LUZ ESPÍRITA
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RECONCILIAÇÃO - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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RECONCILIAÇÃO - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho - Página 4 Empty Re: RECONCILIAÇÃO - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:00 am

-Que sentimento lindo é o amor!
Se pudesse, Mariana, queria ser parecido com meu pai.
Se me parecesse com ele, seria mais fácil amar-me, poderia ter o mesmo jeito de andar, de falar, gostar das mesmas coisas.

Mariana sorriu:
-Pode, sim, Raul, vamos providenciar para que você, encarnado, seja parecido com Manuel.

Combinamos alguns detalhes.
Deveria ir mais vezes ao Departamento e marcamos o dia em que lá ficaria para reencarnar.
-Não se preocupe, Raul, dormirá, seu perispírito tomará a forma de um feto e será levado para junto de sua futura mãe.

Saí do departamento convicto de que teria de conversar com minha mãe e contar-lhe minha decisão.
Fui visitá-la. Após agrados, contei que voltaria à carne.

-Raul, Margareth ficou com tudo o que era meu, até você vai ser filho dela!
-Mamãe, não pense assim!
Vamos nos esforçar para amar Margareth.
A maior culpa dela foi ser amante de meu pai, com a senhora ainda encarnada.

E sua colheita não será fácil.
Desencarnarei na adolescência e ela, como mãe, muito sofrerá, terá uma outra filha, que será deficiente.
A dor ensinará Margareth tornando-a mais humana.
Depois, mamãe, Margareth está sendo boa para as meninas, vovó sempre os visita e nos tem dado notícias.

Taís, Telma e Pretinha gostam dela.
E o que é que é nosso realmente?
Que coisa material nos pertence?
A casa foi sua, agora é de Margareth, e no futuro de quem será?

-Tem razão, meu filho, vamos amar Margareth como irmã.
Você a amará mais do que me ama?
-Vou pronto a amar a todos, não amarei ninguém mais do que a senhora.

-Não posso dizer que estou feliz com sua decisão, mas procuro entendê-lo.
Será que Manuel não fará mal a você novamente?
-Não creio, vou confiante e tudo dará certo.
Manuel e eu seremos amigos.

Abraçamo-nos comovidos.
Passei a ir pouco à escola, era com pesar que a deixava.
Queria reconciliar-me primeiro com meu próximo, para depois estudar e me preparar para oferecer-me ao Criador e ser um servidor de Cristo.

Fui a palestras que falavam sobre reencarnação, perdão, amor e li muito sobre estes assuntos.
O tempo passou rápido, a véspera de meu internamento no Departamento chegou.

Dediquei o dia para me despedir de amigos queridos.
Conversei longamente com vovó, ela prometeu-me seguir meus passos quando encarnasse, olhar sempre por mim e incentivar-me nos períodos difíceis.
Despedi-me de mamãe, não pude resistir à emoção e chorei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:00 am

Ela, porém, incentivou-me:
-Raul, o tempo passará logo, estará connosco nova mente dentro de alguns anos e aqui estarei a esperá-lo.
Estudarei, trabalharei, me modificarei para melhor, orgulhar-se-á de mim, quando voltar.
Abençoo você, meu filho, Deus o proteja.

Fui à minha escola querida.
A minha classe, que surpresa, estava toda enfeitada com cartazes, desejando-me êxito, receberam-me em festa.

Um dos meus colegas, Hugo, em nome da turma fez um discurso, animando-me, e finalizou:
-Raul, quando temos bons propósitos o Alto nos abençoa.
Sei, sabemos todos nós, que revestir um corpo físico não é fácil para os que têm consciência da luta que os espera.
A ilusão da carne é prova difícil.

Mas nenhuma circunstância da vida deve nos entristecer.
Escolheu o caminho que julga ser o melhor, vá e seja feliz.
Aqui lembraremos de você como um amigo corajoso, um colega exemplar!

Abracei a todos e ouvi palavras carinhosas e amigas.
O professor abraçou-me rápido, quis lhe falar, agradecer, mas ele saiu da classe.
Tinha ainda duas horas, fui a um local da escola que chamávamos de Recanto do Recolhimento e fiquei a orar.

Este recanto fazia fundos com a lateral, onde havia uma quadra coberta com flores muito bonitas, muitos bancos e muita paz.
Meditei sobre os ensinamentos e agradeci comovido a Deus.
Ao levantar-me, vi o professor Eugénio a me esperar.

-Quero acompanhá-lo, Raul.
Minha intenção era a de ir sozinho, já me despedira de todos, mas não pude negar a companhia de meu mestre querido.
Falamos de assuntos que nada tinham a ver com o que ia fazer, recordamos factos engraçados e nos pusemos a rir.

Logo que chegamos ao jardim do Ministério, paramos.

-Raul, a vida não pára, continua sempre.
Entendi agradecido o que ele quis dizer-me.
Partiria para reencarnar, tinha muitos planos cuja realização dependeria também da vontade e do livre-arbítrio de outros.
Mas nada pára, tudo continua.
A vida desencarnada era para mim maravilhosa, porém necessitava de um período reencarnado como continuação de vida.

-Sei, professor, que não gosta de muitos agradecimentos;
sou-lhe grato, o senhor ajudou-me sempre que necessitei. Obrigado!
-Minha recompensa é ver meu ensino dar frutos nas acções dos meus pupilos queridos.
Estou orgulhoso de você, Raul, faz o que eu faria se estivesse em situação parecida.
Foi um prazer conviver com você.

Abraçamo-nos ternamente, saí quase a correr pelo jardim e, ao chegar à porta, olhei para trás, o professor Eugénio não estava mais lá.

Esperançoso, entrei.
Mariana estava a esperar-me alegre como sempre, foi receber-me.

Logo mais, adormeci.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:01 am

REENCARNADO

Aguardava ansioso a chegada de meu pai para acompanhar-me à escola, era meu primeiro dia de aula.
Completara sete anos na semana anterior e recordava com alegria minha festa de aniversário, em que recebi meus amiguinhos e ganhei lindos presentes.

Estávamos na sala, sentara-me no tapete para esperar meu pai, Pretinha arrumara-me cuidadosamente e eu ficara pronto bem antes da hora.
Mamãe Margareth e Pretinha estavam sentadas no sofá conversando, e Valquíria, minha irmã, estava deitada no chão, quieta, com uma de suas bonecas quebradas.
Valquíria quebrava todos os seus brinquedos, até os meus se os pegasse, parecia que gostava de vê-los quebrados, principalmente as bonecas.

-Ricardo é lindo, dona Margareth!
Ao ouvir Pretinha dizer meu nome prestei atenção no que conversavam, sem deixar, entretanto, de continuar a mexer no meu estojo novo.
-É verdade, Pretinha - disse mamãe, toda orgulhosa -, não é só bonito, como educado e bondoso;
só escuto elogios quando as pessoas se referem a ele, sou orgulhosa do meu filho.

-É tão parecido com o senhor Manuel, tem o mesmo jeito de andar, de falar, gosta das mesmas coisas de que o pai gosta.
-Pretinha, quando fiquei grávida de Ricardo, Manuel ficou nervoso, não queria menino.
Quando Ricardo nasceu, até temi que ele não gostasse do filho;
Taís e Telma gostaram tanto do irmão, lembra-se, Pretinha?

Não ficaram com ciúme e todos, ao ver o nené, diziam que era parecidíssimo com o pai.
Manuel ficou tão estranho, desconfiado, não conseguia entendê-lo, não queria nem pegar o menino.
De tanto insistir, ele o pegou.

Ricardo chorava e ficou quieto no colo do pai:
Manuel gostou de ter o menino nos braços.
E assim foi, toda vez que Ricardo chorava, o pai o pegava, ele parava.

Sorria sempre para o pai, a primeira vez que bateu palminha foi para ele, como as primeiras sílabas foram pá-pá.
Graças a Deus, Manuel esqueceu a antipatia pelo menino e, com o tempo, passou a gostar de Ricardo.
Também Ricardo agrada tanto ao pai, faz tudo o que ele quer!

-Ricardo é assim com todos.
Não tenha ciúme, dona Margareth.
Ricardo a ama muito também.
-Sei disso, Pretinha, e não tenho ciúme.
Queria que Valquíria fosse como ele.
Ainda bem que ela está quieta hoje, assim terminarei esta toalha do enxoval de Taís.

-Taís casará no mês que vem.
Ela será feliz, Márcio a ama tanto!
Dona Margareth, quando a senhora casou com o senhor Manuel, temi pelas meninas, pensei que não fosse dar certo.

Bobagem minha, somos todos tão felizes!
Taís e Telma gostam tanto da senhora e dos irmãos!
A senhora é boa madrasta e vivemos bem todos esses anos...

-Tem razão, Pretinha, deu certo.
Gosto das meninas como se fossem minhas filhas e tenho feito tudo o que posso por elas.
Com você também deu certo, não é, Pretinha?
Não casou, mora connosco como se fosse da família, gosto de você e sei que nos ama muito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:01 am

É feliz connosco, não é?
O que nos impede de sermos totalmente felizes é Valquíria;
é tão feia, esquisita, débil mental.

