LUZ ESPÍRITA
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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro - Página 4 Empty Re: O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 30, 2017 12:10 pm

Através de perguntas directas, induzia Paloma a se pronunciar, a explorar ainda mais suas emoções, a enfrentar-se.
- Não! Tenho certeza, agora, de que era eu mesma que estava me rejeitando.
Rejeitando a situação que eu não compreendia.
Revoltei-me por não ter com quem compartilhar aquela angústia; revoltei-me por não encontrar alguém que me auxiliasse a compreender o que ocorria comigo.
Eu estava só, emocionalmente...
Paloma chorava ante a constatação da verdade íntima.
- Então era você, Paloma...
- Sim, eu fiquei amarga.
Transferi para o outro minha revolta.
- Retorne ainda mais...
Aprofunde-se um pouco mais nas emoções...
- Vejo meu pai.
Meu pai verdadeiro...
-0 que você sente?
- Ele me abandonou.
Não pensou em mamãe nem em mim.
Nos rejeitou, assassinou nosso amor, nossas emoções.
Repudiou-nos abertamente.
Senti que era por minha causa.
Achei que se envergonhava de mim.
0 pranto se tornava convulsivo.
Paloma deixava emergir toda a dor e a emoção contida por anos e anos a fio...
- Vá ainda mais longe no passado...
Aprofunde suas observações.
Sinta-se com ainda maior intensidade. Que percebe?
- Sinto as emoções de meus pais...
Eu nascia.
Era uma criança linda, sorridente.
Mas parece que meu pai queria uma menina.
Sim, uma menina era tudo o que ele queria.
Percebo minha expectativa de ser afagado, pegado no colo e, de outro lado, a decepção de meu pai.
Eu implorava para ser tocado, acariciado; minha única linguagem era o sorriso e o choro.
Eu era um bebé. - Paloma chorava muito.
Meu pai se recusou a tocar em mim.
Minha mãe se revoltou contra meu pai e demorou a me amamentar.
Ela me culpava.
Não a ouço falar nada... só percebo.
Percebo a amargura e a frustração de minha mãe e a rejeição de meu pai.
Eu queria colo, carinho e afago.
- Pare aí, Paloma.
Interrompa a lembrança dessas emoções.
Cerre as lágrimas.
É preciso "congelar" a revolta e a rejeição.
Paloma fez o exercício mental e emocional sugerido por Samuel.
Deixava-se conduzir plenamente pelo novo amigo.
- Vamos agora progredir no tempo.
- Estou exausta...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 30, 2017 12:10 pm

0 amigo de Paloma amparou-a com um abraço.
Deixou claro o apoio irrestrito naquele momento especial para sua alma sensível.
- Respire fundo!
Respire mais ainda e sinta-se amparada.
Estou aqui, a seu lado.
À medida que Paloma se tranquilizava, ocorria um fenómeno interessante com seu corpo espiritual.
Modificavam-se gradativamente as feições femininas, que cediam lugar, segundo após segundo, à aparência masculina, embora os traços fisionómicos permanecessem finos e elegantes, sem o peso de uma forma masculina mais rude.
Ela descansava com os olhos fechados; ao abri-los lentamente, a fisionomia mudara quase por completo.
As roupas de agora não eram mais o vestido usado para as apresentações artísticas; não era mais o vestido que rasgara para mostrar-se a Hugo, anteriormente.
Neste momento, surgia a personalidade de um rapaz elegante, de certa maneira forte, corpo definido, mas sem excesso de músculos.
Olhos claros, quase azuis.
Os cabelos caíam-lhe sobre a testa suaves e macios, enquanto atrás, na nuca, eram rebatidos, mais curtos.
Paloma assumira a feição masculina, a de quando não estava interpretando, no palco.
Era o homem que respondia, no cotidiano, pelo nome de Hector.
Respeitando o momento de Paloma ou, então, Hector, Samuel concedeu um tempo para que se refizesse, reassumisse a postura íntima e identificasse possíveis medos, a fim de arregimentar forças internas para continuar, de alguma maneira.
Ante a dificuldade de Hector-Paloma em prosseguir, Samuel lançou mão de um recurso um tanto inusitado.
- Se você desejar, Hector, tenho um amigo que posso chamar para nos auxiliar.
Trata-se de uma ajuda simples; porém, quem sabe, poderá impulsionar você, livrando-o de um pouco da angústia, enquanto absorve dele alguns elementos mais subtis, que o farão sentir-se melhor para as reflexões futuras.
Veja bem, não desejo induzi-lo, mas colocar à disposição certos recursos interessantes e bastante eficazes.
Quando julgar oportuno, pode contar comigo.
-E que recursos serão estes? - perguntou Hector ou Paloma com visível interesse, mas prestes a desfalecer, quase sem forças para dar continuidade ao processo de revisão e reorganização emocional e mental.
- Meu amigo é um médium.
Por certo, a esta hora, está dormindo, mas isso não impede que auxilie você ou outros que desejem socorro.
Podemos procurá-lo e isso não demora muito.
Eu tentaria um método que consiste em acoplar você ao organismo mediúnico, de modo que fosse submetido àquilo que chamamos de choque anímico.
Isto é, tão logo estivesse acoplado ao espírito do médium - falo assim para resumir o fenómeno -, receberia os fluidos benéficos que ele detém.
Ao mesmo tempo, as angústias e dificuldades mais profundas passariam através dele e seriam descarregadas na natureza.
Você certamente se sentiria bastante aliviado e prosseguiria sua caminhada bem mais fortalecido.
Hector-Paloma pensou por algum tempo, que Samuel lhe concedeu, sem interromper suas reflexões.
Ao cabo de alguns minutos, resolveu aceitar o recurso oferecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 30, 2017 12:10 pm

Samuel inspirou Hector a levantar-se.
Posicionando-se ao lado dele, o instrutor pôs a mão direita sobre a fronte do transformista enquanto a esquerda amparava-o na altura da nuca.
Samuel concentrou-se por alguns instantes, tendo o pensamento fixo no amigo encarnado, que, como previsto, dormia, mas estava desdobrado, fora do corpo físico.
Imediatamente, o ambiente à volta dos dois pareceu ter-se modificado.
Em meio a fluidos vaporosos, viram-se ambos ao lado da cama do rapaz, que estava deitado com a barriga voltada para cima.
0 corpo jazia sobre o leito, mas seu espírito permanecia desperto, logo ali ao lado, como se aguardasse a chegada de algum dos mensageiros com os quais habitualmente trabalhava.
- Você, Samuel? - falou o médium desdobrado, surpreso.
Não esperava que fosse você a me procurar para o trabalho desta noite.
Em que posso ser útil, meu amigo? - falou o médium fora do corpo, já olhando para Hector, que apresentava sinais visíveis de cansaço, desvitalizado devido ao esforço de rememorar o passado e lidar com as emoções reprimidas.
- Que bom que está de prontidão, meu caro! - respondeu Samuel, deixando claro, através do pensamento, o que pretendia, a fim de conceder assistência imediata ao novo pupilo.
Preciso promover um choque anímico.
Meu amigo aqui, que está quase inconsciente no momento, em estado alterado de consciência, precisa de elementos subtis, de fluidos nervosos para recompor-se e continuar sua vida, suas reflexões.
- Puxa, amigo, mas ele ainda está encarna...
Samuel fez um gesto rápido, interrompendo o médium, deixando claro com isso que não queria dar informações que pudessem dificultar o processo de revisão dos valores, de reavaliação emocional ao qual Hector se submetia.
E antes que o médium pudesse externar qualquer comentário a respeito, Samuel perguntou, convidando-o ao trabalho:
- Topa participar, doando fluidos para que ele se refaça?
- E lá sou homem de perder a oportunidade de ser útil?
Claro, amigo!
Conte comigo.
0 que se passou foi algo impressionante, sob o aspecto fenoménico.
O médium desdobrado concentrou-se profundamente; fazendo uma prece rápida, tomou seu lugar ao lado de Hector, que, de pé, parecia meio perdido, aéreo.
Além do mais, não tinha conhecimento e muito menos estava habituado aos fenómenos mediúnicos.
Com o auxílio de Samuel, o médium ministrava, no amigo necessitado, algo que se assemelhava a passes longitudinais.
O novo ajudante pareceu logo entrar em transe, enquanto sua aura irradiava energias benéficas, que eram canalizadas por Samuel em favor de Hector, à medida que se liberavam.
Neste momento, o rapaz necessitado foi levantando-se no ar, suspenso pelo magnetismo de Samuel para, em seguida, ser conduzido ao corpo do médium, que repousava sobre o leito.
0 espírito de Hector-Paloma acoplou-se célula por célula no corpo do médium, que antes se aproximara muito dele.
Assim que Hector se conectou ao corpo do médium, recebeu uma espécie de descarga magnética de tamanha intensidade que se sacudiu todo.
Um vapor exalou de cada célula do corpo deitado sobre o leito.
Era o ectoplasma ou fluido vital, que, ao comando da mente do auxiliar desdobrado, envolvia Hector e lhe concedia uma vitalidade extra, energizando seu corpo espiritual.
A seguir, o médium, ao lado do seu corpo, sentiu-se um pouco angustiado.
Ele absorvera, por vontade própria, os fluidos adensados pelas emoções conturbadas de Hector.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 30, 2017 12:10 pm

