
E Kim não perdeu mais uma oportunidade de conversar com ele.

- Você se lembra, Ivo, de quem era o punhal que o feriu? - indagou o garoto certo dia.
- Era meu!
Lembro-me bem, gostava daquela arma.

- Então como você foi ferido por ela?
- Ora, Sebastião tomou-a de mim, roubou-me, não sei - respondeu Ivo, inseguro.

- Como meu pai iria roubá-la ou tomá-la de você?
Ele sempre foi fraco e você muito forte.
Onde guardava seu punhal?
- Na cintura - respondeu Ivo pensativo.
- O que você foi fazer na montanha?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:13 pm

Quando as perguntas se tornavam inconvenientes para ele, Ivo sumia.
Preferia acusar Sebastião e continuar odiando.
Mas, com o menino perto de Sebastião, o cigano não conseguia atormentar sua vítima.

O olhar sereno e calmo do garoto o incomodava.
Depois passou a gostar dele, pois lhe dava atenção, não o temia e orava por ele.
Kim só falava sobre isto ao avô, não comentava nada em casa e seu pai não sabia deste facto.

Mas Sebastião passou a ficar apegado ao filho caçula.
Perto dele se sentia melhor.

Kim acabou o curso na escola.
Agora, se quisesse continuar os estudos, teria que ir para uma cidade maior.
Como não era possível, parou de estudar e passou a ajudar mais seus irmãos e fazer companhia ao pai.

Com isto, passou a ir muito pouco à casa dos tios.
Mas ia sempre com alegria rever as primas, principalmente Isabela que crescia, ficando, para ele, cada vez mais linda.
Sempre a ajudava nas tarefas escolares e continuava ensinando Regina, que conseguia aprender muitas coisas, mas infelizmente não conseguia ler e isto a entristecia.

Onofre, seu irmão, ia casar com Rafaela.
O dia tão esperado chegou.
Todos bem vestidos iam para a festa.

Ali, naquela pequena cidade, todos os casamentos e baptizados eram festas.
Quando a noiva saía de sua casa para ir à igreja, ia a pé, pois morava a poucos metros desta.
Muitos convidados a esperavam para acompanhá-la.

Ouviu-se um grito.

- Rafaela! Rafaela!
Minha irmã querida!

Era um irmão de Rafaela que há muitos anos havia partido para trabalhar longe dali e voltava sem avisar.
Todos se emocionaram, principalmente os familiares da noiva, que se exaltaram, festejando seu regresso.

Kim se recordou da visão que tivera tempos atrás em que Onofre quase lhe surrara.
Ele tinha visto Rafaela enfeitada com flores e abraçada com outro homem.

Aproximou-se de Onofre.
- Não tinha visto Rafaela abraçada toda feliz com outro homem?

Onofre suspirou.
Tinha sofrido tanto com a visão do irmão!

O avô aproximou-se e falou baixinho ao neto que ia casar:
- Sofreu porque não confiou.
Poderia Rafaela ter abraçado o pai, irmão ou um familiar qualquer, mas, dando "asas" ao ciúme, preferiu pensar que ela abraçaria outro pretendente.

Onofre concordou com a cabeça.
Foi um casamento lindo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:13 pm

Sebastião ficou muito doente.
Kim cuidava dele com extremo carinho.

E continuou a insistir com Ivo para que não atormentasse seu pai.
No começo queria se ver livre dele, depois passou a gostar do cigano e querer que ele tivesse paz e que fosse feliz.

- Então, Ivo, me fala, o que você foi fazer na montanha?
- Matar Sebastião! - confessou um dia. - E roubar Mariana.
- Vocês lutaram, não foi?
Você morreu, porque caiu em cima de sua própria arma - insistiu o garoto.

- A culpa foi dele!
- Foi sua!
Se não tivesse ido lá, nada disto tinha acontecido.

- Teria levado Mariana comigo e teria sido feliz.
- Seria mesmo, Ivo?
Mariana, minha mãe, não o queria, nunca o quis.
Agora ela está tão morta como você. Já a viu?

- Não - respondeu Ivo triste.
Ela não ficou por aqui.
Partiu com os bons espíritos.

- Esquece esta vingança, homem!
Vá embora! Por que não vai se reunir a seu bando?

Ivo não lhe respondeu, mas estava muito pensativo.
Um dia veio despedir de Kim.

- Vou embora, menino.
Vou pedir auxílio no Centro Espírita.
Lá eles socorrem pessoas mortas como eu. Adeus!

De facto, Ivo pediu ajuda no único Centro Espírita que havia na pequena cidade, onde João trabalhava com dedicação e Amor, e foi socorrido por eles.

Kim alegrou-se, sentiu agora que Ivo ia ter paz.
Martinho também ia casar.
Só esperava o pai melhorar, mas Sebastião piorou e não conseguiu sair mais do leito.

Um dia cedo, assim que se levantou, Kim viu sua mãe.
- Mamãe! Mamãe! Que saudade!

Correu para perto do vulto, quis abraçá-la, não conseguiu.
Mariana ficou perto dele e o beijou na testa.
O menino a viu, mas não sentiu o beijo.
Seu coração batia descompassadamente.

Alegrou com a preciosa visita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:13 pm

- Filho - disse Mariana - tenho pressa.
Vim ajudar seu pai a partir.
Tenha fé, meu Kim, muita fé e paciência.
Você não é como os outros, por isso tem que compreender mais.

- Fica comigo, mamãe!
- Não posso!
- Então me leva com a senhora! - pediu o menino.

- Também não posso!
Cada um tem um período para ficar no corpo físico.
Temos que respeitar.

Não queira voltar antes do tempo, isto nos separaria para sempre.
Até logo, filho, devo ir com seu pai.
Receba minhas bênçãos!

Viu sua mãe ir para perto da cabeceira da cama de seu pai, então percebeu que outros dois vultos ali estavam a mexer no corpo dele.