Confesso, Pretinha, que às vezes tenho vergonha dela.
Tantos médicos consultados, nenhuma esperança de cura, dizem que irá melhorar, poderá falar sílabas.
Sílabas, Pretinha, não frases; e que com exercícios andará!

Acho que irá ficar cada vez mais feia.
Olho para ela e dói-me o coração.

-A senhora não deve se envergonhar de sua filha, dona Margareth.
Valquíria é doente, Deus sabe o porquê, não entendemos e perguntamos tanto por quê.
Deve ser justo e para o bem dela.
Eu gosto dela como é, e acho que devemos amá-la mais por ser assim!

Observei Valquíria; era feia, realmente.
Tinha quatro anos, balbuciava somente, gritava muito e também babava.
Não andava, ficava onde a colocávamos, gostava de ficar no chão, às vezes se arrastava, deitada.

Era loura, tinha cabelos ralos, cabeça pequena, olhos puxados e lábios grossos.
Não fazia nada sozinha, só brincava e que brava suas bonecas.
Pretinha cuidava dela, trocava-lhe as fraldas, dava-lhe banho e alimento na boca.

Valquíria tinha crises nervosas, chorava e gritava batendo as pernas e braços, e não conseguíamos nunca saber o porquê.
Quando começava a chorar, tínhamos que acudir, senão ela acabava se machucando.

Mamãe e Pretinha passaram a falar do bordado da toalha.
Observei minha mãe;
era linda, estava sempre bem arrumada e bem vestida.

Ia frequentemente ao cabeleireiro e à costureira, saía para visitar amigas e participava de festas.
Pretinha era quem administrava a casa, tomava conta de tudo, principalmente de nós, minha irmã e eu.
Tínhamos três empregadas para fazer todo o serviço e, mesmo com Valquíria fazendo muita bagunça, a casa era muito bem arrumada.

Em casa, não havia brigas, tinha duas irmãs mais velhas a quem amava muito, eram lindas e bondosas.
Taís, a mais velha, ia se casar logo, e meu cunhado, Márcio, era bom moço, trabalhador, papai gostava muito dele, tinha um posto de gasolina.
Telma namorava firme Carlos, que estudava medicina, e iam casar logo que ele se formasse.

Elas não eram filhas de minha mãe, só de meu pai com sua primeira esposa, que havia morrido.
Elas chamavam minha mãe de Margareth, não de mamãe, e eram muito amigas, nem pareciam madrasta e enteadas das histórias que se ouve por aí.

-Ricardo, está pronto? Vamos?
Era papai que viera para levar-me à escola.
Corri e fui beijar Valquíria, ela sorriu, sorria sempre para mim.

Depois beijei mamãe e Pretinha e segurei firme a mão que meu pai carinhosamente me estendera.
De mãos dadas, percorremos o curto trajecto até a escola, senti-me confiante e orgulhoso dele.
Deixou-me na porta da escola e despediu-se, beijando-me a testa.

-Ricardo, comece hoje, meu filho, a aprender para ser alguém importante no futuro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:01 am

Entrei na classe confiante, a escola parecia satisfazer todas as minhas expectativas de aprender.
Decepcionei-me com o passar do tempo, ela não era bem o que ansiava encontrar.
Mas amava estudar, aprender, e fazia tudo com facilidade.

O tempo passou, crescia forte e sadio, em casa tudo ia bem.
Taís e Telma casaram. Taís morava perto de casa, estava sempre connosco e tinha dois filhos lindos.
Telma fora morar em outra cidade e vinha visitar-nos sempre.

Valquíria não fizera progresso, não aprendera a caminhar bem, andava muito pouco, com dificuldades, e caía muito;
gostava muito dela e ela de mim.
Quando tinha crises, eu corria e abraçava-a, falava com ela, contava histórias.

Ela abraçava-me forte e muitas vezes batia em mim, dando pontapés, tapas.
Não importava, nunca me machucou, não tinha forças, abraçava-a mais forte e acabava por acalmá-la.

Só eu conseguia fazer isso, acalmá-la com carinhos.
Sempre que ela me via, sorria e chamava-me de "Ri-Ri".

Ia completar dez anos, meu pai perguntou-me o que queria ganhar de presente.

Há tempos tinha vontade de ter um carrinho e respondi, sem hesitar:
-Um carro de boi!
-Carro de boi? - exclamou mamãe.
Que presente estranho, nem se usa mais esse tipo de transporte!

Expliquei como queria e meu pai prometeu procurar e dar-me de presente.
No dia do meu aniversário, ganhei-o logo cedo, agradeci contente, porque sabia que meu pai havia procurado muito.
Sentei-me no chão e pus-me a brincar com ele.

Quando meu pai saiu, deixei-o de lado e Pretinha me disse:
-Não era isso o que você queria, Ricardo?
-Sonhava com um diferente, Pretinha.
-Tenho um no meu quarto, que guardo de lembrança.
Vou mostrá-lo, venha comigo.

Pretinha dormia num quarto ao lado da cozinha.
Entramos.

-Pretinha, lembra-se de quando eu dormia aqui?
-Ricardo, que ideia, nunca dormiu aqui.
-Nem quando estava doente, Pretinha?
Lembro que dormi aqui.

-Nunca dormiu aqui, nem quando estava doente ou era pequeno.
Você está imaginando. Está confundindo.
Olha, aqui está o carro de boi.

-Que lindo, Pretinha!
Puxa, é bem assim que eu queria, mas não anda, foi quebrado e consertado.
Queria um como este, mas que andasse.
Por que guarda como lembrança, de quem era?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:01 am

-Este carrinho era de seu irmão que morreu, foi presente da avó dele.
Raul gostava tanto dele que, quando morreu, guardei-o de lembrança.
Estranho, Ricardo, não sei, gosto dos dois da mesma forma, não sei dizer de quem gosto mais.
Embora Raul tenha morrido há tanto tempo, sinto-o perto de mim e continuo a querer bem a ele.

-Sou parecido com ele, Pretinha?
Como era Raul?
Ninguém daqui de casa gosta de falar dele.
-Raul era fisicamente diferente de você, porém você tem algo dele que não sei bem o que é.

-Tome-o, Pretinha, guarde-o novamente, lembrança “lembrança!
Depois, acho que foi tolice minha querer um carro de boi, nem nunca vi um de verdade...

Naquela tarde, escutei Taís comentar que ia ao cemitério visitar o túmulo de sua mãe.
Insisti com ela para que me levasse.
Acompanhei Taís na visita ao cemitério e achei tudo muito estranho, nunca tinha ido lá.

Paramos na frente de um túmulo e li os dizeres da placa de bronze.
Ali estavam sepultados Manuela e Raul.
Taís colocou flores e orou. Observei tudo, curioso.

-Por que vem aqui, Taís?
Nada tem aí, só esqueletos.
-Ora, Ricardo, é costume, venho orar.
-Não é melhor orar em casa?

Taís não respondeu e pensei:
"Não volto mais aqui, que lugar sem graça, acho que nem a mãe de Taís, nem Raul, estão por aí".
-Taís, conte-me o que aconteceu com eles.
-Ricardo, papai não gosta que falemos desse assunto.
-Por quê?

-Acho que sofreu muito e não gosta de recordar.
Ele fez tudo para que Telma e eu sofrêssemos o menos possível, foi uma tragédia.
Ele sempre fez tudo para que não sentíssemos a falta deles e tem sido tão bom!

-Papai não está aqui, nem precisará saber.
Taís, conte, vamos!
-Está bem, vou contar.
Era muito pequena nem lembro direito.

Um dia, Telma e eu fomos ao ensaio do coral e Pretinha foi levar-nos.
Mamãe ficou com Raul.
Não sei por que, ninguém sabe o que pode ter acontecido, pois saíram, foram mortos e jogados num poço.

-Que poço, Taís? - interrompi.
-Não existe mais, tamparam-no logo após.
Quando o ensaio terminou, não os encontramos em casa, procuramos por toda parte e não encontramos.
Chamamos papai no armazém, já era de noite, ele chamou a polícia e todos saíram a procurá-los, os vizinhos, parentes e amigos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:02 am

Por dois dias consecutivos de aflição, procuramo-los.
Eles haviam fechado a casa, não levaram nada.
Em casa não havia sinais de violência, não faltava dinheiro e não tínhamos pista alguma.

Até que um lavrador, ao passar perto do poço, sentiu um cheiro desagradável, olhou para dentro dele e os viu; foi tudo muito triste.

-E o assassino, foi o danado do Louco?
-Sim, ele os matou e jogou-os ali, no poço.
-Você o conhece, Taís?
-Eu! Que pergunta, Ricardo, claro que não, ele é um assassino cruel!

-É também um homem, filho de Deus.
-Ricardo!
-Não tem curiosidade de saber como é ele, odeia-o?