Era uma troca magnética, energética:
ambos permutavam jactos de energias.
Mas a sensação percebida pelo médium durou poucos minutos.
Enquanto Hector, depois de sentir um formigamento a percorrer-lhe o corpo espiritual, arregalou os olhos e percebeu-se num corpo estranho, deu-se ali mesmo forte estremecimento.
Imediatamente, viu-se lançado para fora do corpo hospedeiro, ao tempo em que o médium retornava ao próprio corpo, assumindo aquilo que lhe pertencia de facto.
Samuel amparou Hector quando este se colocou acima do corpo do médium, auxiliando-o a levantar-se, visivelmente melhorado.
Ao retomar o corpo físico, o médium abriu os olhos, percebendo a presença espiritual de Samuel e seu pupilo.
Levantou-se com forte náusea, pois processava os fluidos densos, a carga tóxica acumulada pelas emoções mais materializadas ou cristalizadas, absorvidas de Hector.
Sabia muito bem o que significava aquele tipo de acção.
Num gesto breve, agradeceu a Samuel a oportunidade de ser útil e sem demora se dirigiu ao lavabo, onde descarregou os fluidos densos através da urina.
Logo depois sorriu, satisfeito com o trabalho da madrugada, e voltou a dormir, enquanto participava de outras actividades, em desdobramento.
Por meio de uma concentração breve, Samuel reconduziu Hector ao ambiente onde estavam antes.
No plano mental, talvez tudo tenha se passado em apenas alguns segundos; do ponto de vista de Hector-Paloma, era como um longo tempo, provavelmente horas e horas.
Quando Hector voltou, renovado pelo socorro oportuno, mostrou-se muito disposto.
A angústia havia cedido lugar a um estado de espírito sereno, embora as reflexões continuassem.
Ao regressar, notou que, durante a conversa com Samuel, estivera o tempo todo no mesmo ambiente dos companheiros de jornada:
Hugo, Ronie, Adir, Patrícia e César.
Porém, devido a algum efeito ou artifício da mente, compartilhado por todos, prevalecera a noção de que estivera ausente.
E que estavam se movendo numa dimensão puramente mental, na qual cada um elaborava seu próprio tempo, criava seu próprio mundo, ainda que se mantivessem ligados devido a processos comuns de culpa, medo e castigo, que impingiam a si mesmos.
Na hora em que Hector, e não mais Paloma, praticamente se materializou ante os olhos assustados de seus companheiros, apresentava visível transformação, com a aparência bastante mudada.
Ereto, elegante, traços finos e sem a maquiagem, dirigiu-se imediatamente ao local onde estava Patrícia, tomando-a nos braços.
Habituara-se a dar apoio a pessoas necessitadas, como fizera durante longo tempo.
As dificuldades íntimas? Os problemas?
Muito provavelmente não estivessem de todo resolvidos, mas tivera a coragem de enfrentá-los, sem fugir.
Voltando-se para Samuel, Hector comentou:
- Sinto-me refeito, porém ainda há muita coisa a resolver dentro de mim.
Quero agradecer a ajuda inesperada.
Acho que a morte é isto:
a oportunidade de nos encontrarmos com nós mesmos, nos encararmos, sem máscaras nem maquiagem.
- Nem sempre é preciso esperar a morte para esse enfrentamento, meu amigo.
Muitas questões de ordem íntima podem ser trabalhadas quando se está de posse do corpo físico.
Em diversas ocasiões, algum impacto mais forte faz com que emerjam do psiquismo certos factos e memórias que ficaram gravados numa dimensão mais profunda, no chamado inconsciente.
Nesses momentos, somos levados a rever nossos valores, avaliar nossas emoções e conceitos e, quem sabe, dar novo significado às vivências mais incómodas e até dolorosas, que calaram fundo na alma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 30, 2017 12:10 pm

- Após avaliar melhor e com mais fôlego minhas questões íntimas, chego à conclusão de que eu queria mesmo era ser feliz, nada mais...
Samuel soube interpretar aquele momento precioso das reflexões e conclusões de Paloma agora, Hector -, que disse mais:
- Creio que vivi o tempo todo em confronto comigo mesmo.
Por talvez não compreender minha situação íntima, meus conflitos internos e marcantes, não me perdoei, não perdoei meu pai nem meu padrasto.
Eu queria ser aceito ou aceita a todo custo, mas será que eu mesmo havia me aceitado?
Será que soube compreender a mim mesmo?
0 abuso cometido por meu padrasto durante longo tempo poderia ter encontrado termo caso me decidisse a falar com minha mãe ou tomasse qualquer atitude, ou pelo menos tentasse.
Mas eu me perguntava:
será que ela me ouviria?
Será que enfrentaria meu padrasto e poria fim a meu horror?
Pouco importa.
Seja como for, a verdade é que me faltou coragem.
Samuel ouvia atentamente as conclusões de Hector, enquanto ele acariciava os cabelos de Patrícia, transmitindo-lhe energias balsâmicas sem o saber.
Samuel olhava ora para um, ora para outro e sondava a natureza de Hector.
Percebia a capacidade de auxiliar e a disposição clara em fazer algo de bom por quem quer que estivesse em seu caminho.
Com aquele gesto, Patrícia parecia mais calma e ensaiava acordar do transe.
- Vejo que você tem alguma habilidade em ajudar os outros, meu amigo - falou Samuel, apontando em direcção a Patrícia.
- Pois é - respondeu Hector, ligeiramente sem graça com a observação do amigo espiritual.
- Trabalhei na noite durante muito tempo, conforme já lhe disse.
Resolvi fazer isso por dois motivos.
Primeiro, era uma forma de me realizar como pessoa, como artista.
Adoro a diversão, a noite, a fantasia, as luzes, o palco.
Mas também encontrei na minha arte a forma de ganhar um dinheiro a mais.
E ganhei muito dinheiro, muito mais do que com minha profissão oficial, de design de moda.
Com essa renda extra e com o que meu namorado me ofereceu, pois me compreendia o desejo de ajudar, consegui comprar um casarão, que reformei usando a doação de um empresário que procurei e aceitou colaborar.
Dei à casa o nome de Palácio de Cristal.
E sorrindo, ou melhor, rindo gostosamente, satirizou:
- Nada mais bicha do que o nome Palácio de Cristal, né?... - as risadas foram gostosas; Hector já era capaz de rir de si mesmo e referir-se a si de maneira descontraída.
Ele prosseguia relatando sua história:
- Então, fiz algo que desejava há muito tempo.
Junto com meu namorado, consegui arrebanhar algumas meninas - assim eu as chamava; eram travestis e garotas de programa -, que não conseguiam sair das drogas e da vida nas ruas, e levá-las para o Palácio de Cristal.
Ali recebiam um tratamento digno, humano.
Eram conduzidas a médicos, psicólogos e outros profissionais.
Consegui estabelecer uma parceria proveitosa com muitos desses profissionais, que frequentavam a noite, as boates.
Conversava francamente com eles sobre meu projecto de vida e muitos se solidarizaram.
Respirando aliviado, Hector lembrava cada detalhe de seu sonho pessoal de auxiliar aqueles que necessitavam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:53 am

- O projecto estava em pleno andamento.
Mas eu hesitava em divulgá-lo; não queria que as pessoas em geral ficassem sabendo.
Permanecíamos no anonimato, pois, se muitos ficassem sabendo ou porventura fosse divulgado na mídia, poderia atrair curiosos, políticos que queriam se promover e outras coisas indesejáveis.
Foi quando aconteceu o incidente comigo, quando me vi envolvida naquela batida policial.
Enfim... - suspirou.
A bala perdida me pegou de jeito.
Depois de um pouco de silêncio, desabafou:
- Sabe, Samuel, na verdade não fui vítima de bala perdida.
Eu me joguei à frente do policial, num ímpeto, sem raciocinar, pois vi o revólver sendo apontado para ele.
Acho que foi mais instinto do que altruísmo.
0 que eu não esperava, de verdade, eram os pontapés, as agressões da polícia.
Mas a tal bala que me trouxe ao encontro da morte...
- Morte? Que morte, Hector?
- Desculpe, Samuel.
Se morrer é isso, então acho que nunca estive tão vivo quando antes.
Pois bem, eu me joguei em frente ao policial.
Nem sei ao certo a motivação que me levou a tomar essa decisão sabendo do risco, do perigo que corria.
Só me lembro das imagens, dos sons, enfim, da imagem do meu menino, do amor de minha vida - Hector esboçou uma lágrima, que lhe caiu do rosto.
- Se eu tivesse a chance de retornar, de reencontrá-lo, após as reflexões que fiz aqui, com seu auxílio, certamente ele teria uma surpresa agradável comigo.
Nossa relação provavelmente seria muito melhor, com mais qualidade.
Sabe de uma coisa, amigo?
- Fale, Hector.
Deixe sua alma derramar-se por inteiro.
- Eu começaria tudo de forma diferente.
Mas ainda tenho um desafio, e é pena que não possa enfrentá-lo, depois do que me ocorreu.
- Posso saber que desafio é tão instigante para você neste momento?
- Claro, Samuel, claro!
Queria muito reencontrar meu padrasto.
Procurá-lo, e à minha mãe, para conversarmos e, quem sabe, em vez de perdoá-lo, pedir seu perdão.
Preciso mesmo disso para poder prosseguir meu caminho e ser mais feliz.
Queria lhes apresentar meu namorado e dizer-lhes quanto ele me faz feliz; queria falar das coisas que faço, não com o intuito de ser aplaudido ou reconhecido, mas para compartilhar, apenas isso.
Sinto que estou cheio de vida e queria mesmo assumir minha condição, minha vida, meu amor perante meus familiares...
Enquanto acariciava Patrícia, Hector fechou os olhos, visualizando aquela imagem; era quase uma prece, uma rogativa.
Quando os abriu novamente, tomou um choque:
estava noutro lugar, com outras pessoas.
Olhou para si e viu ainda os farrapos da roupa que usara na performance daquela noite, na boate onde trabalhava.
Não sabia o que estava acontecendo.
Não via mais Samuel, nem Patrícia, nem os demais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

