LUZ ESPÍRITA
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Série André Luiz - LIBERTAÇÃO

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:47 pm

Assumindo ares de pessoa super inteligente, comunicou ao nosso Instrutor que resolvera solicitar a neutralidade dos servos espirituais do professor operante.

Com fina sagacidade asseverou que era necessário evitar a piedade do médium e confundir-lhe as observações, através de todos os recursos possíveis.

Em seguida à elucidação que me surpreendeu, rogou a presença de um dos colaboradores mais influentes e apareceu diante de nós a esquisita figura de um anão de semblante enigmático e expressivo.

Expedito, Saldanha pediu-lhe cooperação sem rebuços, esclarecendo que o operador da casa não deveria penetrar o problema de Margarida, na intimidade. Prometia-lhe, em troca do favor, não só a ele, mas também a outros auxiliares no assunto excelente remuneração em colónia não distante.

E descreveu-lhe, com largas promessas quanto lhe poderia proporcionar em regalo e prazeres no cortiço de entidades perturbadas e ignorantes, onde conhecêramos Gregório.

O serviçal manifestou indisfarçado contentamento e assegurou que o médium não perceberia patavinas.
Com justificada curiosidade, acompanhei o desenrolar dos acontecimentos.
Logo à entrada do gabinete, percebi que a oficina não inspirava segura confiança.

O professor pôs-se imediatamente a combinar o preço do trabalho de que se encarregaria, exigindo adiantadamente de Gabriel significativo pagamento.
O intercâmbio ali, entre as duas esferas, se resumia a negócio tão comum quanto outro qualquer.

Sem detença, reconheci que o médium, se podia controlar, de algum modo, os Espíritos que se alimentavam de seu esforço, era também facilmente controlado por eles.

O recinto jazia repleto de entidades em fase primária de evolução.

Saldanha, excessivamente atarefado, anunciou-nos que presidiria, de perto, aos trâmites da acção mediúnica, notificando-nos, prazeroso, que lhe fora hipotecada plena ajuda das entidades ali dominantes.

Em razão disso, podíamos analisar os factos, em companhia de Gúbio, recolhendo preciosa lição.

Depois de visivelmente satisfeito no acordo financeiro estabelecido, colocou-se o vidente em profunda concentração e notei o fluxo de energias a emanarem dele, através de todos os poros, mas muito particularmente da boca, das narinas, dos ouvidos e do peito.

Aquela força, semelhante a vapor fino e subtil, como que povoava o ambiente acanhado e reparei que as individualidades de ordem primária ou retardadas, que coadjuvavam o médium em suas incursões em nosso plano, sorviam-na a longos haustos, sustentando-se dela, quanto se nutre o homem comum de proteína, carboidratos e vitaminas.

Examinando a paisagem, Gúbio esclareceu-nos em voz imperceptível aos demais:
— Esta força não é património de privilegiados.
É propriedade vulgar de todas as criaturas, mas entendem-na e utilizam-na somente aqueles que a exercitam através de acuradas meditações.

É o “spiritus subtilissimus” de Newton, o “fluido magnético” de Mesmer e a “emanação ódica” de Reichenbach.

No fundo, é a energia plástica da mente que a acumula em si mesma, tomando-a ao fluido universal em que todas as correntes da vida se banham e se refazem, nos mais diversos reinos da natureza, dentro do Universo.

Cada ser vivo é um transformador dessa força, segundo o potencial receptivo e irradiante que lhe diz respeito.
Nasce o homem e renasce, centenas de vezes, para aprender a usá-la, desenvolvê-la, enriquecê-la, sublimá-la, engrandecê-la e divinizá-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:47 pm

Entretanto, na maioria das vezes, a criatura foge à luta que interpreta por sofrimento e aflição, quando é inestimável recurso de auto-aprimoramento, adiando a própria santificação, caminho único de nossa aproximação do Criador.

Vendo a cena que se desenrolava, ponderei:
— É forçoso convir, porém, que este vidente é vigoroso na instrumentalidade.

Permanece em perfeito contacto com os Espíritos que o assistem e que encontram nele sólido sustentáculo.

— Sim — confirmou o orientador, sereno —, mas não vemos aqui qualquer sinal de sublimação na ordem moral, O professor de relações com a nossa esfera, inabordável, por enquanto, ao homem comum, sintoniza-se com as emissões vibratórias das entidades que o acompanham em posição primitivista, pode ouvir-lhes os pareceres e registar-lhes as considerações.

Entretanto, isto não basta.
Desfazer-se alguém do veículo de carne não é iniciar-se na divindade.

Há bilhões de Espíritos em evolução que rodeiam os homens encarnados, em todos os círculos de luta, muito inferiores, em alguns casos, a eles mesmos e que, facilmente, se convertem em instrumentos passivos dos seus desejos e paixões.

Daí, o imperativo de muita capacidade de sublimação para quantos se consagram ao intercâmbio entre os dois mundos, porque, se a virtude é transmissível, os males são epidémicos.

Nesse ínterim, reparamos que o médium, desligado do corpo físico, se punha a ouvir, atencioso, justamente a argumentação do assalariado mais inteligente, cuja cooperação Saldanha requisitara.

— Volte, meu amigo — asseverava, jactancioso, ao médium desdobrado —, e diga ao esposo de nossa irmã doente que o caso orgânico é simples.
Bastar-lhe-á o socorro médico.
— Não é uma obsidiada vulgar? — inquiriu o médium, algo hesitante.

— Não, não, isto não!
Esclareça o problema.
O enigma é de medicina comum.
Sistema nervoso em frangalhos.

Esta senhora é candidata aos choques da casa de saúde. Nada mais.
— Não seria lícito algo tentar em favor dela? — tornou o psiquista, sensibilizado.

O interpelado riu-se numa tranquilidade de pasmar e rematou:
— Ora, ora, você deve saber que, individualmente, cada criatura tem o seu próprio destino.
Se nosso concurso fosse eficiente, não teria gosto para tergiversações. Não há tempo a perder.

A essa altura, Saldanha endereçava-lhe um sorriso de satisfação, aprovando o alvitre e fazendo-nos sentir como é possível enganar a muitos, quando o homem apenas confia na estreiteza da sua própria observação.

Perante o quadro que nos era dado apreciar, ousei dirigir-me discretamente a Gúbio, indagando:
— Não nos achamos diante de autêntica manifestação espiritista?

— Sim — confirmou em tom grave —, à frente de legítimo fenómeno dentro do qual uma individualidade encarnada recebe os pareceres de outra, ausente do envoltório carnal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:47 pm

Entretanto, André, os companheiros de ideal cristão, corporificados na Crosta da Terra, vão compreendendo agora que o fenómeno em si é tão rebelde quanto o rio encachoeirado que rola a esmo, sem comportas, sem disciplina.

Jamais endossaremos um Espiritismo dogmático e intolerante.

É imprescindível, porém, que o clima da prece, da renúncia edificante, do espírito de serviço e fé renovadora, através de padrões morais nobilitantes, constitua a nota fundamental de nossas actividades no psiquismo transformador, a fim de que nos encontremos, realmente, num serviço de elevação para o Supremo Pai.

Temos aqui um médium de possibilidades ricas e extensas, que, pelo simples comércio vulgar a que reduziu a movimentação de suas faculdades, não acorda impressões construtivas naqueles que o buscam.

Pode ser um cooperador valioso em certas circunstâncias, mas não é o trabalhador ideal, susceptível de provocar o interesse dos grandes benfeitores da Vida Superior.

Estes não se animariam a comprometer grandes instruções por intermédio de servidores, bem intencionados embora, que não vacilam em vender as essências divinas em troca de recursos amoedados da luta comum.

O caminho da oração e do sacrifício é, portanto, indispensável ainda a quantos se propõem dignificar a vida.
A prece sentida aumenta o potencial radiante da mente, dilatando-lhe as energias e enobrecendo-as, enquanto a renúncia e a bondade educam a todos os que se lhes acercam da fonte, enraizada no Sumo Bem.

Não basta, dessa maneira, exteriorizar a força mental de que todos somos dotados e mobilizá-la.
É indispensável, acima de tudo, imprimir-lhe direcção divina.

É por esta razão que pugnamos pelo Espiritismo com Jesus, única fórmula de não nos perdermos em ruinosa aventura.

Compreendi os preciosos argumentos do Instrutor, pronunciados à meia voz, e, extremamente impressionado, guardei respeitoso silêncio.

O vidente retomou a gaiola física, finalizando a operação simplesmente técnico-mecânica de contacto com a nossa esfera, sem qualquer resultado no capítulo de elevação espiritual que lhe melhorasse o ambiente.

Abriu os olhos, reajustou-se na cadeira e informou a Gabriel que o problema seria solucionado com a colaboração da psiquiatria.

Comentou a situação precária dos nervos da doente e chegou a indicar um especialista de seu conhecimento para que novo método de cura fosse tentado.

O casal agradeceu, comovidamente, e, enquanto se articulavam as despedidas, o professor recomendou à enferma resistência e cautela, ante OS estados mentais depressivos.

A jovem senhora recebeu as observações com o desencanto e a dor de quem se sente alvejado pelo sarcasmo, e partiu.

Saldanha, à nossa vista, abraçou os cooperadores, que tão bem haviam desempenhado a deplorável tarefa, combinou ocasião de encontro amistoso, a fim de comemorarem o que se lhes figurava significativo triunfo e, em seguida, notificou-nos em voz firme:
— Vamos, amigos! Quem começa a vingança deve marchar seguro até ao fim.

Endereçou-lhe Gúbio triste sorriso, com que disfarçava a aflição extrema, e acompanhou-o, humildemente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:47 pm

12 - Missão de amor

Voltando a casa, algumas horas transcorreram tocadas para nós de singular expectativa;
entretanto, à noitinha, Saldanha manifestou o propósito de visitar o filho hospitalizado.