-Não odeio, perdoei como todo cristão deve perdoar.
Não tive vontade de conhecê-lo, e por que o faria?
Ele matou friamente minha mãe e nosso irmão.
Raul seria um homem, agora.

- Se ele não morresse, eu não estaria aqui.
-Por que, Ricardo?
-Ora, se meu pai não ficasse viúvo, não casaria de novo e eu não nasceria.
-É. De facto é isso.

Não falei mais nada, sabia que o Louco estava preso na cadeia da cidade e fiquei curioso em conhecê-lo, tanto que por semanas fixou-se em mim essa ideia, só pensava nela.

Até que surgiu uma oportunidade.
Por ter faltado uma professora, fomos dispensados.
Não hesitei, fui à delegacia que era no mesmo prédio onde ficavam os condenados.

O senhor António, o delegado, era um senhor simpático, bondoso, e os comentários sobre ele eram de que era muito humanitário com todos.

Gaguejei ao falar o que queria:
-Senhor António, vim visitar, ou melhor, conhecer o Louco.
-Sabe, menino, que ele matou seu irmão?

-Sei sim, senhor.
Só quero vê-lo, saber como é.
-Venha comigo, mostro-o a você.

Não gostei nada da cadeia.
Lugar triste, cómodos pequenos e fechados, com grades grossas.
O sol não entrava muito por ali, o ar era húmido e não havia muita claridade.

-Aqui está o Louco - disse o senhor António.

Olhei bem, a cela era pequena e tinha poucas coisas:
uma cama, uma mesa e uma cadeira. Ele estava sozinho.
O Louco era um homem magro, abatido, louro e barbudo, estava vestido com roupas velhas, porém limpas.
Olhou-me, seus olhos eram azuis, muito azuis.
Não sei por que senti que ele sofria e não me pareceu mau, nem assassino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:02 am

-Olá, como vai? - disse-lhe.
Ele não respondeu e virou-me as costas.
-Ele não fala? - indaguei ao senhor António.
-Logo que veio para cá, falava muito, às vezes por horas seguidas, depois foi se aquietando, hoje fala muito pouco.

-Ele recebe visitas?
-Não, nunca recebeu, foi abandonado por todos, nunca soubemos se ele tem família.
-Coitado! - exclamei e logo me arrependi.
Que pensamento faria de mim o delegado ouvindo dizer que era "coitado" o assassino de meu irmão!

Levantei a cabeça e encarei-o.
O senhor António sorriu para mim.
Nos seus olhos vi que ele também partilhava do meu sentimento.

-Obrigado, senhor António.
Se pudesse fazer mais um favor, não diga a ninguém que estive aqui, vim escondido.
-Não falarei a ninguém.

Conheci o Louco, mas não sosseguei.
Ficava a pensar nele lá, sozinho, talvez passasse frio, tendo falta de roupas e de alimentos, como doces e frutas;
fiquei a planear como faria para visitá-lo de novo e ajudá-lo.

Meu pai trabalhava muito e não ficava em casa durante o dia, mamãe saía muito e, quanto a Pretinha, era fácil enganá-la.
Tinha o costume de dizer sempre aonde ia e só saía com permissão.
Não queria mentir, sabia que nunca iam deixar-me ajudar o Louco e estava cada vez mais com vontade de fazê-lo.

-Pretinha! - disse e virei-me de costas para ela, para que não desconfiasse.
Tenho um colega na escola bem pobre, coitado, é maior que eu, bem magro, resolvi ajudá-lo.
Você arruma umas coisas para dar a ele, um cobertor, roupa de cama, toalha de banho e roupas?

Só que as minhas não servem, nem as do papai, só se você as encurtasse;
vou levar doces e frutas para ele hoje à tarde.

-Tantas coisas assim?
Que ideia estranha, Ricardo, levar doces e roupas de cama.
Já falou com sua mãe?

-Meu colega vai ficar envergonhado se os outros souberem que o estou ajudando, gostaria de dar-lhe um agasalho e um cobertor.
Não precisa dizer nada à mamãe, só arrumar para mim.
-Sem ordem de sua mãe, não arrumo!

Insistia com ela, quando papai entrou e levei um susto:
-Que quer, Ricardo, amolar Pretinha?
-Não senhor, papai, estou pedindo para arrumar umas coisinhas para eu dar a um menino pobre da minha escola.

Nem sei como consegui mentir, e meu pai nem percebeu que falara meio engasgado.

-Como você é bom, filho!
Quer ajudar um coleguinha?
Pode dar a ele o que quiser.
Pretinha, deixe-o ajudar os pobres.
Se quiser, Ricardo, vá ao armazém e pegue um agasalho, recebemos uns bons, porém simples.
-Obrigado, pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:02 am

Papai saiu e eu disse a Pretinha:
-Papai deixou, agora arrume tudo o que lhe pedi.

Pretinha olhou-me desconfiada, conhecia-me bem, sabia que mentia e que a história que contava não devia ser bem assim.
Fui à escola e após a aula passei pelo armazém e peguei um agasalho grosso do tamanho que achei que serviria nele.
Ao chegar em casa, Pretinha tinha arrumado tudo o que pedira, menos o cobertor.

-Não temos em casa para dar, Ricardo, usamos muitos para Valquíria.
Nada respondi.
Entrei no meu quarto, peguei então um do meu armário, era grosso, bom e o esquentaria naquele lugar frio.

Escondi-o no saco com as outras roupas.
Não queria que Pretinha visse que ia levar meu cobertor novo.
Às duas horas, resolvi levar.

-Ricardo -disse Pretinha -, não é muita coisa para você levar sozinho?
Quer que vá junto?
-Levo fácil, Pretinha, não é muito.

Andei depressa, olhando para os lados, certificando-me de que nenhum conhecido me veria.

-Boa tarde, senhor António, vim trazer algumas coisas para o Louco.
Se autorizar, fico-lhe agradecido.
-Puxa, quanta coisa!
Seus pais sabem disso?

-Bem, mais ou menos, sabem que isto é para um pobre;
só não contei quem é o pobre, também não perguntaram.
Só o senhor sabe, mas guardará este segredo, não é?

O senhor António riu.
-Está bem, será um segredo nosso.
Venha, abro a porta para você entrar na cela, aliás, ela nunca fica trancada.

-Não fica?
-O Louco nunca quis fugir.
Com a porta aberta ou fechada, não chega perto da grade.

Entrei na cela com o senhor António.

-Boa tarde, "seu" Louco!
Ele virou-se para mim, sua fisionomia não se alterou.
Olhou-me somente, continuei a falar, todo prosa:
-Chamo-me Ricardo, vim visitá-lo e trouxe umas coisas para você.
Goiabada, bolachas e frutas, gosta?
Aqui está, lençóis, toalhas e um cobertor, é quente!
Veja estas roupas!

O Louco olhava para tudo o que eu tirava do saco e sorria para mim.
Fiquei tão feliz com seu sorriso que me senti recompensado e achando que a mentira não fora assim um acto ruim.
Pegou um pedaço de doce e comeu educadamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:02 am

-Bem, agora tenho de ir, até logo.
E para espanto do delegado, ele falou:
-Obrigado.

Fui embora feliz, tão feliz que Pretinha logo notou!
-Puxa, Ricardo, levar aquelas coisas para seu amigo fez-lhe bem, faz tempo que não o vejo tão alegre.
Às vezes sinto-o triste, não sei por quê. Você sabe?

-Não sei, Pretinha, sinto falta de um lugar e não sei nem onde é.
Queria ir para uma escola diferente, mas não sei explicar como.
Anseio por ir embora e nem sei para onde.

-Complicação de menino, isso passa, deve repetir o que fez hoje, é tão bom vê-lo contente.
"Repetir!" Pretinha deu-me uma ideia, ia voltar a visitar o Louco e levar-lhe alimentos e doces, muitos doces.

-O que tem de fazer, Ricardo, é estudar muito, se quiser ser doutor, e um dia irá estudar em outra cidade disse Pretinha, saindo da sala, deixando-me sozinho.

Pensei:
"Por que será que sinto saudade de coisas que não entendo bem o que são?
Queria frequentar uma escola cheia de amigos, com professores que entendessem seus alunos, onde houvesse respeito e não existissem brigas.

Será que existe uma escola assim?
Onde? Por que será que sinto saudade e não consigo saber de onde?
Acho que é melhor não pensar mais nisso e sim saber como fazer para visitar o Louco novamente".

Pensei, pensei e achei que na quinta-feira seria o ideal:
à tarde mamãe ia tomar chá com suas amigas, era dia de fisioterapia de Valquíria e Pretinha ficava muito ocupada.

Sairia de casa sem problemas.
Pretinha logo descobriu a falta do meu cobertor, tive que contar a ela que o dera ao meu amigo;
ela ralhou comigo, mas não contou à mamãe, atendendo a meu pedido.