ENQUANTO TAIS acontecimentos marcavam a experiência de Paloma, que aprendera a se aceitar mediante o enfrentamento das emoções mais cáusticas, Arthur observava os demais componentes do grupo, que se mantinham prisioneiros da culpa e das questões não resolvidas.
Arthur e Nestor comportavam-se como Samuel anteriormente.
Invisíveis, porém atentos, presentes.
E foi em determinado momento de discussão entre Ronie, Hugo e Adir que Arthur resolveu aparecer, dar o ar da graça, como alguém diria.
Quando comentavam o facto de Hector ou Paloma ter sumido do campo de visão, Arthur aproximou-se lentamente de Ronie.
Porém, este não podia vê-lo, ainda.
Mas notando que algo ou alguém estava próximo, o rapaz se apavorou.
Sentiu-se arrepiar por inteiro.
A sensação de Ronie foi como se vivesse um pesadelo.
Em todos os sentidos.
Arthur aplicou-lhe um jacto de sopro frio sobre a nuca e, logo depois, sobre o plexo solar, visando acalmar-lhe as emoções.
No entanto, a experiência fora percebida por Ronie apenas como um vento, algo que o roçava; um calafrio.
Amedrontado, deu uma volta em torno de si mesmo quase aos gritos, sem poder perceber visualmente a presença de Arthur, que tentava uma aproximação mais ostensiva.
Ronie estava mergulhado em vergonha e culpa.
Usava a máscara de sempre, de pessoa resolvida, e a arma da violência verbal, com a qual se defendia atacando os outros, embora definitivamente não conseguisse esconder-se ou enganar mais ninguém.
- Que é isso, Ronie?
Está louco?
Rodando feito um pião, assim...
- Não vê que tem alguém mais aqui, entre nós?
- Não vejo ninguém.
Você está paranóico!
- E o Diabo!
Aposto que é o Danado, que está rondando vocês pra levar suas almas com ele - falou Adir quase berrando, pois pressentia a presença de Arthur também, embora não conseguisse explicar de forma inteligente o que o impressionava.
Arthur mais uma vez tentou estimular o campo de visão de Ronie, para que pudesse conversar directamente com ele, porém, desta vez, o rapaz quase enlouqueceu.
Pôs-se a correr de um lado pra outro, numa velocidade alucinante.
De nada adiantava.
Para qualquer direcção que apontasse, voltava sempre ao mesmo lugar.
Depois de algum tempo nessa atitude, já cansado, Ronie corria menos velozmente, até que deparou com uma situação incomum.
Via-se projectado em diversos lugares, como se estivesse numa sala repleta de espelhos.
Para qualquer lado que olhasse, lá estava a própria imagem; não via mais os companheiros Adir, Hugo ou César e Patrícia, esta há muito tempo fora de seu campo visual.
O pavor de Ronie aumentou consideravelmente.
Tentava apalpar as imagens para ver se realmente eram reflexos de algum espelho, mas nada.
Parecia que estavam todas de pé, mais reais do que cogitaria sua mente tresloucada.
Para piorar a situação, em cada réplica de si mesmo que observava, havia algo ligeiramente diferente, uma transformação ou deformação no próprio corpo, cujo reflexo provinha não se sabia de onde nem de que maneira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

Numa das figuras, via-se como um corpo metamorfoseado, dotado de fartos seios femininos, e o restante do corpo perfeitamente masculinizado, com pelos, muitos pelos.
Outra imagem ostentava dois órgãos genitais:
o masculino, atrofiado, e o feminino.
Ronie gritava, quase louco...
- Coitado do nosso amigo - falou Arthur para seu companheiro do Invisível, Nestor.
Parece que está sendo impelido a encarar a própria realidade íntima.
As imagens são projecções do seu corpo mental, que já está muitíssimo adoecido, devido ao estilo de vida que levou na Terra e que lhe afectou profundamente a estrutura espiritual.
Ronie ensaiava correr, mas as imagens de si mesmo pareciam persegui-lo; vinham-lhe ao encontro na mesma velocidade em que ele se movimentava.
Era realmente uma cena de pesadelo.
Arthur aproximou-se novamente, procurando acalmá-lo, a fim de que ele o pudesse perceber.
Com bastante dificuldade, aplicou-lhe um passe longitudinal e, logo após, um sopro quente sobre a região frontal, entre os olhos.
Ronie deteve os movimentos num ímpeto, sem, contudo, conseguir livrar-se das visões de si mesmo.
Parou com os olhos arregalados e um grito de espanto paralisado no rosto.
Foi então que Arthur teve uma ideia, que, talvez, pudesse fazer com que o rapaz o enxergasse.
Uma vez que Ronie estava tão conectado, tão imerso em sua própria realidade, em seu mundinho íntimo, ele não tinha olhos para ver além.
Não conseguia registrar formas e seres mais subtis.
A mente do jovem garoto de programa era refém de um fenómeno conhecido como circuito fechado de pensamentos.
Gravitava em torno da própria realidade, isolando-se mais e mais do mundo objectivo.
Arthur resolveu assumir outra conformação externa, perispiritual, moldando os fluidos próprios e em redor.
Enquanto tocava ligeira e sutilmente a cabeça de Ronie, foi se adensando pouco a pouco.
Novamente o rapaz ficou horrorizado com o que via.
A mão de Arthur, agora numa forma feminina, de uma mulher negra, foi a primeira a se materializar, segundo a óptica de Ronie.
Não foi a intenção de Arthur, mas foi como Ronie registrou o fenómeno.
Cada um vê exactamente aquilo a que se capacitou, se assim se pode dizer; escuta e percebe de conformidade com determinados factores, tais como a vida íntima, a cultura e a forma de ver o mundo.
Logo depois da mão, os braços se mostraram, aparentemente do nada, naquela dimensão inexplicável para os conhecimentos dos personagens e, principalmente, de Ronie, que sentia emergir de sua alma todo o medo e pavor, toda a culpa e todo o pânico, de uma só vez.
Ficou petrificado.
Não conseguia se mexer, enquanto uma negra elegante, vestida em trajes que lembravam roupas africanas estilizadas, erguia-se a seu lado.
Arthur assumira a feição de sua última personalidade, na existência física mais recente.
Balangandãs, colares belíssimos e coloridos caindo-lhe ao peito, além dos cabelos elegantemente enroscados sobre a cabeça, num estilo africano inconfundível.
Formas elegantes, embora dotadas de um quê diferente, quase masculino, sem perder, entretanto, a formosura e o jeito faceiro.
Quando a aparição terminou de se formar, Ronie movimentou levemente a cabeça, engolindo em seco, num estado que psicólogos e psiquiatras da Terra provavelmente classificariam como crise de pânico.
Esse era o panorama íntimo do rapaz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

Arthur, agora modificado, transfigurado, mostrava-se como outrora.
Uma mulher de traços firmes, que trabalhara desde cedo, desde tenra idade junto à família de Ronie, e fora deste a primeira babá.
Crescera na família, tomando conta tanto de Ronie quanto de seus irmãos.
Porém, no estado em que ele se encontrava, não lograva reconhecê-la.
O estado mental do rapaz era o mais desfavorável possível, devido a intensa culpa, vergonha de si mesmo e, somando-se a isso, ao pânico, que se instalara em seu mundo íntimo.
Ao mesmo tempo em que a aparição falou, Ronie saía correndo, como se lhe fosse possível ir para outro lugar.
Na sua mente infeliz e culpada, cheia de traumas em virtude do estilo de vida que elegera para si, a visão da negra baiana, embora toda a elegância que demonstrava, se lhe afigurava como produto de um pesadelo, um filme de terror, devido ao inusitado do fenómeno, até o momento inexplicável para ele.
- Que é isso, meu rei?
Vixe! Não há porque se apoquentar, não.
Venha que vou te ajudar, meu anjo.
Estou aqui pra cuidar de você...
Não me reconhece?
Saindo em disparada para outro lugar e para lugar nenhum ao mesmo tempo, o rapaz retornava sempre à presença da mulher vigorosa que lhe falava.
A visão da negra e as imagens de si mesmo pareciam se alternar, segundo interpretava, numa suposta perseguição frenética, como se ambas as aparições fossem estimuladas e produzidas por alguma estranha e invisível luz estroboscópica.
Para sua mente, num estado de quase loucura, era como se uma imagem derivasse da outra, e a figura da mulher que tentava auxiliá-lo saísse de dentro das réplicas de si mesmo, que o atormentavam.
Era tal o seu ponto de vista acerca do fenómeno.
Enfim, era como ele anteriormente percebia os vultos e as imagens fugidias que o perseguiam durante o transe proporcionado pelas drogas, cujo uso era frequente.
- Se acalme, meu rei!
Fique assim, não!...
- falava com um sotaque baiano inconfundível.
Como Ronie não ficava quieto de forma nenhuma, resolveu tomar uma medida mais drástica para fazê-lo sair daquele transe louco, como se produzido por alucinogénios.
A fim de fazê-lo parar, teria de provocar algo mais brusca, que lhe provocasse grande impacto, quase em nível físico, caso no corpo físico ele estivesse.
Soprou bem forte na região mais próxima possível do seu plexo solar.
Ronie se deteve imediatamente, levou a mão à barriga e vomitou.
Vomitou farta e instantaneamente.
Vomitou a ponto de estremecer de fraqueza, logo caindo ao chão, quase desmaiado.
- Afe, bichim!
E eu nem imaginava que tinha uma força assim, não!...
Mas benfeito, seu menino, você fez por merecer.
Imagina correr assim dessa nega, que muito lhe quer bem?
Quase sem fôlego, quase sem forças para se expressar, Ronie voltou-se para a mulher que lhe falava.
Balbuciando feito um menino medroso, indagou:
- Quem é você?
0 que faz aqui?
- Ora, esse menino!
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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro - Página 4 Empty Re: O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

