LUZ ESPÍRITA
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:22 pm

Cornelius limita-se a olhar para o outro e assentir, afirmativamente, com a cabeça.
– Demos duas hecatombes a Júpiter Capitolinus e abarrotamos o escrínio do sumo sacerdote de ouro, meu caro – continua Caius –, entretanto nada recebemos dos frios e mudos ídolos!
– Oh, Caius – diz o velho senador, com bonomia aos olhos. – Quem sou eu para julgar-te, afinal!... – Se dizes que assim foi, eu creio em ti!...
Entretanto, falta-me a fé, o elemento indispensável para obter o que tu recebeste do Deus Cristão!... Desculpa-me, se não faço como tu, mas encontro-me excessivamente velho para tal empreitada!... – e se cala por instantes, como se um gastalho lhe apertasse forte a garganta. Mas, logo, como se precisasse, urgentemente, livrar-se daquele incómodo embargo, meneia, tristemente, a cabeça e prossegue: – Velho, desgostoso e desesperançado com o mundo!... Percebes para onde está caminhando o Império?... Para a ruína, meu caro!... Para a ruína, e não há nada que eu e tu possamos fazer!... Que dizes do Senado?... Não passa de um covil de bandidos e de assassinos que, ao invés de legislar, agir com justiça e fiscalizar o imperador, ajudam-no a corromper e a espoliar o erário público!... E, quem se acha sentado sobre o trono de Rómulo?... Um doido, um déspota assassino, parricida, matricida, uxoricida e tu podes imaginar o que mais, pois tenho vergonha de dizer-te!... E os generais, os grandes generais, como tu, estão acabando, estão em franco desaparecimento!... Vós sois os verdadeiros veladores pela sanidade do Império!... Sempre defendestes Roma de seus inimigos externos, mantendo firmes e coesas as nossas fronteiras, mas, principalmente, salvaguardastes, sempre, a integridade interna, livrando-nos de nossos piores inimigos: nossos governantes!... Não, meu amigo, falta-me, principalmente, coragem, para continuar vivendo num mundo assim!
Caius limita-se a olhar para o outro, cheio de pena. entendia-o e sabia que ele tinha razão. Neste comenos, Drusilla Antónia aparece.
– Servirei o prandium no triclinium, meus queridos – diz ela, contente. – Vinde ambos, sem delongas, que tudo se esfria rapidamente!
– Imenso prazer em ter-te à nossa mesa, Cornelius, depois de tantos tempo!... – exclama Caius, auxiliando o velho amigo a levantar-se do canapeum.
Lá fora, o sol, já no meio do céu, indicava que dia avançara bastante, e os três amigos, felizes pelo reencontro, caminhavam abraçados, para o interior da residência.
* * * * * * *
Flavius Antoninus Rimaltus, depois que conhecera a jovem Susanna Procula, não era mais o mesmo. Quase não saía mais para divertir-se com os amigos e passava os dias vagando como uma sombra pelos imensos cómodos da mansão que pertencia à família, nos arredores de Roma. Não tinha mais sossego: havia momentos em que era incapaz de permanecer sentado por mais de cinco minutos no mesmo lugar, e já uma estranha inquietude se apoderava dele. Invariavelmente, era a gura alegre e linda da jovem patrícia que o perseguia, tirando-lhe a paz. Outras vezes, quedava-se meditabundo, sentado num banco sob o dossel de frondosas árvores do imenso parque que circundava a sumptuosa mansão, que se erguia em rutilantes granitos multicores e em mármores brancos e travertinos, e passava horas, com o olhar perdido no vazio. Amiúde, soltava profundos suspiros, e seu rosto demonstrava profundo pesar, como se nada no mundo mais lhe interessasse, a não ser um par de olhos marrons, bem clarinhos, enfeitando um magnificente rosto branco, ligeiramente mosqueado de quase imperceptíveis sardas, como se fossem respingos de mel a bordarem-lhe, graciosamente, o alto das bochechas coradas e em derredor do colo, bem acima dos seios. “Oh, Susanna, Susanna!... Afável Naiade75 que me enfeitiçou a alma!...”
Naquela cálida tarde de fim de primavera, Flavius Antoninus encontrava-se recostado num canapeum sob o peristylium. Andara lendo alguns trechos de ovidius,76 entretanto não conseguia manter-se atento ao assunto. Acabara por desistir da leitura e, invariavelmente, seu pensamento convergia-se para ela, Susanna Procula. Fazia já algum tempo que dúvida atroz roía-lhe a alma: procurar ou não a jovem que o encantara grandemente. Deveria voltar à casa de Cornelius Helvetius Pisanus?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:22 pm

O velho senador não era amigo íntimo de seu avô?... Não o havia convidado a retornar assim que desejasse?... Cornelius até se encantara com ele!... tinha a certeza absoluta de que o amigo do avô gostara dele!... E, Susanna?... Oh, ela lhe dera mostras de carinho tão patentes!... Abraçara-se tão forte e tão espontaneamente a ele no carro. Àquelas lembranças tão tocantes, Flavius Antoninus ri-se, emocionado. E, quando ele fingira não ter percebido os momentos em que ela lhe aproximava aquele narizinho tão delicado e formoso ao dorso, para cheirá-lo repetidas vezes?... Susanna encostava o rosto às costas dele e aspirava tão profundamente!... Depois, emitia longos e profundos suspiros e, novamente, aspirava-lhe o cheiro e suspirava, enquanto o carro corria célere, descendo o Palatino... Divertindo-se com tais recordações, o rapaz ri-se sozinho. “Ah, meu amor!... Meu amor!...”, repete baixinho, e seus olhos brilham de saudade. Entretanto, terrível lembrança gela-lhe o sangue: Susanna estava noiva!... E se gostasse do outro?... Não, decididamente, não poderia interpor-se entre o casal, separando-o. Não era de seu feitio!... Por isso é que sofria terrivelmente e se negava a retornar à casa de Cornelius Helvetius.
A meio desse intenso sofrimento, avista dois cavaleiros que se aproximavam pela viela que dava acesso à sua casa. Levanta-se e firma os olhos. Alegra-se e sai, quase a correr, pois reconhecia os que se aproximavam: eram seus mais leais camaradas de armas que vinham visitá-lo.– Ah, aí te encontras entocado! – exclama um dos rapazes, apeando do cavalo.
– Salve, Valerius!... – diz Flavius, abraçando o amigo, efusivamente.
– Pensávamos que tinhas morrido de peste!... – brinca o outro companheiro.
– Não morri de peste, mas quase morro de outra coisa, caro Silverius! – exclama o jovem anfitrião, agora abraçando-se ao outro companheiro. – Que alegria tê-los aqui, meus amigos!
– Como não foste mais ao Circus Maximus nem ao theatrum, pensamos que algo te tivesse acontecido! – explica Valerius, enquanto se encaminhavam os três para a sombra do peristylium.
– Além do mais, há outra terrível epidemia de peste grassando por toda a cidade, e sabes como é: ninguém está livre de tais coisas!... Há pouco, passamos por pilhas e pilhas de cadáveres que apodrecem ao sol!... O mau cheiro ali é insuportável!... – diz Silverius.
– Nem os urubus estão dando conta de dar cabo de tanta comida!... – observa Valerius, rindo-se. – Estão tão gordos que mal conseguem voar!
– Se não morro de peste, certamente morrei de outro mal que me aflige a alma, companheiros!... – exclama Flavius, entristecido.
– De que se trata? – pergunta Silverius. – Vejo que te encontras um tanto abatido!
– Conto-vos, meus amigos, conto-vos o que me acontece!... – diz o rapaz e passa a narrar o que lhe ia à alma.
Os outros dois, entre altamente interessados e divertidos com os factos que lhes expunha Flavius, interrompiam-no, amiúde, com observações de galhofas e de zombarias, posto que adoravam pregar-se peças e brincadeiras. Ao final da narrativa, os dois visitantes entreolham-se, trocando-se significativo olhar, e Valerius diz:
– Se não tiveres coragem de ir até à casa do senador Pisanus, iremos em teu lugar!
– Sim – emenda Silverius –, e quem sabe a jovem Susanna Procula não se decide, tendo mais dois belíssimos pretendentes a seus pés!... Ha! Ha! Ha!Ha!...
– Sois uns cretinos!... – brinca Flavius, acabando por rir-se da pilhéria que lhe faziam os companheiros.
– Brincamos, contigo, Flavius – diz Valerius, pondo-se sério. – Mas, se eu fosse tu, lutaria por meu amor!...
– Sim – concorda Silverius –, tu vais deixar o campo de batalha assim, sem lutares?... Não, meu amigo, no amor e no furor dos entreveros e dos recontros, tudo é válido!
Flavius Antoninus olha para os amigos, cheio de gratidão. Em seguida, levanta-se de seu canapeum e os abraça, comovidamente.
– Viestes a bom tempo, meus companheiros!... – diz ele, comovido. – Vós me convencestes!... Amanhã, mesmo, irei visitar o senador Pisanus!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:23 pm