Com espanto, reparei que o nosso Instrutor lhe pedia permissão para que o acompanhássemos.

O perseguidor de Margarida, algo surpreso, acedeu, indagando, porém, quanto ao móvel de semelhante solicitação:
— Quem sabe se poderemos ser úteis? — respondeu Gúbio, optimista.

Não houve relutância.
Guardadas rigorosas precauções por parte de Saldanha, que se fez substituir, junto à doente, por Leôncio, um dos dois implacáveis hipnotizadores, rumamos para o hospício.

Entre variadas vítimas da demência, relegadas a reajuste cruel, a posição de Jorge era de lamentar.

Encontramo-lo de bruços, no cimento gelado de cela primitiva.
Mostrava as mãos feridas, coladas ao rosto imóvel.

O progenitor, que até ali se nos afigurara impermeável e endurecido, contemplou o filho com visível angústia nos olhos velados de pranto e elucidou com infinita amargura na voz:
— Está, certamente, repousando depois de crise forte.

Não era, contudo, o rapaz tresloucado e abatido quem mais inspirava compaixão.
Agarradas a ele, ligadas ao círculo vital que lhe era próprio, a mãezinha e a esposa desencarnadas absorviam-lhe os recursos orgânicos.

Jaziam igualmente estiradas no chão, letárgicas quase, como se houvessem atravessado violento acesso de dor.

Irene, a suicida, trazia a destra jungida à garganta, apresentando o quadro perfeito de quem vivia sob dolorosa aflição de envenenamento, ao passo que a progenitora enlaçava o enfermo, de olhos parados nele, exibindo ambas sinais iniludíveis de atormentada introversão.

Fluidos semelhantes a massa viscosa cobriam-lhes todo o cérebro, desde a extremidade da medula espinhal até os lobos frontais, acentuando-se nas zonas motoras e sensitivas.

Concentradas nas forças do infeliz, como se a personalidade de Jorge representasse a única ponte de que dispunham para a comunicação com a forma de existência que vinham de abandonar, revelavam-se integralmente subjugadas pelos interesses primários da vida física.

— Estão loucas — informou Saldanha, na intenção evidente de ser agradável —, não me compreendem, nem me reconhecem, embora me fixem.
Guardam o comportamento de crianças, quando fustigadas pela dor.
Corações de porcelana, quebrados facilmente.

E franzindo o sobrecenho, transtornado agora por insofreável rancor, acrescentou:
— Raras mulheres sabem conservar a fortaleza nas guerras de revide.
Em geral, sucumbem rapidamente, vencidas pela ternura inoperante.

Nosso orientador, desejando anular as vibrações de cólera no companheiro, cortou-lhe o rumo das impressões destrutivas, confirmando, pesaroso:
— Demoram-se, efectivamente, em profunda hipnose.

Nossas irmãs não conseguiram, por enquanto, ultrapassar o pesadelo do sofrimento, no transe da morte, qual acontece ao viajante que inicia a travessia de vasta corrente de águas turvas, sem recursos para alcançar a outra margem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:48 pm

Ligadas ao filho e esposo, objecto que lhes centralizou, nas horas finais do corpo denso, todas as preocupações afectivas, combinaram as próprias energias com as forças torturadas dele e aquietam-se, aflitivamente, no centro dos fluidos que lhes constituem criação individual, como acontece ao “Bombyx mori” imobilizado e dormente sob os fios, tecidos por ele mesmo.

O obsessor de Margarida registou as observações, demonstrando indisfarçável surpresa no olhar e acentuou, mais calmo:
— Por mais que eu me procure insinuar, gritando-lhes meu nome aos ouvidos, não conseguem entender-me.
Em verdade, movem-se e se lastimam, através de longas frases desconexas, mas a memória e a atenção parecem mortas.

Se insisto, carregando-as, a custo, ansioso por Infundir-lhes vida nova com que me possam auxiliar na vingança, vejo baldado todo esforço, porquanto regressam Imediatamente para Jorge, logo que as suponho livres, num impulso análogo ao das agulhas que um Imã recolhe a distância.

— Sim — corroborou o nosso director —, mostram-se temporariamente esmagadas de pavor, desânimo e sofrimento.

Pela ausência de trabalho mental contínuo e bem coordenado, não expeliram as “forças coagulantes” do desalento, que elas mesmas produziram, inconformadas, ante os imperativos da luta normal na Terra e entregaram-se, com indiferença, a deplorável torpor, dentro do qual se alimentam das energias do enfermo.

Drenado incessantemente nas reservas psíquicas, o doente, hipnotizado por ambas, vive entre alucinações e desesperos, naturalmente incompreensíveis para quantos o rodeiam.

Com sincera disposição de servir, Gúbio sentou-se no piso cimentado e, num gesto de extrema bondade, acomodou no regaço paternal as cabeças das três personagens daquela cena comovente de dor, e, endereçando olhar amigo ao algoz da mulher que pretendia salvar, que o observava espantadiço, indagou:
— Saldanha, permite-me algo fazer em benefício dos nossos?

A fisionomia do perseguidor modificou-se.
Aquele gesto espontâneo do nosso orientador desarmava-lhe o coração, emocionando-o nas fibras mais íntimas, a julgar pelo sorriso que lhe inundou o semblante até então desagradável e sombrio.

— Como não? — falou quase gentil... — É o que procuro realizar inutilmente.

Impressionado com a lição que recebíamos, contemplei a paisagem ao redor, cotejando-a com a da câmara em que Margarida experimentava aflição e tortura.

Os impedimentos aqui eram muito mais difíceis de vencer.
O cubículo transbordava imundície.
Nas celas contíguas, entidades de repugnante aspecto se arrastavam a esmo.

Mostravam algumas características animalescas, de pasmar.
A atmosfera para nós se fizera sufocante, saturada de nuvens de substâncias escuras, formadas pelos pensamentos em desequilíbrio de encarnados e desencarnados que perambulavam no local, em deplorável posição.

Confrontando as situações, monologava mentalmente:
porque motivo singular não operara nosso orientador no quarto da simpática senhora, que amava por filha espiritual, para entregar-se, ali, sem reservas, ao trabalho de assistência cristã?

Vendo-lhe, porém, a solicitude na solução do problema afectivo que atormentava o adversário, entendi, pouco a pouco, através da acção do mentor magnânimo, a beleza emocionante e sublime do ensinamento evangélico:
“Ama o teu inimigo, ora por aqueles que te perseguem e caluniam, perdoa setenta vezes sete”.

Gúbio, sob nosso olhar comovido, afagava a fronte das três entidades sofredoras, parecendo liberar cada uma dos fluidos pesados que as entorpeciam, em profundo abatimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 16, 2012 9:48 pm

Decorrida meia hora na evidente operação magnética de estímulo, endereçou novo olhar ao verdugo de Margarida, que lhe analisava os mínimos gestos com dobrada atenção, e interrogou:
— Saldanha, não te agastarias se eu orasse em voz alta?

A pergunta obteve os efeitos de um choque.
— Oh! oh!... — fez o interpelado, surpreendido —, acreditas em semelhante panaceia?
Mas, sentindo-nos, de pronto, a infinita boa vontade, aduziu, confundido:
— Sim... sim... se querem...
Nosso Instrutor valeu-se daquele minuto de simpatia e, alçando o pensamento ao Alto, deprecou, humilde:

— Senhor Jesus! Nosso Divino Amigo...
Há sempre quem peça pelos perseguidos, mas raros se lembram de auxiliar os perseguidores!

Em toda parte, ouvimos rogativas em benefício dos que obedecem, entretanto, é difícil surpreendermos uma súplica em favor dos que administram.

Há muitos que rogam pelos fracos para que sejam, a tempo, socorridos;
no entanto, raríssimos corações Imploram concurso divino para os fortes, a fim de que sejam bem conduzidos.

Senhor, tua justiça não falha.
Conheces aquele que fere e aquele que é ferido.
Não julgas pelo padrão de nossos desejos caprichosos, porque o teu amor é perfeito e infinito...

Nunca te inclinaste tão-somente para os cegos, doentes e desalentados da sorte, porque amparas, na hora justa, os que causam a cegueira, a enfermidade e o desânimo...

Se salvas, em verdade, as vítimas do mal, buscas, igualmente, os pecadores, os infiéis e os injustos.
Não menoscabaste a jactância dos doutores e conversaste amorosamente com ele. no templo de Jerusalém.

Não condenaste os afortunados e, sim, abençoaste-lhes as obras úteis.
Em casa de Simão, o fariseu orgulhoso, não desprezaste a mulher transviada, ajudaste-a com fraternas mãos.

Não desamparaste os malfeitores, aceitaste a companhia de dois ladrões, no dia da cruz.
Se Tu, Mestre, o Mensageiro Imaculado, assim procedeste na Terra, quem somos nós, Espíritos endividados, para amaldiçoarmo-nos, uns aos outros?

Acende em nós a claridade dum entendimento novo!
Auxilia-nos a interpretar as dores do próximo por nossas próprias dores.

Quando atormentados, faz-nos sentir as dificuldades daqueles que nos atormentam para que saibamos vencer os obstáculos em teu nome.

Misericordioso amigo, não nos deixe, sem rumo, relegados à limitação dos nossos próprios sentimentos...

Acrescenta-nos a fé vacilante, descortina-nos as raízes comuns da vida, a fim de compreendermos, finalmente, que somos irmãos uns dos outros.

Ensina-nos que não existe outra lei, fora do sacrifício, que nos possa facultar o anelado crescimento para os mundos divinos.

Impele-nos à compreensão do drama redentor a que nos achamos vinculados.

Ajuda-nos a converter o ódio em amor, porque não sabemos, em nossa condição de inferioridade, senão transformar o amor em ódio, quando os teus desígnios se modificam, a nosso respeito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:40 pm

Temos o coração chagado e os pés feridos na longa marcha, através das incompreensões que nos são próprias, e nossa mente, por Isto, aspira ao clima da verdadeira paz, com a mesma aflição porque o viajor extenuado no deserto anseia por água pura.