Será que já se esqueceu de mim, é?
Tô avexada...
- Estou no inferno e não conheço ninguém achegado a mim que esteja na mesma situação desgraçada.
- Modere sua boca, muleque!
Nem pense em falar desse jeito comigo, que lhe mostro do que sou capaz.
-E quem você pensa que é?
A mulher do demónio?
Por acaso está querendo me enfrentar também, feito aqueles miseráveis e desgraçados que estão presos aqui comigo?
- Num sei do que está falando, não!
Juro que não sei.
-0 Hugo, a boiola da Paloma e também aquele crente desgraçado, que não para de mangar da gente e dizer que estamos perdidos, no inferno.
E tem mais gente solta por aí... tão loucos quanto eu e, talvez, como você também.
- Que bom que começou a falar!
Mas nem pense em dizer seus palavrões, menino.
Não foi assim que eu lhe ensinei.
Rindo, numa risada mais de loucura do que de deboche, o rapaz falou, ou tentou gritar, não fosse a falta de forças que o dominava:
- Ensinar para mim?
Você nunca me conheceu antes desse inferno, ou melhor - corrigiu-se - desse limbo aqui...
E nem eu a conheço de lugar algum.
- Acho que vô ter de falar mais sério com esse menino...
Meu Deus, meus santo, meus orixá!...
Assim que pronunciou essas palavras, Ronie pareceu reunir forças não se sabe de onde.
Levantou-se, embora com evidente esforço, mas levantou-se assim mesmo, colocando-se em frente à chamada aparição:
- Túnica? E você, Túnica?
Não acredito que seja você que está aqui nesse inferno...
E isso mesmo, você veio me tirar daqui!
Veio me arrancar desse lugar, que nem sei onde fica.
Eu estou morto, Túnica, estou morto...
- Afe! Que é isso?!
Deixou de ser homem, agora?
Vem com esse medo todo, parecendo mariquinha, é?
-É você mesma, não é?
Somente você pra falar assim, desse jeito.
Eu me lembro!
E antes que Túnica respondesse - aliás, Arthur transfigurado em Túnica, a babá que tomara conta de Ronie quando ainda criança -, ele mais uma vez se assustou.
Agora consigo mesmo.
Enquanto notava que os reflexos de si pareciam se diluir lenta, vagarosamente demais - baianamente, alguém diria, no ritmo Dorival Caymmi -, o rapaz percebeu sérias mudanças em seu corpo.
Aliás, sentiu muito mais do que percebeu.
Voltando as costas para Túnica, olhando de um lado para outro, enfiou a mão dentro das calças.
Arregalou os olhos, e um grito lhe saiu da garganta, mais uma vez...
- Cruz, menino!
Agô, meu pai!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

Parece que você só sabe gritar...
Pare com isso e vire homem de vez.
Olhando interessada para Ronie, que ainda tinha as mãos dentro das calças, falou:
- Que é que tem aí dentro?
Fale criatura!... —
comportava-se como a mais comum das mortais.
Ronie começou a chorar, talvez de desespero e agonia, talvez porque não conseguisse explicar o fenómeno que ocorria com ele e nele.
- Eu... Parece que estou virando mulher...
Tenho uma...
- Ah! Deixe disso, Roninho... deixe de medo.
Você agora há pouco não me disse que estava morto?
No inferno? Então?
Se está no inferno, que importa se você continua homem ou mulher, não é mesmo?
- Você não entende... eu tenho os dois!
Modificando o tom da voz, mudando por completo o ambiente de queixas, xingamentos e palavrões, Túnica falou séria:
- Vamos deixar essas coisas de lado.
Me fale, menino.
Fale agora o que você andou aprontando.
Parece que está quase louco.
Me conta direitinho o que aconteceu com você.
Sentindo certo influxo no olhar e na voz de Túnica, Ronie quase esqueceu a transformação lhe que ocorria no corpo espiritual.
- Eu não sei do que você está falando, não!
Juro que não sei.
- Deixa de tentar me enganar.
Você está tão preocupado com as suas coisas de homem que parece não ter percebido sua aparência exterior.
Por acaso já viu o próprio corpo, já?
Então Ronie tentou se olhar, se perceber.
Passou a mão pelo corpo, apalpando-se lentamente, para mais uma vez ficar sem saber o que lhe sucedia.
Que transformações eram aquelas?
O que estava acontecendo naquele lugar?
Era prisioneiro de uma situação ou de um local a respeito do qual não tinha nenhuma explicação plausível.
Agora, aquilo tudo que se passava com ele.
Seu corpo se mostrava quase esquelético.
Somente naquele instante notara as próprias mãos.
Alongadas, ressequidas e, alongando-se mais do que o natural, seus braços.
Tocou a própria face e não se reconheceu...
Com certeza não era ele; não era seu rosto.
E seus músculos?
Não era tão sarado?
Não causara tanto despeito em outros machos?
Não despertara paixões quase insaciáveis em outras pessoas, tanto homens quanto mulheres?
E agora? 0 que lhe sucedia?
Sem conceder tempo a Ronie para demonstrar uma vez mais o desequilíbrio interior através de manifestações extravagantes, mas compreendendo o momento desafiador, de extrema sensibilidade para sua alma, Túnica ousou insistir:
- Fale, menino! Fale, homem!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:54 am

0 que você andou aprontando pra estar desse jeito?
Parece um vampiro...
Aliás, acho que você se transformou tanto que nem você se reconhece mais.
Ronie desabou chorando.
Mas, desta vez, não foi um choro de puro desespero.
Agora tomava ciência da sua situação, que não era lá grandes coisas.
Por uns instantes, cruzaram-lhe a memória espiritual cenas, perfumes, cores, imagens e outros elementos de sua existência.
Que fizera consigo mesmo?
Sem esperar por novas perguntas, pois já trazia respostas para inúmeras questões ainda não formuladas, falou, ou melhor, desabafou:
- Eu morri, Túnica. Eu morri!
Mas foi tudo culpa minha.
Planeei um golpe num cliente e ele já estava preparado, me esperando com amigos dele.
Na mesma hora, de relance, também vi alguém contra quem eu havia aplicado o mesmo golpe...
Como se não soubesse de nada, Arthur, transfigurado na figura firme, poderosa e forte da babá de Ronie, questionou, mais uma vez:
- Mas que tipo de cliente, meu menino?
E que golpe?
E ainda sugerindo, pelas perguntas, que nada sabia da vida do rapaz, prosseguiu:
- Como você sabe que morreu?
E não me diga que estava tentando roubar algum cliente seu!
Nem acredito, meu menino! - disse ela, afagando a cabeça de Ronie, que por instantes repousou em seus ombros, chorando, ainda.
Um choro profundo, sentido.
Um pranto de quase arrependimento, de remorso, mesmo.
- Depois que você morreu, eu me transformei, Túnica!
Trabalhei muito, fui um executivo de primeira - disfarçou, tentando não se expor mais do que lhe convinha, ocultando a verdadeira feição de suas actividades.
Trabalhei na área de vendas de produtos muito especiais.
Tinha clientes ricos, os mais ricos de Salvador e de outras capitais do Nordeste.
Túnica não esperou que as mentiras de Ronie chegassem a um patamar onde seria impossível retornar, num emaranhado de intrigas, engodos e outras situações piores.
Interferiu radicalmente.
Levantou-se, deixando que o rapaz continuasse sentado num solo quase invisível, imperceptível.
Então disse, cheia de furor:
- Não minta pra mim, Ronie!
Você está tentando se esconder atrás da mentira pra quê?
Não disse que está morto? - falava com voz potente, forte, e mirava o rapaz frente a frente.
Não sabe que eu já parti da vida física e estou aqui ao seu lado?
Por que a mentira?
Aqui não adianta camuflar o que a gente fez.
Não há como se esconder.
Ainda com lágrimas nos olhos, e assoando o nariz, totalmente abalado com a aparência esquelética e o cheiro que, de um momento para outro, começou a exalar do próprio corpo, falou com voz entrecortada, demonstrando esforço:
- Eu vendia meu próprio corpo, Túnica!...
-e o pranto aumentou ainda mais ao confessar seus actos, como se a declaração a Túnica, que lhe devassava a intimidade, subitamente aumentasse a realidade dos factos.
Talvez chorasse inspirado pelo remorso, que tardiamente, segundo acreditava, assumia proporções imensas em sua mente e seu coração.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:55 am

Angustiado, aflito, com mágoas não expressas e pensamentos afogueados de raiva, de um ódio dirigido contra tudo e contra todos, contra Deus e o mundo, menos contra Túnica, manifestou-se, depois do silêncio da babá, que lhe respeitava o momento de agonia interior:
- Vendi meu corpo, Túnica!
A princípio, com a desculpa de que precisava de dinheiro para complementar a renda familiar.
Mas somente depois de muito tempo tive de admitir pra mim mesmo que eu não precisava disso, desse complemento que se transformou num vício miserável.
- Dobre sua língua, mocinho!
Você sabe muito bem do que sou capaz de fazer com você...
Agora, comandando a situação e dirigindo as perguntas de maneira a favorecer uma catarse de Ronie, indagou:
-0 que o levou de verdade a tomar esse caminho, Ronie?
0 que deu em sua cabeça pra fazer isso consigo mesmo e com pessoas que não tinham nada a ver com sua situação?
Balbuciando em meio a algumas lágrimas que ainda caíam de sua face, tentou até mentir, mas não conseguiu, ao olhar para os olhos negros e cheios de magnetismo de Túnica:
- Não sei se foi raiva ou se foi burrice minha, mesmo.
Primeiro experimentei o sexo loucamente, com muitas mulheres, uma atrás da outra, e também em orgias.
Depois percebi que alguns homens me olhavam de maneira diferente.
E após algum tempo resistindo à ideia que me perseguia e a planos mirabolantes de ganhar dinheiro fácil, me vendi pela primeira vez.
Foi assim, de um em um, que me viciei.
- Afe, meu rei, nem sei o que dizer.
Naquela época em que eu morava com vocês, nunca notei que você ou seus irmãos precisassem disso para viver.
E sua mãe então, a pobrezinha, deixou um dinheiro muito grande pra vocês como herança.
Não precisava de forma alguma fazer isso.
Que coisa...
- Gastamos tudo, Túnica!
De minha parte, gastei com mulheres e noitadas.
Viajei muito e aprendi a ser um cara mentiroso, a usar da habilidade de mentir para conseguir regalias, manipular as pessoas e tirar tudo o que eu queria delas.
Mas não funcionou por muito tempo...
- Não consigo entender, Ronie, com a educação que vocês receberam...
Eu mesma acompanhei de perto cada um de vocês - Túnica falava, embora soubesse de cada detalhe.
Queria estimular o rapaz a reflectir e a desabafar.
- Eu menti até nisso, Túnica.
Fingi que ia às aulas na faculdade.
Elaborei uma história toda complicada para enredar nossa mãe e meu pai, que ainda hoje pensa que sou um executivo.
- Ou, quem sabe, ele saiba da verdade e não queira tocar no assunto!
- Não sei se ele desconfiou de mim...
Mas agora não tem mais jeito.
Parece que o tempo aqui parou, que estamos paralisados em algum limbo, e a única coisa boa que me aconteceu nesse tempo todo foi você aparecer aqui.
Interrompendo um pouco a fala, novamente levou a mão ao interior da calça, tocando-se, apalpando-se... chorando novamente... estampando uma careta que podia ser interpretada como pavor.
- Você plantou seu futuro, Ronie.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:55 am