Logo depois todos sumiram.
O menino aproximou-se apreensivo.
O pai estava quieto, não respirava mais. Estava morto.

- Martinho! Martinho! Acorda!
Papai morreu! - gritou Kim, acordando o irmão.

Com a morte do pai, Martinho resolveu casar e morar com a esposa na casa dos pais.
O menino se alegrou, quando os tios e o avô o convidaram a morar com eles.
Ele gostou, aceitou e passou então a residir com os tios e o avô.

Os tios gostavam dele, Regina e Isabela ficaram contentes com a presença do primo.
Ele passou a dormir no quarto do avô.
Xandinho andava com dificuldades, mancava de uma perna e não mexia com o braço.

- Você não teve mais visões? - perguntou Xandinho preocupado.
- Pararam, talvez porque cuidava do papai.
- Quem sabe você não as terá mais.
- Tomara, vovô, tomara que não as tenha mais.

Kim passou a ajudar o tio na horta, mas também auxiliava os irmãos.
Saía pouco de casa.
Quando o fazia, era para acompanhar o avô, que ia conversar com Frei Manoel e sempre ficava na praça esperando.

Foi lá, um dia, que presenciou a confusão.
Dois policiais corriam atrás de um homem que fugia apavorado.
Pegaram o homem.

- Ladrão! Roubou o Senhor Francisco! - esclareceu um dos policiais.
Senhor Francisco lhe deu esmola e ele roubou sua carteira.
- Roubar de quem o ajudou! - exclamou uma mulher indignada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:13 pm

Então Kim viu.
Senhor Francisco estava no carro distraído, em vez de guardar a carteira no bolso, deixou-a cair e esta estava em um vão do banco.
Um dos policiais revistou o suposto ladrão, não a encontrou e o ameaçou.

- Dê-nos a carteira!
Diga onde a escondeu!
Senão O levaremos para a delegacia e aí irá falar, sem dúvida.

Kim estremeceu tanto como o pobre homem.
Sabia que iam torturá-lo.
Olhou com piedade para o homem que tremia e nem conseguia falar.

"Falo ou não falo?" - pensou o garoto aflito.
"Que faço, meu Deus?
Prometi ao vovô não falar nada sem consultá-lo.
Mas eles irão bater neste pobre inocente."

- Esperem! Esperem! - gritou para os policiais que arrastavam o homem.
Ele não roubou! Procurem a carteira no banco do carro, está lá em um vão.

Todos quietaram.
Não necessitaram perguntar como ele sabia, todos o conheciam e sabiam de seus dons divinatórios.
Caminharam para perto do carro do Senhor Francisco, que aguardava os acontecimentos em pé ao lado do veículo.

Os dois policiais seguravam o homem pelos braços.
Um deles pediu ao Senhor Francisco para procurar a carteira no vão do banco.
Ele o fez e a achou.
Ficou vermelho de vergonha, chamou o homem e lhe deu uma quantia razoável.

- Aqui está, homem!
Tome mais esta esmola.
Não machucaram você, não é?

O homem não respondeu, hesitou, mas acabou pegando o dinheiro e saiu quieto, envergonhado, pensando no filho doente e no remédio que ia comprar.
Olhou simplesmente para Kim, este sentiu gratidão naquele olhar.

Era um cigano que estava acampado perto da cidade.
Todos os presentes comentaram o facto e Kim afastou-se logo, foi buscar o avô.

- Vovô, por favor, vamos para casa!
No caminho, o menino contou tudo a Xandinho, que o consolou.

- Meu neto, você está ficando moço, deve pensar como adulto.
Agiu certo, não era justo deixar o pobre inocente ser castigado por algo que não cometeu.
Praticou uma boa acção com sua adivinhação.
Vamos esquecer este facto e espero que todos aqui esqueçam também.

Kim pensou em sua mãe, lembrou do que ela disse ao vê-la, quando seu pai morreu.
Inquietou-se, sentiu que passaria por momentos aflitivos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:14 pm

Dias passaram e o falatório foi escasseando.
Mas um acontecimento alarmou o local.
Um menino, filho de um fazendeiro importante, tinha desaparecido.

Muitas pessoas da cidade saíram a sua procura.
O menino era o único filho varão deste senhor que era benquisto por todos.
O garoto tinha oito anos, era uma criança boa, obediente e inteligente.

As buscas resultaram em nada.
Foi quando um dos que procuravam se lembrou de Kim.

- O menino que adivinha!
Vamos até ele, certamente nos indicará onde está o garoto.

Lá foram. Muitas pessoas com a mãe aflita.
Ele estava com o gado no pasto, quando o encontraram, e todos falavam ao mesmo tempo.

- Quero que veja onde está meu filho! - ordenou a senhora.
- Não sei, não sei...

Kim nada via.
Esforçou-se para ver, mas não deu nem para concentrar.
Todos falavam ao seu redor.

Depois, nunca fizera aquilo, nunca tinha antes tentado ver algo.
Suas visões eram espontâneas.

- Não consigo! Não sei! - repetia nervoso.
- Não quer ajudar! - disse um deles.
- Dizem por ai que, nestes casos, tem o vidente necessidade de sofrer para ver - afirmou outro homem.
- Pois que sofra! - retrucou a mãe desolada. - Batam nele!

Sentiu os socos e pontapés.
Um outro teve a ideia de colocá-lo de ponta-cabeça.
Dois homens o pegaram pelos pés e lá ficou desesperado e com muito medo, levando tapas e mais tapas.

Muita confusão, todos falando e a senhora insistindo:
- Onde está meu filho?
"Ai, meu Deus!" - pensou Kim aflito.
"Ajude-me, mãe, a ver onde está este menino!"

Estava atordoado, sua cabeça rodava, sangue escorria pela boca, teve muito medo.

