LUZ ESPÍRITA
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 14, 2022 8:03 pm

Assim que terminou de vestir a roupa, saiu, deixando Lívia arrasada. Ela não soube por quanto tempo ficou ali sozinha e sem roupa, até que viu Luzia chegar assustada.
— Eu a avisei para não vir sozinha. Meu Deus, ele a violentou! E agora, o que vamos dizer ao barão? E se Carlos souber? Pressinto uma tragédia.
As palavras de Luzia fizeram com que Lívia despertasse para a real situação em que se encontrava. Enxugando as lágrimas que teimavam em cair do seu rosto, disse nervosa:
— Não adianta arrependimentos agora. Esse Lucas é um louco perigoso e sei que estou nas mãos dele, depois tenho de pensar em uma forma de fazer Rodolfo mandá-lo embora daqui para bem longe. O que importa é encontrarmos uma solução para o que me aconteceu. Ajude-me a pensar. Não posso chegar em casa e dizer que fui violada em minha intimidade.
Luzia estava preocupada:
— A senhora não terá como esconder que foi violentada.
Podemos dizer que estávamos a caminho do bosque quando um salteador nos atacou.
— Mas em nosso condado quase não há salteadores, o barão pode ficar desconfiado e descobrir que é mentira.
Meus Deus, estou perdida!
— Não está, não. Vamos dizer exactamente isso. Se o barão duvidar, não terá como provar nada.
Lívia concordou por não ver outra saída. Vestiu o que sobrou do vestido e, apoiada nos ombros de Luzia, retornou para casa.
Ao chegar em frente ao portão principal, encontrou Carlos, que a olhou com pavor:
— Senhora baronesa, o que aconteceu? — Sua voz estava trémula e ele beirava o descontrole.
— Fomos passear pelo bosque e um salteador nos atacou. — Foi Luzia quem respondeu, tentando desviar o olhar. Contudo, Carlos percebeu que havia algo estranho:
— Foi isso mesmo ou estão mentindo?
Desta vez foi Lívia que, com voz fraca, pediu:
— Deixe isso para depois, soldado. Preciso entrar e participar o ocorrido ao meu marido.
Enquanto Lívia e Luzia seguiam pela grande alameda que dava na entrada principal da casa, Carlos, desconfiado de que algo mais grave havia acontecido, determinou-se a descobrir, jurando para si mesmo que o autor daquela agressão pagaria com a vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 14, 2022 8:03 pm

ENTRE CARLOS E LUCAS
O palacete ficou agitado com a chegada de Lívia, e o barão não se conformou de a esposa ter sido violentada por um salteador. Mandou toda a guarda procurar pelo condado, mas nada encontrou.
Nos dias que se seguiram, Lívia praticamente não saiu do quarto, onde foi acompanhada apenas pela fiel Luzia. Finalmente, chegou o dia de o barão viajar mais uma vez. Nas despedidas, ele a beijou com amor:
— Passarei mais alguns meses na Africa, mas reforcei sua segurança. Os guardas ficaram bastante impressionados com o que lhe aconteceu e temo pela sua segurança aqui dentro. Por essa razão e por sugestão de Luzia, deixarei o soldado Carlos de prontidão nas portas que dão para nossos aposentos. Assim, viajarei tranquilo.
Ao ouvir aquilo, Lívia estremeceu. Luzia havia ido longe demais. Com Carlos mais perto seriam mais fáceis os encontros e mais fácil, também, algum outro serviçal do palácio descobrir e chantageá-la novamente. Contudo, não podia demonstrar nada na frente do barão, por isso concordou:
— Fico feliz por saber que me ama tanto, que Deus o acompanhe nessa viagem. — Dizendo isso, beijou-o com doçura nos lábios.
Assim que o barão partiu, Lívia chamou Luzia ao seu quarto:
— Como pôde ter coragem de fazer isso comigo? Colocando Carlos aqui o perigo é bem maior.
— É justamente o contrário — tornou Luzia com segurança. — Com Carlos por perto e sendo seu guarda particular será mais difícil Lucas se aproximar. Além do mais, a senhora pode ficar com ele à vontade durante todas as noites.
De repente, Lívia percebeu que a amiga tinha razão.
Ela amava Carlos com todo o seu coração e não podia desperdiçar nenhuma chance de estar com ele. Vendo-a pensativa, Luzia perguntou:
— A senhora está pensando no barão ou em Carlos?
— Ora, Luzia, claro que estou pensando em Carlos.
Você sabe que o barão, para mim, não passa de um grande amigo.
— Pois tem horas que não parece. Hoje mesmo percebi como o beijou com carinho quando ele partiu.
— Talvez você não consiga entender, mas não posso deixar de amar Rodolfo por tudo o que ele fez em minha vida, pelo carinho e pela consideração com que me trata.
É muito penoso manter intimidades com ele, mas é a única alegria que posso oferecer a um homem que daria sua vida por mim.
— A senhora não sente remorso por estar traindo um homem tão bom? As vezes, penso que o que fazemos é errado. Eu por ajudar, e a senhora por ter relações com outro homem. Aprendemos com a Igreja que o adultério é pecado mortal. A senhora não tem medo do inferno?
Naquele momento, Lívia lembrou-se de padre Amaro e das coisas bonitas que ele lhe ensinou, principalmente em como lidar com a culpa.
— Minha consciência diz que estou errando e que um dia, não sei onde nem como, terei de reparar esse erro; contudo, não posso ficar me culpando por amar uma pessoa e me relacionar com ela com sinceridade e respeito.
Carlos é ciente de que nunca vou abandonar meu marido e que teremos de passar a vida inteira assim.
Luzia não comentou mais nada, afagou a cabeleira da baronesa e saiu.
Passava da meia-noite quando Lívia acordou ouvindo batidas na porta. Quem seria? Havia combinado com Carlos que não se encontrariam logo nos primeiros dias da ausência do barão. Certamente era Luzia. Mas o que ela queria?
Vestiu o penhoar e foi abrir. Seu coração descompassou e seu corpo todo começou a tremer quando viu à sua frente a figura de Lucas.
— Deixe-me entrar.
Mesmo com medo, Lívia, temendo que Carlos os visse conversando, abriu a porta de vez, fechando-a rapidamente assim que Lucas entrou. Seu medo era tanto que começou a suar e a respirar ofegantemente.
— Calma, não vim aqui para lhe fazer mal, vim para que possamos conversar e pedir perdão pelo meu ato animalesco daquele dia.
Totalmente transtornada, Lívia bradou:
— Você é um monstro. Não o quero perto de mim nem por um minuto. Aliás, como pôde burlar a segurança e entrar aqui?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 14, 2022 8:04 pm

— Conheço muitos segredos deste palácio. Passei por um corredor secreto que o barão usa quando não quer ser visto. Foi fácil passar despercebido por seu queridinho.
Lucas foi se encostando no corpo da baronesa delicadamente e ela, sem poder gritar para não chamar a atenção, aos poucos foi cedendo. A princípio, ela não queria, mas aos poucos Lucas foi beijando-a ardentemente e todo seu corpo foi reagindo àquele toque. Lucas era um homem alto, loiro, de porte atlético e com um belo par de olhos azuis. Naquele dia da violência, ela não tinha prestado atenção naqueles atributos; contudo, naquele momento, sozinha com ele, percebeu o quanto era másculo e bonito.
Os beijos foram ficando cada vez mais fortes e Lívia foi tomada por um desejo imenso. Sem pensar em mais nada, logo os dois estavam entregues aos prazeres íntimos.
Horas mais tarde, quando ele saiu, Lívia sentia-se leve como uma pluma, mas a cabo de poucos minutos lembrou-se de Carlos e horrorizou-se com o que fizera. Como tivera coragem de trair aquele que mais amava? Apesar dos momentos prazerosos que havia vivenciado, não conseguiu dormir o resto da noite, remoendo-se de remorso.
Assim que o dia clareou e Luzia entrou com a rica bandeja de prata repleta de iguarias, Lívia puxou-a com ansiedade e contou-lhe tudo o que havia acontecido. Luzia, perplexa com que acabava de ouvir, exclamou:
— A senhora está perdida. Se quiser que não aconteça um crime nesta casa, terá de parar com esses encontros o mais rápido possível. Além de estar traindo seu marido, a senhora também está traindo o homem que ama. Se continuar assim, não vou lhe servir mais. Pedirei ao barão que me coloque para cuidar da senhora Filomena, sua mãe.
Os olhos de Lívia encheram-se de lágrimas, não queria perder sua única amiga. Prometeu que naquela mesma noite não permitiria mais nenhuma intimidade com Lucas. Contudo, aquela madrugada foi diferente e quem bateu à porta foi Carlos.
Desde aquela noite, Lívia, não conseguindo conter seus apetites sexuais, passou a se encontrar com Lucas e Carlos ao mesmo tempo, sempre alternando os dias de um e de outro. Sem perceber, ela havia entrado numa obsessão sexual, em que espíritos inferiores passaram a viver dentro de seu quarto, aproveitando-se das emanações de prazer desregrado que ali podiam obter. Tudo era feito com tamanho cuidado que Carlos nunca percebeu que era traído. Luzia, percebendo o comportamento anormal da patroa, abandonou-a por considerar que ela tinha se tornado a pior das prostitutas.
A princípio, o afastamento de Luzia incomodou Lívia; contudo, com o tempo, só o sexo importava para ela. Passava as manhãs e as tardes jogada em cima da cama, esperando a noite chegar. Mal parava para se alimentar e banhar-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 14, 2022 8:04 pm