Senhor, infunde-nos o dom de nos ampararmos mutuamente.

Beneficiaste os que não creram em TI, protegeste os que te não compreenderam, ressurgiste para os discípulos que te fugiram, legaste o tesouro do conhecimento divino aos que te crucificaram e esqueceram...

Por que razão, nós outros, míseros vermes do lodo ante uma estrela celeste, quando comparados contigo, recearíamos estender dadivosas mãos aos que nos não entendem ainda?...

O Instrutor imprimira tocante inflexão aos últimos lances da rogativa.
Elói e eu tínhamos os olhos turvos de lágrimas, tanto quanto Saldanha que recuara, aterrado, para um dos ângulos escuros da cela triste.

Gúbio transformara-se, gradualmente.

As vibrações vigorosas daquela súplica, que arrancara ao próprio coração, expulsaram as partículas obscuras de que se havia tocado, quando penetrávamos a colónia penal em que conhecêramos Gregório, e sublimada luz brilhava-lhe agora no semblante que o pranto de amor e compunção irisava com intraduzível beleza.

Parecia ocultar desconhecido lampadário no peito e na fronte, que despediam raios luminosos de intenso azul, ao mesmo tempo que formoso fio de claridade incompreensível o ligava com o Alto, perante nosso aturdido olhar.

Findo o intervalo, fez incidir toda a luminosidade que o envolvia sobre as três criaturas que asilava no regaço e exortou:

— É para eles, Senhor, para os que repousam aqui em densas sombras, que te suplicamos a bênção!
Desata-os, Mestre da caridade e da compaixão, liberta-os para que se equilibrem e se reconheçam...

Ajuda-os a se aprimorarem nas emoções do amor santificante, olvidando as paixões inferiores para sempre.

Possam eles sentir-te o desvelado carinho, porque também te amam e te buscam, inconscientemente, embora permaneçam supliciados no vale fundo de sentimentos escuros e degradantes.

Nesse ponto, o orientador interrompeu-se, tensos jorros de luz projectavam-se em torno dele, atirados por mãos invisíveis aos nossos olhos.

Com perceptível emotividade, Gúbio aplicou passes magnéticos em cada um dos três infelizes e, em seguida, falou ao rapaz encarnado:
— Jorge, levanta-te! Estás livre para o necessário reajustamento.

O interpelado arregalou os órgãos visuais, parecendo acordar de pesadelo angustioso.
Inquietação e tristeza desapareceram-lhe do rosto, céleremente.

Num impulso maquinal, obedeceu à ordem recebida, erguendo-se com absoluto controlo do raciocínio.
A interferência do benfeitor quebrara os elos que o prendiam às parentas desencarnadas, liberando-lhe a economia psíquica.

Presenciando o acontecimento, Saldanha gritou, em lágrimas:
— Meu filho! meu filho!...

O doente não registou as exclamações nascidas do entusiasmo paterno, mas procurou o leito singelo onde se aquietou com inesperada serenidade.

Vencido nos melhores sentimentos de que era detentor, o algoz de Margarida aproximou-se do nosso dirigente, com as maneiras de uma criança humilhada que reconhece a superioridade do mestre, mas antes que pudesse tomar-lhe as mãos, para osculá-las talvez, pediu-lhe Gúbio, sem afectação:
— Saldanha, acalma-te. Nossas amigas despertarão agora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:40 pm

Afagou a cabeça de Iracema e a infortunada mãe de Jorge voltou a si, gemendo:
— Onde estou?...

Reparando, no entanto, a presença do marido, ao lado, nomeou-o por apelido carinhoso de família e bradou, desvairada de emoção:
— Socorre-me! onde está nosso filho? nosso filho?

Passou, logo após, para a fraseologia particular de quem reencontra um ser amado, depois de ausência longa.

O obsessor da doente que nos interessava de mais perto, tangido nas fibras recônditas do ser, derramava agora abundantes lágrimas e buscava o olhar de Gúbio, instintivamente, rogando-lhe, sem palavras, medidas salvacionistas.

— Em que mau sonho me demorei? — indagava a desventurada irmã, chorando convulsivamente — que cela imunda é esta?
Será verdade que já atravessamos o túmulo?

E, em crise de desespero, acrescentava:
— Temo o demónio! temo o demónio!
Ó Deus meu! salva-me, salva-me!...

Nosso Instrutor dirigiu-lhe palavras encorajadoras e indicou-lhe o filho que descansava, bem ao nosso lado.

Recompondo-se, gradualmente, ela perguntou a Saldanha porque emudecera, faltando à palavra amorosa e confiante de outro tempo, ao que o verdugo de Margarida respondeu, significativamente:
— Iracema, eu ainda não aprendi a ser útil...
Não sei confortar ninguém.

A essa altura, a sofredora mãe, então desperta, passou a interessar-se pela companheira de infortúnio, que fazia a mão direita movimentar-se sobre a garganta. Crendo a custo tratar-se da nora, que se lhe fizera irreconhecível, apelou aflita:
— Irene! Irene!

Interveio Gúbio, com o poder de despertamento que lhe era peculiar, distribuindo vigorosas energias aos centros cerebrais da criatura que continuava abatida.

Transcorridos alguns instantes, a nora de Saldanha ergueu-se, num grito terrível.
Sentia dificuldade em articular a voz.
Sufocava-se, ruidosamente, presa de angústia infinita.

Nosso orientador, vigilante, segurou-lhe ambas as mãos com a destra e com a mão esquerda ministrou-lhe recursos magnético-balsâmicos sobre a glote e, sobretudo, ao longo das papilas gustativas, acalmando-a, de alguma sorte.

Embora despertada, a suicida não mostrava a relativa consciência de si mesma.
Não guardava a menor ideia de que seu corpo físico se desfizera no túmulo.
Era o tipo da sonâmbula perfeita, acordando de súbito.

Adiantou-se na direcção do esposo, reintegrado nas próprias faculdades e exclamou, estentórica:
— Jorge, Jorge! ainda bem que o veneno não me matou! Perdoa-me o gesto impensado...
Curar-me-ei para vingar-te!
Assassinarei o juiz que te condenou a tão cruéis padecimentos!

Observando, ao contrário do que esperava, que o esposo não reagia, implorou:
— Ouve! atende-me! Onde dormi tanto tempo?
Nossa filha! onde está?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:40 pm

O interpelado, todavia, que se lhe desligara da influência directa nos centros perispirituais, prosseguiu na mesma atitude fleumática e impassível de quem ajuizava com dificuldade a própria situação.

Foi ainda Gúbio quem se abeirou de Irene, elucidando:
— Aquieta-te, minha filha!
— Sossegar-me? eu? — protestou a infortunada — não posso!
Quero tornar a casa... Esta grade me asfixia...
Cavalheiro, por quem é! reconduza-me ao lar.

Meu esposo permanece encarcerado injustamente...
Estará por certo dementado...
Não me escuta, não me atende.
Por minha vez, sinto a garganta carcomida de veneno mortal... quero minha filha e um médico!

Nosso orientador, contudo, respondeu-lhe com voz triste, não obstante acariciar-lhe a fronte assustadiça:
— Filha, as portas de tua casa no mundo cerraram-se para tua alma com os olhos do corpo que perdeste.

Teu esposo jaz liberado dos compromissos do matrimónio carnal e tua filha, desde muito, foi acolhida em outro lar.
É indispensável, pois, que te refaças, de modo a prestar-lhes todo o serviço que desejas.

A desditosa criatura rojou-se de joelhos, soluçando.
— Então, morri? a morte é uma tragédia pior que a vida? — clamou, desesperada.

— A morte é simples mudança de veste — elucidou Gúbio, sereno —, somos o que somos.
Depois do sepulcro, não encontramos senão o paraíso ou o inferno criados por nós mesmos.

E adoçando a voz para conversar na condição de um pai, prosseguiu, comovido:
— Porque atiraste fora o remédio salvador, esfacelando o vaso sagrado que o continha?
Nunca ouviste o choro dos que padeciam mais que tu mesma?

Jamais te inclinaste para registar as aflições que vinham de mais fundo?
Porque não auscultaste o silencioso martírio daqueles que não possuem mãos para reagir, pernas para andar, voz para suplicar?

— A revolta consumiu-me.... — explicou a desventurada.
— Sim — confirmou o Instrutor, solícito —, um momento de rebeldia põe um destino em perigo, como diminuto erro de cálculo ameaça a estabilidade dum edifício inteiro.

— Infeliz de mim! — suspirou Irene, aceitando a amargosa realidade — onde estava Deus que me não socorreu a tempo?

— A pergunta é inoportuna — esclareceu nosso dirigente bondosamente.
Procuraste saber, antes, onde te encontravas a ponto de te esqueceres tão profundamente de Deus?
A bondade do Senhor nunca se ausenta de nós.

Se transparecia da bendita oportunidade terrena que te conduzia à vitória espiritual, reside também agora nas lágrimas de contrição que te encaminham à regeneração salutar.

Admito que possas, em breve, alcançar semelhante bênção;
entretanto, cavaste enorme precipício entre a tua consciência e a harmonia divina, que precisarás transpor efectuando a própria recomposição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:41 pm

Por algum tempo, experimentarás a consequência do ato impensado.
Colher fruto imaturo é praticar violência.

Intoxicaste a matéria delicada sobre a qual se estruturam os tecidos da alma e poucas circunstâncias te atenuam a gravidade da falta.

Não percas, porém, a esperança e dirige os passos na direcção do bem.
Se o horizonte, por vezes, se faz mais longínquo, nunca se torna inatingível.

E encorajando-a, paternalmente, acentuou:
— Vencerás, Irene; vencerás.

A interlocutora, entre o desapontamento e a rebelião, não parecia interessada em reter os elevados conceitos ouvidos.