– O senador Pisanus ou a neta dele? – pergunta Valerius, malicioso. Os três rapazes explodem numa ruidosa gargalhada e passam a conversar, animadamente, sobre as novidades que aconteciam na cidade. A tarde caía, mansamente, sossegada, fortemente iluminada pelo brilhante sol que já dava mostras da jactância com que se vestiria no verão que se aproximava.
____________________________________________________________________________________
69. Evangelho de S. Mateus, 6.19
70. Na antiga Roma, o requintado cardápio de doces e de nas guloseimas que encerravam os banquetes festivos.
71. Sequência de vários brindes e de abundantes libações com vinho misturado com água, quando se desejava festejar algo ou alguma pessoa.
72. “– O amor vence tudo!...”, em latim.
73. Evangelho de S. Mateus, 6.l
74. Evangelho de S. João, 18.36
75. Náide, em latim. Divindade mitológica inferior que presidia aos rios e às fontes; ninfa das águas.
76. Ovidius (43 a.C. – 16 d.C.), poeta latino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:23 pm

Capítulo 7. Na Seara do Mestre
Depois que se decidira pelo Cristianismo, Caius Petronius passara a frequentar, assiduamente, o singelo templo onde se reuniam os seguidores de Jesus. Passados alguns dias, desde quando recebera a miraculosa cura das mãos de Rufus, o general encontrava-se tão forte e tão recuperado em suas forças que, dificilmente, alguém acreditaria que ele, pouquíssimos dias atrás, tivera a vida suspensa por um o. Drusilla Antónia seguia-o em sua nova
crença e se sentia feliz; tinha o seu amado esposo de volta, posto que já o considerava morto, terrivelmente carcomido pelo tumor carcinomatoso que lhe devorava, sem piedade, o estômago, provocando-lhe acerbas e terríveis dores. Ela sabia que Caius havia recebido um milagre e agradecia aos céus por isso. Só não sabia quem, de fato, houvera-lhe curado o marido: Júpiter Capitolinus ou Jesus... Mas, isso pouco se lhe importava; o que realmente contava é que agora via o seu Caius tomado de novos e reconfortantes vigores e apaixonadíssimo pelos ensinamentos que trouxera o Carpinteiro Judeu, tanto que não perdia uma só pregação que Rufus fazia todas as semanas, às noites de sextas-feiras.
O verão já avançava forte, trazendo o insuportável calor e, acocorados sobre as pobríssimas esteiras de junco, achavam-se agora os quatro – Caius, Drusilla Antónia, Iustus e Dulcina –, juntamente com a reduzida congregação, a ouvirem, atentamente, as pregações do Evangelho de Jesus. O missionário cristão, como sempre, apanha o rolo de pergaminho onde se achavam copiados à mão os trechos evangélicos, aproxima-os da lâmpada de azeite e lê, com a voz cheia de emoção:
– “Homo quidam habuit duos lios. Et dixit adulescentior patri: Pater, da mihi portionem substantiae quae me contingit. Et pater divisit illi substantiam...”77
Terminada a leitura da parábola, Rufus depõe o surrado velino sobre a tosca mesa e passeia os olhos pela pequena assembleia que se sentava ao chão do pobre templo. Intensa luminescência aureolava seu semblante, quando ele se põe a explicar, em palavras simples, o conteúdo da mensagem evangélica. E, com magistral competência, desvenda, nas entrelinhas da célebre parábola, os ocultos ensinamentos nela contidos, para gáudio e maravilha dos que a ouviam, cheios de atenção e interesse!... Como havia sede de luz e de conhecimento naquelas criaturas pejadas de dor e de sofrimentos acerbos!... Eram as verdades consoladoras da inefável mensagem do Cristo que se espalhava, a consolar os pequeninos e simples de coração!... A Grande revolução, que mudaria e dividiria o mundo em duas épocas distintas, antes e depois dele, principiava, exactamente do modo como Ele previra: não para os grandes e soberbos do mundo, mas para os simples e humildes... “Graças te rendo, meu Pai, Senhor do céu e da Terra, por haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes e por as teres revelado aos simples e aos pequenos...”78 dessa forma, principiava a grande mudança; nos pequeninos e humildes templos, nos misérrimos arrabaldes de Roma, e, concomitantemente, em outras cidades do mundo, levado pelas corajosas e incansáveis mãos dos primeiros missionários cristãos, como ali fazia Rufus, o Evangelho espalhava-se, promovendo alívio aos que estavam aflitos e sobrecarregados...79
Terminada a pregação e a sessão de curas, com a imposição das mãos, Rufus aproxima-se dos quatro que permaneciam esperando por ele.
– Salve, amigos!... – exclama o pregador, abraçando, fraternalmente, a todos, um por vez. – Que o Senhor Jesus vos abençoe e vos dê a paz!...
– Rufus – diz-lhe o general –, acho que já percebeste que me dedico, agora, ao culto cristão.
– Sim, domine – diz o pregador, baixando a cabeça, humilde. – Sei que vós já entregastes vosso coração a Jesus, e isto muito nos alegra!
– Entretanto, Rufus, sinto faltar-me algo, além do conhecimento que, pouco a pouco, venho recebendo, através das leituras dos Santos Ensinos de jesus e das tuas pregações – diz o general.
– Sei o que vos falta, general... – fala Rufus, tocando de leve com a mão no ombro de Caius. – Falta-vos a acção!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:24 pm