Talvez tenha mentido tanto, levado tantas pessoas no engodo, usado seu corpo a tal ponto como instrumento para conseguir o que queria, para enganar e manipular, como você mesmo disse, que agora seu espírito está se metamorfoseando por completo, sem cessar...
Mudando de "cara" o tempo todo.
- Eu fui um vampiro, Túnica...
Na verdade, é isso que fui, e foi no que me especializei.
Eu vampirizava cada pessoa que entrava em contacto comigo.
0 sexo e a sensualidade, meu corpo e minha mente, por inteiro, foram os instrumentos que utilizei para enganar, roubar, trapacear...
- E agora, como você acredita que está morto, sua mente reflecte no corpo espiritual tudo aquilo que você fez com os outros, ou seja, sua realidade íntima.
Sua mente está moldando seu corpo.
- Eu abusei de homens e mulheres, e não somente abusei como inventei desculpas para enganar a família, minha mãe e meus irmãos.
Ninguém ficou sabendo da minha verdadeira natureza...
- Quem sabe a gente possa ajudar você, meu menino?
- Ajudar? Como ajudar a alguém que usou do sexo, da mentira e do próprio corpo para afundar os outros na lama?
E mais ainda, Túnica:
eu aprendi a usar drogas.
Primeiro foi a maconha, depois vieram a cocaína e a heroína.
Foi então que descobri que precisava de cada vez mais dinheiro para manter o vício, a academia, que tinha de ser a mais cara, e as roupas de grife, que eu vestia sempre para conseguir o que queria.
Tudo, absolutamente tudo eu usava, eu sugava, eu roubava; só não roubei o sangue de minhas vítimas.
Respirando muito fundo, quase sem ter o que dizer, uma vez que Ronie descortinava toda a sua vida privada com ela, Túnica não fazia outra coisa senão escutá-lo e rezar baixinho.
Depois de um prolongado silêncio, tocou o corpo de Ronie e falou, mostrando as transformações que a mente produzia sobre o corpo espiritual:
- Veja, Ronie, como a mente é poderosa.
Ela imprime no espírito as marcas do carácter, das aquisições e das ruínas às quais a pessoa se entregou durante a vida.
Você agora ostenta este aspecto não é por punição divina, mas porque a culpa é muito grande.
Você mesmo está se punindo.
Como nesta dimensão não há como se esconder de si mesmo, vem à tona a realidade e, com ela, todo o conteúdo de sua alma.
Evidenciam-se as máscaras com as quais se cobriu e emerge do seu interior a verdadeira face de seu espírito.
Repare como não adianta o corpinho sarado, as academias, que dão forma ao corpo, as marcas famosas das roupas, que apenas encobrem sua natureza real.
Sem ter um direccionamento na vida e sem um ideal, um objectivo maior, tudo isso passa.
- E o que faço agora, Túnica?
Estou no inferno, ou no limbo, e não quero continuar assim, me transformando desse jeito.
Onde eu vou parar?
- De alguma maneira, Ronie, você está traçando os rumos da próxima encarnação.
Seu espírito guardará as marcas do corpo que você usará numa outra vida.
- Outra vida?
Então terei oportunidade de me modificar?
- Todos nós temos muitas e muitas chances em várias vidas, várias existências - asseverou Túnica, sem dar maiores detalhes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 01, 2018 11:55 am

0 que importa é que a pessoa deseje se modificar de verdade, genuinamente.
Mas uma coisa é certa:
como você abusou demais do sexo e da sexualidade, de homens e mulheres...
Consegue imaginar o tanto de gente que, a troco de prazer, teve as energias vitais sugadas por você?
Tente imaginar!
0 remorso pareceu bater fundo na alma de Ronie, mas não ainda o arrependimento.
- Mas todos eles tiveram o que procuravam; a todos dei prazer...
- Você vendeu prazer, ou melhor, se vendeu.
E como você mesmo se definiu, no início de nossa conversa, você se transformou num executivo, só que num executivo de corpo e de alma.
Vendeu a si próprio, a sua alma, muito mais do que ao corpo.
- Mas eu tinha necessidade do dinheiro...
- Ao que parece, meu menino, todas as pessoas que se vendem lançam mão da mesma desculpa.
Todos que oferecem corpos e almas a troco de dinheiro, prazer, diversão, posição social ou outra vantagem qualquer alegam necessitar do dinheiro.
E mais ainda... costumam dizer que é por pouco tempo.
E só por causa de uma dívida, um problema de família, coisas assim.
Pelo que entendo, com você não é diferente.
Pelo menos meu filho podia inventar uma desculpa mais original!
- Mas eu realmente pretendia terminar com essa vida, Túnica!
Eu estava programando arranjar um emprego...
- Quando, Ronie? Quando? - perguntou num tom quase ríspido.
- Não tem vergonha na cara?
E vendo que Ronie curvava a cabeça num claro gesto de vergonha de si mesmo, arrematou:
- Acho que você ainda não se arrependeu de nada que fez!
Consegue ainda mentir pra si mesmo, como se isso resolvesse sua situação, que não é nada boa.
0 rapaz desabou a chorar.
E, ao mesmo tempo em que se dava o pranto, as imagens mentais voltaram a persegui-lo.
Iam e vinham de lugares diferentes.
Imagens de si mesmo em diversas situações.
Agora, entretanto, acrescidas de figuras outras, talvez seus fregueses, suas vítimas energéticas.
Ronie levantou-se e começou a correr novamente.
Mas, como antes, não conseguia fugir, ir a lugar nenhum.
Estaria preso numa dimensão diferente?
Era tudo projecção da própria mente, já afectada por tanto uso de drogas, ou seria projecção do inconsciente, devido ao peso da culpa?
Ronie estava repleto de traumas relacionados tanto à sexualidade quanto à maneira como encarava a vida de prostituição.
Inventara uma justificativa para si, uma mentira, e essa mentira tornara-se realidade, embora uma realidade alternativa, fabricada por ele mesmo, mas que passara a ser seu mundo real.
Acreditava piamente nas histórias que concebia.
Entre as imagens que via e que eram projectadas, quem sabe, a partir da própria memória ou do cérebro extrafísico, aparecia perambulando pelas ruas em busca de fregueses.
E entre outras tantas recordações e imagens mentais, apareciam as cenas da infância e da adolescência, com destaque para o jeito e a malícia ao lidar com os demais, sempre tentando manipulá-los e extrair-lhes algo para o proveito pessoal.
Uma sucessão de intrigas, problemas,
drogas, inferninhos, até a doença.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:39 am

Ah! A doença...
Começou a se instalar
quando se sentiu ameaçado pela polícia pela primeira vez.
Um ataque de nervos.
Ronie sofria de narcolepsia, uma condição que o levava a dormir durante horas e horas a fio, toda vez que tinha um abalo emocional.
Ninguém era capaz de acordá-lo.
Foi assim que diversas vezes acordou seminu, que lhe roubaram roupas, documentos e dinheiro em mais de uma ocasião.
E agora? Será que estava vivendo um pesadelo durante um desses ataques?
Enquanto corria de um lado para outro, corria de si mesmo - e sofria.
Era o seu inferno particular.
Quase louco, acabou por esbarrar em Túnica, que o amparou e o fez deitar-se no chão, no lugar onde ela estava.
Quando o tocou nesse estado de quase demência, também conseguiu ver as imagens projectadas pela mente irrequieta.
Ela pôde então avaliar a gravidade e a intensidade do problema vivido por Ronie.
Ele se encontrava num estado lamentável.
Seu espírito estava doente; sua mente, enferma.
Ronie precisava urgentemente de ajuda externa, embora Túnica não estivesse certa de que ele quisesse ser ajudado.
Passando as mãos em seus cabelos, ela inspirou-lhe calma e relativa tranquilidade.
Ronie dormiu longamente.
Mas não foi um sono bom ou calmo.
Ele teve pesadelos, intensos e significativos pesadelos.
- Meu menino, que você fez com sua vida?
Como chegou a este estado?
Agora era Túnica quem chorava, enquanto algumas lágrimas caíam sobre a face de Ronie, que permanecia deitado em seu colo.
0 mundo mental.
Uma dimensão totalmente desconhecida pela maioria dos seres humanos.
Imagens e paisagens, personagens muitas vezes sem forma, mas presentes, reais, intensamente reais; cores, sons, emoções das mais variadas e intensificadas pela força do pensamento, as quais se manifestam ali da maneira mais veemente e aguda possível.
Sem barreiras, sem obstáculos, as energias do espírito irrompem da intimidade do ser, de tal sorte que não há como impedi-las de se expressar, de se revelar em toda a sua pujança.
Nesse contexto, as forças da alma podem se exprimir de modo a levar o ser à experiência máxima do amor e do prazer, numa dimensão mais ampla e imaterial, ou, então, induzi-lo a enfrentar seus fantasmas e temores mais profundos e pronunciados, com a máxima força que o alto grau de culpa arquivado na própria alma venha a impulsionar.
Quando se encontra cativo dessa dimensão, o ser não faz a passagem por esse mundo em carácter voluntário, tampouco por processo natural de evolução.
Não. Ele fica aí detido por algum impacto mais brusco e até violento, que abala suas estruturas psicológicas; então, não aguentando o mundo soturno e sombrio criado por si mesmo, passa a externar o panorama íntimo quase automaticamente.
É assim que forma, no entorno, um inferno ou purgatório de natureza equivalente àquela encontrada dentro de si.
Talvez se trate apenas de uma defesa natural da mente.
Incapaz de suportar em seu bojo o caudal de sofrimento produzido pelo próprio espírito, exterioriza, de maneira audaciosa, o conteúdo mental e emocional.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:39 am