Desviando a atenção da verdade que a feria, fundo, identificou a presença de Saldanha, passando a gritar medrosamente.

Gúbio interferiu, acalmando-a.
A companheira de Jorge, todavia, dominado o temor infantil, regressou à intemperança mental, pousou no sogro os olhos atormentados e inquiriu:
— Sombra ou fantasma, que procuras aqui?

porque não vingaste o filho infeliz?
não te dói tanta infâmia inútil?
não disporás, acaso, de armas, com que possas ferir o juiz desalmado que nos conspurcou a vida?

Cessa, então, com a morte o devotamento dos pais?
descansarás, porventura, em algum céu, contemplando Jorge, assim, reduzido a frangalhos?
ou ignoras a realidade cruel?

que razões te compelem à mudez das estátuas?
porque não buscaste, sem repouso, a justiça de Deus, que não se encontra na Terra?

As perguntas semelhavam-se a golpes de ferro em brasa.
O perseguidor de Margarida recebia-as por vergastadas no íntimo, porquanto extrema indignação lhe empalideceu o semblante.

Hesitava, quanto à atitude a assumir, mas, reconhecendo-se diante de um condutor amoroso e sábio, procurou o olhar de Gúbio, rogando-lhe cooperação em silêncio, e o nosso Instrutor tomou, por ele, a palavra.

— Irene — exclamou, melancólico —, a certeza da vida vitoriosa, acima da morte, não te infunde respeito ao coração?
Supões estejamos subordinados a um poder que nos desconhece?

Perante a verdade nova que te surpreende a alma, não percebes a infinita sabedoria de um Supremo Doador de todas as bênçãos?
Onde se encontra a felicidade da vingança?

O sangue e as lágrimas de nossos inimigos apenas aprofundam as chagas que nos abriram nos corações.
Acreditas que a legítima consagração de um pai deva traduzir-se através da dilaceração ou do homicídio, da perseguição ou da cólera?

Saldanha veio até este cárcere, por amor, e eu creio que as mais nobres conquistas dele lhe retornam à superfície da personalidade, triunfantes e renascentes!..
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:41 pm

Não lhe precipites a ternura paterna no abismo do desespero, de cujas trevas procuras inútilmente fugir.

A desditosa mulher silenciou, soluçante, enquanto o sogro enxugava as lágrimas que as observações generosas de Gúbio lhe haviam arrancado.

Foi então que Iracema se declarou exausta e suplicou a dádiva dum leito.
O nosso orientador convidou Saldanha a se pronunciar.

Se Jorge melhorara, ambas as senhoras desencarnadas exigiam socorro urgente.
Não seria lícito abandoná-las àquele clima de desintegração das melhores energias morais.

— Perfeitamente — concordou o obsessor de Margarida, sob intensa modificação —, conheço os celerados que aqui se reúnem, e agora que Iracema e Irene tornaram à consciência que lhes é própria, preocupa-me a gravidade do assunto.

Nosso dirigente explicou-lhe que poderíamos abrigá-las numa organização socorrista, não distante, mas, para levarmos a efeito semelhante medida, não poderíamos olvidar-lhe a permissão.

Saldanha aceitou contente e agradeceu, desapontado.
Sentia-se estimulado ao bem, através da palavra cordial de nosso orientador e revelava-se disposto a não perder o mínimo ensejo de corresponder-lhe à dedicação fraterna.

Depois de alguns minutos, ausentávamo-nos do hospício conduzindo as irmãs enfermas a recolhimento adequado, onde Gúbio as internou com todo o prestígio de suas virtudes celestes, ante o visível espanto de Saldanha que não sabia como exprimir-se no reconhecimento a extravasar-lhe da alma.

Ao retornarmos, cabisbaixo e humilhado o perseguidor de Margarida perguntou, timidamente, quais eram as armas justas num serviço de salvação, ao que o nosso orientador retrucou atenciosamente:
Em todos os lugares, um grande amor pode socorrer o amor menor, dilatando-lhe as fronteiras e impelindo-o para o Alto, e, em toda parte, a grande fé, vitoriosa e sublime, pode auxiliar a fé pequenina e vacilante, arrebatando-a às culminâncias da vida.

Saldanha não voltou à palavra e fizemos a maior parte do caminho em significativo silêncio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:41 pm

13 - Convocação familiar

Alcançando a grande residência em que Margarida descansava, antes de nos instalarmos de novo junto à enferma, Gúbio, assistido agora pelo enorme respeito de Saldanha, dirigiu-lhe a palavra, examinando a oportunidade de conversarmos com o juiz e analisar a situação da filhinha de Jorge, ali refugiada.

O magistrado residia com os parentes na ala central do vasto edifício de que Gabriel e a esposa usavam pequena dependência.

Até então, não lhe havíamos atingido a zona domiciliar.
— É possível — informou o nosso Instrutor — promovermos benéfica reunião, convocando alguns encarnados a possível ajuste.
O juiz, certamente, dispõe de alguma peça em que possamos permanecer congregados por alguns minutos.

Saldanha concordou, através de monossílabos, ao modo do aprendiz que se vê na obrigação de aderir, indiscriminadamente, ao mestre.

— A noite é propícia — prosseguiu o Instrutor, prestativo e simples — e atravessamos os primeiros minutos da madrugada.

Entramos, respeitosos, mas confesso que o sono do magistrado não poderia ser tão calmo quanto desejaria, em virtude do grande número de entidades sofredoras que lhe batiam às portas internas.

Algumas rogavam socorro em altos brados.
A maioria reclamava justiça.

Dispúnhamo-nos a visitar os aposentos particulares do dono da casa, quando um rapaz encarnado nos surge à frente, cauteloso, deslocando-se a caminho do pavimento inferior.

Saldanha tocou, de leve, o braço de Gúbio e notificou:
— Este é Alencar, irmão de Margarida e perseguidor de minha neta.
— Vejamo-lo — exclamou o interpelado, alterando-nos a direcção.

Seguimos o jovem, que nem de longe conseguiria registar-nos a presença, e observamos que, após descer alguns degraus, se postava à entrada de compartimento modesto, tentando forçá-la.

Em torno, inalava-se-lhe o hálito viciado, percebendo-se que o jovem procedia de grandes libações.
— Todas as noites — comentou Saldanha, preocupado — procura abusar de nossa pobre menina.
Não tem o mínimo respeito a si mesmo.

Reparando a resistência de Lia, estende os processos de perseguição, com ameaças diversas, e acredito que, se ainda não atingiu os fins indignos para os quais se orienta, é porque permaneço a postos, agindo na defesa com a brutalidade que me é característica.

Notamos, admirados, o tom de humildade que transparecia das palavras do vigoroso verdugo.

Saldanha ressurgia visceralmente transfigurado.
A consideração que dispensava a Gúbio dava-nos conhecimento da súbita transformação que nele se operara.
Mostrava compreensão e doçura nos gestos reverentes.

Ouvindo-o, nosso orientador, sem qualquer alarde de superioridade, concordou:
— Efectivamente, Saldanha, este rapaz se revela possuído de forças degradantes e precisa colaboração enérgica que o auxilie a buscar higiene mental.

Em seguida, atentamente, ministrou-lhe passes magnéticos nos órgãos visuais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:42 pm

Escoados alguns minutos, Alencar retirou-se, algo cambaleante, para a câmara de dormir, de pálpebras semicerradas, acreditando Saldanha que alguma enfermidade inofensiva, por alguns dias, a partir daquela hora, o ajudaria a meditar nos deveres do homem de bem.

O obsidente de Margarida demonstrava indisfarçável contentamento.
Logo após, em companhia de nosso devotado orientador, passamos ao apartamento privado do juiz.

O magistrado se mantinha de corpo repousado sobre o colchão macio, mostrando, contudo, a mente inquieta, flagelada.
Permitiu Gúbio que eu lhe tocasse a fronte, auscultando-lhe os pensamentos mais profundos.

Naquela hora avançada da noite, o encanecido cavalheiro meditava:
“Onde estariam centralizados os supremos interesses da vida?
Onde a ambicionada paz espiritual que não conquistara em mais de meio século de experiência activa na Terra?

Porque arquivava no coração os mesmos sonhos e necessidades do homem de quinze anos, quando ultrapassara já os sessenta?

Crescera, estudara, casara-se.
Todas as lutas, no fundo, não lhe haviam modificado a personalidade.

Conquistara os títulos que assinalam no mundo os sacerdotes do direito e, por centenas de vezes, envergara a toga para julgar processos difíceis.

Proferira sentenças inúmeras e tivera nas mãos, sob o próprio desígnio, a destinação de muitos lares e de colectividades inteiras.

Recebera homenagens de pobres e ricos, grandes e pequenos, no transcurso da viagem pelo encapelado mar da experiência terrestre em face da posição que desfrutava no ataviado barco do tribunal.

Respondera a milhares de consultas em casos de harmonia social, mas, na vida íntima, singular deserto lhe povoava a alma toda.

Sentia sede de fraternidade com os homens;
todavia, a posse do ouro e a eminência na actividade pública impunham-lhe grandes obstáculos para ler a verdade na máscara dos semelhantes.

Experimentava intraduzível fome de Deus.
No entanto, os dogmas das religiões sectárias e as discórdias entre elas, afastavam-lhe o espírito de qualquer acordo com a fé actuante no mundo.

Por outro lado, a ciência comum, negativista e impenitente, ressecara-lhe o coração.
Toda a existência se resumiria a simples fenómenos mecânicos dentro da natureza?
Adoptada essa hipótese, toda a vida humana seria tão importante como a bolha d’água a desfazer-se ao vento.

Sentia-se dilacerado, oprimido, exausto.
Ele que esclarecera a muitos, quanto às mais elevadas normas de conduta pessoal, como elucidaria, agora, a si mesmo?

Defrontado pelos primeiros sintomas da velhice do corpo de carne, reagia, magoado, contra a extinção gradual das energias orgânicas.