Na quinta-feira fui visitá-lo novamente e levei o que tinha pronto na minha casa:
bolo, bolacha, doces e frutas.
Conversei, ou melhor, falei, ele escutava-me somente, pareceu gostar de me ver.

Quase todas as quintas-feiras ia visitá-lo, parecia que alguém me ajudava a sair, pensava, era Deus que aprovava o que fazia, parecia até que tudo me era facilitado em minhas saídas!

Ninguém contara aos meus e eles nunca se interessaram por meu amigo pobre para quem levava ajuda.
Dizia em casa, em tempo de aula, que ia fazer trabalho em grupo, ou ia à biblioteca;
nas férias, que ia à casa de amigos e até mesmo que ia brincar no fundo do quintal, desculpando-me que não queria ver Valquíria fazer exercícios, depois acertara na escolha do dia.

Mamãe saía e Pretinha ficava ocupada com Valquíria;
minha irmã dava um trabalhão para fazer os exercícios.

O senhor António e os poucos soldados comprometeram-se em não dizer nada a ninguém.
E, assim, fui visitando o Louco.
Papai dava-me dinheiro, dava-me tudo o que pedia e com minha mesada comprava o que achava que fazia falta a ele.

Às vezes levava também algum agrado aos outros presos, mas os outros estavam sempre a reclamar, não me interessava em conversar com eles e sim com meu amigo.
Nas primeiras visitas, meu estranho amigo respondia com a cabeça ou com monossílabos e eu falava por nós dois, contava-lhe acontecimentos ocorridos comigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:03 am

Uma vez perguntei:
-Gosta de mim, Louco?
Respondeu que" sim", afirmando com a cabeça.
Continuei:
-Somos amigos então, diga-me seu nome, não se chama Louco, não é?

Ele olhou-me triste, arregalou mais os olhos e não respondeu.

"Talvez não saiba, não se recorda" - pensei.
-Não faz mal, amigo, deve ter esquecido, todos o chamam de Louco e esse apelido não é tão ruim assim.
Ele sorriu e indaguei mais:
-Louco, sabe rezar? Não!
Quer aprender? Vou ensinar-lhe.

Recitei devagar a prece do Pai-Nosso, ele gostou, então resolvi ensiná-lo não só a orar, mas também uma religião, a que frequentava, a católica.
Passei a levar livros e ler para ele, contei-lhe a vida de Jesus muitas vezes, lia um Evangelho para crianças, com lindas gravuras.
Acabei dando o livro para ele, porque meu amigo gostava muito e, como me disseram, passava horas a folheá-lo.

Quando me via, ele sorria feliz, prestava muita atenção em tudo o que eu lhe dizia.
Um dia me fez uma surpresa:
logo que entrei na sua cela, disse devagar, com sua voz estranha, desafinada:
-Ricardo, sei orar sozinho.

E recitou, com emoção, a prece do Pai-Nosso e da Ave-Maria!
-Que beleza, Louco! Rezou direitinho!

Não falou mais e nunca mais repetiu alto as orações.
Com gestos ele me fez entender que orava todos os dias.

Três anos se passaram...
Encontrei-o gripado naquela semana;
achei-o desanimado e triste, mas pensei que logo sararia.

Mas, na segunda-feira, quando ia para o colégio, encontrei na esquina o senhor António, o delegado.
Ele me chamou. Fui até ele.

-Ricardo, estava à sua espera.
O Louco está doente e quer ver você, não está bem seu amigo.
Chamamos o médico, está medicado, porém não reage à medicação.
Pediu-me para chamá-lo, avisar você.

-Obrigado, senhor António, vou logo que puder.
Entrei na sala de aula aborrecido e preocupado, segunda-feira era um dia difícil de sair de casa, tinha de inventar uma boa desculpa.
Não conseguia prestar atenção à aula.

-Ricardo, que tem?
Está doente? -indagou o professor logo após o recreio.
Sem muito pensar, respondi:
-Sim, estou, quero ir embora.

A directora foi comunicada e deu-me autorização na hora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:03 am

-Pode ir, Ricardo, você quer que o acompanhe?
-Não, senhora, vou sozinho.

Ser um bom aluno, aplicado, tinha lá suas vantagens, ninguém duvidou de mim.
Senti um pouco de remorso por mentir, mas como contar que ia visitar o assassino de meu irmão e que era amigo dele?
Saí rápido do colégio e, para que ninguém desconfiasse, contornei o quarteirão e fui rápido para a delegacia.

-Senhor António, que tem o Louco? - indaguei.
-O estado dele é grave, começou como se fosse uma gripe, comprei remédios, mas não adiantou.
Ontem, chamei um médico para examiná-lo e foi constatada uma pneumonia em estado avançado.
Recomendou-nos que o internássemos num hospital, porque está fraco e debilitado.

Ao escutar que era para o levarmos ao hospital, ele chorou e, para nosso espanto, falou frases e pediu-nos:
"Senhor António, por favor, não me leve ao hospital.
Aqui vivi tanto tempo e aqui quero morrer.
Tenha dó de mim, deixe-me aqui, não quero ir para outro lugar".

-O médico disse-me que dificilmente ele sobreviverá, porque seu coração está fraco e falhando.
Aqui é seu lar, ficou preso tanto tempo que quer ser liberto na sua cela.
Sim, Ricardo, liberto do corpo e da prisão.

Corri pelo corredor para ver meu amigo, a porta estava aberta, como sempre.

Estava deitado e, ao verme, sorriu e exclamou:
-Amigo!
Estava vermelho pela febre e respirava com dificuldade.
-Louco, como está?
Vai melhorar logo, amigo. Ore!

Orei, contei alguns pedaços da vida de Jesus que sabia de que mais gostava, o nascimento do Mestre em Belém, a parábola do "Senhor da Vinha" e a do "Lázaro e o Rico".

Fiquei com ele, até a hora em que terminava minha aula.
Despedi-me dele, sorriu e nos seus olhos havia gratidão.

Nem consegui almoçar direito, só pensava nele, tive vontade de vê-lo novamente e acabei dizendo Pretinha:
-Vou à casa de um colega levar um caderno, ele faltou à aula hoje e tenho de passar-lhe a lição.
-Está bem, Ricardo.

Fui depressa ver meu amigo.

Senhor António, ao ver-me, foi dizendo:
-Ricardo, que bom que você voltou!
O médico acabou de sair, chamei-o novamente, porque logo que você saiu, de piorou e está mal.
Esperamos que venha a morrer a qualquer instante.

Entrei na sua cela e chamei-o:
-Louco, Louco, sou eu, Ricardo.

Com esforço ele abriu os olhos, olhou-me, desta vez não sorriu, duas lágrimas correram por seu rosto.
Sentei-me na sua cama e o senhor António na cadeira.
Peguei a mão dele, tentou olhar-me novamente, suas pálpebras abriram só um pouquinho para depois se fechar novamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:03 am

Sua mão estava gelada e ele respirava com muita dificuldade.
Alguns minutos se passaram e, de repente parou de respirar, aquietou-se suavemente.
Olhei para o senhor António.

-Ele morreu, Ricardo, foi libertado.
Estava com treze anos, nunca vira ninguém morrer, mas não me impressionei.
Doeu-me, porém, a ideia de que não ia ver mais meu amigo.
Comecei a chorar e fui consolado pelo delegado.

-Ricardo, não chore, foi melhor para o Louco, deixe seu amigo partir em paz.
Não devemos chorar quando a vida de um amigo melhora...

Acalmei-me.
-Vou embora e não volto mais aqui.
Obrigado, senhor António, obrigado por tudo.
-Não quer ficar com alguma coisa dele de lembrança?

"Lembranças... Basta-nos o que fica no coração" pensei.
-Não, senhor, não quero, obrigado.
Fui embora aborrecido e só me senti melhor após ter orado muito por ele.

No outro dia, meu pai comentou:
-Ontem morreu o Louco, foi enterrado hoje.
O delegado e os soldados compraram um caixão e fizeram-lhe o enterro.

Ninguém comentou nada.
Senti meu coração doer, porém naquela hora tive certeza de que meu amigo estava bem.
Corpo, caixão, enterro, isso não devia interessá-lo, nem a mim tampouco.

Depois de um tempo, Pretinha comentou:
-Ricardo, não vai ajudar mais aquele seu amigo?
Não sai mais às quintas-feiras, o que aconteceu?

-Meu amigo, Pretinha, mudou-se.
Para onde foi não necessita mais de minha ajuda, e o grupo de estudo das quintas-feiras foi desfeito.
-Que bom, Ricardo, poderá ajudar-me nos exercícios que dona Eliza vem fazer com Valquíria, ela só se acalma com você!

O tempo passou, vivíamos felizes, tendo problemas comuns, solucionáveis, como todos os encarnados têm.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:03 am

DE REGRESSO

Completei dezasseis anos, meus pais fizeram uma grande festa e a casa encheu-se de amigos.