ACONTECIMENTO INESPERADO
Os dias foram passando e assim foram seguindo-se semanas e meses, até que em um ensolarado dia de verão o barão Rodolfo chegou inesperadamente.
Em todo esse período, Lívia não conseguiu se ver livre dos amantes nem da obsessão espiritual que a atingia.
Por esse motivo, quando o barão foi vê-la no quarto assustou-se com sua aparência. A baronesa havia emagrecido bastante, uma palidez cadavérica tomou conta de seu rosto e fundas olheiras davam à sua face uma expressão de quem sofria de grave enfermidade. Ao ver o barão, ela levantou-se e correu a abraçá-lo.
— Oh, meu amor! Como demorou a voltar, para mim foi uma eternidade.
— Para mim também. Voltei mais rico. A África é um lugar de riquezas inigualáveis, consegui aumentar nosso património em quase o dobro.
Ela, pouco interessada que estava nas conquistas do marido, apenas balbuciou:
— Fico feliz. Mas minha felicidade maior é que tenha voltado.
— Vejo que deve ter sentido muito minha falta; seu estado não me parece bom, você está doente ou foi só saudades?
— questionou o barão com bondosa ingenuidade.
Nem mesmo Lívia sabia ao certo o que estava acontecendo com ela. Não ligava seu estado físico às suas aventuras sexuais. Assim, respondeu:
— Não sei o que se passa. A verdade é que de uns tempos para cá não tenho sentido vontade de fazer nada, mal me levanto para comer, tomar banho e fazer as necessidades básicas. Será que estou doente?
O barão, carinhoso, pôs a cabeça da esposa no colo e, lhe afagando os cabelos, disse:
— Não posso vê-la nesse estado. Mandarei um mensageiro chamar o doutor Francesco para examiná-la. Sabe o quanto a amo, não posso aventar a hipótese de perdê-la.
— Dizendo isso, o barão beijou-a nos lábios com ardor, ao que ela correspondeu, fingindo ao máximo que estava gostando, tentando conter a custo a repulsa que ele lhe causava na intimidade.
— Vou deixá-la descansar, enquanto tomo um banho e espero o médico chegar.
Ao ver o marido sair, Lívia sentiu profundo remorso.
O barão era um homem digno, honesto e que a amava profundamente, com certeza não merecia aquelas traições.
No que ela havia se transformado? Enquanto mantinha relações apenas com Carlos, ainda tinha a desculpa de que era por amor, mas agora estava também envolvida com Lucas, e percebeu que havia se tornado uma mulher devassa e sem pudor, que só pensava nos prazeres carnais. Assim reflectindo, chorou muito.
Uma entidade feminina, viciada em sexo e que estava sempre no quarto a acompanhando em suas aventuras e sugando sua vitalidade, temendo que ela se arrependesse e deixasse as práticas de prazer, aproximou-se e disse-lhe ao ouvido:
— Não se deixe dominar por pensamentos bobos que não levam a lugar nenhum. O que pode ser mais importante do que sentir prazer com dois homens bonitos e sensuais? Seu marido não a satisfaz, é velho e logo morrerá, ficando você livre para vivenciar tudo o que sempre desejou. Deixe de ser tola, o que importa é o prazer, você nasceu para isso.
Sem perceber que estava sendo influenciada por um espírito, Lívia captou todos aqueles pensamentos achando que eram seus e repetiu para si mesma:
— Estou sendo muito tola em me deixar levar por esses remorsos. O que mais importa é o prazer que tenho com Carlos e Lucas, dois homens bonitos e sensuais. Por mais que eu admire meu marido, ele é velho e não me satisfaz, logo morrerá e poderei fazer de minha vida o que quiser.
A entidade, que se apresentava nua e com os órgãos sexuais deformados, sorriu pela vitória.
Fortalecida por aqueles pensamentos, Lívia voltou a se deitar e pôs-se a esperar o médico.
Assim que saiu do quarto, o barão foi procurar por Luzia, e encontrou-a lendo um livro para sua mãe. Chamou-a ao seu gabinete e perguntou:
— Algum problema sério aconteceu com a baronesa durante minha ausência?
Luzia empalideceu, mas procurou se refazer rapidamente.
— Não, senhor. A senhora Lívia é que, de uns tempos para cá, anda apática e sem vida, falando muito em sua volta, dizendo estar com saudades — mentiu.
— E por que você deixou de servi-la?
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 14, 2022 8:04 pm

—A baronesa anda tão arredia que despediu meus serviços, então resolvi cuidar da senhora Filomena.
— Tudo bem, Luzia, pode se retirar.
Ao ficar sozinho, o barão pôs-se a pensar, contudo jamais imaginava que poderia estar sendo traído. Por fim, acreditou que ela sofria por saudades dele.
Foi até o grande salão e mandou chamar um soldado.
Carlos foi até ele:
— As suas ordens, senhor barão.
— Vá até a aldeia e chame o dr. Francesco. Diga que é urgente.
— Alguém doente em casa, senhor?
— A baronesa não está bem, temo por algo grave.
Carlos sentiu receio. O que estaria acontecendo com sua amada? Não podendo perguntar, limitou-se a dizer:
— Vou rapidamente e, desde já, estimo melhoras.
Depois de duas horas, Francesco chegou ao palacete, sendo rapidamente conduzido pelo barão à alcova da esposa. O médico era de meia-idade, bastante experiente.
Assim que terminou de examiná-la, disse com segurança:
— Sua esposa está passando por um processo de fadiga crónica. Provavelmente, tem feito muito esforço ultimamente, o que a levou a esse estado. O que a senhora tem feito?
Lívia sentiu o sangue sumir de suas veias. Ela estava mantendo tantas relações que não poderia imaginar que pudesse vir a perder a saúde. Rapidamente, encontrou uma desculpa:
— Não tenho feito trabalhos físicos, meu esforço tem sido todo mental. Desde que o barão viajou, sinto-me muito solitária, temerosa de que algo ruim aconteça aqui durante sua ausência. Mesmo tendo tantos guardas, correm boatos de que os castelos estão sendo muito pilhados, ninguém está seguro.
O médico a olhou desconfiado, mas tornou:
— De facto, a mente trabalhando nervosamente também causa desgaste físico. A senhora também está anémica.
Vou receitar essas medicações e aconselho-a a sair com o barão, distrair-se. É o que precisa para se recuperar.
O médico se despediu e ficou de mandar os frascos com os remédios por Carlos. O barão, feliz por descobrir que a mulher não tinha nada grave, achegou-se a ela beijando-lhe o rosto.
— Preciso de sua alegria, Lívia. Seu sorriso, seu rosto corado, sua agilidade me fazem bem. Quero você como a conheci. Promete ficar bem por mim?
— Prometo — disse ela num fio de voz.
Com a chegada do barão, tanto Lucas quanto Carlos tiveram de parar os encontros com Lívia, e isso os deixava nervosos e enciumados. Já Lívia, aos poucos e sem o excesso das relações íntimas, foi melhorando e logo estava como antes: sorrindo, conversando animadamente, o que deixou o barão ainda mais feliz.
Certa manhã, após alguns dias de desconfiança, Lívia, muito nervosa, esperou que o barão saísse de casa e mandou chamar Luzia aos seus aposentos.
— O que aconteceu, senhora? Vejo que está pálida feito cera.
Lívia, numa visível perturbação nervosa, trancou a porta, arrastou Luzia para sua cama e disse:
— O pior aconteceu. Estou grávida novamente.
— O que a senhora disse? Não pode ser verdade! — tornou Luzia temerosa.
— É verdade. E eu que tomo todos os cuidados com as beberagens que Rosália faz para não engravidar, mais uma vez caí numa cilada. Como isso foi acontecer? — O pranto sentido de Lívia comoveu Luzia, que acabou percebendo que ela era mais uma vítima dos próprios vícios
do que uma messalina sem pudor, como imaginara a princípio.
Tentou ajudá-la como da última vez:
— Acalme-se, senhora. O barão pode voltar a qualquer instante e, se a vir chorando, não vai aceitar desculpa.
O que a senhora precisa fazer é voltar para o convento e ter novamente esse filho lá.
Lívia sentiu-se estremecer. Só queria voltar àquele lugar macabro para buscar Caius, que, àquela altura, já estava com mais de um ano.
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:38 am

Preferia morrer a ter de ficar mais nove meses enfrentando aquelas pessoas duras e cruéis. Por esse motivo disse:
— Desta vez, não vou! Quero abortar essa criança, e será aqui em casa mesmo!
— A senhora está louca? Um aborto provoca sintomas no corpo e o barão vai perceber. Se chamar o médico aqui, ele dirá a verdade na hora. Quer pôr toda sua vida a perder?
Lívia parecia resoluta:
— Estou com pouco tempo de gestação. Pedirei a Rosália que faça um chá que expulse essa criança de mim sem maiores estragos. Faço qualquer coisa, menos voltar àquele convento.
— A senhora me disse, da última vez, que matar uma criança na barriga da mãe era o mesmo que matar uma pessoa.
É nisso que a senhora quer se transformar? Numa assassina?
Lívia, enxugando as lágrimas que teimavam em cair, deixou escapar:
— Eu não sei quem é o pai da criança!
Realmente seria difícil para a baronesa saber quem era o pai. Luzia calou-se, já não sabia o que dizer. Vendo que a outra estava muda, ela continuou:
— Tenho todos os motivos para me livrar dela! Caius é meu filho com Carlos, o homem a quem amo de verdade.
Essa criatura que está em meu ventre não sei de quem é.
Lucas é, para mim, um qualquer, que uso para satisfazer meus instintos, não gosto dele e, às vezes, depois que tudo termina, sinto até nojo. Não posso, de jeito algum, ter esse filho.
— Neste caso, pedirei a Rosália que prepare o chá.
— Diga a ela que quero ainda esta noite. Direi ao barão que comi algo que não me fez bem e passei mal.
Ele não desconfiará.
Assim combinado, Lívia esperou a noite chegar com ansiedade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:38 am

O CHORO
Durante o dia, Lívia teve de fingir ao máximo que estava bem. Fez de tal forma que o barão nada desconfiou.
À noite, pretextando um passeio com sua fiel camareira, deixou o marido e foi até os aposentos de Rosália, que era uma mulher de meia-idade, serviçal do palacete, que costumava curar as doenças dos outros empregados com ervas, as quais conhecia muito bem. Quando Lívia chegou com Luzia, ela já estava com o chá pronto.
— Está tudo pronto como pediu. Com esse chá, a senhora expulsa a criança e poderá voltar aos seus aposentos, apenas com um leve mal-estar. Só vai sentir algumas dores quando ele for saindo, mas nada que não aguente.
Lívia pegou a caneca e já ia ingerir o conteúdo quando, de repente, começou a ouvir o choro de uma criança.
Assustada, pensou estar sendo vítima de uma alucinação, mas o choro continuava mais forte e persistente. Nervosa, colocou a caneca de volta no lugar e perguntou:
— Onde essa criança está chorando? Tem algum recém-nascido aqui?
Luzia e Rosália entreolharam-se sem entender e disseram:
— Não tem criança alguma chorando, senhora. Nem nenhuma serviçal dos quartos vizinhos está com recém-nascido.
— Vocês não estão escutando? Ela chora, chora alto!
As duas perceberam que a baronesa não estava brincando, poderia estar sendo vítima de uma alucinação.
Lívia começou a andar de um lado a outro do quarto, até que, em dado momento, parou e passou a escutar com mais atenção. Foi com emoção que percebeu que o choro vinha de dentro de sua barriga. Começou a chorar e compreendeu que seu filhinho estava ali, pedindo que o deixasse viver. Assim que entendeu a mensagem, o choro parou e, aos poucos, ela foi ficando calma, até que voltou ao normal.
Rosália estava assustada:
— Continua ouvindo o choro?
— Não, passou. O choro era de meu filho pedindo para que eu o deixasse vir ao mundo. Não vou mais abortar, vou para o convento novamente e o terei. Como pude pensar num ato como esse?
Rosália continuava assustada:
— A senhora acha que a alma de seu filho estava aqui e chorou para que a senhora o deixasse viver?
— Tenho certeza, Rosália. Depois de tudo o que vivi naquele convento, não duvido mais da existência de outro mundo, onde estão muitas almas. Sei, também, que elas podem interferir em nosso mundo. Não sei como isso aconteceu, mas tenho certeza de que foi meu filho, sim.
Obrigado por ter tentado me ajudar, mas jamais farei isso.
Puxando a mão de Luzia, ela saiu apressada pelos corredores rumo ao amplo terraço que dava para o poente.
— Mais uma vez, Deus agiu a meu favor. Logo eu, que sou tão pecadora! De agora em diante, vou me dedicar aos meus filhos e fazer de tudo para tê-los comigo.
Continuarei com Carlos, mas nunca mais farei nada com Lucas. Se ele me delatar, será minha palavra contra a dele.
Tenho certeza de que o barão acreditará em mim.
Luzia estava comovida:
— Penso que a senhora tem toda a razão, e era isso o que deveria ter feito desde o começo, quando ele tentou chantageá-la. Penso, também, que a senhora não estava em si quando fazia amor com Lucas.
— Não estava em mim?
— Sim. A senhora disse agora há pouco que acredita no mundo das almas, pois bem, eu também acredito e também sei que elas interferem na nossa vida. Tenho certeza de que uma alma muito perversa, cheia de desejos da carne, aproximou-se da senhora para usá-la.
Só naquele momento foi que Lívia tomou consciência daquela verdade. Veio-lhe à mente todas as cenas dela com Lucas, e ela percebeu como naqueles instantes ela se tornava diferente, com um comportamento estranho, que não era de seu temperamento. Lembrou-se, também, de que havia deixado de orar, o que certamente havia facilitado a permanência daquele ser trevoso ao seu lado. Abraçou Luzia, dizendo:
— Obrigada por ter me aberto os olhos, sei que o que fala é verdade.
— Por essa razão que eu sempre procuro rezar para que Deus me proteja de tudo o que é ruim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:38 am