Porque as rugas do rosto, o alvejar dos cabelos, o enfraquecimento da visão e o empobrecimento do celeiro vital, se a mocidade lhe vibrava na mente ansiosa por renovação?

Seria a morte simplesmente a noite sem alvorada?
Que misterioso poder dispunha, assim, da vida humana, conduzindo-a a objectivos inesperados e ocultos?”
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:42 pm

Retirei a destra, percebendo que o respeitável funcionário tinha os olhos húmidos.

Aproximou-se Gúbio e colocou-lhe as mãos sobre a fronte, comunicando-nos que prepará-lo-ia para a conversação próxima, dirigindo-lhe a intuição para as reminiscências do processo em que Jorge fora implicado.

Daí a instantes, notei que os olhos do juiz exibiam modificada expressão.
Dir-se-ia contemplarem cenas distanciadas, com indizível tortura.

Mostravam-se angustiados, doridos...
O Instrutor recomendou-me tornar à auscultação psíquica e voltei a pousar a mão direita sobre o cérebro dele.
Com as minhas percepções gerais algo desenvolvidas, ouvi-lhe os pensamentos novos.

— “Por que razão se detinha — meditava o pai de Margarida — naquele processo liquidado, a seu ver, desde muito, ferindo o próprio coração?

Anos haviam transcorrido sobre o crime obscuro, entretanto, o assunto lhe revivia na cabeça, qual se a memória lho impusesse, tirânica e desapiedada, por disco de estranho padecimento moral.

Que motivos o levavam a rememorar semelhante peça judiciária com tanta força?
Via Jorge, mentalmente, esquecido no abismo da inconsciência e lembrava-lhe as palavras veementes, afirmando inocência.

Não conseguia explicar por que fortes razões lhe recolhera a filha, introduzindo-a no próprio lar.
Debalde procurava o móvel secreto que o levava a demorar-se no assunto, naquela madrugada de inexplicável insónia.

Recordou que o sentenciado perdera a assistência dos melhores amigos e a própria esposa suicidara-se em pleno desespero...

No entanto, porque reter-se naquele caso sem importância?
Ele, o juiz, chamado a processos incontáveis, apreciara enigmas muito mais intrincados e importantes.

Não conseguia, pois, justificar-se, quanto às reminiscências do humilde condenado, réu de crime comum..

Nesse comenos, o Instrutor recomendou a Elói e a mim o trazimento de Jorge, fora do veículo carnal, ao domicílio do magistrado, enquanto prepararia a este último o desligamento parcial do corpo através do sono.

Voltamos, o companheiro e eu, ao cubículo do obsidiado que se achava ausente do vaso físico, em grande prostração.
Administrei-lhe ao organismo perispiritual recursos fluídicos reparadores e transportamo-lo à residência indicada.

A essa altura, o dono da casa e a neta de Saldanha, provisóriamente libertos das teias fisiológicas, já se encontravam ao lado de Gúbio, que recebeu Jorge com desvelado carinho, e, unindo os três como que identificando-os a uma corrente magnética de forte expressão, emprestou-lhes forças à mente, por intermédio de operações fluídicas, para que o ouvissem acordados, em espírito, tanto quanto possível.

Notei, então, que o despertamento não era análogo para os três.
Variava de acordo com a posição evolutiva e condições mentais de cada um.

O magistrado era mais lúcido pela agilidade dos raciocínios;
a jovem Lia colocava-se em segundo lugar pelas singulares qualidades de inteligência;
situava-se Jorge em posição inferior, em face do esgotamento em que se encontrava.

Vendo-se à frente do antigo réu e da filha, que identificou, de pronto, o categorizado expoente da justiça perguntou a esmo, absorvido de insofreável espanto:
— Onde estamos? onde estamos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:42 pm

Nenhum de nós se atreveu à resposta.
Gúbio, no entanto, orava em silêncio;
e quando formosa luz se lhe irradiou do tórax e do cérebro, dando-nos a entender que o sentimento e a razão se achavam nele irmanados em claridade celeste, exclamou para o assombrado interlocutor, tocando-lhe afavelmente os ombros:
— Juiz, o lar do mundo não é tão-somente um asilo de corpos que o tempo transformará.

É igualmente o ninho das almas, onde o espírito pode entender-se com o espírito, quando o sono sela os lábios de carne, susceptíveis de mentir.

Congregamo-nos em teu próprio abrigo para uma audiência com a realidade.
O chefe daquele santuário doméstico escutava, perplexo.

— O homem encarnado na Terra — continuou Gúbio empolgante — é uma alma eterna usando um corpo perecível, alma que procede de milenários caminhos para a integração com a verdade divina, à maneira do seixo que desce, rolando nos séculos, do cimo do monte para o seio recôndito do mar.

Somos, todos, actores do drama sublime da evolução universal, através do amor e da dor...
Indébita é a nossa interferência nos destinos uns dos outros, quando nossos pés trilham rectos caminhos.
Todavia, se nos desviamos da rota adequada, é razoável o apelo do amor para que a dor diminua.

O magistrado ligou os conceitos ouvidos à presença de Jorge, na sala, e inquiriu, aflito:
— Apelam, porventura, em favor deste condenado?

— Sim — respondeu nosso Instrutor, sem hesitar.
Não acreditas que esta vítima aparente de inconfessável erro judiciário já tenha esgotado o cálice do martírio oculto?

— O caso dele, porém, permanece liquidado.
— Não, juiz, nenhum de nós chegou ao fim dos processos redentores que nos dizem respeito.
Não seria Jorge, acusado penitente, o único sentenciado indigno de uma pausa nas dores da remissão.

O interlocutor arregalou os olhos, mostrando certo orgulho ferido e retorquiu, quase sarcástico:
— Mas, eu fui o juiz da causa.
Consultei os códigos necessários, antes de emitir a sentença.

O crime foi averiguado, os laudos periciais e as testemunhas condenaram o réu.
Não posso, em sã consciência, aceitar intromissões, mesmo tardias, sem argumentação ponderosa e cabível.

Gúbio contemplou-o, compadecidamente, e considerou:
— Compreendo-te a negativa.

Os fluidos da carne tecem um véu pesado demais para ser facilmente rompido pelos que se não afeiçoam, ainda, diariamente, ao contacto da espiritualidade superior.

Invocas a tua condição de sacerdote da lei, para esmagares o destino de um trabalhador que já perdeu tudo quanto possuía, a fim de que resgatasse, intensivamente, os erros do passado distante.

Referes-te ao título que a convenção humana te conferiu, certamente atendendo a injunções do Poder Divino;
entretanto, não me pareces amoldado aos sublimes fundamentos de tua elevada missão no mundo, porquanto o homem que aceitou a mordomia, no quadro dos bens materiais ou espirituais do Planeta, nunca alardeia superioridade, quando consciente das obrigações que lhe cabem, por entender na administração fiel um caminho de aprimoramento, mesmo através de extremo sofrimento moral.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 17, 2012 8:43 pm

Distribuir amor e justiça, simultâneamente, na actualidade da Terra, em que a maioria das criaturas menosprezam semelhantes dádivas, é crivar-se de dores.

Admites que o homem viverá sem contas, ainda mesmo aquele que se supõe capacitado para julgar o próximo, em definitivo?

Acreditas haja o teu raciocínio acertado em todos os enigmas da senda?
Terás agido imparcialmente em todas as decisões?
Não creias...

O Justo Juiz foi crucificado num madeiro de linhas rectas por devotar-se no mundo à extrema rectidão.
Todos nós, na estrada multissecular do conhecimento edificante, muita vez colocamos o desejo acima do dever e o capricho a cavaleiro dos princípios redentores que nos compete observar.

Em quantas ocasiões já se te inclinou o mandato às contrafacções da política desintegrante dos homens, ávidos de transitório poder?
Em quantos processos permitiste que os teus sentimentos se turvassem no personalismo delinquente?

O homem, em cuja presença identificava Saldanha perigoso inimigo, revelava-se infinitamente confundido.
Palidez cadavérica lhe cobria o semblante, sobre o qual grossas lágrimas principiaram a correr.

— Juiz — continuou Gúbio, em voz firme —, não fosse a compaixão divina que te concede ao ministério diversos auxiliares invisíveis, amparando-te as acções, por amor à Justiça que representas, e as vítimas dos teus erros involuntários e das paixões obcecantes daqueles que te cercam não te permitiriam a permanência no cargo.

Teu palácio residencial mostra-se repleto de sombras.

Muitos homens e mulheres, dos que já sentenciaste em mais de vinte anos, nas lides do direito, arrebatados pela morte, não conseguiram seguir adiante, colados que se acham aos efeitos de tuas decisões e demoram-se em tua própria casa, aguardando-te explicações oportunas.

Missionário da lei, sem hábitos de prece e meditação, únicos recursos através dos quais poderias abreviar o trabalho de esclarecimento que te assiste, grandes surpresas te reserva o transe final do corpo.

Verificando-se pausa mais longa, o magistrado exteriorizou nos olhos indefinível terror, caiu de joelhos e rogou:
— Benfeitor ou vingador, ensina-me o caminho!
Que devo fazer a benefício do condenado?

— Facilitarás a revisão do processo e restituí-lo-ás à liberdade.
— Ele é, então, inocente? — indagou o interlocutor, exigindo bases sólidas a futuras conclusões.
— Ninguém sofre sem necessidade à frente da Justiça Celeste e tão grande harmonia rege o Universo que os nossos próprios males se transubstanciam em bênçãos. Explicaremos tudo.

E, dando-nos a perceber que precisava gravar na mente do juiz quanto se lhe pedia da acção providencial, continuou:
— Não te circunscreverás à mencionada medida.
Amparar-lhe-ás a filha, hoje internada por favor em tua casa, em estabelecimento condigno, onde possa receber a necessária educação.

— Mas — interveio o jurista —, esta menina não é minha filha.
— Não serias, entretanto, convocado por nós a semelhante encargo, se não pudesses recebê-lo.