A fé sem obras é morta!
Caius Petronius limita-se a olhar para o outro, sem entender muita coisa. – Explico-vos melhor, meu irmão – diz Rufus. – Não basta apenas crer em Jesus e lhe conhecer os ensinamentos; é preciso pô-los em prática!
– Mas, como?... – pergunta o general.
– Vinde, amanhã, ao nascer do sol, e vos mostrarei, senhor!... – responde Rufus, dando-lhe amável tapa ao ombro.
Em seguida, o missionário despede-se e desaparece por uma das portas laterais. Caius ca parado por alguns instantes, reflectindo nas palavras que o outro lhe dissera.
– Vamos, meu amor!... – chama-o Drusilla Antónia, tocando-lhe, amorosamente, no braço. – Já é bem tarde...
Na manhã subsequente, mal surge o sol, Caius e Drusilla Antónia, acompanhados de seus dois fiéis servidores, Iustus e Dulcina, já se encontravam diante do simplíssimo templo cristão. Era a primeira vez que se expunham às claras em lugar tão sórdido. A penúria ali era pungente:
casas paupérrimas, erigidas de adobes e cobertas de enegrecidas palhas de centeio, abrigavam criaturas sujas e esquálidas que assomavam, curiosas, às porta e janelas, a verem os patrícios que, inusitadamente, vinham até ali.
– Da próxima vez, será melhor virmos em trajes mais simples e a pé, minha cara – observa Caius à esposa. – Chamamos a atenção, ostentando poder e luxo, vestidos com nossas chlamydae80 patrícias e viajando numa quadriga deste porte!
–Tens plena razão, meu amor! – diz a matrona. – Percebeste quão cruenta é a miséria em que vivem nossos patrícios plebeii?
– Sim, minha cara!... – concorda Caius Petronius, olhando, consternado, o magote de mulheres, crianças, velhos e rapazolas que, paulatinamente, fora juntando-se em derredor deles, no momento em que deixavam a riquíssima quadriga, tirada por duas parelhas de reluzentes e bem tratados corcéis negros, em que haviam feito o percurso até ali.
Um tanto intimidado pelos olhares curiosos e alguns onde até era possível encontrarem-se traços de rancor gratuito e de inveja pelo luxo ostentado pelos odientos patricios, o pequeno grupo abriu passagem entre as pessoas e adentrou o singelo templo. Lá dentro, rufus aguardava-os, juntamente com mais três companheiros. Ao vê-los adentrarem o recinto, abre-se em largo sorriso de contentamento.
– Salve, amigos!... – exclama o pregador, abraçando-os, um a um. – Que bom que viestes!... Há muito serviço a fazer!... Estais dispostos?
– Podes contar connosco, Rufus!... – apressa-se em responder o general Tarquinius. – Estamos à cata de serviço!
– Muito bem!... – diz o outro e prossegue, encaminhando-se para uma porta que dava para os fundos do salão: – segui-me!
Ao transporem a porta, mal contêm uma exclamação de espanto com o que se deparam: nos fundos do pequeno templo, sob uma frágil e improvisada cobertura de enegrecidas e mofadas palhas de centeio, abrigavam-se algumas dezenas de leitos onde jaziam enfermos de todas as idades e vitimados pelas mais variadas formas de doenças, desde a terrível lepra até os portadores da mais plena desnutrição, cujos corpos exangues deixavam à mostra os esqueletos, com riqueza de detalhes!... A grande maioria era de crianças, de velhos e de mulheres, embora houvesse, também, alguns homens, mormente soldados feridos em batalha e que eram relegados à própria sorte, posto que agora se encontravam imprestáveis e se tornavam um peso ao Império.
– Eis a seara do Cristo!... – exclama rufus e, com um largo gesto dos braços, apresenta aos novos amigos o dantesco quadro que se lhes descortinava.
Caius e Drusilla Antónia entreolham-se, cheios de consternação. Nunca haviam suposto haver tanta miséria e tanta aflição, ali mesmo, em redor de sua luxuosíssima villa, erigida em rutilantes mármores e em finíssimos granitos. Os altos muros com os quais haviam se cercado isolara-os de toda aquela miséria! “Maior é o muro do orgulho!...”, pensa Caius, de repente, envergonhando-se do egoísmo absurdo em que vivera mergulhado até então. “Sabia, sim, da extrema miséria em que vivia o povo; apenas, nunca desejei enxergá-la!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:25 pm

Até que vós, Senhor, através da vossa Excelsa Sabedoria, lançastes mão de Vosso instrumento mais eficaz – a dor, a suprema dor – e com ela me fustigastes a alma até desfiar-me, fibra a fibra, o coração, e me mostrastes, assim, o real significado da vida!...”, e lágrimas pungentes invadem-lhe os olhos. Desesperado, busca os olhos da mulher amada. Os olhos dela também lacrimejavam. Abraçam-se e, comovidamente, passam a percorrer o pequeno sanatório improvisado. A cada leito, deparavam-se com um drama comovente. Rufus acompanhava-os, explicando a situação de cada um daqueles desvalidos da vida e que os olhavam agradecidos pela atenção que se lhes dispensavam. Que terríveis dramas se podiam ler naqueles olhos cheios de desesperança, de miséria extrema e de descaso!
– Damos-lhes mais atenção que outra coisa, domine! – diz o pregador cristão, cheio de ternura à voz. – Somos tão pobres quanto eles, e quase nada podemos dar-lhes, a não ser carinho, remédios de ervas que colectamos nos campos e orações!... Mas, temos a certeza de que Jesus está connosco, pois Lhe sentimos a inefável presença sempre!... – exclama o inefável seguidor de Cristo e prossegue, felicíssimo, com os olhos brilhantes, como se estivesse a exibir o maior de seus tesouros: – Agora vinde a essa outra sala!...
E, a seguir, passam a um outro compartimento que se erguia no fundo do terreno, logo após a enfermaria improvisada. Ao adentrarem a pequena sala, Drusilla Antónia e Caius entreolham-se, estarrecidos, mas ao mesmo tempo maravilhados. Na pequena e pobríssima sala, deitados sobre catres de varas e recobertos por trapos, achava-se uma porção de bebés!... Algumas das criaturinhas emitiam leves vagidos e eram prontamente atendidas por quatro mulheres que, amorosamente, aprestavam-se a socorrê-las; outros bebés dormiam um sono tranquilo e pareciam todos felizes.
– De onde vêm? – pergunta Caius. – Onde se acham seus pais?
– De onde vêm, general? – responde Rufus, com um sorriso triste. – Das ruas, dos esgotos, das latrinae81 e do depósito de lixo!... Roma abandona à própria sorte suas crianças indesejáveis, domine!... Quando as encontramos, trazemo-las para cá, antes que os cães vadios ou os urubus venham devorá-las ainda vivas!
Drusilla Antónia sente-se zonzear ao ouvir as terríveis palavras de Rufus e se apoia em Caius.– Céus!... – exclama a matrona, recompondo-se. – como podem esses pais desnaturados fazerem isso?!
– Normalmente, esses bebés são lhos de prostitutas que os parem, às vezes, na rua mesmo, deitando-os fora, em seguida, por não terem como criá-los!... Mal conseguem suprir-se a si mesmas, com a miséria que ganham, mercadejando o corpo, quanto mais, ainda, terem crianças a alimentar!... Oh, não sabeis, domina, o que é a miséria extrema!...
Drusilla Antónia e Caius passeiam os olhos pelo berçário. Havia uma profusão de bracinhos e de perninhas movendo-se no ar. Estranha ternura parece apoderar-se, concomitantemente, de ambos e se entreolham, como se adivinhassem, reciprocamente, os pensamentos: “Tereis muitos lhos!...”, recordam-se, então, do oráculo de Vénus Genitrix82, muito tempo atrás, quando eles, ainda jovens, percorriam todos os templos, a consultar os áugures, diante da impossibilidade que tinham de gerar lhos. Ali estava a resposta.
Sem mais titubear, Drusilla Antónia toma uma daquelas criaturinhas e a chega, carinhosamente, ao colo. O bebê, sentindo-lhe o calor do seio, abre-se num meigo sorriso, pejado de inocência pura, numa boquinha desdentada.
– Vê, Caius – exclama a matrona, altamente comovida com a reacção do bebê. Ele sorri para mim!...
– Sim, meu amor – diz o general, também comovido. – Pressente-te o carinho que lhe dás!
Drusilla Antónia aproxima seu rosto da pequenina face do bebê e lhe sussurra doces palavras de enlevo. A criaturinha, tomada de súbito contentamento, põe-se a rir, como se lhe murmurassem as coisas mais engraçadas deste mundo, contagiando a Caius e a Rufus que se põem, também, a rir.
– Amor!... Amor, caríssimo general!... – exclama o missionário cristão. – Só o amor para suprir tamanhas de ciências que trazem tais criaturas!... É o que nos recomendou o Cristo: “...assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros.”83 Aqui temos pouquíssimo pão a lhes dar, mas o Divino Mestre supre-nos a falta do alimento material, com sua inesgotável e abundante fonte de amor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:26 pm