— Você é sábia, Luzia. Agora precisamos combinar o mesmo que fizemos da outra vez. Ficarei um mês como estou agora, com comportamento normal, feliz, sorridente, agradando a meu marido. Depois desse tempo, fingirei que estou entrando novamente em depressão e direi ao barão que preciso de um novo retiro espiritual para me refazer. Vai coincidir com sua próxima viagem, e sei que ele não vai se opor.
Luzia concordou, embora não gostasse de mentir, mas sabia que naquele momento não havia outra saída.
Viu que Lívia sorria animada:
— Desta vez, trarei o meu Caius comigo. Antes de voltar, pedirei ao barão que vá me buscar no convento e direi que caí de amores por aquela criança e que quero adoptá-la.
— Será um momento de grande felicidade que compensará sua reclusão naquele lugar.
Ao pensar no convento, um calafrio de horror percorreu-lhe o corpo, mas logo a sensação se desfez ao se lembrar da doce imagem de padre Amaro, sua sabedoria, amor e carinho que tinha para com os órfãos. Pensou que tinha aquele lado bom, e com isso conseguiu manter a alegria, até que um mês se passou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:39 am

DE VOLTA AO CONVENTO
Com o barão presente no palacete, nem Lucas, nem Carlos conseguiram mais se aproximar de Lívia.
Conforme o combinado com Luzia, naquela manhã, Lívia não se levantou, como de costume, exigindo que lhe fossem levar o desjejum na cama. Preocupado, o barão foi ao quarto e perguntou:
— Amanheceu doente? Por que não quis tomar café connosco?
— É que hoje não tive vontade de me levantar da cama.
Não sei o que me deu — balbuciou Lívia, fingindo tristeza.
O barão notou que a bandeja, rica em iguarias, estava praticamente intocada. Preocupado, voltou a perguntar:
— Mas você não comeu nada, tem certeza de que está se sentindo bem?
Lívia continuou fingindo:
— Acordei triste e melancólica, sem saber direito a razão. Mas, para não preocupá-lo, vou comer mais um pouco e logo descerei para um passeio matinal com Luzia.
Depois de meia hora, Lívia desceu e saiu com Luzia, voltando pouco tempo depois. O barão estava em seu gabinete e não notou sua chegada, até que Luzia foi ter com ele.
Ficou na porta de cabeça baixa até que o barão, ao vê-la, disse:
— Algum problema, Luzia? Já voltaram do passeio?
Tão cedo!
Luzia, fingindo preocupação, disse:
— Desculpe interromper sua leitura, senhor barão, mas é que preciso falar-lhe em particular.
— Alguma coisa aconteceu com Lívia durante o passeio?
Luzia entrou no gabinete, sentou-se numa poltrona em frente ao barão, e exclamou com voz preocupada:
— Creio que a baronesa está voltando a ter os mesmos problemas de antes. Notei que está triste, os olhos fitando o vazio, tanto que nem quis continuar o passeio que tanto gosta ao redor da casa. Temo que ela precise de um novo retiro espiritual.
— Mas isso não é possível! — esbravejou o barão com visível raiva. — O que acontece com Lívia? O que menos desejo é que ela fique mais um ano no convento.
— Tem mulheres que são fracas e precisam da religião, senhor. Além de tudo, percebo que ela sente falta de uma criança nesta casa. Sei que os senhores não podem ter filhos, mas um dos motivos que a entristecem é esse.
O barão dispensou Luzia e foi ter com a mulher em seus aposentos. Lá chegando, encontrou-a em meio aos lençóis de seda, com semblante triste e olhar perdido.
— O que está acontecendo, meu amor? Por que essa tristeza?
— Não sei, Rodolfo, tenho sentido falta de Deus e de outras coisas que nem eu mesma sei identificar. Mas não se preocupe, sei que vai passar.
O barão a beijou com carinho, como que a dizer que estava do lado dela incondicionalmente.
— Luzia me procurou no gabinete e me disse umas coisas que me fizeram pensar, acho que ela está certa.
Fingindo não saber do que se tratava, Lívia perguntou:
— O que Luzia disse?
— Que você está voltando a ter aquelas mesmas tristezas que teve há quase dois anos e que talvez precise de um novo retiro espiritual. Disse, também, que você sente muita falta de uma criança por aqui. Por que não me disse isso? Podemos adoptar uma. Se for para a sua felicidade, eu aceito.
Os olhos de Lívia brilharam de prazer, que ela tentou ocultar. Mesmo diante de tantos problemas, ela poderia ter seu filho de volta e ainda trazer mais o outro que estava em seu ventre. Contudo, não poderia deixar tão claras as suas intenções.
— Sinto mesmo a falta de uma criança, mas creio que agora não é o tempo. Talvez, como Luzia disse, precise mesmo fazer um novo retiro espiritual, onde possa me encontrar com Deus, como da última vez. Mas, por outro lado, sinto um grande pesar em deixá-lo sozinho nesta casa.
— Vamos esperar para ver se você melhora. Caso continue com o mesmo problema, mandarei chamar seu primo, o padre Enrico, que também é seu confessor, e ele dirá quanto tempo de retiro espiritual precisa. Faço tudo por você, desde que fique bem e alegre como sempre.
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:39 am

Se precisar mesmo ir para o convento, quando voltar pensaremos seriamente na adopção.
O barão ficou ainda um tempo com a mulher até que depois saiu, deixando-a sozinha.
Como já era previsto, nos dias que se seguiram Lívia não melhorou, ao contrário, depois de duas semanas recusava-se até mesmo a comer. O barão, preocupado, chamou o dr. Francesco, que diagnosticou crise nervosa. Vendo que não tinha alternativa, ele chamou o padre Enrico. Assim que o sacerdote chegou, levou-o até seu gabinete e o colocou a par da situação. Padre Enrico ficou mais de uma hora em confissão com Lívia. Ao sair, chamou o barão em particular e tornou:
— Senhor barão, sua mulher está gravemente enferma, mas não é do corpo, e sim da alma. Sugiro um retiro espiritual de um ano para que possa se recuperar e que traga uma criança para esta casa. Lívia sofre de angústia, e creio que um filho possa ajudá-la a se curar de vez.
O barão coçou a testa em sinal de preocupação, não queria que a mulher ficasse tanto tempo longe de casa, mas, por outro lado, poderia ser bom, pois ele estaria iniciando uma nova viagem de exploração em duas semanas, sem tempo para voltar. Por fim, acabou concordando:
— Vou permitir que faça um novo retiro no convento, mas peço que espere duas semanas até o dia de minha partida para a África. Convido-o a ficar connosco durante esse período.
Padre Enrico balançou a cabeça negativamente:
— Infelizmente, não será possível esperar. Sua esposa praticamente não come nem dorme direito. Se não entrar rapidamente para o convento, onde será ajudada como deve pelos obreiros de Deus, creio que sucumbirá.
O barão empalideceu. Teria forças para enfrentar tudo, menos a morte da mulher. Apressado, exclamou:
— Então vamos providenciar logo o necessário para a partida dela imediatamente! A última coisa que quero é que minha esposa morra.
Enquanto Luzia e os outros serviçais providenciavam tudo para a saída de Lívia do palacete, o barão convidou o padre Enrico para tomarem um chá. Enquanto conversavam, o barão questionou:
— Senhor padre, por que um problema como esse ataca pessoas como minha mulher?
Padre Enrico, parecendo esperar por aquela pergunta, pousou a xícara no pires e respondeu:
— A angústia é mais comum do que o senhor imagina.
O salmista Davi sofreu de angústia a vida inteira, e isso o senhor pode ver lendo seus salmos. Como padre, acredito que as pessoas mais sensíveis são mais fáceis de entrar num processo desses, mas posso lhe garantir que nada melhor que um encontro com Deus para curar esse problema.
— Minha mulher tem tudo o que deseja, menos um filho. Será essa a causa do problema?
— Sei que a baronesa, antes de tudo, é muito sensível e talvez a falta de um filho aumente ainda mais o problema, por esse motivo, desde já lhe dou uma ideia: lá no convento existem muitas crianças órfãs, elas chegam praticamente todos os meses, algumas com poucos meses de vida. Conversarei com Lívia e, se ela gostar de alguma criança de lá, chamaremos o senhor para legalizar a adopção.
O barão alegrou-se:
— Estava mesmo pensando em como conseguir uma criança. O nosso condado, e mesmo a aldeia, estão cheios de mulheres que poderiam nos dar uma criança facilmente; contudo, não me agrada essa ideia. Prefiro mesmo uma criança que ninguém saiba a origem, corremos menos risco de enfrentar problemas futuros.
A conversa foi encerrada e os dois foram ajudar nos preparativos para a partida de Lívia.
Algumas horas depois, mais uma vez usando da traição e da mentira, Lívia partia para o convento, sem nem mesmo se despedir de Carlos ou Lucas. À maneira dela, buscava a paz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:39 am