- Parem! Parem com isto!
Para seu alívio, o irmão Onofre e o tio Afonso vieram correndo, soltaram-no e o tio o abraçou e disse aos gritos:
- O que é isto? Que barbaridade é esta?
Parece até que foi ele quem escondeu o garoto.

Fiquem sabendo que ele só tem visões espontâneas e não quando ele quer.
Aliás, ele nunca quer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:14 pm

- Ignorantes! Quase matam o menino.
Covardes! - gritou Onofre acariciando o irmão.

Aí, Kim viu.
O garoto sumido debatia-se preso nas margens do rio.
Estava em lugar perigoso entre as ramagens das árvores, em um atoleiro, no barro que formava naquela época do ano.

- O menino está no rio, atolado perto da curva do oleiro - falou ele com dificuldades.
- É mentira! - berrou a mãe.
O que meu filho está fazendo lá?

- Ora, vamos lá depressa e verificaremos, não nos custa - disse uma senhora.
- Vamos rápido!
Se ele estiver lá, morrerá com o frio da noite! - falou um homem.
- Eu não disse que dava certo fazê-lo sofrer? - berrou o homem que teve a infeliz ideia de surrá-lo.

Apressados, dirigiram-se ao local que o menino indicou.

- Você viu mesmo? - indagou o tio.
- Vi agora - respondeu o garoto.
- Vamos - aconselhou o tio - levo-o para casa.
Sua tia cuidará de você.

Kim teve vontade de chorar, mas as lágrimas não caíram, os afagos do tio e de Onofre o acalmaram.
Em casa levaram um susto.
Regina e Isabela ficaram quietas e Xandinho revoltou-se.

A tia se pôs a medicá-lo.
Isabela beijou-o, acariciando.
Regina com receio de machucá-lo mais, ficou a passar as mãos sobre seus cabelos, desejou tirar suas dores e o fez.

Quando se quer, sempre se consegue, e usar as mãos surte muitos efeitos.
Regina doou energias, deu passe mesmo sem entender este processo, simples e funcional, que é doação de energias pelo passe.

"É por isto que nunca mais falo que vejo" - pensou Regina.
"E não falarei mesmo, nunca!
Seja o que for, ficarei quieta."

À noite, Onofre e Martinho foram ver o irmão.
- Acharam o garoto no lugar que você indicou - esclareceu Martinho.
O menino disse que foi pegar um pato e caiu.
Perguntaram à mãe dele se ela não vinha agradecer, sabe o que ela respondeu?

Quem nasce assim é para servir e que você não fez mais do que sua obrigação.
Que ela não vinha e que você bem que mereceu as palmadas, porque demorou para dizer.
E ainda o chamou de sem-vergonha!

- Palmadas! - exclamou a tia.
Machucaram tanto o menino!
- Temos que tomar umas providências - frisou Afonso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:14 pm

- Meu sobrinho não deve mais sair sozinho e, quando vir muitas pessoas, corre e esconde.
- E bem escondido - repetiu Isabela.
Promete Kim, que esconde?
Não quero que batam mais em você.

- O mais importante - reclamou Martinho - é que meu irmão não veja mais, que não tenha estas visões esquisitas.
- Mas ele é assim - disse Xandinho.
Não pode mudar só porque quer, ou porque queremos.
Sinto-me culpado.
Lembrei as pessoas do dom dele, quando comentei que previu que eu ia cair da charrete.

- Vovô - conciliou Kim - o senhor não tem culpa.
Fui eu que falei sobre a carteira.
- Não fale mais, meu irmão - reforçou Martinho.
Não fale mais nada, seja o que for.

- Você acha certo, Martinho? - perguntou Xandinho.
E se o menino sumido fosse seu filho?
- Bem, assim... - considerou Martinho, incerto.

- Vamos protegê-lo - asseverou tio Afonso.
E ele nos prometerá ser cauteloso e evitar de falar.
- Certo - concordou o menino.

Kim por tempo ficou com as marcas das pancadas e não saiu mais sozinho.
Frei Manoel resolveu ajudá-lo.
Tendo que ir à sede de sua congregação, expôs ao seu superior o problema do garoto, tentando achar para ele a solução.

Que ingenuidade do velho frade.
Os freis do convento deram palpites, para uns eram coincidências, para outros o menino era paranormal.
Quiseram ver o garoto, fizeram o convite para que ele fosse passar uns dias no convento, afirmando que pagariam todas as despesas.

Frei Manoel ao regressar foi à casa de Xandinho e levou o convite.
Kim estava para completar treze anos.

- Foi o que escutei dos meus superiores - afirmou Frei Manoel.
Mas, se querem saber minha opinião, esqueçam o convite.
Se posso acompanhá-lo - disse Afonso -, não vejo por que não ir.

- Cidade grande é diferente - objectou Frei Manoel.
Se aqui bateram nele, que poderão fazer lá?

- Aqui as pessoas são mais ignorantes - considerou a tia.
Padres têm obrigação de serem bons.
Acho que é Kim que tem de resolver.
- Bem - falou Frei Manoel -, pensem com calma.

Xandinho acompanhou Frei Manoel à porta e indagou sem que os outros percebessem:
- Por que teme pelo garoto?
Não acha certo ele ir ao convento?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:14 pm

- Meu amigo, queria ajudar seu neto e não consegui.
Será que os freis do convento conseguirão?
Querem vê-lo, ficaram curiosos.

Mas será que irão querer mesmo ajudá-lo?
Conseguirão? Arrependi-me.
Não deveria ter falado sobre o garoto para eles.
Mas espero que vocês resolvam o melhor para o menino.

Todos acharam que Kim deveria ir.
Seria por poucos dias e Afonso o acompanharia.
Ele também achou que deveria distrair, viajar, nunca tinha saído de sua cidade.