Gostava de todos e era querido por eles.
Era motivo de alegria e orgulho para meus pais, principalmente para meu pai.
Sentia uma alegria que não conseguia entender ao sentir que meu pai me amava e não entendia bem o porquê de querer tanto que ele me amasse e de ter sempre necessidade de agradá-lo e de fazer tudo o que ele queria, com carinho.

Às vezes minha mãe comentava esse facto, agradava-a também, mas era meu pai a pessoa a quem mais tinha vontade de agradar e alegrar.
As aulas iam começar logo, cursava o segundo ano do curso técnico em contabilidade.

Aproveitava os últimos dias de férias;
porém, não ficava à toa, ajudava meu pai no armazém;
nas férias ia o dia todo;
no tempo de aula, ia à tarde.

Trabalhava no escritório do armazém e já fazia trabalho de responsabilidade.

Papai sempre dizia, orgulhoso:
-Você, Ricardo, é o filho que todos os meus amigos queriam ter.
Tomávamos café naquela manhã de sábado, estava contente, acordara feliz e tranquilo.

Pretinha disse:
-Ricardo, já é tempo de pensar o que irá estudar, lerá de ir para outra cidade.
-Você deve estudar para ser doutor - disse mamãe.
É estudioso e inteligente, que tal ser médico como Carlos, filho?

-Não sei - respondi, desinteressado.
-Não sabe nada este menino - resmungou Pretinha.
-Ora, não resolvi, não sei se continuo a estudar ou fico ajudando papai.

Papai sorriu:
-Ricardo, meu filho, estou forte ainda, e não sendo velho posso tomar conta de tudo sozinho.
Você tem de pensar no seu futuro e fará o que achar melhor.
Quando minha primeira esposa morreu, reparti o que era dela entre as meninas, elas estão bem financeiramente e muito bem casadas.

Valquíria nunca poderá ter nada.
O que é meu será seu, o armazém, esta casa.
Se gosta deste trabalho fique comigo, mas se quiser ser doutor, vá estudar, a escolha deve ser sua.

-Obrigado, pai.
Quero pensar bem para resolver.
-Tem tempo, faltam dois anos para se formar.

Meus pais saíram e Pretinha voltou a insistir:
-Ricardo, não consigo entendê-lo, às vezes você parece tão estranho!
Já notou que não fala no futuro?
É como se ele não existisse para você, não faz planos, não quer casar, nem pensa em namorar. Por quê?

-Sei lá, não queira respostas que não sei dar.
Por que acha estranho?
Só porque não sei se vou continuar a estudar ou não?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 06, 2014 11:03 am

É como papai disse, tenho este ano e o outro ainda, tenho tempo para pensar.
Quanto a namorar, acho, Pretinha, que não me convém agora, sinto-me menino ainda;
depois, quando for embora, não quero deixar garota nenhuma sofrendo por mim.

-For embora?
Vai então estudar em outra cidade?
Por que diz sempre isso, Ricardo:
"Vou embora", "quando partir"?

-Eu sei lá, Pretinha, você está me confundindo com tantas perguntas!

Saí da cozinha, fiquei na varanda esperando pelo meu pai para irmos ao armazém.
Aos sábados abríamos o escritório só pela manhã, à tarde estaria de folga.

Fiquei a pensar:
"Será que Pretinha tem razão?
Seria eu diferente dos outros garotos porque não gostava de pensar no futuro, nem de fazer planos?
Por que essa sensação de que ia partir, de que ia embora e não sabia para onde?

Às vezes, principalmente nos últimos meses, parecia que me despedia de tudo e de todos.
Tinha a impressão de que ia mudar.
Para onde? ”Indagava-me confuso.

Achei melhor esquecer essas esquisitices e pensar noutra coisa, isso só poderia ser crise de adolescência, como dizia Taís, bem-humorada.
Fomos ao escritório, regressamos para o almoço, estava um dia muito quente que prenunciava tempestade.
Papai almoçou, saiu e logo voltou.

-Ricardo - disse ele -, vou a um sítio aqui perto, quer vir também?
Ofereceram-me para que o compre, quero ver o local e se as terras são boas, ajudará a opinar, voltaremos logo.
Joaquim e Pedro irão connosco, venha!

Joaquim e Pedro eram empregados de papai e amigos, gostavam de passear, sair com ele.
Eu também gostava de sair com meu pai, apreciava o campo, e o convite entusiasmou-me.

-Quero, vou sim.
-Cuidado, devemos ter tempestade logo mais, está tão quente! - disse mamãe, quando nos despedimos.

Fomos de jipe, conversávamos animados.
Logo chegamos, demos uma volta pelo local, papai observava tudo o que o sítio possuía, a qualidade da terra, e eu, a beleza das árvores, o capim verdinho.
O calor aumentava, o ar, que parecia parado, começou a se movimentar com o vento, que ficava cada vez mais forte;
grossas e escuras nuvens cobriam o céu.

Paramos na sede.
Havia pouca coisa ali, parecia tudo abandonado fazia tempo.
Havia uma casa, uma estranha e velha casa, pintada de amarelo, era uma construção comprida e, de onde estávamos, só víamos uma porta e poucas janelas, todas fechadas.

-Esta é uma velha casa de sítio - disse Joaquim -, não dá para aproveitá-la, está em ruínas.
-Vou vê-la antes da chuva - disse meu pai -, tenho a chave da porta.
-Vou junto - disse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:36 am

-Não, Ricardo, você fica, está de ténis e com tanto mato perto dela pode ter bichos, cobras.
Fique aqui e não saia do jipe, volto logo.
Que falta de gosto construir uma casa comprida assim!

Papai entrou na casa e relâmpagos fortes começaram a riscar o céu, seguidos do barulho dos trovões.
Um relâmpago clareou-nos mais forte e fez com que estremecêssemos.

-Caiu perto, Ave Maria - disse Pedro.
-Fogo, fogo! - disse Joaquim.
O trovão nos ensurdeceu.
O raio caíra na parte da frente da casa e o fogo se alastrava rápido pelo telhado.

-Meu pai! - gritei.
Pulei do jipe e corri, entrei na casa, vi as labaredas no telhado e a fumaça tomando conta do local, impedindo-me de enxergar direito.
Aflito, gritando por meu pai, fui passando de um cómodo a outro, observando se papai não estava caído no chão.

A casa não estava totalmente vazia, havia móveis antigos, cestas, ferramentas, e para meu desespero ele não respondia.
Nem sei bem por quantos cómodos passei.

Quando o vi, estava tentando levantar-se, um pedaço do telhado caíra sobre ele.
Estava sujo, empoeirado, ferira a cabeça e seu ferimento sangrava.
Ajudei-o a levantar-se.

-Vamos, pai, saiamos rápido daqui, logo o telhado vai desabar.
A porta dos fundos? Podemos ir por ela?
-Não, está trancada.
Temos que ir pela frente - falou papai com dificuldade, a fumaça começava a sufocar-nos.

Abracei papai, coloquei seu braço esquerdo nos meus ombros, com meu braço direito firmei a sua cintura e fui arrastando-o para a saída.

Esforçava-me ao máximo; meus olhos ardiam e eu tossia.
A fumaça me impedia de ver direito, tropeçava pelos escombros.
Papai era alto e forte, estava com alguns quilos a mais, contudo não chegava a ser obeso.

Comecei a sentir-me tonto e vi que papai se esforçava para andar e respirar;
aqueles poucos metros me pareciam quilómetros, as chamas já desciam do telhado para as janelas e pelos objectos que estavam no chão.

Procurando ter cautela, fomos andando, tentando desviar do fogo e chegar à porta.
Quando chegamos ao cómodo da frente, senti-me quase aliviado e tive medo.

O fogo ali era maior, reuni minhas forças e gritei:
-Joaquim, Pedro!

Estávamos quase chegando à porta, faltavam poucos passos, uma parte do telhado em chamas desabou, só tive tempo de dobrar o corpo e proteger meu pai.

Senti a pancada de uma viga cair em chamas sobre minhas costas e cabeça.
Não consegui me mover, mas não perdi os sentidos.

No mesmo instante em que senti a pancada, ouvi dizerem:
-Aqui estão, vamos tirar as vigas de cima deles, apaguemos o fogo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:37 am

Joaquim e Pedro chegaram em nosso socorro.
Ao escutar meu grito entraram para ajudar-nos, pois esperavam que saíssemos pelos fundos da casa.
Senti que tiravam os pedaços de telhas e as vigas de cima de mim e com suas roupas apagaram o fogo das minhas.

Arrastaram-nos para fora.
Deixaram-nos deitados no chão a poucos metros da casa.
Estava virado para a vivenda e podia ver o fogo alto, e muita fumaça subindo, lembrando uma grande chaminé.

O fogo sempre me pareceu lindo e, naquele momento, apesar de tudo, achava-o lindo, as chamas fortes, vivas, devorando tudo.
O ar fresco acabara com meu sufoco, embora minha respiração não estivesse normal;
ouvi meu pai tossir e sentia que se mexia, recompondo-se ao meu lado.