IRMÃ LÚCIA E UMA SURPRESA DESAGRADÁVEL
Assim que chegou ao convento, Lívia foi directo para seus antigos aposentos, sem precisar passar pelo bispo Ricardo, que já sabia da situação e não precisava mais interrogá-la, como da última vez.
Padre Enrico deixou-a sozinha no quarto e, em seguida, irmã Lúcia entrou no recinto com ares de cinismo.
— Quer dizer que mais uma vez sucumbiu à tentação, não é? Uma vez pecadora, sempre pecadora.
— Não me acuse, irmã. Se errei, foi por amor. Deus é testemunha disso.
— Não ouse utilizar o santo nome de Deus em vão com essa boca suja pelo pecado e pela luxúria. O que mais os pecadores fazem é usar o amor como desculpa para suas acções hediondas.
Vendo que irmã Lúcia havia entrado ali somente para ofendê-la, Lívia tornou com raiva:
— Por favor, retire-se de meu quarto. A viagem foi cansativa e preciso descansar.
— Não estou aqui à toa, precisamos conversar um assunto muito sério.
— Não tenho nada a tratar com a senhora, por favor, queira se retirar.
— Nem se o assunto for Caius, seu querido filho?
Lívia estremeceu. O que poderia estar acontecendo com Caius? Preocupada, indagou:
— O que está havendo com o meu filho? Pouco antes de chegar, meu primo Enrico garantiu-me que está lindo e bem, vivendo entre os órfãos do padre Amaro. O que lhe pode ter acontecido? Iria apenas descansar um pouco antes de ir vê-lo.
— Pois bem — tornou irmã Lúcia com ar triunfal —, seu menino está mesmo entre os órfãos do padre Amaro, mas sob minha tutela.
— Como assim?
— Desde que soube que você queria levá-lo para sua casa como filho adoptivo, tomei a resolução de não permitir que isso aconteça. O destino de Caius é viver comigo neste convento e se dedicar à vida religiosa.
— Como ousa dizer uma coisa dessas? Ele é meu filho!
Tenho todos os direitos sobre ele.
O rosto da freira se fez ainda mais severo ao dizer:
— Ele deixou de ser seu quando saiu daqui sem levá-lo, agora é tarde. Tomei-me de amores por ele e jamais permitirei que viva com uma mulher vulgar, prostituída e adúltera como você. A mãe dele sou eu.
Lívia parecia não estar ouvindo aquilo. Levantou-se da imensa cama onde estava recostada e, dedo em riste, bradou:
— Se a senhora tentar fazer isso, tenho meios de fazer o bispo Ricardo impedir. Entre ele e meu primo iniciou-se uma sólida amizade e tenho certeza de que o que meu primo pedir ele fará. Parece que a senhora esqueceu que ele é seu superior e quem manda aqui.
— E você parece que se esqueceu de que traiu seu marido com um soldado da guarda.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. — Será que ainda não percebeu que está em minhas mãos? Se tentar me impedir de ficar com o menino, vou informar toda a verdade a seu marido, o barão Rodolfo, um homem bom, mas que certamente jamais vai perdoar sua traição.
Lívia empalideceu.
— A senhora não teria coragem...
— Não duvide do que sou capaz de fazer. Se quiser levar essa outra criança que vai nascer para casa, leve-a, mas Caius jamais sairá daqui, ou então seu marido saberá toda a verdade. Tenho certeza de que, além de não perdoá-la, não aceitará o menino, mandando-o à roda dos expostos.
Sem poder mais dizer nada, Lívia desabou sobre a cama num pranto convulsivo. Sem se apiedar do sofrimento da outra, irmã Lúcia continuou:
— Chore, chore muito. Esse é o resultado do pecado do adultério e da luxúria. Depois que terminar de chorar, veja se reza à Virgem Santíssima para que ela a livre do demónio da orgia que se instalou em sua alma negra e imunda.
Saiu sem olhar para trás, deixando Lívia amargurada e certa de sua derrota.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:39 am

A VERDADE SOBRE IRMÃ LÚCIA E CAIUS
Voltando um pouco no tempo, vamos narrar o que realmente aconteceu entre a abadessa Lúcia e o pequeno Caius. Uma noite, a criança ficou febril e agitada, e por mais que padre Amaro tentasse, ministrando-lhe remédios caseiros, a criança não reagia. Foi quando resolveu pedir ajuda ao bispo Ricardo, solicitando-lhe que mandasse chamar o médico do convento.
O médico demorou mais que o habitual, e a criança, com o passar dos minutos, além de arder em febre, debatia-se inquieta, como se estivesse em princípio de convulsão.
Temeroso de que Caius morresse, padre Amaro mandou chamar irmã Lúcia e padre Enrico para ajudarem-no. Foi quando a freira viu a criança, praticamente pela primeira vez, e algo dentro dela desabrochou. Parecia que aquele ser indefeso só dependeria dela para viver.
Irmã Lúcia nunca antes havia sido tocada por tanto sentimento de amor. Ela mesma se estranhou, mas amava aquele bebê mais que tudo na vida.
Com a força que só o amor real consegue ter, irmã Lúcia orou fervorosamente a Jesus pedindo a cura de Caius. Sua oração foi tão profunda e comovente que arrancou lágrimas dos presentes. Minutos depois, a criança foi se acalmando, até que se aquietou de vez. Milagrosamente, a febre havia cessado, os espasmos também e ele já brincava alegre quando o médico chegou pedindo desculpas pelo atraso.
A partir daquela noite, irmã Lúcia não o largou mais.
Não raro, deixava algumas de suas obrigações para estar com ele, divertindo-o e cobrindo-o de agrados. Para todos do convento, aquela atitude súbita de amor, vinda de uma mulher tão fria, foi motivo de espanto, mas dois anos se passaram e a situação tornou-se costumeira. Perceberam que irmã Lúcia não havia mudado, pois tratava as outras crianças com desprezo, distância e frieza.
O que, de fato, ocorria era que Caius e Lúcia haviam tido um passado espiritual juntos, onde viveram uma encarnação de terna relação afectiva. Houve uma situação dramática com ela, na qual todos a condenaram, fazendo-a pagar por um crime hediondo que não havia cometido.
Só Caius ficou ao seu lado, amando-a sempre, até o dia em que fora apedrejada em praça pública em pleno Oriente Médio.
Lúcia, que era uma pessoa como todas as outras antes do ocorrido, no astral tornou-se vingativa, perversa e má. Levou um a um dos que a acusaram à loucura irreversível por meio de obsessões cruéis, até que, séculos depois, foi chamada para renascer e reencontrar aquele que mais amava.
Por motivos que não nos cabe nesta narrativa revelar, Lívia, Carlos e o barão também estavam envolvidos e viviam agora os efeitos concretos da Lei de Causa e Efeito que disciplina a todos, desencarnados ou encarnados, onde quer que estejam.
*
* *
Após algum tempo chorando, Lívia, cansada, enxugou as lágrimas num pequeno lenço de seda, refez a aparência como pôde e seguiu em busca de padre Amaro.
Além de querer ver como estava o filhinho após dois longos anos, sabia que só o bondoso sacerdote poderia ajudá-la num momento como aquele.
Já era noite, e ela o encontrou tomando sopa com as crianças. O padre, ao vê-la, levantou-se do banco tosco onde estava sentado e foi com alegria que a abraçou:
— Senhora baronesa, quanta alegria em vê-la mais uma vez!
— A alegria é muito mais minha, senhor padre — retribuiu ela com carinho. — Não desejo atrapalhar seu momento de refeição, só quero que me diga onde está Caius.
Não suporto mais a vontade de vê-lo.
O padre fechou o semblante ao dizer:
— Sinto muito, senhora Lívia, mas seu filho não está aqui.
— Como não? Ele não vive entre os órfãos que o senhor cuida?
— Vivia. Mas a abadessa o tomou aos seus cuidados e o levou daqui faz tempo. Agora seu filho vive com ela, dentro do convento.


Última edição por Ave sem Ninho em Qui Dez 15, 2022 11:41 am, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:39 am

Lívia quedou-se aterrada. Aquilo havia ido longe demais.
Desabou num pranto sentido mais uma vez. Padre Amaro, vendo que ela sabia o que havia acontecido, limpou os lábios num pequeno lenço, beijou-a na testa e, abraçando-a, disse:
— Vai ser difícil a senhora enfrentar irmã Lúcia, mas vamos rogar a Deus que abrande o coração daquela mulher e a faça desistir de seus planos.
Lívia continuava chorando, enquanto dizia:
— Que horror, padre! Por que tenho de sofrer tanto assim? Tenho certeza de que Deus está me castigando pela vida devassa que tive antes de engravidar novamente.
Só pode ser isso. Aprendi tanto com o senhor aqui, mas quando cheguei lá fiz tudo errado. Fiz pior do que já fazia.
— O fez, minha filha? Deus apoia nossas fraquezas.
— Eu não soube dominar meus instintos, comportei-me como uma prostituta.
O padre percebeu que Lívia não falava apenas de Carlos. O que ela havia cometido além de trair o marido?
Vendo o sacerdote pensativo, Lívia revelou:
— Envolvi-me com outro homem além de Carlos. Traí não apenas meu marido, mas também o homem que amo.
Tudo em nome da luxúria e dos prazeres carnais.
— Se deseja se abrir, saiba que sempre terá em mim um amigo no qual nunca perceberá olhares de julgamento ou palavras de incompreensão.
Cheia de coragem, inspirada por aquela alma nobre, Lívia foi se abrindo e contou sobre como foi chantageada pelo soldado Lucas, o estupro, e como, tempos depois, cedeu aos seus desejos. Hora alguma percebeu censura no rosto amigo e bondoso de padre Amaro. Quando terminou a narrativa, longos minutos de silêncio sobrevieram sobre eles, nos quais o religioso parecia pensar. Algum tempo depois, ele afagou com carinho as mãos frias e trémulas de Lívia, tornando com bondade:
— Realmente, você agiu com leviandade, deixou-se levar pelos impulsos do momento sem pensar nas consequências, mas eu não tenho o poder de condená-la, nem ninguém tem, nem você mesma. O arrependimento sincero é o guia, o farol seguro a nos guiar para novos caminhos, mais retos e seguros, onde encontraremos a felicidade. Mas, como lhe disse da outra vez em que esteve aqui, não cultive a culpa, pois ela em nada vai auxiliá-la em seu progresso. Se reconhece que não agiu bem, é só começar, a partir de agora, a agir de forma diferente, e quando for oportuno reparar o mal cometido. Também lhe digo, mais uma vez, que Deus é tão soberano e bom que não castiga nenhum de seus filhos. Todas as dores e sofrimentos por que passamos são oportunidades de evolução e progresso que não aconteceram por meio da inteligência e do amor. O que a vida está querendo ensiná-la com a ameaça de irmã Lúcia? Já parou para pensar?
Lívia emudeceu. Nunca havia reflectido sob aquele ângulo, estava perdida, sem saber o que pensar.
— Não sei se a vida quer me ensinar algo. Estou vendo uma mulher má e cruel tentando me roubar o filho amado. O que pode haver de ensinamento numa coisa como essa? Se a vida quer me ensinar algo, deve ser para que eu me torne vingativa e má.
— Muito pelo contrário — atalhou padre Amaro com sabedoria. — Os acontecimentos da vida guardam grandes e preciosas lições. O que Deus quer é que você seja forte e verdadeira, assuma para seu marido que gosta de outro, conte-lhe toda a verdade e suporte as consequências de seus actos. Esta é a única maneira de ter seu filho de volta. Eu tinha certeza de que, um dia, a vida iria lhe cobrar uma atitude diferente. Seu grau de evolução já não lhe permite mais que viva na mentira e na hipocrisia. Deus não coaduna com situações falsas, que trazem sofrimentos grandes e deixam marcas profundas em nossa alma, que só reencarnações sucessivas poderão curar. A verdade, por mais dolorosa que seja, deve ser mostrada, pois dói muito menos que a mentira e a ilusão. Se Deus permitiu que irmã Lúcia fizesse o que fez, é para que você tome consciência de que precisa assumir sua vida e seus actos.
Lívia estava tocada com aquelas verdades, ditas de maneira tão simples e singela.
— O senhor está certo, mas não posso me arriscar a perder Rodolfo e tudo o que conquistei ao seu lado. Minha família depende dele para se manter. Se ele rejeitar meu filho, o que é o mais provável, vai me obrigar a devolvê-lo ao convento, matará Carlos e passarei a viver reclusa para sempre dentro daquele palacete. Não posso fazer isso com minha vida, padre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:40 am