Crês, porém, que o dinheiro em disponibilidade deva satisfazer tão-somente as exigências daqueles que se reuniram a nós, dentro dos laços consanguíneos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:56 pm

Liberta o coração, meu amigo! Respira em mais alto clima.
Aprende a semear amor no chão em que pisas.
Quanto mais eminentemente colocada na experiência humana, mais intensivo pode tornar-se o esforço da criatura, na própria elevação.

Na Terra, a justiça abre tribunais para examinar o crime em seus aspectos variados, especializando-se na identificação do mal;
todavia, no Céu, a Harmonia descerra santuários, apreciando-nos a bondade e a virtude, consagrando-se à exaltação do bem, na totalidade dos seus ângulos divinos.

Enquanto é tempo, faz de Jorge um amigo e da filha dele uma companheira de luta que te afague, um dia, os cabelos brancos e te ofereça, mais tarde, a luz da prece, quando teu espírito for compelido a transpor o escuro portal do túmulo.

O juiz, em pranto, interrogou:
— Como agir, porém?
— Amanhã — informou o Instrutor, calmo e persuasivo — te erguerás do leito sem a lembrança integral do nosso entendimento de agora, porque o cérebro de carne é um instrumento delicado, incapaz de suportar a carga de duas vidas, mas ideias novas surgir-te-ão formosas e claras, com respeito ao bem que necessitas praticar.

A intuição, contudo, que é o disco milagroso da consciência, funcionará livremente, retransmitindo-te as sugestões desta hora de luz e paz, qual canteiro de bênçãos ofertando-te flores perfumosas e espontâneas.

Chegado esse momento, não permitas que o cálculo te abafe o impulso das boas obras.

No coração hesitante, o raciocínio vulgar luta contra o sentimento renovador, turvando-lhe a corrente límpida, com o receio de ingratidão ou com ruinosa obediência aos preconceitos estabelecidos.

Diante de Saldanha que acompanhava a cena, demonstrando indizível bem-estar, Jorge e a filha trocavam olhares de alegria e esperança.

O magistrado contemplou-os, pensativo, notando-se-lhe o propósito de endereçar ao nosso Instrutor novas interpelações.
Dominado, no entanto, pelas emoções do minuto, calou-se, resignado e humilde.

Gúbio, entretanto, perscrutando-lhe os pensamentos, tocou-lhe a fronte, de leve, com ambas as mãos e falou em voz firme:
— Gostarias que me expressasse a respeito da culpabilidade do réu, a fim de que a tua consciência de julgador consolide certos pontos de vista, já esposados no processo a que nos reportamos.

Em verdade, quanto ao delito de que é presentemente acusado, Jorge tem as mãos limpas.
Entretanto, a existência humana é como precioso tecido de que os olhos mortais apenas enxergam o lado avesso.
Nos sofrimentos de hoje, solvemos os débitos de ontem.

Com isto, não desejamos dizer que nossas falhas, muita vez oriundas da ociosidade ou da impertinência de agora, gerando resultados ruinosos para nós mesmos e para outrem, sejam recursos providenciais ao pagamento de alheias dividas, porque assim consagraríamos a fatalidade por soberana do mundo, quando, em todas as horas, criamos causas e consequências com os nossos actos colidíamos.

As entidades que pranteiam às tuas portas não choram sem razão e, mais dia, menos dia, a toga que envergas temporariamente acertará contas com todos aqueles que, em torno dela, se lastimam.

Jorge, porém, que aqui não se encontra em reclamações e, sim, trazido por nós para benéfico entendimento, liberou certa parte do pretérito doloroso.

Gúbio, a essa altura, fez grande pausa em suas elucidações, fixou o interlocutor mais profundamente e prosseguiu, com grave entoo:
— Juiz, pessoas e sucessos que nos afectam a consciência de maneira particular não constituem objecto vulgar na marcha reveladora da vida - Por agora, trazes a mente subjugada pelo choque biológico do retorno à carne e não poderias seguir-nos na exumação do passado recente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:56 pm

Já te auscultei, no entanto, os arquivos mentais e vejo os quadros que o tempo não destrói.

No século findo, guardavas o título de posse sobre extensa faixa de terra e orgulhavas-te da posição de senhor de dezenas de escravos que, em maioria reencarnados, actualmente te integram a falange de colaboradores nos trabalhos comuns a que te sentes constrangido pela máquina funcional.

A todos eles, deves assistência e carinho, auxílio e compreensão.
Nem todos os servos do passado, porém, se confundem no mesmo naipe de relações com o teu espírito.
Alguns se salientaram no drama que viveste e volvem ao teu caminho, impressionando-te o coração.

Jorge de hoje era ontem teu escravo, embora nascesse quase sob o mesmo tecto que te assinalou os primeiros vagidos.
Era teu servidor, perante os códigos terrestres, e irmão consanguíneo, ante as divinas leis, não obstante afagado por outra mãe.

Nunca lhe perdoaste semelhante aproximação, considerada em tua casa por aviltante ultraje ao nome familiar.

Chegados ambos à tarefa da paternidade, teu filho de ontem e de hoje lhe transviou a filha do pretérito e de agora e, quando semelhante amargura sobreveio, com escárnio supremo para um lar cativo e triste, determinaste medidas condenáveis que culminaram no insofreável desespero de Jorge em outros tempos, o qual, desarvorado e semilouco, não somente roubou a vida ao corpo de teu filho que lhe invadira o santuário doméstico, mas também a própria existência, suicidando-se em dramáticas circunstâncias.

Todavia, nem a dor, nem a morte apagam as aflições da responsabilidade que só o regresso à oportunidade de reconciliação consegue remediar.

E aqui te encontras, de novo, diante do condenado, junto do qual sempre te inclinaste à antipatia gratuita, e ao lado da jovem a quem prometeste amparar por filha muito querida ao coração.

Trabalha, meu amigo!
Vale-te dos anos, porque Alencar e tua pupila serão atraídos à bênção do matrimónio.
Age enquanto podes.

Todo bem praticado felicitará a ti mesmo, porquanto outro caminho para Deus não existe, fora do entendimento construtivo, da bondade activa, do perdão redentor.

Jorge, humilhado e desiludido, apagou o desvario deplorável, suportando inominável martírio moral em poucos anos de acusação indébita e prisão tormentosa, com viuvez, enfermidades e privações de toda a espécie.

O nosso orientador fitou-o, compadecido, na pausa mais ou menos longa que se fizera, e rematou:
— Não te dispões, por tua vez, aos testemunhos salvadores?

Abalo salutar, oculto à nossa apreciação, certamente sulcava, fundo, o espírito do magistrado, que mostrava o semblante extremamente transformado.

Vimo-lo levantar-se, em lágrimas, cambaleante.
A força magnética do nosso Instrutor alcançara-lhe as fibras mais íntimas, porquanto os olhos dele pareciam iluminados de súbita determinação.

Abeirou-se de Jorge, estendeu-lhe a destra em sinal de fraternidade, que o filho de Saldanha beijou igualmente em pranto, e, em seguida, acercou-se da jovem, abriu-lhe os braços acolhedores e exclamou comovido:
— Serás minha filha, doravante, para sempre !...
Indescritível contentamento marcou-nos o inolvidável minuto.

Gúbio ajudou-os a partir na direcção do interior doméstico, e, quando nos dispúnhamos a reconduzir Jorge ao presídio de cura onde o corpo em repouso o esperava, Saldanha, plenamente modificado por uma alegria misteriosa que lhe refundia as expressões fisionómicas, avançou para o nosso Instrutor e, tentando oscular-lhe as mãos, murmurou:
— Nunca pensei encontrar noite tão gloriosa quanto esta!

Ia desmanchar-se em palavras de reconhecimento, mas Gúbio, com naturalidade, obrigou-o a reajustar-se, acrescentando:
— Saldanha, nenhum júbilo, depois do amor de Deus, é tão grande quanto aquele que recolhemos no amor espontâneo de um amigo.

Semelhante alegria, neste momento, é nossa, porque te sentimos a amizade nobre e sincera no coração.

E um abraço de carinhosa fraternidade coroou a tocante e inesquecível cena.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:57 pm

14 - Singular episódio

Penetrando o compartimento em que Margarida descansava, lá nos aguardavam os dois hipnotizadores em função activa.

Gúbio pousou significativo olhar em Saldanha e pediu-lhe em tom discreto:
— Meu amigo, chegou a minha vez de rogar.
Releva-me a identificação, talvez tardia aos teus olhos, com relação aos objectivos que nos prendem aqui.

E denunciando imensa comoção na voz, esclareceu:
— Saldanha, esta senhora doente é filha de meu coração desde outras eras.
Sinto por ela o enternecimento com que cuidaste, até agora, do teu Jorge, defendendo-o com as forças de que dispões.

Eu sei que a luta te impôs acervos espinhos ao coração, mas também guardo sentimentos de pai.
Não te merecerei, porventura, simpatia e ajuda?
Somos irmãos no devotamento aos filhos, companheiros da mesma luta.

Observei, então, cena comovedora que, minutos antes, se me figuraria inacreditável.
O perseguidor da enferma contemplou o nosso Instrutor com o olhar dum filho arrependido.
Grossas lágrimas brotaram-lhe dos olhos antes frios e impassíveis.

Parecia inabilitado a responder, diante da emotividade que lhe dominava a garganta;
todavia, Gúbio, enlaçando-lhe fraternalmente o busto, acrescentou:
— Passamos horas sublimes de trabalho, entendimento e perdão.

Não desejarás desculpar os que te feriram, libertando, enfim, quem me é tão querida ao espírito?
Chega sempre um instante no mundo em que nos entediamos dos próprios erros.

Nossa alma se banha na fonte lustral do pranto renovador e esquecemos todo o mal a fim de valorizar todo o bem.
Noutro tempo, persegui e humilhei, por minha vez.
Não acreditava em boas obras que não nascessem de minhas mãos.