Ganhou até presentes das pessoas amigas, roupas novas para a viagem.
Partiu com o tio para ficar dez dias no convento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:15 pm

V - NO CONVENTO

Kim gostou da viagem, para ele tudo era novidade.
Achou tudo muito bonito e diferente.

Foram de trem e prestou atenção em tudo.
Foram da estação ao convento a pé.
Encantou-se com o movimento da cidade grande.

- Veja isto, tio Afonso - disse entusiasmado.
Isabela iria gostar, se pudesse compraria para ela.
- Você só pensa nela - falou o tio.
- Penso em todos, tio, gosto de todos.

Chegaram ao grande e fechado convento.
Como já eram esperados, um frei os atendeu e os levou para uma parte reservada aos visitantes.

Deram-lhes dois quartos contíguos.
O menino admirou o tamanho e o conforto dos quartos.
Gostou de tudo com entusiasmo.

- Tio, o quarto parece maior que nossa casa!
Foi servido o jantar no quarto mesmo, porque já era tarde, e logo após a alimentação foram dormir.

No outro dia cedo, logo após o dejejum, foram levados ao gabinete superior do convento.
Frei Marco gentilmente lhes deu as boas-vindas.
Afonso saiu logo após, tinha que tratar de negócios e Frei Fernando levou Kim para conhecer o convento.

O menino achou o local muito grande e bonito.
Tudo era muito limpo e organizado.
Nunca vira tantas portas e janelas.

- Aqui é a sala de refeição - disse o frei que o acompanhava.
Aqui é a sala...

Tantas salas que o menino se confundiu todo.
Qualquer pessoa se perderia fácil naquele local tão grande.
Gostou mesmo foi do jardim, do pequeno chafariz, da horta e do pomar.

A cozinha era enorme e as panelas tão grandes que o menino pensou que caberia fácil dentro delas.
A capela era muito linda, toda pintada, tendo barrado em ouro.
Os móveis de todo O convento eram de madeira escura e em várias janelas havia cortinas bonitas e longas.

Foi apresentado a todos os frades, mas só aos poucos os foi conhecendo e tornou-se amigo de muitos.
Também, só depois de muitos dias aprendeu a andar pelo convento.
Podia ir por toda parte, só não entrava nos aposentos particulares, quartos dos freis, e nem ia ao porão.

Este lhe pareceu assustador e não quis conhecê-lo.
Gostou do convento.
Logo no dia posterior ao de sua chegada, à tarde, conheceu a sala onde faria os testes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Fev 07, 2015 11:15 pm

Frei Marco disse a ele:
- Aqui, meu menino, faremos testes e veremos o que acontece com você.
- Irão me curar? - indagou o garoto.
- Sente-se doente? - perguntou Frei Marco.

- Não, só esquisito!
Não gosto destas visões...
-Vamos ver o que o atrapalha - respondeu Frei Marco, acalmando o menino.

Seriam três freis a estudá-lo.
Foram gentis com ele e o menino gostou das novidades.
Os que iam pesquisá-lo eram:
Frei Marco, filósofo, estudioso dos fenómenos ocultos.

Sentiu-se atraído pelo que acontecia ao menino, resolveu estudá-lo, achando que se tratava de um caso raro de paranormalidade, outro Frei Fernando, descrente, diria até que era ateu; duvidava de tudo e de todos, talvez julgasse os outros desonestos e enganadores, comparando-os pelas próprias acções.

Interessou-se pelo garoto, tentando descobrir que truque usava aquele falso humilde de tão pouca idade, o terceiro, Frei Luís, sério, bondoso, teve pena do menino, porque ele mesmo era portador de alguns fenómenos que a religião que seguia com tanto amor não conseguia lhe explicar.

Via muitas pessoas que para todos eram mortas, e com elas conversava.
Era querido de todos e invejado.

Os testes começaram logo à tarde.
Eram exercícios simples.
Vendavam-lhe os olhos e pediam para localizar objectos que estavam em cima da mesa a sua frente.

Sem o tampão, deveria adivinhar cartas de baralho viradas.
Kim achou interessante, era como brincar, e divertiu-se.
No começo acertou pouco, mas logo no quinto dia, já mais familiarizado, passou a acertar muito, deixando os três freis admirados.

Oito dias passaram e eles não chegaram a conclusão nenhuma.
Pediram para que Kim ficasse mais tempo.
Conversaram com Afonso.

- Senhor Afonso - propôs Frei Marco -, o menino necessita ficar mais tempo connosco.
Peço-lhe sua autorização.

Ele ficará bem connosco.
Foram poucos dias para um estudo tão sério.
Assim que entendermos o que se passa com ele e acharmos uma solução, nós o levaremos de volta, como também ele poderá regressar quando quiser.

- Se ele quiser ficar, tem a minha autorização - respondeu Afonso.
Kim estava gostando, nunca comera tantas coisas gostosas.
E estava se divertindo com os testes.

- Quero ficar, tio.
Será só por mais uns dias.
Tenho um dinheirinho guardado, se Frei Marco permitir, comprarei presentes para meus familiares e o senhor, tio, os levará.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:28 pm

- Claro que permito.
Pedirei ao Frei Leonel para acompanhá-lo e tem mais, vou dar a você um dinheiro para fazer estas compras.
- Não precisa - disse Afonso -, os senhores já fazem muito nos hospedando.

- Senhor Afonso, meu irmão me deu há tempos este dinheiro para que comprasse algo para mim.
Mas não preciso de nada e darei de bom grado ao menino.

Feliz, Kim saiu com Frei Leonel e fez compras.
Não esqueceu de ninguém, comprou presentes para todos e um bem especial para Isabela.
Quando voltaram, passaram na frente de uma casa de apostas.

Brincando, Frei Leonel indagou:
- Você é capaz de saber que número será sorteado?

O menino pensou por momentos e veio um número à sua mente.
Disse sem hesitar.