— Mas você já parou para pensar que sua família pode estar necessitando passar pelas provações de uma vida com menos recursos e que você pode optar por ser livre e ir viver com seu filho onde quiser?
— O senhor diz isso porque não sabe o que é a miséria, muito menos conhece o temperamento do barão.
Tenho certeza de que seria muito pior, ele jamais perdoaria o que fiz.
Padre Amaro, intuído pelos espíritos iluminados ali presentes, prosseguiu:
— Você deveria tentar falar a verdade. Algo me diz que o barão a ama tanto que seria capaz de aceitá-la com seus filhos. Tenho certeza de que o coração dele é generoso a ponto de perdoá-la.
— De onde o senhor tirou essa ideia?
— Não sei, minha filha, creio mesmo que um dos anjos de luz está falando ao meu ouvido. Eles clamam para que você fale a verdade.
Lívia estremeceu. Seria melhor? Não seria muito risco? Duvidou:
— Sei que o senhor tentou me ajudar, mas não tenho forças para isso. Mesmo que ele me perdoasse, não aguentaria ver Carlos morto ou afastado de mim.
Disse isso num choro infeliz, retirando-se da grande sala do educandário e deixando padre Amaro reflectindo:
"Muitos resistem à verdade, mas ela é soberana e vence tudo. Por mais que ela fuja, um dia terá de deparar com as próprias acções. Jesus disse que nada permanece oculto para sempre. Rogo-te, Santo Deus, que proteja a querida baronesa quando seu momento chegar".
Padre Amaro não podia perceber, mas ao seu lado estavam seu mentor espiritual e outros espíritos evoluídos, cobrindo-o de luzes e energias saudáveis de paz.
Sentindo uma harmonia interior muito grande, o bondoso sacerdote regressou para a mesa a fim de continuar a refeição interrompida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:40 am

DESFECHO IMPREVISÍVEL
Completamente transtornada, Lívia entrou no convento e dirigiu-se rapidamente à cela de irmã Lúcia. Bateu várias vezes na pesada porta de cedro gritando o seu nome, quando a freira abriu com rosto severo:
— Posso saber que descontrole é esse? Acaso também está possessa? Tomada pelo demónio?
Sem nem ouvir direito o que ela dizia, Lívia a empurrou com força e entrou no quarto à procura de Caius.
Não foi difícil ver a linda criança adormecida numa espécie de berço grande. Lívia se debruçou chorando, acariciando seus cabelos e dizendo:
— Meu filhinho amado! Mamãe está aqui, vim buscá-lo.
Irmã Lúcia puxou violentamente sua mão, agarrando-a pelos punhos:
— Não ouse tirar Caius daí ou então vai se ver comigo.
— Ele é meu filho. Meu! Entendeu? Tenho todos direitos sobre ele.
— Já lhe disse e vou repetir: você perdeu seu filho quando o deixou aqui e foi embora para levar sua vida prostituída.
Aliás, você o perdeu dentro de sua barriga, já que ele é fruto de um ato adúltero. Apenas convivendo comigo é que aprenderá o caminho do bem e da rígida moral.
— Dane-se sua moral, nada neste mundo vai impedir que eu vá embora com meu filho.
Lívia, com força descomunal, empurrou a abadessa, que caiu com força no chão. Pegou Caius nos braços, que agora já havia acordado e chorava, e saiu correndo pelo corredor. Ela estava completamente fora de si, e tudo o que queria era sair dali com o filho.
Vendo a balbúrdia que havia se formado naquela ala do convento, uma das freiras foi até o gabinete do bispo Ricardo e o colocou a par da situação. Logo, ele e Enrico estavam procurando pela baronesa e a acharam próxima à saída, desafiando os guardas, que, sem saberem o que fazer, tomaram atitude de defesa. Enrico a chamou à realidade:
— Minha prima, pare com isso e volte à razão. Não vê que agindo assim só piora as coisas? Dê-me Caius.
A voz do primo pareceu ter feito Lívia voltar ao mundo real. Enrico se aproximou, pegou o menino de seus braços, enquanto o bispo abraçava a baronesa com carinho, dizendo:
— Vamos resolver isso da melhor maneira possível.
Acalme-se.
Lívia só chorava. Deixou-se ser conduzida por eles, até que chegaram ao gabinete do bispo, onde irmã Lúcia já os esperava com expressão de ódio. Ao ver Enrico entrar com Caius nos braços, fez menção de tomar-lhe a criança, ao que foi repreendida com severidade pelo bispo Ricardo:
— A senhora fique onde está e não toque na criança!
— Como ousa se referir a mim nesse tom? — bradou a freira, fuzilando-o.
— A senhora esqueceu que vive aqui sob minhas ordens? Eu sou o responsável por este convento; seu cargo é secundário. Tudo o que se passa aqui sou eu quem decide. Por esse motivo, acalme-se.
Irmã Lúcia calou-se, até porque Caius estava chorando muito. Enrico pediu licença para tentar acalmar a criança em outro recinto e saiu, deixando os três conversando.
Lívia, mais calma, olhava para o bispo como se ele fosse a única esperança de salvação para sua existência.
Percebendo o que lhe ia na alma, ele disse:
— Sinto informá-la, irmã Lúcia, mas a criança pertence à mãe, e é com ela que deverá ficar. A partir de hoje, Caius viverá com a baronesa em seus aposentos e, assim que ela tiver a outra criança e puder partir, vai levá-lo.
O rosto da irmã começou a ficar vermelho e, numa explosão de ódio, ela esmurrou a mesa, dizendo:
— Pensa que não tenho meios de conseguir o que quero? Se o senhor não me devolver a criança, agora mesmo vou escrever uma carta ao barão contando quem é a verdadeira esposa dele.
— Toda correspondência deste convento passa primeiro por minhas mãos. Jamais permitiria que isso acontecesse — tornou o bispo, já visivelmente perdendo a paciência.
Irmã Lúcia não se deu por vencida:
— O senhor está ousando me desafiar. Se continuar assim, vou denunciá-lo às nossas autoridades maiores como praticante de sodomia. Ou pensa que não sei que dorme todas as noites com padre Enrico? Aliás, deve ser por essa razão que o senhor se tomou de amores e passou a defender essa prostituta pervertida, simplesmente porque é prima de seu amante. Se eu denunciá-lo, perderá seu cargo e a punição pode ser a fogueira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 11:40 am

Ricardo perdeu a paciência e, em tom severo, tornou:
— A senhora passou de todos os limites e me parece que o amor por Caius é tanto que também tomou-lhe a razão. Esqueceu que quase todos os nossos superiores praticam o que a senhora chama de sodomia? Pensa que meu superior não sabe que vivo com Enrico? A senhora esqueceu o meu poder sobre os maiores sacerdotes de Roma e o prestígio que tenho com o papa? Se continuar fazendo o que faz, eu mesmo tratarei de transferi-la para bem longe, de preferência mandarei que a encerrem para sempre com as Carmelitas. Fui claro?
Percebendo que fora vencida, irmã Lúcia, abaixou a cabeça e saiu do gabinete feito um furacão, intimamente jurando vingança ao bispo Ricardo e sua nova protegida.
Lívia pegou a mão direita do bispo Ricardo e a beijou com carinho e agradecimento.
— Não precisa fazer isso. Fiz o que fiz por justiça, em primeiro lugar, e em segundo por um pedido de Enrico, que não pude negar. Fique em paz, a partir de hoje poderá ficar com seu filho à vontade e como quiser.
— Deus o abençoe, senhor bispo, e que Ele possa dar-lhe muitas felicidades ao lado do meu primo.
Lívia o abraçou sem perceber o quanto o deixou desconcertado com a observação sobre seu romance com Enrico.
Ao chegar a seu quarto, o primo já a aguardava com Caius completamente calmo em seu colo.
Lívia pegou o filho e, com amor, o abraçou e beijou repetidas vezes. Caius, além de lindo, parecia-se muito com Carlos. Quando serenou o momento de emoção, ela olhou para Enrico agradecendo:
— Não sei o que seria de mim neste momento sem sua ajuda. O bispo me disse que fez tudo isso por um pedido seu.
— Realmente, pedi a ele que intercedesse em seu favor. Irmã Lúcia estava cometendo uma injustiça grande e estávamos esperando apenas você chegar para tomarmos uma providência real. Agora, não facilite. Irmã Lúcia, apesar de religiosa há tantos anos, pouco ou nada aprendeu sobre os ensinamentos de Jesus: é rancorosa e vingativa.
Mesmo com a protecção de Ricardo, tome cuidado com sua alimentação, só ingerindo o que eu mesmo vier lhe trazer.
Lívia sentiu-se gelar. Agora que tinha o filho em seus braços e iria dar à luz mais um, o que menos queria era morrer. Ela queria, sim, viver muitos anos para usufruir da companhia deles. Preocupada, comentou:
— Corro risco de vida, seria melhor não ficar aqui.
— Eu mesmo cuidarei de sua alimentação, não se preocupe.
Vendo a segurança com que o primo dizia aquelas palavras, Lívia acalmou-se. Enrico beijou-a carinhosamente na testa e deixou-a com seu filho. Mesmo com o medo do que lhe pudesse acontecer ali dentro com a figura sinistra de irmã Lúcia a lhe rondar, aquele momento com o menino fez Lívia esquecer-se de tudo o mais. A cama em que estava era grande, e ela aproveitou para trocar as roupas do filho por outras que Enrico havia trazido. Deitou-se com ele, acariciando-o enquanto seus lábios pequeninos despontavam terno sorriso.
A noite, porém, estava longe de terminar os seus espectáculos de emoções. A madrugada ia alta quando o bispo Ricardo saiu de seus aposentos deixando Enrico dormindo placidamente em seu leito.
Com um molho de chaves nas mãos, o bispo caminhou em direcção ao quarto da irmã Lúcia e, com facilidade, abriu a porta. Ele sabia que, com todas as emoções que sentira naquele dia, a irmã estaria adormecida profundamente sob o efeito de sedativos.
Muito rapidamente, retirou o grande travesseiro debaixo de sua cabeça e, com violência, apertou-o contra o rosto da freira, que em poucos segundos começou a se debater tentando salvar-se. A tentativa, contudo, não fez efeito e em poucos minutos ela estava morta.
Vendo seu serviço encerrado, Ricardo colocou o travesseiro de volta no lugar, fechou a porta do quarto e foi para seus aposentos. Padre Enrico ressonava ao seu lado e ele se despiu, deitando-se em seguida.
Ele reflectia que não tivera outro recurso senão matá-la. Irmã Lúcia poderia lhe causar sérios problemas no convento, pois ele sabia que, embora os superiores fossem bastante tolerantes com o amor entre homens, podiam não ser tão tolerantes com a forma como ele vivia com Enrico, como se fossem um casal, dormindo juntos no mesmo quarto e na mesma cama. Embora ninguém pudesse provar nada e irmã Lúcia pudesse passar por mentirosa, ele não podia arriscar. Matá-la fora a melhor solução.
Sem perceber que sombras escuras o enlaçavam com prazer, Ricardo abraçou Enrico e dormiu em seguida, como se nada tivesse acontecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:29 pm