Manifesta-se, assim, nas paisagens, imagens e personagens sombrias que faz eclodir, e que, ao aparecerem, povoam o ambiente dessa dimensão tão sensível ao pensamento e às emoções.
Surgem figuras e cenas fugidias, paisagens quase oníricas, surreais; personagens forjados no cerne da mente daquele que se precipita nesse plano, e nele se trancafia por meio dos ferrolhos do pensamento desgovernado pela culpa, que, contudo, não podem atar o conteúdo macabro das próprias criações mentais infelizes.
Nessa condição, não há como o ser escapar empregando apenas forças pessoais, subjectivas, sem recorrer a auxílio externo.
Sozinho, ele não é capaz de emergir desse mundo que não é imaginário, mas no qual a imaginação doentia desempenha papel de protagonista, denunciando o grau de felicidade ou infelicidade desse ser que é vítima de si mesmo.
Enquanto Ronie dormia o sono atormentado em que se lançara, imagens de uma vida passada ou de outras vidas desfilavam perante os olhos de seu espírito demente.
Sentia-se um vampiro energético, espiritual, segundo a própria definição que empregara, embora fosse impotente para descrever em toda a abrangência e intensidade o significado dessas palavras, no tocante à sua condição real.
Conforme ele mesmo deixava transparecer, o quadro íntimo era ainda pior, mais degradado, então exibido sem máscaras nem maquiagem.
Via-se ora como dona de um bordel, ora como prostituta, que desfilava entre palacetes e mansões de políticos do início do período republicano, no Brasil da virada dos séculos XIX e XX.
Outras vezes, sentia-se manipulando ideias, pensamentos e documentos, bem como roubando vítimas, das quais subtraía dinheiro, fortunas, ceifando-lhes também a vida.
Enfim, as cenas se sucediam num clássico pesadelo de enredo amargo, que ele protagonizava e, simultaneamente, assistia; uma trama digna de contos de horror.
Quando notou que o rapaz estava tão imerso em vivências pessoais, profundas e soturnas, Túnica resolveu interferir, aplicando-lhe magnetismo vigoroso e favorecendo-lhe o despertar.
Ao abrir os olhos, Ronie permaneceu ali, parado, quase paralisado, de olhos fixos em Túnica, ou como se a perpassasse e enxergasse além de um véu imaginário, divisando algum universo que a imaginação doente compusera, num relance não identificado, impreciso na linha do tempo de sua existência.
Ali, ensimesmado, olhar vitrificado, somente a pouco e pouco despertava daquela espécie de sonambulismo induzido pela culpa e pelo remorso.
Não obstante, o arrependimento ainda estava distante de se manifestar, de surgir ou emergir das sombras da memória.
Em seu mundo íntimo é noite, profunda noite, na qual uma ronda de sombras povoa-lhe a memória espiritual, o cérebro extrafísico.
Em suas memórias, naquele momento de reflexões alicerçadas em elipses mentais, não havia matrizes que captassem, naquele entrelaçar de pensamentos angustiosos, sequer um gosto sublime, um momento breve de alegria genuína.
Faltavam-lhe os registos de uma felicidade que cheirasse o cheiro morno de um dia de verão ou o frescor da gota de orvalho, que imprimem nos sentidos uma quase sobrenatural sensação desse aroma de felicidade.
Não conhecia o nosso personagem, em suas rememorações, o gargalhar infantil que inspirava
enlevo e satisfação, ou outro qualquer facto marcante, feliz, talvez, quem sabe, registrado em suas memórias mais antigas; não!
E essa tétrica realidade, emoldurada e arrematada nas forjas da memória culpada, devia-se ao peso que nutrira a culpa, a qual se assemelhava a uma bigorna onde se moldara seu mundo interior.
Não conseguira firmar sua atenção sequer na lembrança do afago de uma mãe, a qual pudesse aliviar a tensão interna da alma que ardia, ou produzir uma polifonia cuja harmonia íntima pudesse perceber, como em um coro de vozes sublimes, que talvez o fizesse emergir da melancolia arrítmica à qual se entregara seu ser em sofrimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:39 am

Túnica, a cada instante em que tentava auxiliar, via-se enredada numa teia de narrativas mentais, como se lendo estivesse um romance noir, de texturas sólidas e relevos marcantes, cujo enredo, recheado de suspense e de mistério, houvesse se transformado na vida de Ronie.
A existência dele fora, quase toda ou na maior parte, ambientada em cenários exóticos, sórdidos e sujos, os quais elegera como temática natural para sua passagem terrena.
As roupas de grife, os músculos torneados ou fabricados e as palavras de sensualidade que destilavam os lábios fartos, cheios de malícia, não puderam mascarar o panorama típico de seu drama pessoal.
Tampouco a mente adoecida e quase demente, por tantas mentiras e tanta agressividade emocional, exalada sob o império da brutalidade dos instintos; nem mesmo aquela mente, que aprendera a fantasiar, escamotear, gerar e parir novas e alternativas realidades, conseguiu evadir-se da verdade que o fazia sofrer.
Sem ser conivente com o drama daquela existência, abundante nos sabores exóticos do prazer desmedido e irresponsável, Túnica a tudo assistia, observava a vida mental do seu pupilo.
Representada nas telas vívidas daquela dimensão surreal, trazia o seu Roninho como actor principal de uma trama fechada, da qual se via impotente para libertá-lo.
O rapaz consumira drogas como se consome o alimento necessário à manutenção do corpo.
Com esse consumo, tinha por objectivo colorir ou mascarar o estado da consciência, que cobrava dele utilizando promissórias escritas com letras fermentadas pela dor e pela culpa, executadas devido à imputabilidade do espírito devedor.
As drogas lhe desestruturaram a tessitura subtil do psicossoma, desestabilizando os centros de força, responsáveis por manter a conformação externa e interna do corpo espiritual adequada à habitação do ser.
Perdia gradativamente a forma, de modo irreversível naquele momento em que se encontrava.
A proporção que despertava, parecia que o corpo espiritual, mais desfigurado ainda, reflectia cada vez mais seu panorama íntimo, que era muitíssimo diferente do que qualquer organismo físico poderia expressar.
Por fora, de posse do corpo, talvez fosse o retrato da beleza, expressa na musculatura bem torneada e na elegância das linhas e dos traços; no mundo íntimo e na estrutura espiritual, porém, a situação e aparência eram bem diversas.
Túnica notou num relance como os cabelos do rapaz, outrora vigorosos e sedosos, caíam às mechas, enquanto ele permanecia deitado, em posição fetal, sobre seu colo.
A maior parte do seu cabelo caíra; entretanto, restavam pequenos tufos pendidos, exalando cheiro forte e nauseabundo, que denotavam, no aspecto externo, o retrato íntimo da dor e da agonia, que lhe tomaram a alma de assalto à medida que se confrontava e se percebia tal como era, sem a bênção do esquecimento e da camuflagem oferecidos pelo corpo físico.
Os olhos vidrados e sem vida mais pareciam os de um fantasma ou os de alguém cuja vitalidade fora usurpada ao máximo, esgotada na íntegra, como se num conto de terror algum vampiro não deixasse restar uma gota sequer de sangue nas veias de sua vítima.
A aparência era mais próxima de uma pessoa gravemente anémica, indescritivelmente cadavérica, e distante do aspecto de um jovem saudável e viril, como se apresentava na Terra, quando envergava o corpo que tanta gente atraiu e por que se viu apaixonada.
Tal era a expressão mais exacta do feitio e da vida mental de Ronie - totalmente distinta daquilo que demonstrava antes, quando buscou, a todo custo, invadir a privacidade dos outros membros do grupo, alojado temporariamente naquela dimensão, como fizera sobretudo com Paloma, na tentativa de sequestrar-lhe forças vitais através da violência verbal, exaurindo-a, feito um vampiro de energias humanas.
- Por que tanta violência em sua alma, meu menino?
Não consigo entender tanta revolta em sua vida, como você se trata e trata as outras pessoas, com tanto desprezo e desrespeito assim... - as lágrimas de Túnica caíam-lhe sobre a face, agora macilenta e esmaecida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:39 am

- Túnica... Me salva, Túnica!
- Não posso fazer mais do que te amparar, meu rei.
Depende exclusivamente de você recomeçar, fazer uma nova história, reescrever sua própria vida.
- Então me tira desse inferno de dor...
Por favor, me ajuda, minha Túnica!
- Estou aqui, meu rei.
Esperarei até que você chegue ao arrependimento.
Sua nega não pode fazer milagres.
Vou rezar, vou pedir aos meus sagrados orixás pra te dar força pra você se modificar.
Quem sabe um recomeço?
- Eu tenho medo, Túnica.
Eu tenho medo de repetir tudo, de novo...
Minha presença faz mal a qualquer um com quem entro em contacto.
É quase instintivo: eu roubo as energias dos outros, eu sugo, mato a vida e a esperança das pessoas enquanto as deixo embriagadas com a ilusão do prazer que proporciono e uso como instrumento para me saciar.
- Então, meu rei, você terá de recomeçar do zero, com um outro corpo, uma vida totalmente nova.
Para o seu caso, voltar ao mesmo corpo seria prejudicial, seria prolongar a agonia sua e daqueles com quem você se relaciona.
Mas, mesmo isso, eu não posso decidir por você.
Não está em minhas mãos decidir se continuará a viver no mesmo corpo ou em outro, em outra existência.
Você está paralisado no tempo, dentro da eternidade de um minuto, e sua mente, meu rei, é prisioneira das próprias criações.
Você precisa despertar para o arrependimento, sem o que não haverá mudança de vida.
E Túnica deixou Ronie estirado no solo daquele local quase indescritível, por se tratar de um mundo diferente do habitual, onde as pessoas estão acostumadas a viver.
A situação de Ronie não havia mudado, lamentavelmente.
Ele experimentara o gosto das próprias criações mentais e emoções em ebulição; ficara frente a frente com a realidade da vida doentia que levava, do consumo das drogas e, até, de estupros que havia cometido, entre diversos outros abusos que perpetrara como lenitivo para suportar a sordidez de seu cotidiano.
O corpo era a mercadoria que comercializava: a alma já fora vendida ao preço da infelicidade.
E os valores, impressos na alma pela educação que recebera da mãe e da ama, que ora o amparava, foram escondidos num recôndito qualquer, muito profundo de sua consciência.
A alma de Ronie precisava de silêncio.
Pedia sonhos, sonhados e vividos, e - quem sabe? - um intervalo para revigorar o espírito e recuperar os valores, redescobrir as virtudes.
Mas isso não poderia ser patrocinado por Túnica, que agora se afastava, profundamente tocada pela situação do pupilo, a quem devotava tamanha afeição.
Nem as forças dos seus orixás poderiam transmutar o íntimo de Ronie; não naquele momento, não sem seu consentimento, não sem que tomasse as rédeas do processo.
Túnica se distanciou e, à medida que o fazia, modificava a aparência do seu espírito, reassumindo a feição de Arthur, o companheiro invisível que, a partir daquele instante, invisível ficaria novamente, aguardando o desfecho que as forças soberanas do universo patrocinariam na vida de Ronie.
Infelizmente, ela ou ele não poderia fazer mais nada.
Ronie, arrotando ignorância, permaneceu dormindo o sono das vaidades, entre lembranças mirabolantes de suas experiências e figuras que desfilavam entre sungas, biquínis e corpos desnudos, exibindo a luxúria de seus valores desvirtuados, entre os vapores do ectoplasma exsudado, vampirizado e usurpado de suas vítimas.
Assim adormeceu novamente, para acordar somente mais tarde, noutro lugar, numa circunstância em que enfrentaria nova experiência, diametralmente oposta a tudo que desejara, planeara e a que estava habituado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:39 am