- Puxa! - exclamou o frei.
Espere-me aqui, vou lá e volto rápido.
Kim ficou admirando o movimento da rua.
Frei Leonel entrou na casa, mas não pôde jogar, porque já haviam encerrado as apostas daquele dia.

Voltaram para o convento.
Kim escreveu bilhetes e colocou nos presentes.
No outro dia, Afonso regressou.

O menino não se entristeceu com sua partida, seria só por mais uns dias.
Depois, estava se deliciando com os testes e lhe era agradável ficar ali.

No outro dia, Frei Leonel voltou para conferir o resultado do jogo e dera o número que o menino falara.
Foi imediatamente falar com Frei Marco e este dobrou o interesse pelo garoto.

No teste seguinte, Frei Marco falou entusiasmado aos outros companheiros que estudavam o garoto:
- Frei Fernando, Frei Luís, Kim acertou o número que foi sorteado ontem.
É espantoso!
Podemos melhorar nossas finanças com ele.

- Isto é desonesto! - respondeu Frei Luís.
Não devemos fazer isto!
- Para fazer caridade tudo é lícito.
Nossos pobres serão beneficiados - disse Frei Fernando.

- Que pobres? - indagou Frei Luís.
- Frei Luís tem razão - respondeu cinicamente Frei Marco.
Esqueçam as apostas, vão tentar ajudar este menino.

Mas assim que Frei Luís saiu, Frei Marco se reuniu com Frei Leonel e Frei Fernando.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:28 pm

- Vamos usar o garoto para enriquecer.
Faremos de um jeito que o menino não perceba e nem Frei Luís.
Aumentaremos nossas finanças.
Afinal, não prejudicaremos ninguém.
E trataremos bem, muito bem o menino.

Kim passou a acertar mais nos testes, e discretamente Frei Marco e Frei Fernando pediam que visse o número a ser sorteado.

Acertava muito e, à medida que treinava, acertava mais.
O menino quase não saía do convento e os dias passavam monótonos, embora os freis não deixassem que lhe faltasse nada.
Fez muita amizade com Frei Luís e estava sempre conversando com ele, quando este estava de folga.

Frei Luís trabalhava muito.
Era ele que fazia todo serviço do convento:
fazia pagamentos, atendia confissões, dava extremas-unções, atendia as pessoas pobres que iam ao convento à procura de alívio para suas dificuldades.

Atendia todos com bondade.

Um dia, Kim viu muitos frades saírem com Frei Marco, o superior, e perguntou ao Frei Luís:
- Aonde vão?
- Dar extrema-unção.
- Não é o senhor que faz isto?

- É que um senhor rico, que ajuda muito o convento, está para morrer - respondeu Frei Luís, gentil.
- Faz diferença um dar ou muitos? - perguntou Kim curioso.
- Para Deus o que importa é o Amor no coração.
Deus não necessita de dinheiro e nem de orações pagas.
Se estivesse para morrer, gostaria que fosse o senhor a me encomendar.

- Encomendar, ah! - exclamou Frei Luís.
Como se isto fosse possível.
Para Deus o importante é ser rico de boas acções.

Sorriu mudando de assunto.
- Já conhece nossa biblioteca?
Você me disse que tem uma prima cega.
Pergunte ao Frei Leopoldo, o bibliotecário, e ele o poderá informar sobre o que temos para ensinar cegos a ler.

Foi entusiasmado para a biblioteca.
Frei Leopoldo amava demais os livros, gostou do interesse do menino e por ter quem atender.

Mostrou-lhe tudo sobre o assunto e falou excitado:
- Luís Braille, professor francês que, apesar de privado da vista desde a idade de três anos, inventou a escrita em relevo para uso dos cegos.
Ele nasceu em 1809 e faleceu em 1852.

- Fantástico! - exclamou o menino admirado.
Foi cego, professor e inventor!
- Posso até dar a você alguns livros que temos duplicado.
Ajudo você a explicar à sua prima Isabela, para que ela ensine a outra, a cega.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:29 pm

Kim alegrou-se.
Passou a ir muito na biblioteca e Frei Leopoldo, como prometera, o ensinou e também o ajudou a escrever, para que ensinasse Isabela.

O menino tinha muitas saudades de todos, escrevia muito, os irmãos respondiam raramente.
Quem estava sempre lhe escrevendo era Isabela e ela lhe dava muitos recados de Regina.
Frei Marco lhe dava sempre dinheiro para que ele fizesse suas despesas e foi com muita alegria que o menino colocou no correio o primeiro livro em Braille para sua prima.

Tudo parecia normal na cidade de Kim.
Os irmãos casados agora se preocupavam mais com as esposas e filhos.
Afonso, Rose e Xandinho achavam que o garoto estava muito bem e até queriam que ele se tornasse um frade.

Regina continuava alegre, esforçava-se ao máximo para tornar-se auto-suficiente.
Recebeu o presente do primo com gratidão e alegria.

Realizaria seu maior sonho: ler.
Isabela com dedicação aprendeu e ensinou a irmã.
Kim foi enviando livros, artigos que Frei Leopoldo lhe dava e, em poucos meses, Regina aprendeu e até escreveu para Kim, em Braille, uma cartinha agradecendo e dizendo amá-lo muito.

Que alegria! O garoto ficou radiante.
Com as pontas do dedo tentou imaginar-se cego a ler, pensou.
"Valeu a pena só por isto ter vindo ao convento!"

Isabela sentia muita falta dele, era a única que não queria que ele ficasse no convento.
Escrevia contando tudo o que acontecia com ela e com todos.
Os testes diminuíram, os freis já não tinham tanto interesse em estudá-lo ou mesmo ajudá-lo, eram poucos os exercícios.

Mas faziam questão da adivinhação dos números.
O menino não tinha muito que fazer e estava inquieto.