INÍCIO DE UMA VINGANÇA
assava das dez horas da manhã quando a irmã Fátima entrou no gabinete do bispo Ricardo com o semblante preocupado. Esperou que ele terminasse de dar algumas ordens ao padre Enrico e tornou:
— Senhor bispo, creio que irmã Lúcia não está bem.
Fingindo nada saber e já esperando aquele momento, ele perguntou com fingida ingenuidade:
— O que lhe pode ter acontecido? Ainda ontem a abadessa estava aqui conversando connosco com uma aparência muito boa.
— É que ela sempre acorda muito cedo para rezar as matutinas connosco e hoje não apareceu. Até agora está trancada na cela. Temo por sua saúde. Irmã Lúcia sempre foi muito disciplinada e desde que aqui estou nunca faltou às matutinas.
O rosto de Ricardo contraiu-se em fingida preocupação:
— Realmente, é muito estranho. Vamos ver o que se passa.
Pegou o molho de chaves e pediu ao padre Enrico que o seguisse. Logo chegaram à cela da freira.
O bispo bateu algumas vezes na porta, chamando-a baixinho. Como ela não respondia, foi aumentando as batidas e o tom de voz, até que, vencido pelo silêncio, disse:
— Não há outro jeito senão abrir a porta com a cópia da chave que tenho. Creio que irmã Lúcia sofreu um desmaio e pode estar correndo risco de vida. Não tenho tempo a perder.
Assim, girou a chave na fechadura e os três entraram no quarto. A figura pálida, esticada e com os olhos roxos da abadessa causou comoção em irmã Fátima e no padre Enrico, que bradou:
— Ela morreu! Que o Nosso Senhor Jesus Cristo perdoe os seus pecados, a livre das agruras do purgatório e lhe dê um bom lugar ao seu lado no céu.
Irmã Fátima começou a soluçar, e seus soluços logo se tornaram mais altos, chamando a atenção das outras freiras. Logo a porta da cela estava cheia, todos chorando e rezando. O bispo disse calmo:
— Não vamos tocá-la. É fora de dúvidas que teve um ataque súbito do coração e morreu durante a noite. Vamos chamar o dr. Tobias, o único que pode verificar e provar o que estou dizendo. — Virando-se para as freiras que continuavam a chorar, pediu: — Todas se recolham às suas celas. Assim que o médico atestar a morte, vamos providenciar a missa de corpo presente e o sepultamento.
Aprendam que não devem chorar diante dos desígnios de Deus. Orem e peçam forças a Ele.
O bispo Ricardo fechou a porta e, com o padre Enrico, foi chamar o médico. Aquele era um segredo que nem ao amante ele revelaria.
Quando o dr. Tobias chegou e constatou a morte por parada cardíaca, perguntou ao bispo Ricardo:
— Ela teve alguma contrariedade ontem?
— Sim, doutor — respondeu tranquilamente. — Irmã Lúcia estava querendo tirar uma criança da verdadeira mãe e eu tive de interferir. Nunca imaginei que ela fosse ficar tão nervosa a ponto de ter um ataque como esse.
Mas o Nosso Senhor Jesus Cristo sabe que o que fiz foi por justiça. Aqui nesta casa honra-se o nome de Deus e eu não poderia compactuar com um crime.
O médico ajeitou os pequeninos óculos redondos e reflectiu:
— Pobre irmã Lúcia, não sabe o quanto a ira ataca o coração!
— Exacto, doutor. Mas, certamente, Deus sabe que todos nós somos pecadores renitentes.
A conversa foi encerrada assim que o médico assinou o atestado de óbito. O bispo e o padre escolheram as freiras mais velhas para cuidarem de vestir o corpo da falecida e, em seguida, foram se preparar para o funeral.
Ao saber da morte da freira, que tanto a odiava, Lívia teve um choque. Ela sentiu uma espécie de pavor supersticioso e começou a orar mecanicamente. Aos poucos, acalmou-se e pôde acompanhar todo o processo de sepultamento.
Foi o próprio bispo Ricardo quem rezou a missa, exaltando as qualidades da irmã Lúcia, pedindo a Deus que perdoasse suas falhas, afirmando que certamente, naquele instante, ela estaria ao lado de Jesus, no paraíso.
As freiras choravam e cantavam emocionadas. Embora irmã Lúcia fosse a superiora, e muitas vezes tivesse abusado do poder, impondo-lhes castigos desnecessários e humilhações vergonhosas, muitas lhe tinham verdadeiro apreço, principalmente as que não conheciam seus maus pendores e a consideravam uma santa.
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:29 pm

Mas a morte do corpo físico não destrói a alma que nele habita. O homem que age como o bispo Ricardo, eliminando seu suposto inimigo, mal sabe que só faz piorar sua situação, pois ele continuará vivo em outra dimensão, podendo fazer-lhe muito mais mal do que quando encarnado.
Assim que o corpo exalou o último suspiro, irmã Lúcia sentiu-se caindo por um túnel escuro e sem fim e sendo puxada para cima, sempre que ia atingindo o chão.
Ficou nesse vaivém, até que, colada ainda ao corpo de carne, pôde perceber tudo o que lhe tinha acontecido. Por alguns instantes, ficou feliz em saber que Ricardo não havia conseguido matá-la. Assim que conseguisse se levantar iria escrever ao tribunal do Santo Ofício entregando-o como sodomita, que vivia em concubinato com outro homem dentro do convento.
Contudo, por mais que tentasse, não conseguia se locomover.
Seu corpo estava muito pesado e ela não tinha como se mexer.
Habituada ao culto exterior de adoração a Deus, sem que o coração estivesse ligado a Ele, irmã Lúcia sempre viveu como a maioria dos religiosos: numa moral superficial.
Suas orações sempre foram murmúrios de preces decoradas, e sua alma, habituada às ilusões do mal, passou a vida a ferir, magoar, humilhar e desacreditar as criaturas humanas. Era uma materialista.
Assim sendo, seu espírito não teve méritos para ser socorrido no momento do desenlace, que aconteceu em meio ao ódio e desejo de vingança. O padrão energético, provocado pela mente, leva-nos, após a morte física, ao local a que fizemos jus.
Munida com todos esses pontos fracos e deslizes morais, aliados ao baixo padrão vibratório, irmã Lúcia, assim que rompidos os laços que a prendiam ao corpo, seria sugada para uma zona de intensos sofrimentos no umbral. E foi o que aconteceu. Ao se dar conta de que havia desencarnado, vendo tudo o que se passava ao seu redor, seu ódio foi tanto que, assim que o corpo baixou ao túmulo, viu-se atirada a uma poça de lama, onde, ao seu redor, vários outros espíritos gritavam, choravam e gemiam.
Assim, os dias e os meses foram se passando sem que ela soubesse direito onde estava. Uma hora pensava estar no purgatório, outra achava que era o inferno. Sua consciência lhe afirmava que ela não merecia o céu, mas sua esperança era que os anjos, ou o próprio Jesus, fossem tirá-la do purgatório.
Mas como, se ela não se arrependia? Em seu coração o ódio pelo bispo Ricardo e por Lívia só fazia aumentar. E cada vez que o ódio aumentava, irmã Lúcia sentia que seu estômago inchava e crescia assustadoramente. Começou a andar pela escuridão, que de hora em hora se iluminava por archotes segurados por pessoas que andavam por ali. Um dia ela foi chamada por um homem barbudo, rosto severo, vestido de sacerdote católico:
— Finalmente a encontrei, querida irmã. Bem que o Leão me disse que estava por aqui.
— Quem me chama? É um anjo do altíssimo?
— Não, irmã, quem a chama é o monsenhor Virgílio.
Lembra-se de mim?
Irmã Lúcia não se lembrou de pronto, mas logo ele acendeu um archote e, ao ver seu rosto, ela o reconheceu e se alegrou:
— Monsenhor! Salve-me daqui! Sabia que o senhor estava no céu!
— Infelizmente, não estou no céu, irmã, mas vim ajudá-la em seu sofrimento. Dê-me a mão.
Irmã Lúcia obedeceu e foi andando com lentidão e dificuldade pelo lamaçal até que chegaram a uma estrada deserta. Ela indagou:
— Se o senhor não está no céu, onde é que está? Sabemos que só existem o céu, o inferno e o purgatório.
— Você precisa aprender muitas coisas sobre este mundo onde estamos. Também sofri muito e tive muitas dúvidas quando cheguei aqui, mas padre Ambrósio foi muito bondoso e me explicou tudo.
— Quem é padre Ambrósio?
— É o padre da igreja de nossa cidade.
— Cidade? — Irmã Lúcia estava cada vez mais confusa.
Se ela havia morrido, deveria estar no céu, no purgatório ou no inferno, não em uma cidade.
Captando seus pensamentos, monsenhor Virgílio esclareceu:
— Sim, aqui vivemos em cidades, verdadeiras comunidades organizadas como as da Terra.
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:29 pm

Você está assustada porque não se recorda nada de sua vida anterior nem do tempo em que viveu antes de reencarnar. Mas com o tempo vai se lembrar de tudo. Vamos caminhando e logo ficará diante de padre Ambrósio. Tenho certeza de que ele vai esclarecer suas dúvidas totalmente.
Eles foram andando pela estrada pedregosa até que chegaram a uma cidade escura, fétida e feia. Lúcia estava estranhando tudo, até mesmo a conversa do monsenhor, que lhe falara de reencarnação, coisa em que a Igreja não acreditava. Finalmente, chegaram à igreja gótica e entraram. A nave estava lotada e um padre rezava em latim. Lúcia e Virgílio se sentaram nos últimos bancos, e ele apontou:
— Quem está rezando a missa é o padre de quem lhe falei. Assim que terminar, falaremos com ele.
O tempo foi passando e, quando finalmente a missa terminou e as pessoas saíram, padre Ambrósio aproximou-se dizendo com sorriso enigmático:
— Finalmente foi encontrada, irmã. Deu-nos grande trabalho.
— Fico grata pela bondade de ter me tirado do purgatório, que Jesus o abençoe — disse Lúcia, beijando a mão do padre, onde pôde ver a ostentação de um grande anel.
Curiosa, perguntou: — Posso saber que lugar é este?
— Esta é a Cidade da Fé, e aqui é nosso templo religioso. — Mas as pessoas que estavam aí não pareciam bem.
Quase todas tinham feridas no rosto, as roupas estavam rasgadas; enfim, tinham aparência horrível.
— É que todos estão buscando justiça e, enquanto não conseguirem, não poderão ficar bem, com o corpo sadio.
— Justiça? Aqui nesta igreja se faz justiça?
— Sim. Aqui julgamos todos os casos de pessoas que sofreram injustiças na Terra e, conforme for, damos o veredicto.
— O que fazem?
— Fazemos justiça com as próprias mãos.
Pelo corpo da irmã passou um arrepio estranho.
Percebendo o que ela sentia, o monsenhor procurou ser amável:
— Não se assuste. Sabemos a boa católica que foi e, principalmente, o quanto foi injustiçada pelo bispo Ricardo, que a matou sem dó nem piedade.
Irmã Lúcia se alegrou, pois finalmente alguém avaliava sua dor:
— Exacto, monsenhor. Amei aquela criança desde que a vi doente, orei por ela e ela ficou boa. Além de terem-na tirado de mim, ainda me mataram. Eu não merecia isso, logo uma pessoa que tanto se dedicou às orações e se entregou a Jesus.
— Sabemos disso, irmã. E também que cometeu muitos pecados na Terra, mas eles já estão perdoados. Preciso lhe dizer que aqui nesta cidade se vive a verdadeira moral do Cristo e não será tolerado nenhum deslize, por menor que seja. Por essa razão, pedimos que ore muito quando seus desejos impuros aparecerem, pois, se quiser dar vazão a eles, será levada àquele local novamente e nunca mais ninguém vai resgatá-la.
Irmã Lúcia assustou-se e, vendo que ele falava com severidade, tornou:
— Farei tudo certo. Quero ser a verdadeira serva de Cristo.
— Muito bem. Agora precisamos tratar de seu caso. Vamos estudar uma maneira de punirmos o bispo e a baronesa Lívia; afinal, foi por causa da volta dela que tudo lhe aconteceu.
Ao ouvir o nome de Lívia, o ódio tomou conta de todo o ser de irmã Lúcia, fazendo-a dizer, com os punhos cerrados:
— Quero um destino muito pior do que o que eu tive para aqueles dois.
— E eles o terão, não tenha dúvidas. Jesus disse que quem com ferro fere com ferro será ferido; e disse, também, que saciaria aqueles que têm sede de justiça.
Irmã Lúcia agora gargalhava de alegria. Quando a exaltação terminou, padre Ambrósio pediu ao monsenhor Virgílio:
— Leve-a para conhecer a praça principal da cidade e, em seguida, providencie aposentos para ela.
Lúcia tinha muitas perguntas, mas achou melhor fazê-las ao monsenhor tão conhecido seu. Ela estava assustada, pois nunca poderia imaginar que depois da morte existiria uma cidade como aquela. Pensava que no céu só existia a Nova Jerusalém, à qual se referia o Apocalipse.
Padre Ambrósio entrou na igreja e os dois amigos começaram a andar pelas ruas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:29 pm