No MESMO MOMENTO em que Arthur assumia a forma de Túnica perante seu pupilo, Hugo presenciava mais um acontecimento na dimensão onde se sentiam prisioneiros.
Talvez desolado com a própria situação e com as demais ocorrências, tais como o sumiço de Paloma e o inexplicável desaparecimento de Ronie, já estava em certa medida insensível a qualquer outro fenómeno.
Convencera-se de estar morto.
E, uma vez morto, restavam-lhe tão somente traumas e dores, como o arrependimento por não ter se revelado antes do acidente ou pela forma como tratou o primo e a irmã, factos que lhe marcaram de modo indelével o pensamento.
Dessa maneira um tanto apática, não se assustou como Ronie ao ver a figura de Nestor saindo de algum lugar que não saberia explicar, inaudito, tornando-se tangível diante dele, no exacto instante em que se perdia em divagações mentais. Reflectia sobre seu comportamento e cobrava-se por haver mascarado a tal ponto as próprias emoções.
Nestor estava sorridente, emoldurando-se numa luminosidade suave, embora mantivesse a feição humana quase totalmente natural, não fosse aquele quê de espiritualidade que o envolvia, além da aura suavíssima que irradiava de sua presença.
- Como vai, Hugo?
Parece meio distante...
Pensando em quê? - perguntou Nestor, tão logo se aproximou de Hugo, sem lhe dar tempo para nenhuma reacção.
Olhando para a aparição como se estivesse olhando para alguém conhecido e com quem já mantivesse algum relacionamento amistoso, Hugo comentou, quase indiferente:
- Mais um fantasma neste mundo sombrio!...
Então parece que hoje os fantasmas resolveram aparecer, enquanto outros desaparecem sem deixar vestígio.
- Fantasmas ou não, estamos aqui juntos, e acho que precisamos aproveitar a oportunidade para nos conhecermos melhor.
Quem sabe, tirar dúvidas, resolver pendências?...
Olhando meio debochado, como se aquela conversa não o interessasse, Hugo permaneceu um período em silêncio, mirando noutra direcção.
Nestor soube respeitar este momento e sentou-se ao lado dele.
Somente depois de um pouco de tempo é que Hugo esboçou uma reacção:
- Quem é você, afinal?
E o que faz neste mundo de mortos-vivos?
Por acaso chegou aqui agora ou estava aí nos ouvindo, espionando, como o outro que apareceu aqui antes?
- Digamos que sou um amigo seu; alguém que você não vê há muito tempo.
E que também estava aqui, não espionando, mas esperando o momento ideal para nos encontrarmos.
Aguardava, quem sabe, uma pausa em suas emoções, que lhe favorecesse me ver.
- Então é uma alma também, um morto?
- Digamos que todos já morremos inúmeras vezes e, agora, estou inserido no seu mundo mental, particular.
Talvez aquilo que você chama de morte não seja exactamente o fim, mas uma oportunidade de recomeço, de reescrever a própria história de maneira mais elaborada.
- Você parece conhecer alguma coisa de mim, da minha angústia!
- Nem tanto quanto pensa, mas se desejar um amigo para desabafar...
- Por acaso existem amigos no inferno?
Existe alívio após a morte?
- Morte? Que morte?
Acho que, para quem acha que morreu, você até está muito conservado - falou num ar de brincadeira o amigo não mais invisível.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:40 am

- Eu me lembro quando o carro bateu no poste, depois que saí da Linha Vermelha.
Pelo menos acho que me lembro; tenho alguma recordação...
- Mas veja por si mesmo - falou Nestor.
- Seu corpo não parece nem um pouco destroçado.
Quem sabe...
- Acha que estou vivendo um pesadelo? - interrompeu-o.
- Será?
- Bem, não sei quanto a você, Hugo, mas eu não me sinto personagem de um pesadelo.
- Então estamos mortos mesmo, você e eu.
E se estou morto não importam mais minhas reflexões, meu arrependimento ou meu desejo de mudança.
- Ora, ora, meu amigo!
Então você confessa que está arrependido de algo e que tem até desejo de mudar?
- Isso não importa mais para quem morreu, importa?
Se eu não posso mais voltar nem remediar meus erros, é tudo bobagem.
- Alto lá! Dizem por aqui que aqueles que amam sempre encontram um buraco na sepultura e por ele passam ao menos uma mensagem para os que ficaram, para seus afectos.
Quem sabe a gente não alarga esse buraco um pouco mais e você consiga voltar?
- Você é louco, mesmo - afirmou Hugo, levantando-se.
Nunca ouvi falar de um morto que voltasse à vida.
- Você não é cristão?
Ou nunca teve sequer uma semana de ensinamento cristão na vida?
- E o que tem isso a ver, logo agora?
Não estamos neste limbo, neste purgatório particular?
- Bem, ouvi contar a história de um homem especial que voltou da morte, que conseguiu a vitória sobre o morrer e retornou para os seus.
Não que eu seja religioso, mas a história é bastante convincente e acho que ele abriu as portas desse chamado mundo dos mortos.
Quem sabe não seja a hora de tentarmos?
- Louco varrido! Não resta dúvida.
Aqui tem apenas gente como você e eu, que estamos detidos, perdidos neste lugar.
Provavelmente é a minha mente doentia, são minhas culpas e meu remorso que criam situações como esta.
- Nunca ouviu falar de Jesus e da ressurreição?
De como ele voltou aos amigos, que lhe eram caros?
Por isso não há como deixar de acreditar.
Desde sempre, a morte nunca se constituiu num problema insolúvel.
Muita gente boa e até da oposição tem voltado e visto de perto parentes e amigos, até mesmo conversado com eles.
Como disse um sábio:
"Tudo é possível ao que crê"1 .
- Não me diga que você é crente, também?
Feito aquele pastor louco que veio pra cá connosco, nos atormentar...
- Pode ser que sim, pode ser que não.
- Meu Deus do céu!
Parece que usei droga mais uma vez...
- E você alguma vez usou?
A pergunta parece ter tocado em cheio as lembranças de Hugo.
Quando ele se voltou para ver o amigo que conversava com ele, Nestor já estava de pé a seu lado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:40 am

- E então, Hugo?
Você comentava sobre as drogas...
- Bem, eu não tenho nada a perder, mesmo.
Sim, eu usei; na verdade, eu abusei de drogas, mulheres e bebidas.
Talvez seja por isso que estou aqui, prisioneiro de mim mesmo, neste inferno mental, do qual não consigo me retirar.
-E quem sabe conversando mais você se sinta melhor, de modo que possamos encontrar um jeito de alargar o buraco e passar por ele?
- Lá vem você, com suas histórias.
Mas se quer saber mesmo, se tem estômago para aguentar, aqui vai.
Eu usei muitas coisas e agora me arrependo de todas elas.
De verdade, me arrependo porque sei que poderia ter feito melhor, diferente, e vivido com mais qualidade.
Chego a pensar que eu poderia ter sido feliz e feito outras pessoas felizes, também. Mas...
- Mas se pensa assim, se chegou a essa conclusão mediante suas reflexões, então você não está no inferno.
Talvez compense levar a termo suas ideias e pensamentos...
- Eu vivi me escondendo de mim mesmo.
Minhas emoções, meus desejos e minhas preferências.
Me escondi atrás das drogas e, com baladas e mulheres, mascarei meus instintos e desejos.
Mas eu... - ficou reticente, talvez receando ser mais punido do que sua mente já o punia, caso se revelasse por inteiro.
- Fique à vontade, Hugo.
Eu também tenho muitas coisas mal resolvidas em minha vida.
Porém, me conscientizei delas e tenho procurado enfrentá-las.
Quem sabe possamos compartilhar nossas experiências e, assim, ver que não é somente você quem errou?
Todos nós estamos no caminho, tentando acertar mais e errar um pouco menos.
Mas desconheço, em qualquer lado da vida, quem não tenha errado de muitas maneiras.
Portanto, seja bem-vindo ao time, à humanidade.
Hugo até conseguiu esboçar uma espécie de sorriso ao ouvir o companheiro falar assim.
- Me sinto mais aliviado com sua fala.
- Veja que não estamos no inferno, pois, como você disse anteriormente, no inferno não há alívio.
Hugo olhou Nestor seriamente, franzindo ligeiramente o cenho, e notou que algo estava se modificando em seu estado de espírito.
No entanto, não conseguiu comentar sobre isso, ainda.
Não ousou procurar palavras que expressassem essa sensação.
Mas prosseguiu:
- Em determinado momento da minha vida, eu me deixei envolver pelo preconceito.
Experimentei uma aproximação com uma pessoa que deveria ter sido alguém muito importante na minha vida afectiva.
Mas ele era do mesmo sexo que eu.
E eu tive medo de ser considerado um boiola, um gay.
E aí me ferrei! - relatou Hugo, lamentando a postura e as atitudes que lhe marcaram a caminhada a partir da ocasião mencionada.
- Não se preocupe, amigo.
Com todos nós ocorreram factos semelhantes.
Acho mesmo que todos os seres humanos viveram momentos em que escolheram um caminho diferente daquele que gostariam, intimamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:40 am