Numa sessão de testes, ele falou normalmente:
- Vamos ter visitas!
Um senhor de chapéu preto e grande, com outros senhores.
- É o nosso superior! - espantou-se Frei Marco.
Obrigado, Kim, agora volte para seu quarto, temos muito trabalho.

Por três dias não fizeram testes com ele.
Corriam arrumando tudo e, no quarto dia, os portões foram abertos ao frei superior e comitiva, para uma visita surpresa de inspecção.

Mas, como foram advertidos, tudo foi fiscalizado e nada de anormal foi constatado.
Partiram deixando contentes os fiéis do convento.
Os frades passaram a agradar mais o menino.

Mudaram-no para um quarto maior e os testes continuaram.
Foi ensinado a concentrar, a forçar a ver o que queria, ou melhor, o que eles queriam.
Passaram também a indagar sobre seus assuntos particulares.

- Concentre-se, meu rapaz, isto dará certo?
- Tal pessoa estará em casa esta hora?
- Haverá perigo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:29 pm

Isto tudo era feito escondido de Frei Luís.
Pediam sempre para não falar nada a ele.
Kim obedecia porque, conforme lhes diziam, era para não chateá-lo, pois ele não podia participar de todos os testes e tinha muitas tarefas para fazer.

Mas o menino cansou do convento e estava saudoso.
Fazia nove meses que estava sem ver os seus parentes.
Compreendeu que os freis não iriam curá-lo, aliás, estava era piorando.

Quis ir embora e foi falar com Frei Marco.
- Não vá garoto! O que lhe falta?
Diga, que compro para você.

Não quer uma bicicleta?
É isto, vou comprar uma bicicleta bem bonita, a mais linda para presenteá-lo.
Hoje mesmo pedirei ao Frei Leonel para sair com você.

Também irei adquirir outros livros em Braille, escreverei a uma editora e darei para você.
Assim poderá mandar à sua priminha.
Gostamos de você e estamos estudando como ajudá-lo.

Você, meu rapaz, não quer ser padre?
Seria muito bom se se tornasse frade como nós.

- Não sei -respondeu o garoto.
Nunca pensei nisto.
Não sei se quero ser padre.

- Pois é bom que pense.
Agora vamos procurar Frei Leonel para que possam comprar para você uma linda bicicleta.

À tarde lá estava Kim ajudado por Frei Leonel, aprendendo a andar de bicicleta.
Dias depois, lá estava a correr pelos canteiros do jardim do convento.
Querendo que ficasse, Frei Marco procurou distrair mais Kim.

Mandava sempre um frei levá-lo a passear pela cidade e dava-lhe muitos presentes.
E, como prometera, dava-lhe sempre livros diferentes em Braille para que enviasse a Regina.

Outros seis meses se passaram.

(1) Este jogo era regional, ainda é realizado em muitos lugares aqui no Brasil.
Era um jogo feito discreta, mas ilegalmente.
Kim conseguia adivinhar por ser feito na cidade.
É muito difícil uma adivinhação a nível maior.
(N.A.E.)

(2) É muito difícil ver o futuro, porque ele pode ser mudado pelas circunstâncias e pelo livre-arbítrio dos envolvidos.
Mas existem acontecimentos que seguem seu curso normal, planeado.
Neste caso, a viagem deste frei superior estava programada por ele e Kim viu isto, a programação do outro, do frei superior.
(N.A.E.)
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:29 pm

VI - FREI Luís

Um dia, quando faziam os testes, os freis foram chamados e saíram apressados.

Kim escutou do frei que fora chamá-los:
- Venham acudir Frei Felipe, que está passando mal.

O menino saiu atrás deles sem ser visto.
Desceu as escadas com o coração batendo forte, apressados os frades nem olharam para trás.
Atravessaram um corredor e chegaram ao porão.

Desceram uma outra escada estreita.
Kim olhou curioso o porão.
Nada parecia ter de diferente, estavam num corredor com muitas portas.

À frente de uma delas estava um noviço, que indagou aflito:
- Agora posso ir embora?

O menino se escondeu embaixo da escada onde existia um vão e esperou.
Assustou-se com a voz alta, sinistra, de alguém dentro do cómodo que tinha a porta semi-aberta.

Não pôde distinguir se era de homem ou de mulher.
A voz lhe pareceu muito soturna.

- Quer ir embora, seu candidato a padreco! Seu medroso!
- Pode ir agora - disse Frei Marco ao noviço.

O noviço, moço ainda, saiu quase a correr, subiu as escadas e saiu do porão.
Os três frades entraram e deixaram a porta encostada.

Kim aproximou-se, ficou encostado na parede perto da porta a escutar curioso o dono da voz, que falou em tom mais baixo:
- O trio novamente!

Cautelosamente, Kim espiou.
O cómodo era um quarto pequeno e simples.
Sentado no leito estava um outro padre, que o menino supôs ser Frei Felipe.

Era magro, aspecto doentio e muito pálido.
O garoto, não querendo que o visse, voltou à sua posição anterior e ali ficou quieto a escutar.

- Oh! Frei Marco, o senhor continua chantageando aquela viúva?
Ou prefere a doce mocinha do bairro distante?
Está a embriagar-se como um porco.
Saia daqui! É mais sujo do que eu!
Frei Felipe continuava falando com uma voz terrível.

Frei Marco não respondeu às acusações e começou a orar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:30 pm

- E você, sujo e fedorento Frei Fernando!
Usurpador e vingativo!
Matou a prima que não o amou.
Sei bem, deu-lhe veneno e todos pensaram que ela se suicidou.

Não terá sossego, maldito! Ela saberá vingar!
É mau, muito mau!
Não faça mal a este menino inocente.
Estamos vigiando. Morrerá como matou!

Frei Fernando não se conteve:
- Oh, maldito! Fala de mim inventando calúnias!
Mas nunca fala de Frei Luís.

Fez-se um silêncio.

Frei Felipe começou a chorar, depois disse:
- Vão embora! Deixem-me só com Frei Luís.