Caius Petronius reflecte, por alguns momentos, sobre as palavras do novo companheiro. Que coragem e que estranha força aquela que fazia daqueles homens, aparentemente rudes e incultos, verdadeiros gigantes, diante da imensa tarefa que tinham sob sua responsabilidade!... Como é que conseguiam alimentar quase uma centena de pessoas ali internadas?...
Intrigava-se com aquela questão.
– Diz-me, Rufus – pergunta por m –, como é que consegues alimentar e manter tanta gente assim?... De quem recebes ajuda?
– Dele, general – diz o missionário cristão, apontando para o alto e com um sorriso confiante nos lábios. – Recebemos a ajuda de Jesus que, conforme a promessa que nos fez, não nos deixaria órfãos!...
– rufus... – insiste, incrédulo, o general –, não vais dizer-me que ele faz chover pão do céu!...
– Não da forma como imaginais, domine!... – diz o outro, rindo-se de como o outro se expressara. – Não em forma de chuva!... – e, aproximando-se, toca-lhe, respeitosamente, no peito, com a ponta do dedo indicador. – Manda-nos os pães dentro de corações assim grandes e misericordiosos como o vosso, general!
– Dizes, então, que viveis da caridade?!... – espanta-se Caius Petronius. – apenas disso?!
– Há muita gente do patriciado, como vós, domine, que também aceita Jesus como o salvador do mundo! – explica o outro. – Não te esqueças de que a dor visita a todos, sem excepção!... Não fostes o único a ter o privilégio de receber das mãos do Mestre a misericórdia da cura!... Onde quer que campeiem a dor e o sofrimento ali estará Jesus!... Ou crês que a Bondade Infinita teria preconceitos para com seus lhos, seleccionando-lhes a raça, a cor ou a crença?... Não, general, Deus impera em todos os corações; estes é que muitas vezes não Lhe ouvem a amantíssima voz chamando-os, posto que se encontram obnubilados pelo orgulho ou pela frieza da descrença! Caius limita-se apenas a abaixar a cabeça, comovido. A mensagem cristã era deveras diferente de tudo o que ouvira antes. Rufus, percebendo quão fortemente suas palavras haviam tocado a alma do general, apõe-lhe, amigavelmente, a mão ao ombro, sorri-lhe, cheio de doçura, e prossegue:
– Cristo veio, na verdade, para sacudir os corações, general!... Disse-nos que não nos trouxera a paz, mas a espada!84
Num arroubo, Caius abraça-se ao novo amigo. Tinha o peito carregado de fortes emoções. E, tudo o que fizesse por aquele homem seria pouco. Ele não lhe salvara a vida, o bem mais precioso que alguém pode possuir?
O missionário cristão retribui, longamente, o abraço sincero do novo amigo e, depois, encarando-o, firme, nos olhos, como se lhe adivinhasse os pensamentos, diz:
– O dinheiro, meu amigo, só tem valor pelo bem que ele possa proporcionar!... Nada vale, além disso!... dizei-me, em sã consciência, general, que proveito tiraríamos de uma montanha de ouro ou de prata, se a mantivéssemos intocada, apenas para gáudio e prazer de nossos olhos?...
Nenhum, pois não passaria de um monte de metal inerte e nada mais nos proporcionaria, a não ser o ínfimo prazer de ter o ouro, simplesmente, e só serviria para alimentar a nossa cupidez e o nosso orgulho, tornando-nos ridículos!... “Fortuna in onmi re dominatur; ea res cunctas celebrat obscuratque!...”85 Entretanto, é o que a maioria dos ricos faz, e vós mesmos sois a prova viva disso. Éreis feliz, com todo o vosso ouro, e fechado dentro de vosso palácio?... Não, não tínheis o principal elemento para gozardes de vossa riqueza: a saúde!... E vos pergunto: o que é mais importante em nossa vida? O dinheiro ou a saúde?...
– Rufus, sou um homem rico – diz Caius Petronius, olhando, fixamente, o rosto do amigo. e, com a alma repleta de emoção pelas palavras cheias de sabedoria que o outro lhe dissera, prossegue, com a voz embargada pela emoção: – Deixa-me ajudar-te nesta tarefa de minorar as dores destes desgraçados!
– Jesus já vos fez esse convite, general, no momento em que expulsou de vós o mal que lhe corroía as entranhas! – diz o outro. – Agora, só depende de vós!... A seara aí está e, como vedes, há muito o que fazer!... E vossa esposa, pelo visto, já pôs as mãos à obra!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:28 pm

Satisfeito, Caius observa que Drusilla Antónia já se devotava a cuidar dos pequerruchos, auxiliando aquelas incansáveis e dedicadas obreiras no afã de alimentar, limpar e ninar a pequenina multidão de bebés que, como se podia, facilmente, perceber, não era de dar tréguas às suas mães postiças.
Rindo e meneando a cabeça, ao constatarem quão complicado para eles era o mister a que se devotavam aquelas cinco mulheres, Rufus e Caius saem, pois doravante competiria a ambos a tarefa de arranjar comida, remédios e roupas para, diariamente, suprirem aquela pequena multidão de desvalidos, e a exigência tornava-se cada vez mais crescente, uma vez que a miséria e o abandono enxameavam por todo o lado...
* * * * * * *
Susanna Procula aprontava-se em seu cubiculum. Velha aia auxiliava-a a pentear-se, e a mocinha, vaidosa como sempre, não conseguia acertar o penteado desejado:
– Oh, Tilla – queixa-se a jovenzinha, altamente agastada com a criada –, hoje, particularmente, estás mais lerda do que nunca!...
– Perdão, domina! – geme a velha aia. – Minhas mãos não estão mais boas como antes!
– Precisaria ter treinado outra para pentear-me!... – explode a mocinha, agastando-se. – tu já não te aguentas nem contigo mesma!... e, logo mais, Flavius Antoninus já deverá estar à porta!... Vovô convidou-o para a cena e não desejo atrasar-me!... O que ele pensará de mim?... Oh, Tilla, ele é tão lindo!... Forte!...
– Mesmo, domina?... – exclama a velhota, abrindo um sorriso desdentado. – Quem sabe o senador Cornelius não o convidou para a cena para acertar o vosso noivado?
– Que Venus86 te ouça, minha cara!... – exclama a jovenzinha, excitadíssima. – Flavius é o homem dos sonhos de qualquer mocinha núbil! – Vosso avô, o sereníssimo senador Cornelius Helvetius clama por vós, domina!... – exclama uma escrava à porta do cubiculum.
– Ele já chegou?... ele já chegou?... – pergunta, afoita, Susanna para a escrava que se mantinha de joelhos à porta do quarto, em atitude servil.
– Sim, domina, o convidado e vosso augusto avô já se acham no tablinum – responde a escrava.
– Oh, Tilla, que azar!... – exclama Susanna, mirando-se no espelho de prata polida. – Ele já chegou e eu estou um monstro!... Vês essa mecha que se desprende aqui?... Prende-a, depressa, vamos!... – e se voltando para a escrava que se mantinha de joelhos à porta, ordena: – E tu, Dalla, corre até lá e espia se meu avô se enfada com a minha demora!
A escrava sai, e Susanna prossegue no afã de pentear-se até a perfeição.
– Não sei por que não te dôo ao Circus Maximus para alimento das feras de Nero!... – exclama a mocinha, altamente zangada e tomando a escova das trémulas mãos da aia. – Deixa que eu mesma termino aqui!... Agora, dá-me a Chlamide, depressa, e o broche grande de marfim e de ouro, o que me deu vovô!... Quero fazer-lhe uma surpresa, usando-o hoje!
– Vosso avô impacienta-se, domina! – diz, já de volta, a escrava, da porta do cubiculum.
– E o jovem convidado, como está ele? – pergunta Susanna, enquanto a velha aia, afoitamente, abotoa-lhe, com dedos trémulos, o broche, prendendo-lhe, graciosamente, o rico manto de linho alvinitente ao ombro direito.
– Oh, é um homem lindíssimo, domina!... – diz a escrava com um sorriso maroto aos lábios. – E está ricamente vestido com uma praetexta de linho branco e uma capa púrpura aos ombros!
– Peste!... – exclama Susanna, cheia de ciúme. – Se o olhares de novo, mando arrancar-te os olhos!... Agora, some-te daqui!... – e lhe atira a escova de cabelos.
Uma última e meticulosa olhada no espelho de prata polida que a velhota, pacientemente, segurava-lhe, Susanna confere o resultado: estava bem; já poderia apresentar-se ao convidado.– Estás linda, domina!... – exclama a velha aia, sorrindo-lhe com as gengivas murchas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:28 pm