Supunha-me dominador e invencível, quando não passava de infeliz e insensato.
Considerava inimigos quantos me não compreendessem os caprichos perigosos e me não louvassem a insânia.

Experimentava diabólico prazer, quando o adversário esmolasse piedade ao meu orgulho, e gostava de praticar a generosidade humilhante daquele que determina sem concorrentes.

Mas a vida, que faz caminhos na própria pedra, usando a gota d’água, retalhou-me o coração com o estilete dos minutos, transformando-me devagar, e o déspota morreu dentro de mim, O título de irmão é, hoje, o único de que efectivamente me orgulho.

Diz-me, Saldanha amigo, se o ódio está igualmente morto em teu espírito;
fala-me se devo contar com o abençoado concurso de tuas mãos!

Eu e Elói tínhamos lágrimas ardentes, diante daquela doutrinação emocionante e inesperada.

Saldanha enxugou os olhos, fixou-os, humilde, no interlocutor bondoso e asseverou, comovendo-nos:
— Ninguém me falou ainda como tu...

Tuas palavras são consagradas por uma força divina que eu não conheço, porque chegam aos meus ouvidos, quando já me encontro confundido pelos teus actos convincentes.

Faz de mim o que desejares.
Adoptaste, nesta noite, por filhos de teu coração todos os parentes em cuja memória ainda vivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:57 pm

Amparaste-me o filho demente, ajudaste-me a esposa alucinada, protegeste-me a nora infeliz, socorreste-me a neta indefesa e repreendeste os que me perturbavam sem motivo justo...

Como não enlaçar, agora, as minhas mãos com as tuas na salvação da pobre mulher que amas por filha?
Ainda que ela própria me houvesse apunhalado mil vezes, teu pedido, após o bem que me fizeste, redimi-la-ia ao meu olhar...

E, detendo a custo o pranto que lhe manava espontâneo, o ex-perseguidor acentuou, com expressão respeitosa:
— Poderoso Espírito e bom amigo, que me procuraste na condição do servo apagado para acordar-me as forças enrijecidas no gelo da vingança, estou pronto a servir-te! Sou teu de agora em diante!

— Seremos de Jesus para sempre! — corrigiu Gúbio, sem afectação.
E abraçando-o efusivamente, conduziu-o a pequeno aposento próximo, naturalmente para organizar plano de acção eficiente e rápido.

Somente aí me lembrei de que nos achávamos na presença de ambos os hipnotizadores em função activa, junto ao casal em repouso.

Um deles se revelava inquieto e demonstrava-se francamente compreensivo;
notava que algo de extraordinário se passava, mas, talvez compelido por votos de disciplina, não se animava a dirigir-nos palavra.

O outro, todavia, não acusava qualquer emoção.
Continuava alheio ao drama que vivíamos.
Figurava-se um autómato em serviço, impressionando-me particularmente pela impassibilidade do olhar.

Alguns minutos transcorreram pesados, quando Gúbio e Saldanha retornaram à cena.
O ex-obsessor de Margarida mostrava-se mudado, quase imponente.
Via-se-lhe no porte a renovação de rumo interior.

Certo, estabelecera novo programa de luta, em companhia do nosso dirigente, porque chamou o hipnotizador mais vivo, a conversação particular.
Próximos de mim, a palestra desdobrou-se clara.

— Leôncio — disse Saldanha, entusiasmado —, nosso projecto mudou e conto com a tua colaboração.
— Que houve? — indagou curiosamente o interpelado.
— Um grande acontecimento.

E prosseguiu, transformado:
— Temos aqui um mago da luz divina.
Em traços rápidos, narrou-lhe os sucessos da noite, em comovedora síntese, terminando por apelar:
— Poderemos contar contigo?
— Perfeitamente — esclareceu o companheiro —, sou amigo dos amigos, não obstante os riscos da empresa.

E designando com um golpe de olhar o outro magnetizador que prosseguia operando ao lado de Margarida, em serviço automático, objectou:
— É indispensável, porém, todo o cuidado com Gaspar, que não se acha em condições de aderir.
— Tranquiliza-te — esclareceu Saldanha, mais atencioso —, providenciaremos tudo.

Mostrou Leôncio estranho brilho nos olhos e, dirigindo-se ao ex-chefe de tortura, falou súplice:
— Escuta! conheces meu problema.
Já que foste socorrido pelo mago, não poderei receber contribuição dele por minha vez?
Tenho na Terra a esposa seduzida e o filho à morte.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:57 pm

Imprimindo inolvidável acento à voz, observou:
— Saldanha, não desconheces que sou criminoso, mas sou pai ainda...

Se eu pudesse livrar o filhinho da revolta e da sepultura enquanto é tempo, considerar-me-ia sumamente feliz.
Sabes que um condenado não deseja igual sorte para os rebentos do coração!

Ante o choroso apelo, Saldanha não hesitou:
— Bem — tornou um tanto embaraçado —, procura o benfeitor Gúbio e expõe-lhe o caso com franqueza.

Leôncio não se fez rogado.
Acercou-se, respeitoso, de nosso Instrutor e explicou-se, simplesmente, sem rebuços:
— Amigo, acabo de saber com que devotamento mobilizas tua força, a benefício de criaturas desviadas do bem, como nós, que nos sentimos desprezíveis diante de todos.
É por isto que também venho implorar-te auxílio imediato.

— Em que poderemos ser úteis? — indagou o orientador, cortês.
— Passei para cá, há longos sete anos, e deixei no mundo minha mulher e um filhinho recém-nado.
Voltei, moço ainda, sufocado no esgotamento pelo trabalho excessivo em busca do dinheiro fácil.

Obtive, realmente, o que intentara, com a provisão de vastos depósitos bancários com que a esposa ainda se mantém, até hoje, a coberto de todas as necessidades.

O desespero, a ânsia inútil por retomar o corpo que abandonara, a vaidade ferida, converteram-me no colaborador desumano de que Gregório, o nosso chefe, tanto se orgulha...

Ai de mim, porém, que me sentia dono exclusivo dos encantos da mulher que eu adorava!
De dois anos para cá, minha infortunada Avelina passou a escutar as fantasiosas propostas de um enfermeiro que se aproveitou da fragilidade orgânica de meu filhinho para insinuar-se sobre o ânimo da pobre mãe, viúva e jovem.

Chamado a prestar socorro ao menino, depois de um incidente sem importância, o profissional percebeu as preciosidades materiais da presa cobiçada.

Desde então, assediou-me a esposa sem descanso e passou a envenenar meu pequeno, pouco a pouco, à força de entorpecentes, administrados por ele, seguindo um plano cruel.

No decurso do tempo, conseguiu de Avelina quanto queria:
dinheiro, ilusões, prazeres e promessa de casamento.

Acredito que o consórcio se realizará, dentro de breves dias, e já me resignei a semelhante acontecimento, porque a alma encarnada respira sob teia grossa de pesadelos e exigências, mas o perseguidor embuçado, sentindo em meu filho um concorrente forte aos bens que amontoei, procura aniquilá-lo sem pressa, roubando-lhe, calculado e ingrato, o ensejo de viver para um futuro digno e feliz.

Interrompeu-se, por alguns momentos, e prosseguiu, comovido:
— Francamente, envergonho-me de suplicar um favor que não mereço, mas o espírito pervertido, como eu, que pede recursos salvadores para os entes amados, guarda consciência do próprio infortúnio no mal que elegeu para inspirar-lhe o caminho...

Benfeitor, por piedade! meu desventurado Ângelo permanece à beira do túmulo...
Admito que o fim do corpo esteja marcado para breves dias, se mãos amigas e devotadas não nos socorrerem à altura de nossa indigência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:58 pm

Já fiz tudo quanto se achava ao alcance de nossas possibilidades, porém sou parte integrante de uma falange de seres malvados e o mal não salva, nem melhora ninguém.

Gúbio ia responder, mas Elói tomou a dianteira e, com imensa surpresa para nós, perguntou, sem cerimónia:
— E o nome do enfermeiro?
Quem é esse quase infanticida?
— É Felício de...

Quando o nome de família foi pronunciado, nosso companheiro apoiou-se em mim, para não cair... É meu irmão! — bradou — é meu irmão...
Forte emotividade empalideceu-lhe o rosto e expectativa inquietante desabou sobre nós.

Mas Gúbio, com a serenidade sublime que lhe assinalava a fronte, abraçou Elói e inquiriu calmo:
— Onde está o infeliz que não seja nosso irmão necessitado?

A frase inteligente e bondosa sossegou o colega deprimido e ofegante.
Desejoso talvez de desfazer as nuvens que se adensavam naquele reduto doméstico e de o transformar em abençoado santuário, nosso Instrutor convidou-nos a visitar o menino enfermo, sem perda de tempo.

Saldanha indicou a figura estranha de Gaspar, que parecia surdo e insensível ao que se passava e lembrou:
— Deixá-lo-emos sozinho por algumas horas.
Aliás, precisamos, pelo menos, de um dia, a fim de fortificarmos a defensiva.
A falange de Gregório não nos perdoará.

Nosso Instrutor sorriu em silêncio e ausentamo-nos.
Soprava brando e fresco vento da madrugada e pesada quietude reinava nas vias suburbanas que cruzávamos a passo rápido.

Leôncio, à frente, mostrou-nos confortável vivenda e informou:
— Aqui mesmo.

Entramos.
Em aposentos diversos, a dona da casa e o enfermeiro dormiam à solta, enquanto um pequeno simpático gemia, quase imperceptivelmente, demonstrando angústia e mal-estar.

Notava-se nele a devastação operada pelos tóxicos insistentes.
Profunda melancolia estampava-se-lhe no olhar.

Leôncio, o temido hipnotizador, abraçou-o e esclareceu:
— Os venenos subtis, que ingere em doses diminutas e sistemáticas, invadem-lhe o corpo e a alma.