A CIDADE DA FÉ
Enquanto percorriam as ruas daquela estranha cidade, irmã Lúcia ia questionando:
— Nunca imaginei que existisse um lugar como este depois da morte. Como o senhor veio parar aqui?
— Fui injustiçado quando vivi na Terra. Morri de repente e parei naquele mesmo lugar onde você estava. Felizmente, Deus mandou um grupo que trabalha para padre Ambrósio ir me buscar. De lá para cá, vivo aqui, ajudando meus amigos católicos a fazerem justiça.
— Mas faz mais de dez anos que o senhor morreu.
Não deveria estar no céu?
Virgílio sorriu da inocência dela:
— Você terá de aprender muitas coisas que não sabia enquanto vivia lá na Terra. A primeira delas é que não existe céu nem inferno.
Irmã Lúcia assustou-se:
— Como não? Jesus Cristo os mencionou diversas vezes no Evangelho.
— Mas o Evangelho foi mal interpretado pelos religiosos, inclusive pela Santa Madre Igreja. Não sei bem como isso aconteceu, mas a verdade é que nunca vi céu algum por aqui, muito menos inferno.
— Mas a região onde eu estava não era o purgatório?
— Podemos dizer que é uma zona purgatória, mas o purgatório também não existe como imaginamos, nem como foi ensinado pela Igreja Católica.
Irmã Lúcia continuava confusa:
— E como se chama aquele lugar infernal e horroroso?
— As pessoas aqui costumam chamá-lo de umbral.
Aliás, esta nossa cidade também está localizada no umbral.
— Umbral? Por que esse nome?
— Porque dizem se tratar de uma zona de passagem a ambientes superiores. Mas ninguém aqui acredita que existam esses tais ambientes superiores. De vez em quando, aparece alguém aqui dizendo morar em outra esfera, querendo nos convencer a deixar a justiça e seguir com eles.
Mas isso é conversa mentirosa. Como pode alguém querer nos privar de fazer justiça? Então os maus permanecerão para sempre fazendo o que querem sem punição?
— Mas Jesus mandou perdoar a todos e esquecer o mal.
— Perdoar não significa deixar de fazer justiça. Aqui em nossa igreja estudamos o Evangelho de forma mais profunda e, quando concluímos os estudos, mandamos alguém especializado ir à Terra influenciar os religiosos a pensarem como nós.
Irmã Lúcia ia continuar perguntando quando ambos entraram em uma grande praça com um coreto no meio e um grande templo, de aspecto moderno, mas com aparência de sujo e abandonado. Percebendo o que Lúcia ia perguntar, monsenhor Virgílio se adiantou:
— Este é o templo "Só Jesus é o caminho" e pertence aos protestantes.
— Protestantes? Esse bando de arruaceiros que vieram desviar as pessoas da religião verdadeira? Como vocês permitem que eles fiquem aqui?
— Esta cidade não é só dos católicos. A Cidade da Fé pertence a religiosos de várias denominações, inclusive religiões orientais. Nós nos juntamos aqui por afinidade, pois não importa a religião, todos aqui desejam justiça.
Todos os que aqui residem sofreram agruras enquanto viviam na Terra, e agora querem ver seus desafectos pagando pelo que fizeram.
A freira notou que na praça havia outros templos e logo percebeu que cada um era de uma religião diferente*.
O monsenhor a convidou:
— Vamos entrar e ouvir um pouco a pregação desse líder protestante?
— Como o senhor, um católico, convida-me para assistir a uma pregação dessas?
— Entre e verá por quê.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:29 pm

Irmã Lúcia obedeceu-lhe e ambos entraram e se sentaram no último banco. A igreja estava lotada e um orador dizia em altos brados:
— Precisamos colocar todos os que se desviaram do caminho no lugar certo. Não podemos tolerar mais a prostituição, o adultério, a sodomia, o roubo, as fornicações.
Os nossos irmãos protestantes na Terra estão relaxando com relação à verdadeira moral. Por tudo isso, temos de invadir os templos e os estimular ao preconceito. Sim, meus irmãos, ao preconceito. Só ele pode fazer com que as pessoas entrem pela porta estreita. Infelizmente, o fim vai
justificar os meios. Se depender de nós, a comunidade protestante da Terra vai se tornar cada vez mais severa com os incautos e pecadores. Se Deus agiu com toda sua ira sob Sodoma e Gomorra, por que nós não podemos fazer o mesmo? Jesus também não agiu com violência contra os vendilhões do templo? Não podemos mais deixar a coisa solta como está, pois daqui a algum tempo o demónio dominará todos.
A plateia delirava de emoção, gritando, cantando e chorando ao mesmo tempo.
O homem continuou falando e o monsenhor resolveu se retirar. Do lado de fora, ele olhou para irmã Lúcia e disse:
— Entendeu por que temos muito em comum? Queremos livrar a Terra do pecado, que é o que nos faz sofrer.
Se não fosse o pecado, o bispo Ricardo não a teria matado.
— Entendi. Mas nossa igreja está, também, muito liberal em suas vivências. Pregam uma coisa e fazem outra.
— É por esse motivo que vamos fazer com que todos os religiosos católicos também se encham de preconceito, abominem os pecadores e os humilhem. Só assim eles vão parar com suas práticas abomináveis. Inspiramos a criação da Inquisição, mas parece que não surtiu o efeito esperado. Vamos intensificar as torturas e punições.
Irmã Lúcia estava com muitas dúvidas, e a lembrança de Helena, uma das noviças mortas por ela, encheu-a de medo.
— Gostaria de saber onde está uma pessoa que morreu.
Era uma noviça do nosso convento — perguntou um tanto acanhada.
— Sei de toda a história, não precisa ter receio.
— Helena continua no convento, com o espírito do seu pai, em estado lastimável. Não quis sair de lá, e já tentamos convencê-los de que toda a culpa foi do bispo. Eles serão nossos aliados na hora da punição.
Irmã Lúcia sentiu-se aliviada:
— Estava com medo de que ela estivesse solta, querendo se vingar de mim. Não só ela, mas todas as outras que matei a mando do bispo Ricardo.
— Não se preocupe. Todas elas sabem que a culpa é do bispo, a maioria nem se lembra de você. Outras seguiram com esses que aparecem aqui e foram para outros lugares.
— E quando vamos começar nossa vingança?
— Vamos aguardar as determinações do padre Ambrósio.
Faremos um julgamento e decidiremos. Mas há um pequeno problema que, se não for resolvido, talvez não possamos justiçar o bispo.
— Que problema? — bradou Lúcia, começando a ficar furiosa.
— Ele está amando, e isso muda muita coisa. Esse sentimento pode ser ruim em muitos casos.
— Amando?
— Sim. Está amando sinceramente o padre Enrico, e esse rapaz está conseguindo modificá-lo. Hoje ele está arrependido de tê-la matado.
— E o que esse sodomita pode fazer para nos impedir a vingança?
— Os dois se amam, e Enrico tem uma fé poderosa.
Você sabe o poder da fé.
— Mas quem é sodomita não é ouvido por Deus.
— Como não? Esqueceu que você forçava as noviças a dormirem ao seu lado? Mesmo assim, quando orou para Caius ficar bom, Deus a ouviu e a criança se curou.
O rosto de irmã Lúcia enrubesceu.
— Mas o senhor sabe que eu sentia atracção pelos homens também, não foram poucos os diáconos e noviços com os quais me entreguei aos prazeres da carne. As mulheres, para mim, sempre ficaram em segundo plano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:31 pm

— Não importa — atalhou o monsenhor. — Deus disse que é pecado abominável deitar-se com pessoas do mesmo sexo. Mesmo assim, ele ouve essas criaturas pervertidas. Enrico tem orado a Deus para que o bispo se modifique, e parece que está conseguindo. Temos de neutralizá-lo, ou então nada feito.
— Faremos isso, custe o que custar.
Os dois andaram mais um pouco, até que, no fim de uma viela, pararam num pequeno casebre.
— Aqui será sua casa, a partir de agora.
Lúcia achou o lugar feio, sujo e malcheiroso. Percebendo seus pensamentos, Virgílio tornou:
— Aqui, vivemos tão ligados a nossos planos de justiça que não temos tempo para a limpeza nem para embelezar casas. Terá de se acostumar.
Irmã Lúcia percebeu que naquele ambiente as pessoas tinham um poder mágico de ler os pensamentos das outras. Por essa razão, procurou não pensar em mais nada, abraçou o amigo e entrou na casa.
O que viu por dentro a deixou ainda mais contrariada.
A pequena morada era iluminada por um archote. Havia uma cama pequena de madeira envelhecida, um criado-mudo com uma bandeja contendo pães e um piso de terra batida que a horrorizou. Deitou-se, mas não conseguiu dormir sentindo fome. Pegou um dos pães e, mesmo percebendo que ele estava mofado, comeu assim mesmo. Em seguida, ajeitou-se sobre o colchão desconfortável e adormeceu.
No outro dia, pela manhã, um homem estranho foi chamá-la:
— Monsenhor Virgílio e padre Ambrósio desejam lhe falar com urgência.
— Sabe do que se trata?
— Dizem já ter a solução para o seu caso.
Irmã Lúcia alegrou-se. Foi seguindo o homem e, embora fosse dia, ela percebeu que não conseguia ver o sol, que estava encoberto por espessa neblina. Não se importou com isso, para ela o mais importante era a vingança que, mais rápido do que imaginou, iria colocar em prática.
Ricardo e Lívia veriam do que ela era capaz.