Começou a chover.
Grossos pingos refrescaram meu rosto e comecei a sentir dores, dores atrozes nas costas e cabeça.
Senti que papai se ajoelhara ao meu lado, vi-o, estava sujo e ensanguentado, a água da chuva ajudara-o a sair do torpor em que se achava momentos antes.

Notei-o preocupado, olhava-me aflito e pôs-se a gritar:
-Ricardo, Ricardo, responda-me filho, está bem?

Esforcei-me, descontraí meu rosto, lutando contra a dor que sentia e a vontade de gritar, consegui sorrir para ele.

"Ele está bem - raciocinei -, é isso o que me importa, fala, levantou-se, ele está bem!"
Tentei mover-me, não consegui, senti que estava muito queimado.
A chuva fresca que me molhava era uma bênção;
compreendi que tudo acontecera em poucos minutos.

Algo estranho foi então acontecendo comigo, parecia que me desdobrava, parecia que eu estava me transformando em dois, estava tendo uma visão e ao mesmo tempo via e escutava meu pai ao meu lado.

-Meu filho, meu Ricardo, salve-o, meu Deus, por quê?
Não devia ter ido me socorrer, meu filho.
Sente dor? Fale!

Joaquim e Pedro, chocados, hesitaram no que fazer, mas decidiram:
-Vamos tirar os bancos de trás do jipe, vamos deitar Ricardo com cuidado, eu vou dirigindo e vamos directo ao hospital.

E a visão nítida foi passando como num filme, estava ferido dentro de um poço, sentia dores também, estava agonizando.
Fora assassinado, agora eu era o assassino, meu Deus, matara alguém, era eu com outra fisionomia e matara meu pai.
-Ricardo, Ricardo - chamava meu pai, chorando em soluços.

A visão acabara e as dores também.
Escutava-o, quis dizer algo a meu pai e esforcei-me, concentrei toda minha vontade, toda força que me restava, meus lábios me obedeceram e consegui balbuciar:
-Perdão, perdão!

Meu pai calara-se e vi-o ainda a olhar-me aflito, agoniado.
Pareceu-me então que levara um choque, depois nada mais vi ou senti: adormeci.
Acordei depois de algum tempo, abri os olhos devagarzinho e me senti perdido.

Não consegui saber onde estava e como estava.
Apalpei-me lentamente, os braços e pernas, mexendo só com as mãos, vi o tecto branco, olhei receoso para os lados, movendo só os olhos, e vi que estava deitado num leito.
Lembrei-me do raio, das chamas, de papai, das queimaduras e da dor, ah, a dor!
Estranho, não sentia agora dor nenhuma!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:37 am

-Ricardo - disse uma voz harmoniosa e desconhecida -, como se sente?
Instintivamente movi a cabeça e olhei para o lado de onde viera a voz.
Vi duas senhoras simpáticas a sorrir para mim.
Não as conhecia, porém senti que as amava.

-Você pode se mover, está bem e se quiser pode sentar-se.
Chamo-me Margarida e esta é Manuela.
Observei a outra senhora e achei-a parecidíssima com minha irmã Taís;
nem sei por que falei:
-Manuela? Mãe de Taís?

Ela sorriu, eu sentei-me, movi-me com facilidade e também a voz saía sem esforço.

Apalpei-me todo e alegrei-me, não tinha ferimento nenhum, fiz um rápido exame da minha situação e falei o que pensava:
-Estou perfeito, não tenho dores, apesar de estar tão queimado.
Por que estou bem, será que morri? - indaguei.
-Morri?
-Seu corpo queimado e com fracturas, sim; você, não.
Está aqui connosco e o amamos muito.

Tive vontade de chorar, senti medo do desconhecido e da situação diferente que enfrentaria, mas não chorei.
Fiquei olhando para elas, eram tão simpáticas, pude sentir que me amavam e confiei nelas;
fiquei quieto e adormeci novamente.

Acordei, desta vez melhor, senti-me muito bem e mais tranquilo.
Ao meu lado Margarida e Manuela confortavam-me carinhosamente.
Observei o local em que estava, pareceu-me familiar e já não senti medo.

Logo estava fora do leito a passear pelos lindos jardins no hospital, depois pela colónia, e me encantei com tudo.

Entendi que era daquele lugar que sentia tanta saudade.
Bem rápido, entendi que estava vivendo sem o corpo físico, e que ali, a colónia, era uma das moradas da casa do Pai.

Dias passaram e me sentia feliz, recebi uma grata visita.
Reconheci-o mais por afinidade, era o Louco, estava mudado, vestido de branco, simples e elegante, estava com aparência sadia e inteligente.
Deu-me as boas-vindas e nos abraçamos, felizes.

-Chamo-me João Felipe, estou alegre por estar abraçando você, meu amigo, quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim, foi meu amigo, ajudou-me e ensinou-me orações.
Orar, Ricardo, deu-me tanto conforto, consolou-me tanto e aprendi muito.
Ouvir o Evangelho iluminou meu espírito, dando-me outra compreensão da vida, fez com que perdoasse a mim mesmo e aos outros.
Voltei em paz e grato. Obrigado, amigo.

Conversamos muito, alegrei-me em vê-lo bem.
Dona Margarida era minha cicerone, levou-me a conhecer todos os lugares permitidos da colónia, assim como respondia a todas as indagações que lhe fazia.

Aquele dia, perguntei:
-Dona Margarida, será que não poderia ver meu irmão que há tempos desencarnou?
Chama-se Raul, dona Manuela é mãe dele, ela deve saber onde está.
Como gostaria de tê-lo comigo!

Minha amiga sorriu e mudou de assunto, dando explicações sobre as flores que eu achava lindas.
Fui levado a frequentar aulas, numa escola de jovens e crianças, muito bonita, bem-arrumada e organizada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:37 am

Encantei-me, finalmente encontrara a escola que sempre almejei.
As crianças estudavam separadas dos jovens, as classes eram agradáveis e os professores simpáticos e bondosos.
As lições eram instruções de ensino evangélico e o entendimento da vida sem o corpo físico.

Era para iniciantes;
soube que ali os ensinos eram vastos, abrangendo conhecimentos sobre todas as matérias.
Passei a morar no alojamento da escola, quartos colectivos com jovens da mesma faixa etária.

Ali todos se respeitavam, e só de vez em quando tinha saudade do meu quarto no lar terreno, porém muitos companheiros sentiam muita falta de seus lares e objectos, como também de um quarto só para si.
Reuníamo-nos e conversávamos muito, contávamos, então, como desencarnamos, falávamos de nossos pais, de nossa ex-casa, de amigos e parentes.

Contava meu desencarne com uma pontinha de orgulho e sempre escutava dos colegas:
-Como foi herói! Que coragem! Salvou seu pai!

Porém todos nós tínhamos um problema em comum:
sentíamos muita saudade, e os entes queridos a chorar e a chamar por nós incomodavam-nos, fazendo-nos sofrer.

Às vezes, parecia que choravam dentro de nós e necessitávamos do auxílio dos mestres para não ficarmos perturbados.
Muitas vezes, chorávamos desesperados, só acalmando com passes, até mesmo adormecendo-nos, usando o sono como terapia.

Muitas vezes acontecera comigo, escutava me chamarem, ficava inquieto e aflito, pensava:
"Com certeza, se pudesse, nestas horas iria para junto deles", tal era o desespero que me dava.

E comentávamos:
-Será que os pais não sabem que a morte do corpo também virá para eles?
E que vamos nos encontrar novamente?
A separação não é eterna!

Por que me chamam tanto?
Às vezes tenho vontade de ir para junto deles.
Choram tanto, estão me fazendo mal e nem sabem.

Tínhamos, porém, uma certeza: éramos amados.
A escola proporcionava música e muita recreação para nos entreter.
Esforçava-me para não me abater com as sensações dos familiares encarnados, orando com fé ao sentir que chamavam por mim.

Fui melhorando e acostumei-me facilmente no meu novo lar.
Mas nem todos se adaptavam facilmente.
Ali havia muita disciplina, horário, ordem, mas nem todos se davam bem com os novos costumes.

Demorando mais para se acostumarem, sentiam não só falta dos familiares, mas de pertences materiais, de passeios e dos amigos.
Os ensinos eram claros, explicados com sabedoria e simplicidade; quando tive aula sobre reencarnação, senti-me fascinado pelo assunto e entendi que sabia muito, que estava só recordando e que as reencarnações eram oportunidades dadas pela bondade do Pai.

Após a aula, fiquei no jardim pensando no assunto, enquanto aguardava a visita de dona Margarida e de dona Manuela.
Acabei andando, indo para outra ala da escola que não conhecia;
ali, porém, tudo me era familiar, recordava com precisão cada detalhe.

-Ricardo!
-Professor Eugénio!
Abraçamo-nos, porém fiquei em dúvida se o conhecia bem ou não, indaguei timidamente:
-De onde conheço o senhor?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:37 am

Ele sorriu, já não me importei se o conhecia ou não.
Entendi que ele me era querido.