Fios magnéticos e invisíveis ligavam, ali, pai e filho, porque o menino, num lance comovedor, embora a prostração em que se achava, contemplou, embevecido, o retrato grande do paizinho, suspenso da parede, e falou, súplice, baixinho:
— Papai, onde está o senhor?... tenho medo, muito medo...

Lágrimas ardentes seguiram-lhe a prece inesperada e o hipnotizador de Margarida, que até então se nos afigurara um génio horrível, prorrompeu em pranto emocionante.

Gúbio ausentou-se por momentos e regressou trazendo Felício, o enfermeiro, provisóriamente desligado do aparelho fisiológico.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:58 pm

O rapaz, não obstante semi-inconsciente, ao avistar Elói junto ao doentinho, procurou recuar, num impulso de evidente pavor, mas nosso dirigente conteve-o, sem aspereza.

Meu colega abeirou-se dele, já de fisionomia transfigurada, buscando dirigir-lhe a palavra.

O Instrutor, no entanto, afagou-o com a destra e avisou:
— Elói, não interfiras.
Não te encontras em condições sentimentais de operar com êxito.
A indignação afectiva denunciar-te-ia a inabilidade provisória para atenderes a este género de serviço.
Actuarás no fim.

Em seguida, Gúbio aplicou passes de despertamento em Felício para que a mente dele acompanhasse a lição daquela hora, dentro do mais alto estado de consciência que lhe fosse possível, notando-se que o paciente passou a fixar-nos com mais clareza, envergonhado e espantadiço.

Fitou Elói, positivamente amedrontado, e reparando Leôncio a chorar sobre o filhinho, fez novo movimento de recuo, interrogando embora:
— Quê? pois este monstro chora?
Gúbio aproveitou a pergunta brutalmente desfechada e interveio, sereno:
— Não concedes a um pai o direito de emocionar-se ante o filhinho perseguido e doente?

— Sei apenas que ele é para mim um inimigo implacável — comentou o irmão de Elói, com insofreável animosidade —, e reconheço-o, de perto.
É o marido de Avelina...
A princípio, via-o nos odiosos retratos que povoam esta casa... depois passou a flagelar-me nas horas de sono...

— Escuta! — disse-lhe o orientador, com inflexão de carinho — quem terá assumido a posição de adversário, em primeiro lugar?

o coração dele, humilhado e ferido nos sentimentos mais altos que possui, ou o teu que urdiu deplorável projecto de conquista sentimental ante uma viúva indefesa?

o dele que padece nos zelos inquietantes de pai ou o teu que comparece neste lar com o escuro propósito de assassinar-lhe o filhinho?

— Mas, Leôncio é um morto”! — suspirou o enfermeiro, desapontado.
E não hás de sê-lo, um dia — tornou o nosso dirigente —‘ quando houveres restituído o corpo de carne ao inventário de pó?

E porque o interlocutor não pudesse prosseguir, conturbado pelas forças desintegrantes da culpa, o Instrutor continuou:
— Felício, porque insistes no condenável enredo com que preparas tão calculado crime?
Não te compadeces, porventura, de uma criança enferma e sem pai visível?

Tens Leôncio na conta dum monstro, por defender o frágil rebento do coração, tal como a ave que ataca, ainda que impotente, na ânsia de preservar o ninho...

Que dizer, porém, de ti, meu irmão, que não vacilas em devassar este santuário, tão-somente com o instinto de gozo e poder?
como interpretar-te o gesto lastimável de enfermeiro que se vale do divino dom de aliviar e curar para perturbar e ferir?

Felício, a experiência humana, confrontada com a eternidade em que se movimentará a consciência, é simples sonho ou pesadelo de alguns minutos.

Porque comprometer o futuro ao preço do conforto ilusório de alguns dias?
Os que plantam espinhos colhem espinhos na própria alma e comparecem perante o Senhor de mãos convertidas em garras abomináveis.

Os que espalham pedras em derredor dos pés alheios serão surpreendidos, mais tarde, pelo endurecimento e paralisia do próprio coração.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:58 pm

Guardas, porventura, suficiente noção da responsabilidade que assumes?
Possuis ainda no coração evidentes restos de bondade igual à daqueles que se acolhem no âmbito de uma família abençoada e grande, em cujo seio a solidariedade é cultivada, desde os primórdios da luta.

Vejo que o entusiasmo juvenil não se extinguiu, de todo, em tua mente.

Porque ceder às sugestões do crime?
não te comove a prostração deste menino a quem procuras impor a morte vagarosa?

Repara! o drama de Leôncio não se resume ao conflito de um “morto”, como supões em teu perturbado raciocínio.

Ausculta-lhe o coração de pai amoroso e dedicado!
Encontrarás dentro dele a afeição doce e pura, à maneira do brilhante oculto no cascalho rijo e contundente.

O irmão de Elói pousava em nosso Instrutor os olhos medrosos e espantados.

Depois de leve pausa, Gúbio continuou:
— Aproxima-te. Vem a nós. Perdeste a capacidade de amar?
Leôncio é teu amigo, nosso irmão.

Felício gritou com visível expressão de angústia:
— Quero ser bom, mas não posso...
Tento melhorar-me e não consigo...

De voz entrecortada pelos soluços, acrescentou:
— E o dinheiro? Como resgatarei os débitos contraídos?
Sem o casamento com Avelina, a solução é impraticável!

Nosso dirigente abraçou-o e aduziu:
— E acreditas solver compromissos financeiros provocando dívidas morais que te atormentarão por tempo indeterminado?

Ninguém te proíbe o casamento, nem Leôncio, o organizador dos bens materiais de que pretendes dispor, discricionariamente, te poderia induzir à abstenção nesse sentido, os actos de cada homem e de cada mulher arquitectam-lhes os destinos.

Somos responsáveis por todas as deliberações que perfilharmos ante os programas do Eterno e não poderíamos interferir em teu livre arbítrio, mas te pedimos concurso em benefício desta vida frágil que deve continuar...

Queres dinheiro, recursos que te façam respeitado ou temido pelos outros homens.
Convence-te, porém, de que a fortuna é uma coroa pesada demais para a cabeça que não sabe sustentá-la e costuma arrojar à poeira, através do cansaço e da desilusão, todos aqueles que a senhoreiam, sem horizontes largos de trabalho e benemerência.

Não importa, pois, que comandes os valiosos depósitos de prata e ouro que Leôncio amontoou, inadvertidamente, porque aprenderás, com os anos, que a felicidade não está metida em cofres que a ferrugem consome.

Todavia, Felício, interessamo-nos por tua promessa em favor desta criança, extenuada de sofrimento.
Poupa-lhe o corpo tenro e aguarda o futuro! não tragas para o reino da morte semelhante delito, que te confinaria o espírito a furnas trevosas de expiação regeneradora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 18, 2012 9:58 pm

Ante a interrupção que se impusera natural, Felício quis dizer qualquer coisa para justificar-se, mas não pôde.

Gúbio, todavia, prosseguiu, sereno:
— Casa-te, esbanja as reservas preciosas deste lar se não souberes entender a tempo a sagrada missão do dinheiro, sobe aos píncaros da vida social transitória, adorna-te com os títulos convencionais com que o mundo inferior se habituou a premiar as criaturas sagazes que sobem a ladeira da dominação inútil ou ruinosa, sem ferir-lhe publicamente os preconceitos, porque o tempo te esperará sempre, com lições de mestre;
sem embargo, ajuda o pequenino a restabelecer-se.

E endereçando compassivo olhar ao hipnotizador de Margarida, acentuou:
— Não é bem Isto, Leôncio, quanto desejamos?

— Sim — confirmou o pobre pai em lágrimas enternecidas —, o dinheiro não importa e agora reconheço que Avelina é tão livre quanto eu mesmo.
Mas se meu filhinho continuar na Terra, tenho esperanças em minha própria regeneração.

Terei nele um companheiro e um amigo, ligado à minha memória, em cuja capacidade de servir poderei encontrar bendito campo de serviço espiritual.
Este menino, por enquanto, é o único meio de que disponho para retomar a crença no bem de que me havia afastado.

Reconhecendo-lhe o doloroso esforço para falar e rogar naquela hora, Gúbio abraçou-o, ergueu-o e disse:
— Leôncio, Jesus crê na cooperação dos homens, tanto assim que nos tolera as imperfeições renitentes até que aceitemos o imperativo de nossa conversão pessoal ao supremo bem.

Porque havíamos então de descrer?
Confio na renovação de Felício.
De hoje em diante, o teu filhinho não será mais vigiado por um perseguidor e, sim, protegido por desvelado benfeitor, digno de nosso concurso fraterno!

O enfermeiro, vencido por semelhantes palavras, ajoelhou-se, diante de nós, e jurou:
— Em nome da Justiça Divina, prometo amparar esta criança, como verdadeiro pai!

Em seguida, reergueu-se e tentou beijar as mãos de Gúbio, mas o nosso Instrutor, abstendo-se delicadamente de receber a homenagem, recomendou a Elói e a mim conduzíssemos o paciente ao corpo físico, enquanto ele mesmo aplicaria passes de fortalecimento ao doentinho.

Felício abraçou-se a nós ambos e, depois de nosso auxílio por reajustar-se no aparelho carnal, acordou no leito em copiosas lágrimas.

O lance, porém, não terminou aí.
Forçando a situação de algum modo, Elói inoculou-lhe intensa energia magnética à esfera ocular e o irmão, apalermado, viu-nos ambos, por alguns segundos.

Boquiaberto, assombrado, não sabia que dizer, mas Elói acercou-se dele e com benéfica indignação a resplandecer-lhe nos olhos, exortou-o, francamente:
— Se assassinares este menino, eu mesmo te punirei.

O enfermeiro proferiu grito terrível e deixou cair no travesseiro a cabeça desfalecente, perdendo-nos de vista.

Nesse instante, acreditei com sinceridade que a promessa de Felício seria cumprida integralmente.
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