Susanna sequer escuta o que a aia lhe diz e sai em disparada. Quando assoma à porta do tablinum, o jovem Flavius tem um sobressalto e quase deixa cair a taça de mulsum que segurava à mão. A mocinha estava lindíssima, e seu coração principia a bater descompassadamente.
– Rivalizas com Vénus, minha cara!... – diz o rapaz, fazendo-lhe longa reverência.
– Oh, exageras, Flavius! – exclama ela, rindo-se e pondo à mostra os dentinhos redondos e brancos como porcelana.
– Passemos ao triclinium – convida Cornelius, gentil, e com largo sorriso de satisfação a iluminar-lhe o vetusto rosto.
“Como são lindos!...”, pensa o velho senador, vendo-os caminharem de braços dados, à sua frente, pelo corredor que dava ao triclinium. “Juro, por Júpiter Capitolinus, uni-los em matrimónio, meus amores, antes de me ir!...”, e sorri, satisfeitíssimo.
Depois de bem instalados em confortáveis canapés, Cornelius ordena que sirvam a cena. A seguir, servos especialmente treinados para essa função ajoelham-se ao lado de grandiosa mesa de pernas curtas, posta no centro do vasto triclinium e repleta de iguarias finíssimas e, pacientemente, começam a servir os três comensais, passando-lhes às mãos os alimentos prontos para deglutir, espetando-os à ponta de facas de prata ou, ainda, em pequenos pratos de ouro polido e lhes enchendo, amiúde, as taças com mulsum.
– Tiveste notícias de teu avô, Flavius? – pergunta Cornelius, procurando deixar o rapaz plenamente à vontade.
– Escrevi-lhe uma missiva dias atrás, porém ainda não me deu resposta – diz o rapaz, sempre tranquilo, atencioso e cheio de bons modos.
“Que diferença de Iulius Maximus!...”, pensa Susanna, enquanto estudava, minuciosamente, o rapagão, que comia um pedaço de cordeiro assado, espetado na ponta de reluzente faca de prata. com os olhos cheios de apaixonada curiosidade, percorre-lhe o avantajado corpo, recostado, elegantemente, no canapeum, que se colocava entre ela e o avô. “Iulius está sempre irrequieto, mexendo-se e é tremendamente grosseiro e mal-educado!...”
– Quanto tempo ainda permanecerás no exército? – pergunta cornelius.
– Como só tenho dezoito anos, deverei permanecer ainda por mais dois anos, senador – responde o rapaz, sempre com esmerada educação e bonomia no olhar.
– Isso quer dizer que ainda terás de lutar nas guerras? – pergunta Susanna, cheia de preocupação.
– Sim – reponde ele, encarando-a com os olhos melados de paixão e felicíssimo porque ela lhe dirigia a palavra. E prossegue, cheio de animação:
– Pertenço às tropas comandadas pelo general Caius Petronius Tarquinius e, como regressamos de recente incursão às Gálias, nosso regimento encontra-se em descanso. Entretanto, se houver necessidade de alguma intervenção em qualquer ponto de nossas fronteiras, para lá iremos, sempre com o intuito de restabelecer a paz.
– A propósito, sabias que teu general encontrava-se muito doente? – pergunta Cornelius.
– Sim, sabia que meu comandante encontrava-se doente, posto que sou um de seus ordenanças e lhe faço companhia constante – explica o rapaz. – Sei que ele sofria bastante, mas nunca deixou transparecer fraqueza ou se queixou de qualquer coisa. Apenas, que lhe chamássemos o médico, vez ou outra, e que vivia tomando remédios. Nada mais que isso.
– Nunca foste visitá-lo?... – pergunta Susanna. – O general e sua esposa, Drusilla Antónia, são fiéis amigos de vovô e sabíamos que ele se encontrava gravemente enfermo.
– Sim, fui visitá-lo algumas vezes – diz o rapaz. – Mas, na última vez em que lá estive, a esposa do general não permitiu que eu o visse. Alegou estar o esposo descansando, porém achei-a extremamente abatida e desconsolada.
– Caius quase foi avistar-se com Hecate, meu caro!... – explica o senador.
– Porém, não sei, precisamente, através de quais sortilégios conseguiu safar-se desta e recupera-se a olhos vistos!... E me fez uma revelação perturbadora:
tornou-se cristão!– Cristão?!... – exclamam, concomitantemente e espantadíssimos, ambos os jovens.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 3:28 pm