* Não faço crítica alguma a nenhuma religião, contudo, não podemos deixar de mostrar como e onde começou o desvirtuamento dos princípios divinos do Evangelho do Cristo. A Cidade da Fé, em verdade, é um lugar inferior que existe até os dias actuais, no qual são criadas as ideias erróneas que permeiam quase todas as religiões do mundo, também contando, actualmente, com núcleos espíritas (Nota do Autor Espiritual).
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:34 pm

MADRE CATARINA: O ANJO BOM
As coisas foram se normalizando no convento e, aos poucos, todos foram se conformando com partida súbita de irmã Lúcia. Nos primeiros dias, algumas orações, a missa de sétimo dia e, em seguida, o esquecimento quase total.
Lívia estava muito feliz; passara a se dedicar integralmente ao filhinho Caius e ao que estava para nascer. Vez por outra, estremecia por não saber ao certo quem era pai, se Lucas ou Carlos, mas rogava a Deus auxílio.
O posto que irmã Lúcia ocupou como madre superiora era muito importante e urgia a necessidade de substituí-la. Por esse motivo, o bispo Ricardo mandou uma carta aos seus superiores em Roma pedindo que lhes enviassem uma nova religiosa para a dedicação total às noviças e freiras que ali viviam.
Em uma manhã ensolarada, irmã Catarina, uma senhora de meia-idade, rosto alvo, olhos claros, postura firme, chegou ao convento e se apresentou como enviada para a substituição.
Era uma mulher que resolveu se dedicar à religião por amor e devoção. Tinha nos olhos uma alegria e serenidade que encantavam e estava sempre com um sorriso nos lábios, ainda que discreto.
O bispo Ricardo simpatizou com ela assim que a viu, e ambos travaram longa conversa. Depois, ele a levou para conhecer todo o mosteiro. Logo ela estava conversando com simpatia com as noviças e freiras, que também se agradaram com sua figura.
Na verdade, irmã Catarina era um espírito bastante evoluído, que, assim como padre Amaro, escolheu, antes de reencarnar, nascer e viver no meio católico como freira, na tentativa de espalhar as luzes do Evangelho do Cristo em sua pureza primitiva. Por esse motivo sua postura, além de firme, mostrava que ela estava muito à frente do seu tempo.
Lívia encontrou-a no corredor ao acaso. Ela a olhou e disse:
— Que linda barriga! Certamente terá uma linda criança!
— Quanta bondade a sua, madre, em fazer essa observação.
Minha filha está perto de nascer e rogo a Deus que seja muito bonita mesmo.
— Como sabe que é menina? — perguntou a madre, curiosa.
— Intuição de mãe. Tenho certeza de que desta vez será uma menina e eu a chamarei de Nicole.
— Lindo nome, que Deus a proteja!
— Amém!
De repente, irmã Catarina empalideceu ligeiramente, respirou fundo e, com voz levemente modificada, disse:
— Você deverá estar preparada para sua volta à casa.
Muitas surpresas a aguardam e seu espírito terá de ser forte para saber aceitar os destinos humanos e as vontades de Deus. Apesar de se julgar errada, Deus a ama do mesmo jeito. Para ele não existem pecados, erros ou acertos, tudo faz parte do processo natural de evolução do espírito.
Peça muita força a Jesus e prove a si mesma que é capaz de vencer todos os desafios que a vida lhe trouxer.
Lívia ficou assustada e sem saber o que dizer, indagando-se intimamente o que acontecera àquela freira. Irmã Catarina, sem se constranger, deu outro suspiro leve e a convidou:
— Aceita fazer uma oração comigo?
— Aceito, madre, mas por que me disse essas coisas?
— Senti vontade de dizer. Deus, às vezes, nos manda recados importantes por meio de outras pessoas. Você acredita nisso?
— Bem... Eu... — Lívia não sabia o que responder.
— Sei que está confusa, mas saiba que Deus tem várias formas de se comunicar connosco. Muitas vezes o procuramos no céu ou tão longe que não o podemos alcançar, mas Ele mora bem perto, na verdade, dentro de cada um de nós.
— Já ouvi um padre dizer que o pecado separa o homem de Deus. Mas pelo visto, e pelo que me falou há pouco, a senhora não pensa assim.
— De jeito algum! — sorriu a freira com amabilidade.
— Nada pode separar o homem de Deus. Somos uma centelha divina. Por mais que o homem se perca nos caminhos das ilusões, por pior que ele possa parecer, jamais está separado de Deus. Deus é a força motriz que a tudo comanda, desde os universos infinitos até as pétalas de flores que o vento leva. Como poderia estar separado do homem, que é a sua criação mais perfeita?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:38 pm

— Mas quando pecamos, afastamo-nos de Deus, não é?
— Pensar assim é uma ideia dos homens. Quando agimos fora de nosso nível de evolução, podemos sofrer muito e sentir que Deus está distante, mas não é verdade.
Nós é que pensamos estar afastados Dele, mas Ele não fica longe de nós nem por um segundo que seja. Deus ama todos, sem distinção e com amor, Ele nunca nos abandona.
Agora, vamos orar.
Lívia e a madre foram para o jardim, ajoelharam-se na grama e oraram com fervor, pedindo paz, alegria, saúde e muita felicidade para todas as pessoas. Ao término, Lívia estava banhada em lágrimas pela profundidade da prece, e disse:
— A senhora não sabe o enorme bem que me fez! Às vezes, ainda me sinto angustiada, aflita e culpada pelos meus erros. Não sei o que fazer quando fico assim.
— Apenas pense que Deus a ama, apesar de tudo e acima de tudo. Pense, também, que Ele não leva em conta o nosso tempo de ignorância, no qual precisamos experimentar diversas coisas a fim de aprender as suas leis. Não é errado errar. O que chamamos de erros são experiências mal-sucedidas, mas que fazem parte do aprendizado e são naturais. Para Deus ainda somos crianças aprendendo a dar os primeiros passos e, assim como a criança, é natural que caiamos várias vezes até aprendermos a andar.
Lívia abraçou a madre com muito carinho e afirmou:
— Eu queria que todos os religiosos fossem como a senhora. O mundo estaria bem melhor.
— O mundo já está melhorando e vai melhorar cada vez mais. Confie em Deus e prossiga com a esperança no coração.
As duas ainda continuaram conversando animadamente até que a madre foi chamada e teve de entrar.
Os dias que se seguiram foram normais, sem maiores acontecimentos. Após duas semanas daquele diálogo entre a irmã Catarina e Lívia, a baronesa foi surpreendida com a visita inusitada do seu primo Enrico.
— Enrico! O que deseja uma hora dessas aqui?
— Sei que está tarde e você precisa se recolher, mas preciso falar-lhe.
— Por favor, entre.
Após se acomodar, ele começou:
— Algo muito estranho está acontecendo com o bispo Ricardo, estou deveras preocupado.
— O que há com ele? Há alguns dias que não o vejo.
— Ele praticamente não sai do quarto. Queixa-se de dores pelo corpo, cansaço excessivo e uma tristeza tão grande que o faz ficar prostrado.
— Já chamou o dr. Tobias?
— Sim, ele diagnosticou um princípio de doença nervosa.
Estou com medo de perdê-lo.
Enrico abraçou a prima e lágrimas sentidas rolaram de sua face.
— Acalme-se. Ele vai ficar bom.
— Temo que não. Os remédios receitados pelo dr. Tobias não fizeram efeito, e ele emagrece a olhos vistos.
Lívia começou a ficar preocupada. Nunca vira o primo sofrendo daquela forma.
— Deve haver uma solução. Chamem o médico outra vez.
— Já chamamos, mas ele nos disse que as doenças nervosas praticamente são desconhecidas pela medicina e que a maioria não tem cura. O que será de mim e de nós todos deste convento se Ricardo perder a razão?
— Você acha que isso pode acontecer?
— Da forma como está, não duvido. Ontem à noite levantou-se da cama e começou a andar em círculos falando coisas desconexas. Tenho a impressão de que...
Lívia percebeu que Enrico estava com receio de falar e, por essa razão, o encorajou:
— Fale, primo! Entre nós não pode haver segredos.
O que você acha?
— Eu acho que o satanás está tomando a alma dele — Enrico desabou num choro profundo e desesperado.
Lívia sentiu-se arrepiar.
— Mas como pode? O bispo é um homem de Deus.
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Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro - Página 2 Empty Re: Donos do Próprio Destino - Hermes/Maurício de Castro

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 15, 2022 8:40 pm

O diabo não tem forças sobre ele. Aliás, o padre Amaro deveria saber disso com urgência. Ele me disse que o diabo não existe e que quem ataca as pessoas são os espíritos dos mortos que já viveram na Terra. Já imaginou que isso pode estar acontecendo com ele?
Enrico assustou-se.
— Padre Amaro disse isso? Como ele teve coragem?
— Pelo amor do santo Cristo, não diga que lhe contei, ele me pediu sigilo.
— Não precisa se preocupar, padre Amaro não vai se aborrecer se souber que a informação veio de você.
Preciso procurá-lo agora. Você vem comigo?
— Sim, espere apenas que me troque e me certifique de que Caius está dormindo.
Feito isso, os dois partiram para os aposentos do bondoso padre. Eles sabiam que padre Amaro tinha por hábito aproveitar mais as horas e, por esse motivo, dormia muito tarde. Lia muito e estudava os assuntos que lhe agradavam. À primeira batida na porta, ele os atendeu. Após os cumprimentos de praxe, padre Enrico entrou e contou-lhe todo o drama. O padre ouviu-o com atenção e comentou:
— Tenho certeza de que o bispo está sendo atacado pela alma de alguém que o odeia. Precisamos orar por ele.
— Mas quem pode odiá-lo? — questionou padre Enrico assustado. — Ricardo sempre fez o bem.
— Você não lhe conhece o passado, mas tenho motivos de sobra para dizer-lhe que existem muitas almas sofredoras no outro mundo com desejo de se vingarem do bispo.
Enrico não sabia o que responder. Achava Ricardo um verdadeiro homem de bem.
— Não vamos perder tempo. Vamos chamar a irmã Catarina e nos dirigir ao quarto do bispo Ricardo.
— Chamar a madre? Para quê? Ricardo não vai aceitar e pode ficar ainda mais furioso — avisou o padre Enrico temeroso.
— A madre contou-me, em segredo, que tem uma capacidade especial que descobriu quando entrou para a vida religiosa e que quase a levou à morte, mas ela aprendeu a controlá-la e hoje vive bem.
— Que capacidade é essa?
— Ela tem o dom de deixar que as almas dos falem por meio de sua boca.
Enrico assustou-se:
— Mas isso é perigoso.
— Não é. É algo natural da vida.
— Mas o que ela pode fazer para ajudar?
— Se o caso for realmente grave como você me diz, talvez apenas a oração não resolva. É preciso conversar com essas almas, saber o que elas querem, tentar fazer com que desistam de atacar o bispo. Só assim elas irão embora.
— Eu tenho medo — comentou Enrico. — E não sei se Ricardo vai aceitar.
— Ele não tem condições de escolher. Vamos agora.
Mesmo com temor, Enrico e Lívia acabaram aceitando e seguiram com ele.
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