Ao perceber que Frei Marco e Frei Fernando iam sair, Kim correu e escondeu no vão da escada.
Os dois se retiraram, subiram os degraus e saíram do porão.
Kim voltou para perto da porta e num impulso entrou no quarto.

Frei Luís orava tentando acalmar o doente.
Não disse nada ao vê-lo, entendeu que viera atrás dele.

Frei Felipe o olhou e disse debochado:
- É este o fedelho que enriquece os cofres do convento!
- Eu... eu? - conseguiu Kim dizer depois de muito esforço.

- Você. Frei Luís e Frei Gregório são os únicos bons por aqui.
- Frei Fe... - começou Frei Luís a dizer, mas foi interrompido.
- Ana Frida, já sabe como chamo.

Kim olhou bem para o frei adoentado.
Ao lado dele, viu como que grudada uma mulher loura, cabelos compridos e olhar rancoroso.

- Vejo ela! Vejo! - exclamou o menino, apontando-a com o dedo.
- O pirralho me vê! - riu escandalosamente.
- O que você vê?
Conte-me, Kim - pediu Frei Luís.

- Vejo ao lado deste homem um vulto, uma mulher magra, de cabelos longos e louros, estão soltos.
Tem olhos verdes e cruéis, lábios finos, mãos largas.
Veste roupas estranhas, uma roupa preta larga, amarrada na cintura.

- É isto aí, padreco! - falou Frei Felipe.
O garoto me vê. Esta roupa, menino idiota, é de freira.
Fui uma religiosa, fiquei orando numa cela fria por muitos anos.
- Pelo visto não orou com sinceridade - disse calmamente Frei Luís.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:30 pm

- Por que me persegue, padreco?
Por que não me deixa em paz?
Sabe que não gosto de você.
Não tem nada a ver connosco.
- Você me respeita - disse Frei Luís.

Kim vendo que seu amigo não tinha medo, encostou a porta e aproximou-se do leito.
Lembrou que já tinha visto o cigano, sua mãe, e deveria ser tudo a mesma coisa, mortos eram mortos.

Porém, pensou, sua mãe era boa, Ivo tornou-se bom.
E aquela ali, que dizia chamar Ana Frida, queria vingar, mas sofria muito.
Olhou-a bem e ela também o encarou.

- Que é isto na sua cabeça? - Kim indagou.
- É a minha tiara, não está vendo, imbecil? - respondeu ela por intermédio de Frei Felipe.
- É bonita, nunca tinha visto.
Para que serve? - perguntou o menino.

Ana Frida, este espírito, tinha na cabeça um aro dourado que impedia os cabelos de caírem ao rosto.
Ali se passava um processo de incorporação.
A desencarnada falava por meio de Frei Felipe, que era médium.

Suavizando a voz, ela respondeu:
- Serve para enfeitar os cabelos.
Foi meu pai que me deu.
Tinha feito treze anos, ele trouxe da cidade.
Foi o último presente dele. Pobre pai!

- Morreu? - indagou o menino.
- Assassinado vilmente.
- Conte-nos sua história, Ana Frida.
Tenho querido tanto ajudá-la.
Talvez se contar tudo, desabafará.
Sentirá alívio! - pediu Frei Luís.

Fez-se um longo silêncio.
Frei Luís e Kim sentaram em cadeiras perto do leito.
Frei Felipe agora não estava tão agitado.

Ela resolveu falar, ele a obedecia.
O menino a via falar, não escutava sua voz, mas a de Frei Felipe.

Os dois mexiam com os lábios juntos.
Frei Felipe repetia com exactidão o que ela falava.
Escutaram-no com atenção.

- Nasci em uma família pobre, mas honesta.
Tive por padrinho este infeliz, que na época era senhor das terras onde morávamos.
Meu pai era empregado dele.
Minha mãe morreu, quando eu ainda era bem pequena, e meu progenitor nos criou, eu e meus dois irmãos mais velhos, com todo carinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:30 pm

Tinha quatorze anos, quando o Senhor Gabs, este aqui agora, reparou em mim.
"Ob!" - disse ele ao me ver.
"Você não é minha afilhada Ana Frida?
Vem tomar a bênção do seu padrinho!"

Tomei a bênção envergonhada, inquieta com seus olhares.
Morava o Senhor Gabs num castelo no centro de uma imensa propriedade.

Morava não, passava temporadas.
Sua família não o acompanhava, ficavam na residência da cidade perto dali.
A esposa dele era orgulhosa e comentavam que os dois não se davam bem.

Tinha dois filhos, sendo um já casado, com filhos.
Dois dias depois de tê-lo encontrado, Gabs apareceu em casa com dois lindos presentes para mim.
"Um padrinho não deve esquecer de sua bela afilhada."

Quando foi sair, meu pai o acompanhou.
Não fiquei sabendo naquela época o que eles falaram.
Gabs montou furioso no seu cavalo e partiu em disparada.

Meu pai entrou em casa nervoso.
Só quando desencarnei eu vim a saber que meu progenitor lhe pedira para não nos importunar; que éramos pobres, mas honestos, e que eu não seria amante dele.

De facto, não nos importunou, mas olhava-me cada vez mais.
Eu com medo não disse nada a ninguém.
Dois meses depois, Gabs ainda estava na propriedade.

Permanecia já por muito tempo e meu pai comentou que deveria ser por algum motivo, ou estaria escondendo-se de algum marido ciumento ou de alguma amante inoportuna.

Meu pai foi encontrado morto.
Tinha ele saído a cavalo pela manhã, como sempre fazia, e o encontraram caído com a cabeça machucada.
Comentaram que ele deveria ter sentido mal e caído, porque o cavalo era manso e ele era um excelente cavaleiro.