Os factores que favoreceram tais escolhas?
Talvez sejam um mistério, como mistério é ainda a intimidade de todos nós.
Mas continue, continue...
- Você não acha errado um homem ter se aproximado de outro como eu fiz, com intenções sexuais?
Sentindo atracção por outro, do mesmo sexo?
- De forma alguma!
E o que há de errado em amar?
Alguém no mundo será tão santo e tão resolvido que tenha moral suficiente para julgar os outros?
Como posso julgá-lo se trago comigo questões para as quais, ainda hoje, não tenho respostas satisfatórias?
Mais aliviado ainda, como se conversasse com um amigo que o compreendia, que não o marginalizava e tampouco cobrava dele qualquer postura de santidade, Hugo se abriu por inteiro, agora sem reservas:
- Vivi minha vida fugindo de meus sentimentos.
Fugi da proximidade com meu primo Ralph.
Pois foi ele quem despertou em mim esse tipo de atracção, de sentimento.
Hugo lembrava-se do primo e da forma como o tratava.
-E como me arrependo de ter sido tão rude, tão estúpido como fui com ele.
Nem dei a ele chance de conversar comigo sobre o acontecido em nossa adolescência.
Aliás, não me dei chance nenhuma de pensar, de sequer mencionar o assunto - mais uma vez, lembrou-se de seus modos e fez rápido silêncio, respeitado por Nestor, que definitivamente não pretendia interferir ou impedir que Hugo se manifestasse no ritmo que lhe conviesse.
Após olhar o amigo nos olhos, quase pedindo socorro, numa atitude que não passou despercebida a Nestor, Hugo retomou a palavra:
- Joguei-me nas baladas, tentando curtir as mulheres, ou melhor, abusando do sexo com elas.
Todas as vezes que eu procurava alguma mulher, pensava e tinha plena convicção de que eram objectos sexuais.
Eu as usava para desafogar minhas mágoas, meu desencanto e a covardia em me assumir, em enfrentar meus sentimentos.
Foram dez anos de pura fuga.
E as drogas que usei, eu as usei quando não dava mais conta de afogar minhas emoções, isto é, quando o sexo fortuito com mulheres não era suficiente para sufocar meus desejos por outro homem.
- Puxa, amigo! - falou Nestor, agora, visivelmente tocado pela história de Hugo.
Parece que você sofreu muito mais do que curtiu a vida.
Hugo começou a derramar algumas lágrimas de sincero arrependimento, de desejo de fazer melhor e refazer sua vida.
- Eu não conversava mais com minha mãe e tive medo de olhar nos olhos do meu pai.
Minha irmã, ela sofria calada, pois eu não aguentava olhar para ela pensando que poderia saber de alguma coisa que se passava dentro de mim...
- Quanta angústia e apreensão!
E se ela soubesse!?
Qual seria a reacção que você acha que ela teria?
Enxugando as lágrimas, Hugo pensou um pouco e respondeu:
- Na época eu não pensei. Mas agora, depois de morto...
- Morto? Tem certeza mesmo de que está morto?
- Depois do acidente - corrigiu Hugo -, tenho pensado muito em como ela reagiria.
Somente agora me dei conta de que minha irmã, a Kelly, era uma grande amiga da minha alma.
Uma alma gémea, talvez, como dizem por aí.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:40 am

Infelizmente, percebi apenas agora que ela me ajudaria, que me apoiaria e teria sido uma força para me amparar as emoções, que, naqueles momentos, estavam em ebulição.
Nunca a ouvi me recriminar por nada.
Aliás, só tenho lembranças boas dela.
Quanto aos meus pais... bem, não sei se seria a mesma coisa.
-E como você acha que eles agiriam, caso soubessem do tormento emocional que vivia?
Ou conhecessem sua verdadeira identidade energética, sexual?
- Sabe de uma coisa?
Somente agora penso nisso pra valer, mas, caso eu tivesse compartilhado com a Kelly, sinceramente, eu me importaria muito pouco com a reacção dos meus pais.
Sei que minha irmã me apoiaria; hoje tenho certeza disso.
E eu fugi tanto, dela inclusive...
- E de você...
E do seu primo, pelo visto.
Pensando um pouco mais, porém agora sem cobrar-se aquilo para o que não estava pronto, Hugo se aventurou a dizer:
- Acho que a gente precisa amadurecer um bocado, até mesmo para aceitar nossas emoções, descobrir nosso estilo de vida e aquilo ou quem nos fará felizes.
Pena que, no meu caso, precisei morrer para entender isso; tive de esperar o acidente para despertar.
- E, amigo, às vezes é assim, mesmo.
Mas o que importa é que você se sente mais aliviado, pelo que parece.
- Sim! Acho que é a primeira vez que me sinto assim desde que morri - e, encarando Nestor mais uma vez, resolveu reformular -, isto é, desde que cheguei aqui.
- Aí pode ver, então, que este inferno aqui até que não é lá tão ruim.
Que a tal da morte, como você diz às vezes, não tem força suficiente para causar nossa infelicidade nem para nos separar de quem amamos.
- Eu não havia pensado nisso.
Pelo menos, não dessa maneira.
Parece que meus pensamentos, agora, estão mais desembaraçados, que fluem com mais facilidade...
- É porque você venceu suas mágoas, como outras pessoas por aqui.
- Falando nisso, você tem notícias de Paloma?
E do Ronie?
0 que aconteceu com eles?
- Deixemos isso pra lá, Hugo.
- Não! Eu quero saber o que aconteceu com eles.
Paloma estava sofrendo muito, e Ronie, coitado, nunca vi tanto rancor e ódio juntos.
- Repare que você já está construindo seu céu particular; está saindo tanto do armário quando do inferno.
Agora Hugo conseguiu rir de verdade.
Aliás, os dois caíram na gargalhada, que acabou rompendo de vez as barreiras internas de Hugo.
Ele se mostrava bem mais descontraído.
E assim que deixou as amarras de lado, assim que se libertou dos pensamentos em torvelinho que o atormentavam, da cobrança interna e de boa dose de culpa, pôde ver algo diferente ao redor.
A paisagem outrora incompreensível, os vapores de fluidos de um mundo surreal começaram a tomar forma.
Via cores, sentia aromas; sensações um pouco mais agradáveis.
Sua mente se libertava pouco a pouco da escuridão da culpa.
Em meio a essa transformação interna tanto quanto externa, Hugo começou a ouvir sons de pessoas chamando-o.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 02, 2018 10:40 am

Parecia que eram pessoas estranhas...
Sentiu, então, um choque no peito, um choque eléctrico; era como se estivesse sendo electrocutado.
- Calma, meu amigo.
Calma... - falou Nestor para ele, ao mesmo tempo em que repousava o braço direito sobre seu ombro, confortando-o.
Este mundo aqui é o reflexo da sua mente.
Acalme-se e não se preocupe com o choque que você tem a impressão de sentir.
Vamos conversar mais um pouco, vamos?
Temos ainda um pouco de tempo.
Aliás, tempo é o que não nos falta.
Hugo voltou o pensamento para as palavras de Nestor e conseguiu se concentrar no que ele dissera.
0 amigo agora conduzia a conversa, através de algumas perguntas marcantes e bastante significativas:
- Se você tivesse a oportunidade de voltar, meu amigo, qual seria o objectivo principal de sua vida, a partir das reflexões que fez?
Hugo pensou um pouco, esquecendo-se da sensação de choque que percebera antes, porém não ignorando a mudança radical que se operava no ambiente à sua volta.
- Eu com certeza procuraria Ralph e minha irmã e, quem sabe, até minha mãe.
Falaria para ele sobre meus sentimentos, sobre minhas emoções e pediria desculpas.
Aliás, tenho tanta gente a quem pedir desculpas...
Sem falar na Kelly!
Ponderando sobre o que Hugo falara e elaborando melhor o pensamento, no intuito de formular uma pergunta que ocasionasse um impacto efectivo em seu interlocutor, Nestor prosseguiu:
-0 que acha, então, que precisaria mudar ou fazer para atingir esse objectivo, do qual acabou de me falar?
Desta vez, foi Hugo quem reflectiu, parecendo se ocupar em escolher as palavras.
Entretanto, muito mais tranquilo do que se sentia anteriormente, nem se dera conta de que levava a conversa na mais pura naturalidade.
A naturalidade de quem estava vivo, e não morto, conforme acreditava inicialmente.
-É certo que eu teria de estar vivo.
Quer dizer, não poderia estar morto para realizar meu objectivo.
Precisaria me sentir vivo e ter a convicção de estar no mesmo mundo dos meus familiares, de Kelly e Ralph.
Como você diz, Nestor, se este é o outro lado da vida, então não tenho como refazer minha vida aqui.
Eu teria de voltar, de alguma maneira.
- E como voltaria, se já disse que está morto?
- E o tal buraco na sepultura?
Por certo eu faria dele um túnel, mas retornaria de qualquer jeito para recomeçar, ao menos para falar com Ralph e minha irmã sobre meus sentimentos.
Enfim, acho que pediria ajuda a eles.
-E o que lhe impede de fazer isso?
Me diga:
o que, neste exacto momento, impede você de voltar, já que está se sentindo melhor, menos pesado, menos denso e mais livre, interiormente?
Olhando para Nestor e sentindo algo estranho acontecendo nele e em torno dele, como se o mundo a sua volta, o mundo mental, estivesse ficando transparente, e ele próprio, mais permeável, num estado de quase imaterialidade, reuniu forças, enquanto Nestor o fixava com o olhar:
- Ora, eu precisaria de outra oportunidade!
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