-De outros tempos.
O que importa é que se recordou do seu velho mestre, até me chamou pelo nome!
-Foi meu mestre antes que eu reencarnasse como Ricardo, não foi?
Por que não é meu mestre agora?

-Oriento, meu caro, meninos que tiveram desencarnes não tão comuns e que poderiam não se sentir muito à vontade entre jovens como você, agora.
-Faz tempo que orienta jovens assim?
-Faz um bom tempo, amo muito o que faço e tive a graça de poder ajudar a encaminhar muitos jovens para a vida, tanto aqui, desencarnado, como quando no corpo, encarnado.

-Foi meu mestre, então!
Lembro-me do senhor; que lhe quero bem, e é só.
Que nome tive?
-Raul.

Bastou ouvir o nome e recordei:
"Fora Raul, sim, Raul, meu irmão!"
-Que legal, fui meu irmão!
-Teve duas existências tendo o mesmo pai.
Reencarnou e teve o nome de Raul, depois de Ricardo.

Abracei-o novamente;
sim, lembrava agora, o professor Eugénio muito me ajudou e, como Raul, frequentei uma sala especial;
como Raul não choraram tanto por mim.

-Lembro-me agora, porém não com detalhes.
-As lembranças virão com o tempo.
-Professor Eugénio, fui e sou-lhe muito grato, ajudou-me tanto!
Queria que soubesse que me encontrei com a pessoa que me assassinou, quando era Raul, e fui amigo dele.

Desencarnou antes de mim, veio visitar-me.
Alegro-me tanto em vê-lo, professor, gostaria de ser seu aluno novamente, não posso?

-Ricardo, está muito bem acomodado com estes jovens, agora são afins.
Seus problemas são os mesmos de todos:
saudade dos seus, dos amigos, sentem os familiares sofrerem por vocês.
E você, Ricardo, é tido como herói, salvou corajosamente seu pai.
Estudar comigo seria desaconselhável, minha turma sente e age diferente de você.

-Sabe o que aconteceu comigo? - indaguei.
-Sim, interesso-me sempre pelos meus alunos.
Fiquei contente por você ter tido êxito como Ricardo e um retomo tão feliz entre nós.

-Ao senhor devo isso.
Se não posso ser seu aluno, serei sempre seu amigo e orgulho-me de que esteja ajudando outros como ajudou a mim, quando voltei assassinado juntamente com minha mãe, como Raul.
Agora me sinto bem junto de jovens com quem convivo como Ricardo.
Agradeço novamente;
engraçado que pareço dois, Raul e Ricardo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:38 am

-Com o tempo, com todas as lembranças, será só você, um espírito eterno, recordando suas existências.
-Todos recordam assim, como eu?
-Não, recordações espontâneas são conquistas, aprendeu no passado e será fácil para você agora.

O professor Eugénio foi chamado e nos despedimos, com a promessa de nos reencontrar.
Voltei para a ala em que morava e senti-me feliz.
Se não sentisse os meus a sofrerem tanto por mim, seria completamente feliz.

No jardim onde nos encontrávamos todos os dias, dona Margarida e dona Manuela esperavam-me e senti meu coração bater mais forte.

Emocionado, gritei:
-Vovó Margarida!
Mamãe Manuela! Como as amo!

Abraçamo-nos felizes e não conseguimos segurar as lágrimas.

-Você lembrou, filhinho?
-Sim, lembrei-me de que fui Raul, logo, a senhora é Manuela, minha mãe, e a senhora, minha avó.

Conversamos animados por muito tempo.
Convidaram-me então para ir morar com elas; aceitei e iria logo que recebesse autorização.
Sentindo-me muito bem, contei aos meus amigos que descobrira que tinha avó e mãe na colónia;
aguardei ansioso a permissão para ficar com elas.

No outro dia, aguardava a visita de vovó e mamãe, mas só vovó Margarida veio.

Após cumprimentar-nos, disse séria:
-Ricardo, seus pais estão sofrendo muito.
Manuel está precisando de auxílio e achamos que só você pode ajudá-lo.
-Precisa de ajuda? Por quê?

-Você é muito amado e todos sentem muito sua desencarnação.
“-Sei disso, sinto-os chorando por mim, a chamar-me, mas todos da minha turma enfrentam esse problema.
Não passará com o tempo?
-Ricardo, vou contar-lhe uma história.
Era uma vez três espíritos que, de rancor em rancor, odiaram-se e erraram muito.

Vovó foi narrando e passei a ver, a sentir, e logo entendi que os personagens da história eram papai, mamãe e eu.

Quando narrou a cena do poço, estremeci e interrompi:
-Chega, vovó, por favor, já recordei tudo ao desencarnar.
Enquanto agonizava todo queimado, tive uma visão, vi minha desencarnação como Raul, no poço, e vi que na vida anterior matei meu pai.
Agora entendo essa visão, como também compreendo o porquê de ter me esforçado tanto para que papai me amasse;
pobre Louco, não foi ele quem me assassinou.

-Se recorda, sabe a história dele.
-Sei, sim, ao visitar-me disse que se perdoara e perdoou a todos;
ele, vovó, não guarda mágoa do papai, alegro-me por ter podido ajudá-lo.

Silenciamos por minutos.
Pensei, então, que o que passou, passou, e tentei alegrar-me.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:38 am

-Vovó, quando ia visitar João Felipe na prisão, sentia que alguém me ajudava e que foi muita sorte ninguém descobrir.
Foi a senhora quem me ajudou, não foi?
-Sim, Ricardo, prometi acompanhar seus passos, enquanto encarnado, e fiz tudo o que pude para ajudá-lo.
-Obrigado, vovó, nossa história é triste, mas com final feliz:
reconciliamo-nos e, de inimigos, tornamo-nos amigos.

-Ricardo, a história ainda não terminou.
Se Manuela está em paz e você retomou ao nosso convívio, tendo cumprido o que se propôs, o mesmo não acontece com seu pai.
Manuel sofre muito e não se perdoa.
No acidente ficou ferido, teve queimaduras graves, porém a isso não deu importância.

A dor dele foi tão grande ao ver você morto que o resto não significa nada mais para ele.
E muitos, querido Ricardo, amigos e parentes, sentiram sua desencarnação, suas irmãs sofrem, seus sobrinhos sentem sua falta.
Pretinha sente sua ausência como se fosse um filho que partiu, sua mãe Margareth ficou desesperada e está sofrendo muito.

-Também lhes quero muito, vovó, tenho orado por eles como oram por mim.
Espero que esse sofrimento passe logo e que tudo volte ao normal.
E papai agora, como se sente?

-Manuel, desde que você desencarnou nos braços dele, mudou muito;
você disse-lhe "perdão" e ele achou que foi por ter desobedecido e entrado na casa.
Naquela hora, chorou desesperado por alguns minutos, depois se aquietou.

"Joaquim e Pedro, que também tiveram ferimentos, levaram vocês para a cidade.
Manuel foi para o hospital, onde fez os curativos, impassível.
"Com o correr dos dias ficou calado, alimentando-se pouco, não se barbeou mais e desinteressou-se pelo trabalho.

Márcio, o genro, é quem está cuidando de tudo.
Manuel começou a ir muito ao cemitério e ficar horas diante de seu túmulo, depois vai visitar o mausoléu de Manuela e Raul, roído pelo remorso.
Passou a pensar que fora castigo, matara um filho de quem não gostava e Deus tirara-lhe o que amava, e pensou que merecia receber sua punição.

Depois de muito pensar, resolveu assumir seu crime e foi à delegacia.
Recebido pelo delegado, contou chorando que assassinara sua primeira esposa e o filho.

"O delegado não acreditou nele, fez com que um soldado fosse chamar Márcio e, quando este chegou, falou carinhosamente a seu pai:
'''Senhor Manuel, vá para casa e descanse, esqueça ludo isso.'
"'Não vai me prender?
Estou confessando meu crime.
Tem de me prender!' - gritou furioso, dando murros na mesa.

"Márcio e dois soldados o levaram para casa.
"O delegado, como todos, não acreditou nele.
O crime do poço tinha sido solucionado, o criminoso confessara na época por livre vontade e pagara, preso até a morte.

Acharam, então, que Manuel ficara com a saúde abalada com tanto sofrimento, perdera seus dois filhos de maneira trágica.
Carlos passou a acalmá-lo com remédios;
mas, quando ele desconfiou, não quis mais tomá-los."
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:38 am

-Puxa, vovó, que tristeza!
Papai sofre muito, mas arrependeu-se, e isto é bom, não é?
-Sim, arrepender-se é sinal de que se reconhecem os erros que foram praticados.
E se os erros podem ser reparados, faz muito bem!
Mas Manuel não tem esse consolo.

Pensa no Louco, que deixou ficar preso em seu lugar, pensa em Manuela, esposa boa, trabalhadeira, que assassinou friamente, e em Raul, uma criança que odiara e não sabia o porquê;
o que fizera não tinha justificativa e merecia castigo;
porém, até ser preso foi-lhe negado.