– Sim – continua Cornelius –, e Caius jurou-me que foi o Judeu Crucificado que o livrou da morte!...
– Como se deu isso, senador? – pergunta o rapaz, ainda bastante espantado com a notícia. – É muito difícil para mim crer que o general tornou-se cristão, pois em sua tenda sempre havia uma ara em honra de Júpiter!... E o vi inúmeras vezes sacrificar, devotadamente, a seu numen, antes e depois das batalhas!...
– Drusilla Antónia disse-me, reservadamente, ainda ter dúvidas sobre quem realmente curou Caius, pois, ao mesmo tempo em que tiveram contacto com o sacerdote cristão, sacrificaram duas hecatombes a Júpiter Capitolinus...
– Foi Júpiter Capitolinus, claro!... – exclama Susanna. E, em sua ingenuidade juvenil, prossegue opinando, cheia de espanto: – Imaginem só!... Nosso Pai estava com tanta sede que bebeu o sangue de duzentos bois!
– Não sei, não, meus amores – diz Cornelius, pensativo. – Existem tantas coisas abaixo do céu...
– E tu, Flavius, o que pensas sobre isso? – pergunta a mocinha, doida para ouvir a opinião do rapaz.
– Não sei, minha cara – responde ele, entre pensativo e ainda chocado pela notícia. – Conheço muito bem o general Petronius e me é difícil acreditá-lo cristão...
– Não no teriam enfeitiçado, vovô? – pergunta Susanna, encolhendo-se no canapeum, de repente se lembrando das tantas coisas absurdas que diziam sobre os cristãos.
– Ora, Susanna! – exclama Cornelius, rindo-se da ingenuidade da neta. – Nada sei de concreto acerca da seita cristã, entretanto algo posso dizer-te:
metade do que dizem sobre eles não passa de fantasia do imaginário dessa gente!... Além do mais, para alguém que estivesse enfeitiçado, Caius pareceu-me, surpreendentemente, muito bem!– E tu o que pensas, Flavius? – pergunta a mocinha, dirigindo-se ao jovem convidado.
– Penso ser muito lógico tudo o que disse o senador Pisanus – responde o rapaz. – A razão indica-nos que os sortilégios devam trazer malefícios e não benefícios como esse que recebeu o general Tarquinius!... Se ele realmente se encontra curado de terrível doença, isso lhe foi extremamente benéfico!
– Mas, isso por si só justificaria o abandono da crença em nossos imortais? – pergunta Susanna.
– Não nos compete julgar a atitude do general Tarquinius, Susanna – observa, com gravidade, o velho senador. – Grandes provações como essa pela qual passou nosso querido Caius são capazes de promover transformações radicais em nosso carácter e até mesmo em nossa personalidade!... Não o culpo por isso, não!... Ele lutou, bravamente, contra Hecate e a venceu!... E se sente imensamente grato ao Ser que o salvou das gafas da morte, a ponto de se sujeitar a ele de corpo e alma!
– Mas, vovô, e Drusilla Antónia?... – pergunta a jovem, sem capacidade ainda de entender quão complexas eram as intricadas tramas nas quais o coração das pessoas costumava envolver-se. – Custa-me aceitar que nossa amiga, tão devota de Júpiter Capitolinus, esteja a bandear-se para a seita dos cristãos!... Eu mesma cansei-me de encontrá-la, quase que diariamente, diante do Capitolium, quando ia sacrificar ao Grande Pai!
– Coisas do amor, minha cara!... – exclama Cornelius. – Coisas do amor!... Tu sabes o quanto Drusilla Antónia é eternamente apaixonada pelo esposo!... Tenho a certeza de que ela o seguiria até às profundas do Avernum!...
– Espero que não venham a desfazer-se da fortuna que possuem, como fazem os patricios que se convertem a essa estranha seita que prega a miséria absoluta a seus adeptos!... – observa Flavius, rindo-se. – Que o general se tenha convertido à fé cristã, posso até aceitar, mas se doar tudo o que possui aos pobres e estropiados, passarei a duvidar de sua sanidade mental!...
Quem é que poderá ser feliz na extrema miséria?– Não me digam que fazem isso?!... – pergunta Susanna, espantadíssima.
– Que seita mais absurda!...
– Sim, minha cara, eles fazem isso! – observa Cornelius. – Nesse ponto até posso concordar de que se utilizem de algum esconso sortilégio para ludibriarem os detentores de riquezas a ponto de fazê-los doarem tudo o que possuem em favor das comunidades onde passam a residir!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:17 pm

– Que horror, vovô!... – exclama a jovenzinha. – Espero nunca deparar-me com cristãos!... e se me lançam um feitiço?
– Não há nenhum perigo de que isso aconteça, minha cara! – diz o rapaz, sorrindo para ela. – Primeiro, porque estarei sempre por perto para protegê-la desses espertalhões e, depois, será preciso que tu desejes estar entre eles!
– Mesmo, Flavius?... – diz ela, enviando-lhe um olhar cheio de paixão.
E então, os dois jovens, esquecidos do resto do mundo, prenderam-se os olhos uns nos outros, como se se magnetizassem mutuamente. Cornelius, embevecido com o que presenciava, sentiu-se alegrar. Agora, tinha a absoluta certeza de que a neta apaixonava-se pelo garboso rapaz. Aliviado, emite fundo suspiro. “Acho que eu acabo de te expulsar de vez desta casa e de nossas vidas, calhorda!...”, pensa ele, referindo-se ao odiado sobrinho Iulius Maximus, o terrível pesadelo de sua sofrida existência. “Quero ver se deitarás tuas imundas patas em minha Susanninha!...”. O velho senador encerra tal pensamento com um pleno sorriso de satisfação nos lábios e, levantando-se, sai muito discretamente, deixando os dois enamorados que, de tão mergulhados no enlevo que fortemente os arrebatava, nem perceberam que cavam sozinhos...
– Vovô deixou-nos a sós... – murmura Susanna, de repente quebrando o arrebatamento em que se encontravam.
– é mesmo?... – pergunta ele, relutando em despregar os olhos daquele par de olhos cor de mel que tanto o encantavam. – Que tristeza!... Então, a boa educação insiste em dizer-me que também me devo ir...
– Não desejas ser mal-educado nem uma só vez?... – diz ela, levantando-se de seu canapeum e lhe tomando, apaixonadamente, as mãos. – Vem, levo-te ao viridarium, que a lua cheia deve estar linda!...– Não sei se devo... – diz ele, retraindo-se. – Teu avô confiou em mim...
– Insanis, Flavie!...87 – observa ela, rindo-se. – não percebeste que meu avô adora-te?...
O plenilúnio derramava uma luminescência leitosa e opalescente sobre o viridarium que, sob a amena temperatura do alto verão, emanava um forte e olente bouquet de gerânios e sempre-lustrosas, pejadas de florinhas multicores, mais as cataratas de hidranjas floridas que se derramavam das copas dos velhos rododendros. Os jovens, altamente envolvidos pelo ambiente de profusas luzes, formas e perfumes inebriantes, deixam-se levar pela paixão que já nascia avassaladora.
– Acho que te amo, Susanna!... – diz o rapaz, altamente emocionado e tomando a jovem aos braços fortes, aproxima-a de si.
– Oh, flavius, beija-me!... – diz ela, oferecendo-lhe a boca a ante.
E, segue-se, então, o primeiro e apaixonado beijo, que se emoldurava de tão deslumbrante panorama!... Nascia, assim, o grande amor entre eles... Ou, quem sabe, não acabava de renascer ali, o potente fogo da paixão de duas almas que se reencontravam pelos esconsos e quase imperscrutáveis meandros da reencarnação?...
____________________________________________________________________________________
77. “– Certo homem tinha dois lhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte que me cabe dos bens. E ele lhe repartiu os haveres...”, em latim. Evangelho de S. Lucas, 15.11-12.
78. Evangelho de S. Mateus, 11.25
79. Evangelho de S. Mateus, 11.28
80. Clâmide, em latim. Manto que se prendia por um broche ao pescoço ou ao ombro direito.
81. Latrinas, em latim. Roma foi a primeira cidade no mundo a construir um sistema de latrinas públicas, com colecta de esgoto em dutos, alguns dos quais em funcionamento até os dias de hoje.
82. Na mitologia latina, a deusa que acompanhava a gravidez das mulheres.
83. Evangelho de S. João, 13.34
84. Evangelho de S. Mateus, 10.34
85. “A fortuna domina em tudo; ela eleva e envilece todas as coisas!...”, em latim.
86. Na mitologia latina, Vénus era a deusa da formosura, do amor e dos prazeres.
87. “– És um bobo, Flávio!...”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:17 pm