Porém, o que aconteceu vim a saber muito tempo depois:
Gabs o matou com uma pancada na cabeça e o derrubou do cavalo.
Três dias depois do sepultamento, meu padrinho veio nos visitar.

Gentil, disse sentir muito a morte do meu pai.
"O pai de vocês foi meu melhor empregado.
E vocês dois são moços fortes e valentes que merecem melhorar de vida.

Meu dever é cuidar de vocês.
Sei que sonham em seguir a carreira militar.
Se quiserem consigo para vocês.

O comandante é meu amigo, com minha recomendação serão aceitos e irão se tornar, com certeza, importantes e famosos."

Ana Frida fez uma pausa, suspirou, sorriu ao recordar dos irmãos.
Depois continuou a falar, agora mais calma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:30 pm

- De facto, a carreira militar era o sonho de todos moços pobres, e para meus irmãos camponeses era uma honra.
Gabs falou e os dois ficaram entusiasmados.
"E Ana Frida?" - perguntou um dos meus irmãos.
"Como deixá-la?"

"Ana Frida é minha afilhada.
Todo padrinho tem o dever de cuidar dos afilhados, quando estes ficam órfãos.
Minha esposa pediu para que a levasse a nossa casa e ela será dama de companhia de minha nora."

Diante destes argumentos, pensando que eu estaria bem, meus irmãos dois dias depois partiram felizes com a carta de recomendação, e eu fui para o castelo onde esperaria minha ida para a cidade, para a casa da nora do senhor daquelas terras.

Mas não houve partida para mim.
Fiquei no castelo e cada vez mais assediada por este miserável.

Tratava-me com arrogância e galanteio.
Foi à cidade sozinho, voltou logo com cartas dos meus irmãos que partiram para longe, contentes, e já aceitos na corporação militar.

Acabei amante de Gabs e fiquei no castelo.

Um ano se passou, quando fiquei grávida.
Ele não quis a criança, não queria filhos bastardos.
Chamou ao castelo uma mulher que fazia abortos.

Com medo e muita vergonha, desafiei-o, não queria abortar e levei a primeira e grande surra de minha vida.

O aborto foi feito sem o meu consentimento. Como sofri!
Tudo foi feito para que não mais engravidasse.
Este infeliz me privou de ser mãe.

Novamente outra pausa em que Ana Frida enxugou com as mãos as lágrimas do rosto.
Os dois ouvintes continuaram quietos e ela voltou a falar com a voz enfraquecida pelas recordações.

- Era como prisioneira no castelo, só saía com as ordens dele, se o obedecia, até que não me atormentava.
Mas era jovem, bonita, e ele se ausentava muito.
Acabei apaixonada por um jovem que trabalhava de guarda no castelo.

Era Antonie, tão jovem como eu e muito lindo.
Tornamo-nos amantes.
Nosso romance durou somente oito meses.

Gabs desconfiou ou alguém contou a ele.
Trancou-me num quarto escuro, porque sabia que tinha pavor da escuridão.
Fiquei muito tempo sendo alimentada uma vez por dia.

Quando ele mandou me soltar, soube que o pior aconteceu com Antonie:
morreu pela surra violenta que ele mandou lhe dar.
Foi jogado num buraco onde seus pais o acharam.

Apesar de todos saberem quem foi que o matou ou quem mandou, ninguém se atreveu a falar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Fev 08, 2015 9:31 pm

Os pais dele, inconformados, partiram dali.
Eu fiquei muito triste, apática, e Gabs por qualquer motivo me ameaçava com o quarto escuro.
Gabs então interessou-se por outra menina, uma adolescente de quinze anos, pobre e muito bonita.

Senti revolta, não por ciúmes, mas por saber que a outra ia sofrer tanto como eu.
Avisei a família dela.
Eles partiram escondidos.

Gabs ficou furioso comigo, temi o castigo, a surra e o quarto escuro, mas não me arrependi.
No entanto, em vez disto, ele me mandou para um convento para se livrar de mim.

Meus irmãos pensaram que estava bem.
Nunca tive coragem de falar a verdade a eles, acreditavam que eu trabalhava no castelo.
Gabs os informou que por vocação eu tinha ido para o convento e que lá não podia me corresponder com eles.

Meus irmãos acreditaram.
Não tinha ninguém para me ajudar e fui trancafiada no convento.
Ali fiquei presa, sofri horrores que não vêm ao caso.

Mas a culpa foi dele! Só dele!
Não é justa minha vingança, Frei Luís?
Gabs tomou outro corpo, reencarnou, pensou se proteger nestas paredes, como Frei Felipe, mas eu o achei.
Refugiou-se num convento, porque na sua encarnação anterior ajudou a enchê-los.

Sempre que alguém o incomodava, mandava para um.
Mas eu não o perdoei e são muitos os que não o perdoaram:
os pais de Antonie, muitos empregados, a fileira de jovens que, como eu, foram suas vítimas.
Ele foi mau, muito mau.

- Ana Frida - disse gentilmente Frei Luís -, você no convento não teve oportunidades de aprender os ensinos de Jesus?
Não meditou nos ensinamentos do Evangelho?
Jesus sofreu tanto e não se vingou de ninguém.

- Jesus é Jesus, eu... - falou ela com ironia.
- Frei Luís - disse Kim -, vejo mais.
Ela não nos contou tudo.

Ela bem que gostou de morar no castelo, de ter vestes bonitas e jóias, de ser chamada de patroa.
Humilhava as servas, era exigente e nunca pensou na pobre esposa dele.
Seduziu Antonie e o enganou, nunca amou o pobre rapaz.
E no convento, ah no convento!...

- Cale a boca, moleque! - interrompeu Ana Frida aos gritos.
Cale-se! Quem é você para me dizer isto?

- Continue, Kim - pediu Frei Luís.
Você acusa muito, Ana Frida, julga-se muito credora.
Teme escutar a parte que nos ocultou?
Fique quieta e escute!
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