João Felipe plantou e colheu, seu pai plantou e colhe, de nada adiantaram as lições de amor que Manuel ouviu.
Fora às pregações na igreja, foi-lhe oferecido tantas vezes o Evangelho.

Manuela e eu tantas vezes tentamos instruí-lo.
Tendo se negado as lições do amor, só lhe resta a dor.
Por ela, ele reconheceu seus erros e arrependeu-se.

Vovó fez uma pausa, compreendia muito bem o sofrimento de papai.
Lembrei-me do tempo em que vaguei na erraticidade sentindo remorso, a dor profunda de ter errado.
Papai era e fora culpado, assassinara a esposa e o filho, agora já não nos odiava mais, não odiava ninguém, matara, errara, fizera uma acção má e era dele a obra;
não tinha como, no momento, desfazer-se dela.

-Ricardo, meu neto - continuou vovó -, seu pai acha que não é possível viver mais, pensa em suicidar-se;
sim, quer matar-se, seu remorso pesa-lhe muito.
Seus erros parecem-lhe irremediáveis, julga-se o pior dos seres humanos, espera uma oportunidade para pôr fim à sua vida física.

-Vovó, ele não pode fazer isso, vimos em filmes, aqui na escola, como os suicidas sofrem, nada se compara com a dor daqueles que destroem seu corpo físico.
Mata-se o corpo, porém não se mata a alma.
Mesmo depois, no futuro, após muito tempo em sofrimento, com a bênção de uma nova reencarnação, poderão ter o corpo carnal deformado, pois destruíram, pela sua vontade, um que era perfeito.

-Por tudo isso, Ricardo, estou a lhe contar o que ocorre com ele.
A preocupação é de todos, nossa e da família.
Manuel está sendo vigiado, preso no quarto, longe de qualquer objecto que possa utilizar para ferir-se.

Comecei a chorar. Vovó abraçou-me, consolando-me.

-Não chore, Ricardo, vamos ajudá-lo.
-Como?
-Foi permitido irmos para junto dele e lá ficarmos até que consigamos tirar essa ideia de sua mente.
Manuel ama-o, chama você, quer você, achamos que a você, pedindo-lhe, atenderá.

-E se não conseguirmos, vovó?
-Não podemos predizer se iremos ou não conseguir.
Sei de muitos amigos que tentaram ajudar encarnados a não se suicidar e não o conseguiram, como também sei do sucesso de muitos outros.

Todos nós temos o livre. arbítrio e somos respeitados nas nossas decisões.
Se Manuel quiser realmente se suicidar, não conseguiremos impedir, mas ele poderá ouvi-lo.
Você é determinado, Ricardo, conseguiu fazer com que Manuel o amasse e conseguirá impedi-lo de fazer mais este erro.

Sejamos optimistas e vamos ao seu encontro, esperançosos.
Vamos, Ricardo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:38 am

-Agora?
-Sim, agora, nossa ajuda não pode esperar.
-Mamãe Manuela não irá?
-Manuel agita-se muito ainda com a presença dela, por enquanto só vamos nós dois.
Não se preocupe, aja com amor e simplicidade, estarei com você o tempo todo.

Saímos da colónia, vovó levou-me em seus braços.
É maravilhoso volitar, locomover-se com rapidez;
vi emocionado a colónia de longe, depois a Terra e, por fim, estranhei.
Minha casa estava coberta de uma névoa cinzenta.

E vovó explicou:
-São fluidos de tristeza, de desesperança.

Tudo estava no mesmo lugar, tudo igual e ao mesmo tempo diferente.
Tudo me pareceu triste.
Entramos na sala, mamãe Margareth estava numa poltrona, quieta, pensativa.

Estava diferente, não pintava mais os cabelos, estava pálida, sem a costumeira maquiagem, magra, envelhecida.
Ajoelhei-me aos seus pés, beijei suas mãos, seus olhos umedeceram e passei a ouvir o que pensava.

"Ricardo, meu Ricardinho, que saudade!
Onde esta você?
Será que está junto de Raul, seu irmão?

Será que Raul o ama?
Seu pai está doente, meu filho, ninguém acredita em Manuel.
Eu, porém, não sei, às vezes acho que fala a verdade.
Tive muita culpa em tudo isso.

Se Manuel matou, foi por minha causa, queria casar e ele era rico, correspondia ao meu ideal.
Não liguei se ia destruir um lar, na época era amante dele e forcei-o para que se separasse da esposa.
Manuel ter matado a esposa para ficar comigo até que entendo, mas o filho!

Ele sempre foi tão bom pai, tão amoroso, parece-me impossível ter assassinado o filho.
Embora nunca me falasse de Raul, pensei que era para não sofrer com as recordações.
Tudo é tão triste, sofremos tanto, nosso lar desmoronou.
Acho que construímos nossa felicidade sobre a areia, na ilusão de que não podia ser destruída, e foi."

-Não fique assim, mamãe, por favor! - disse.
Mas ela não percebeu minha presença, não me sentiu.
Vendo-a assim, senti doer em mim, senti sua amargura, e vovó, sabiamente, ajudou-me.

-Ânimo, Ricardo, não se envolva na tristeza de sua mãe.
Margareth é forte, sofre, mas suportará, melhorará com o tempo, ela aprende muito na dor.
Sabendo o que pensa, vimos que ela reconhece a ilusão falsa em que sempre viveu e me parece pronta a procurar e encontrar a paz no caminho do bem.
Jesus ensinou-nos com muita sabedoria que o homem prudente constrói sua felicidade eterna nos rochedos da verdade espiritual e não na matéria passageira.

Neste instante Valquíria começou a ter uma crise, começou a gritar e a se debater.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 07, 2014 11:38 am

Corri instintivamente até ela, como se estivesse encarnado, abracei-a apertado e comecei a falar carinhosamente:
-Calma, Valquíria, calma, minha irmãzinha, Ricardo conta-lhe uma história.
-Ri-Ri - gritou ela.

Diante do olhar assustado de Pretinha, que viera correndo acudir Valquíria, percebi que minha irmãzinha conseguira perceber minha presença.
Sentara-se e balançava o corpo, parou de gritar, apertava os braços como se eles pudessem abraçar-me fisicamente.
Pretinha não me viu, mas viu Valquíria como se abraçasse alguém acalmando-se logo, como acontecia quando eu estava encarnado, e a repetir "Ri-Ri", como me chamava.

Pretinha também estava abatida e triste.
Passado o susto, vendo Valquíria acalmar-se, afastou-se, e fiquei com minha irmãzinha, até que, como sempre fazia, desinteressou-se de mim e pegou sua boneca.
Vovó sorriu.

-Venha, Ricardo, vamos ver seu pai.
Acompanhei-a até o quarto de papai.
O local estava na penumbra, a porta estava trancada e nas janelas pedaços de madeira estavam pregados para que não se abrissem.

O quarto estava sujo, na cama só o colchão, e papai estava sentado nele.
Fiquei por minutos olhando-o, parecia outra pessoa, magro, braços e pescoço estavam marcados pelas queimaduras e, na fronte, uma grande cicatriz do ferimento que recebera.
Seus cabelos estavam crescidos, estava barbudo e com os olhos vermelhos de tanto chorar.

Vestia um pijama curto, rasgado e sujo.
Chorei ao vê-lo assim e, pela primeira vez, senti-me culpado por desencarnar;
vovó elucidou-me com energia:

-Ricardo, não se sinta assim, não provocou sua morte física, não se sinta culpado, se Manuel sofre por sua própria colheita;
veio para ajudá-lo e não para sofrer junto.
Vovó tinha razão.
Envergonhado, enxuguei rápido meu rosto, cheguei perto dele.

Começou a falar baixinho:
-Ricardo, por que morreu para salvar-me?
Não merecia seu sacrifício, deveria eu ter morrido e você ficado.
Se você não pode voltar, eu posso ir.
Acharei algo que aguente meu peso e me enforcarei, irei encontrar com você.
-Não! -gritei.

Não me ouviu com os ouvidos físicos, porém meu grito emocionado fez com que se calasse e sentiu algo estranho.

Continuei a falar-lhe com firmeza e emocionado:
-Não, não pense em se matar, não deve livrar-se do corpo físico, só aumentaria seu sofrimento.
Matando-se não poderá ficar comigo, não me verá.

Morri, tive a morte do meu corpo para salvá-lo, para que ficasse e se arrependesse, para que viva, não para que se mate.
Pelo amor de Deus, não se mate!

Papai se pôs a chorar baixinho;
eu, já mais calmo, abracei-o, amávamo-nos, choramos por algum tempo juntos.
Seu choro aliviou-o por algum tempo e minhas lágrimas eram em prece, pedindo ao Pai Maior consolo e orientação.

Papai adormeceu, vovó com passes tirou seu corpo perispiritual do corpo físico.
Estava tonto, vovó continuou a dar-lhe energias, então conseguiu ver-me.
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