Capítulo 8. Terrível tragédia
Flavius Antoninus Rimaltus, com a efusiva permissão de Cornelius, passa a frequentar-lhe a casa, já na condição de noivo de sua neta. Susanna Procula não cabia em si de contentamento, pois, finalmente, aquietara-se o seu tão conturbado coração. Agora, tinha a certeza absoluta de que era aquele homem a quem ela buscava, incessantemente, para compartilhar o resto de sua vida – o rapagão amorenado de Neapolis88 – e que, além do mais, era neto de velho companheiro de seu avô. Aqueles doces olhos marrom-profundos encantavam-na!... E não lhe saía da lembrança a imagem do rapaz, fitando-a, com tanto interesse, como se ela fosse algo muito raro ou por demais precioso.
Perdida em tão deleitosas reminiscências, a jovem não se cansava de recordar o primeiro beijo apaixonado que haviam trocado sob o luar, no jardim. E um frémito de emoção e de prazer percorre-lhe o corpo, ao repassar na memória cada momento que antecedera o primeiro longo contacto dos possantes braços, que a envolveram, tão louca e apaixonadamente, como se fossem, de repente, esmagá-la, entre aqueles fortes e proeminentes músculos, semelhantes às grossas raízes de vetusto carvalho!... Oh, céus, parece até que ia arrebentar de tanta emoção, enquanto ele lhe sussurrava juras de amor ao ouvido e lhe mordiscava, suavemente, o lóbulo da orelha...
– Tendes visita, domina! – diz-lhe a velha serva, tirando-a de mais de um de seus idílicos devaneios com seu amado.
– Ahn!... De quem se trata, Tilla? – pergunta Susanna, altamente aborrecida pela interrupção da criada, que viera tirá-la das fantasias amorosas com seu amado.
– Encontra-se à vossa espera, na exedra, o jovem Iulius Maximus, vosso augusto primo – responde a velha aia.
Susanna tem um sobressalto e, sentindo-se perturbar pela inesperada visita que lhe fazia o primo, pergunta para a aia:
– Disseste-lhe que eu estava?– Sic, domina – responde a velha. E prossegue, engolindo em seco: – Fiz mal?...
– Muito mal, sua galinha velha!... – responde Susanna, enfurecendo-se. – Ainda te doarei ao Circus Maximus para gáudio das feras, mesmo que sejas só ossos e pelancas!...
– Oh, perdão, domina!... – diz a velha, arrojando-se aos pés da ama.
– Pára de fazer dramas, sua doida! – exclama a jovem, agastando-se ainda mais com a atitude extrema da velha serva. – E vovô, onde está?
– O sereníssimo senador Cornelius lê, enquanto passeia pelo viridarium, domina. – diz a aia.
– Anda, corre até vovô e lhe dize que o idiota de meu primo está aqui e que não desejo avistar-me com ele a sós!... – ordena Susanna, com voz firme.
A velha sai, arrastando os pés, cansada e arqueada pelo peso dos anos, e Susanna aguarda um pouco mais em seu cubiculum. Não desejava, de modo algum, estar a sós com Iulius e ter de dar-lhe novas explicações acerca de seu noivado com Flavius Antoninus. Havia algum tempo, o avô dera uma festa aos amigos mais chegados, para anunciar-lhes, oficialmente, seu desejo de casar a neta e fizera questão de não convidar Iulius que, ao tomar conhecimento de que a eleita de seu coração pretendia casar-se com outro, enfurecera-se tanto que acabou por apanhar tremendo pifão numa taverna da via Trentina e, quando retornou para casa naquela noite, descarregou toda a sua fúria, apunhalando, impiedosa e repetidamente e até a morte, o pobre escravo que viera abrir-lhe a porta e reduzindo o corpo do pobre infeliz a uma massa sanguinolenta e disforme!
Iulius não se conformava em perder as atenções de Susanna para outro pretendente e vivia correndo atrás da jovem e exigindo, insistentemente, que lhe desse explicações e tentando reconquistá-la com presentes e através de infrutíferas tentativas de carregá-la para os passeios e divertimentos públicos de que ela tanto gostava. Entretanto, Susanna negava-se, peremptoriamente, a sair com ele e até mesmo rejeitava os presentes cada vez mais caros e mais valiosos que ele lhe ofertava, fato que o tornava ainda mais exasperado e mais violento que o usual. Invariavelmente, deixava a casa de Cornelius, furiosíssimo, e a gritar impropérios contra ambos – avô e neta –, jurando vingança! Entretanto, acabava voltando, dando mostras de arrependimento e, uma vez mais rejeitado, repetia as odiosas e violentas cenas de ciúme.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:18 pm

Tal procedimento se repetira por várias vezes, e tanto Susanna quanto Cornelius já se encontravam cansados desses rompantes ridículos que Iulius vivia aprontando ali.
Contudo, o rapaz era por demais persistente e, naquela manhã, lá estava ele de volta, segurando pequeno baú de mar m às mãos. Como Susanna demorasse em recebê-lo, enfurecia-se, grandemente, e caminhava, nervosamente, de um lado para outro.
– Iulius... – diz Susanna da soleira da porta da exedra.
– Ufa!... Até que en m vieste!... – exclama ele, bufando de enfado. – Onde é que estavas que me fizeste esperar tanto?... – pergunta ele, aproximando-se e a beijando à testa.
– Abluía-me, como faço todas as manhãs... – diz ela, sem alterar a voz, porém sem deixar de olhá-lo, firme, nos olhos.
O rapaz ia dizer-lhe que ela não o respeitava mais, que agora vivia humilhando-o; entretanto, percebendo-lhe o tom rígido do olhar, conteve-se. em seguida, estende-lhe o baúzinho de marfim e diz:
– Aceita-o!... Trago-te de coração!...
Susanna olha para o mimo que ele lhe estendia com tanta insistência. Iulius estava visivelmente alterado e tinha as mãos trémulas. Por instantes, a mocinha sentiu pena dele: tinham sido tão amigos; ele sempre lhe fizera companhia e a tratara com certo respeito até. Porém, agora descobria que não o amava; não pelo modo como ele a desejava. Gostava de Iulius, mas não queria tê-lo por esposo. Não, decididamente, não poderia aceitar aquele presente!... Se o aceitasse, o rapaz, certamente, iria pressupor que lhe estivesse dando alguma esperança, e isso era o que Susanna, decididamente, não desejava.
– Não devo, Iulius... – diz ela, mortificando-se por ter de fazer aquilo com o primo. Entretanto, era necessário: não poderia dar-lhe a mínima esperança. E prossegue, olhando-o nos olhos: – Tu sabes que não posso... O rapaz não desiste e continua com as mãos estendidas, oferecendo-lhe, insistentemente, o pequeno baú de mar m. Arfava muito e tinha os olhos injectados de sangue pelo excesso de ansiedade que o consumia.
– Sinto muito, Iulius... – diz Susanna, baixando os olhos.
O jovem morde o canto dos lábios, cheio de raiva pela contrariedade a que não estava habituado a receber, pois sempre lhe haviam feito as mínimas vontades e, num átimo, explode, arremessando o baúzinho ao chão. A rica peça de lavor delicadíssimo despedaça-se em mil fragmentos e revela seu conteúdo: finíssimo bracelete em forma de uma serpente, confeccionada em ouro maciço tauxiado de coral e ébano, a imitar as cores de uma víbora.Com o impacto, a pequena vípera saltou do meio dos estilhaços e exibiu seu brilho ofuscante sobre o ladrilho de granito negro; seus dois faiscantes olhinhos vermelhos de rubis cintilaram, vividamente, abaixo das carenas – verdadeira obra de arte que enganaria qualquer um, tão semelhante era a uma serpente viva!
– Queres dizer então que teu negócio com o sujeitinho é real?... – grita ele, estentóreo, dando evasão à fúria que mal contivera até então.
Susanna põe-se a soluçar baixinho e tenta fugir para seu cubiculum. Iulius, entretanto, ligeiro como um felino, salta sobre ela e a segura, fortemente, por um dos punhos.
– Deixa-me ir, Iulius!... – suplica a jovem, tentando livrar-se da possante mão que a segurava forte. – Tu me machucas!...
– Não, sem antes me dizeres por que é que te bandeaste para os braços daquele imbecil!... – grita o rapaz, às raias da fúria extrema. – Que é que ele tem mais que eu?... Vamos, diz-me!...
– Apenas que não te amo, Iulius!... – exclama a mocinha entre lágrimas. – Como poderia casar-me contigo se não te amo?...
– E queres dizer então que amas aquele miserável?... – pergunta o rapaz, aos gritos.
– Sim, amo-o!... – diz Susanna. E se enchendo de força e coragem, arrosta-o, firme, e lhe brada a plenos pulmões: – amo-o como à minha própria vida, e a ti, da forma como me tratas, Iulius, passo, doravante, a odiar-te!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:19 pm

Aquilo fora demais para o rapaz. Encara-a, com um par de olhos horríveis, transtornados pelo ódio e, sem piedade, desfere violento soco ao rosto de Susanna, que tomba sem sentidos. Os criados, alertados pelos gritos de ambos, acorrem, afoitos, a socorrerem a donzela que jazia desmaiada sobre o piso da exedra. Cornelius, avisado por Tilla, também chegava à porta e, deparando-se com a cena, e vendo o sobrinho ali, logo percebeu o que se passava.
– Que fizeste a ela, desgraçado? – grita o velho senador, adentrando a sala e, brandindo, ameaçadoramente, a bengala de que se utilizava para caminhar, arroja-se sobre Iulius, tentando dar-lhe violenta bastonada ao rosto.
O rapaz, ligeiro como uma cobra, apanha o punhal que trazia preso à cintura e, com hábil e certeiro golpe, acerta Cornelius ao peito. O velho senador sente como se um ferro em brasa lhe rasgasse o coração e leva, instintivamente, a mão ao ferimento. Imensa mancha brota-lhe do peito, tingindo-lhe de rubro a lã alvinitente da toga. Sente a vista escurecer, zonzeia e ainda consegue balbuciar, antes de tombar, pesadamente, sobre o granito polido:
– Maldito demónio!...
– Maldito és tu!... – grita Iulius, fora de si e ainda segurando à mão o punhal ensanguentado. – Não fosses tu, e Susanna ter-se-ia casado comigo!... Mas, vingo-me!... Morre, desgraçado, já que a doença demora a matar-te!...
Susanna não assistira à terrível cena. Encontrava-se ainda sem sentidos, e os escravos tentavam reanimá-la a qualquer custo. Nem nada puderam fazer para evitar o assassinato de seu amo, posto que tudo ocorrera tão rápido, e o pobre mordomo, ao correr para prestar auxílio a seu senhor, que se encontrava caído e se esvaindo em sangue, recebera de Iulius, à cabeça, tremendo pontapé que perdera os sentidos instantaneamente. Os demais escravos e servos que se achavam espalhados pela propriedade acorreram, ao ouvirem os gritos de socorro que vinham de dentro da casa, mas eram covardemente assassinados pelo rapaz que, abrindo caminho aos trancos, pontapés e violentas punhaladas, conseguiu chegar ao seu carro e fugir em disparada.
O desespero toma conta dos servidores da mansão de Cornelius Helvetius Pisanus. Não sabiam o que fazer, pois seu amo estava morto, no meio de uma poça de sangue; a jovem senhora, sem sentidos, com imenso hematoma ao rosto, já grandemente inchado, e o mordomo, também desacordado.
Depois de algum tempo, a velha Tilla e outras criadas fizeram com que o mordomo recobrasse os sentidos, dando-lhe a cheirar uma pedra de resina alcanforada. O homem sentiu-se desesperar ao abrir os olhos: mais por medo de que o assassino ainda se encontrasse por ali. Tranquilizado sobre a fuga do rapaz, ordena as ideias:
– Rápido, levem a domina para seu cubiculum e tentem reanimá-la, enquanto tu, Marcus, vai a cavalo até a residência do médico e o traz aqui, sem delongas!
Depois, olhando para o corpo do velho senador com os olhos mareados de pranto, diz, cheio de tristeza:
– recolhamos o corpo de nosso amado senhor!... Por ele, nada mais há a fazer!...
As criadas e escravas rodeiam o corpo do velho senador e, apanhando um lençol de linho, alçam-no e, em pequena procissão e cantando pungente nênia, carregam-no a seu antigo cubiculum. Iam lavá-lo e prepará-lo para as exéquias.
Debalde as servas tentaram reanimar a jovem Susanna. A moça recebera, covardemente, ao rosto, tremendo soco, desferido pelo possante braço de Iulius, e perdera, completamente, os sentidos. Sua linda face encontrava-se grandemente desfigurada: o lado direito estava totalmente inchado, incluindo o olho e os lábios que se mantinham intumescidos e roxo enegrecidos.
Quando o médico chegou, espantou-se com a tragédia, pois era muito amigo de Cornelius. Constatou que o velho senador fora, de fato, cruelmente assassinado, e que a sua neta encontrava-se em estado delicadíssimo, pois a pancada recebida possivelmente houvera lhe afectado também o cérebro, daí a demora de a moça recobrar os sentidos. Utilizando-se dos parcos conhecimentos da incipiente medicina da época, propinou-lhe uma tisana e compressas sobre os ferimentos da face, mas, de antemão, já sabendo que pouco poderia proporcionar à pobre mocinha.
– Enviaste mensageiros aos parentes e amigos? – pergunta o médico ao mordomo.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:19 pm

– Sim, sábio Tacitus – responde, humildemente, o velho serviçal –, já despachei mensageiros a avisarem os amigos mais chegados e também ao jovem Flavius Antoninus, o noivo de nossa querida domina...
Depois de duas horas, chega o rapaz, trémulo e pálido, ao constatar a real gravidade dos factos.
– Meu amor!... Que fizeram contigo?... – grita ele ao adentrar o cubiculum e se deparando com o estado lastimável em que encontrava a mulher amada.
Sentindo como se o mundo caísse sobre ele, ajoelha-se ao lado do leito e toma, suave e delicadamente, as pálidas mãos de Susanna Procula e, levando-as aos lábios, beija-as repetidas vezes. O pranto descia-lhe, abundante, dos olhos, ensopando as níveas mãozinhas da moça que permanecia completamente alheia a tudo que a rodeava.
– Oh, pelos imortais!.... Susanna, desperta, meu amor!... – sussurra-lhe ele aos ouvidos, com as palavras molhadas pelo pranto. – Que te fez aquele miserável?... Por Hecate infernal, juro-te, minha amada, que te vingarei!...
Oh, que dor!...
Por longo tempo, Flavius permanece ao lado de sua amada, tentando reanimá-la, massageando-lhe as mãos e lhe sussurrando palavras encorajadoras ao ouvido. Tacitus, o médico, sentado a um lado, apenas observava a triste cena. Por m, decide-se a interferir.
– Nobre Flavius – diz o facultativo –, tudo o que fazes é válido, entretanto nossa querida Susanna não pode ouvir-te. Melhor agora é deixá-la repousar.
Já lhe estamos ministrando os medicamentos e lhe apondo compressas de hamamélis virginiana ao rosto e cremos que, em pouco tempo, o inchaço desaparecerá. Tem paciência e confia!
Relutantemente, o rapaz levanta-se e olha, demoradamente, para a gura patética de sua amada que jazia inerte sobre a algidez dos lençóis. O pranto aumenta, e ele é violentamente sacudido pelos soluços. Depois, sua mão crispa-se sobre o cabo do punhal que trazia preso à cintura.
– Corro atrás do verme que ousou ferir-te, meu amor!... – diz ele, como se soprasse as palavras que lhe saíam ensopadas de pranto. E, com as feições contraídas em violento rictus de dor, prossegue: – Corro até o covil onde, certamente, entocou-se o covarde e te juro, meu amor: dar-te-ei de presente as orelhas daquele maldito! – e sai, abruptamente, porta afora. A noite caíra morna e pejada de estrelas, num céu azul- cobalto. No imenso salão do triclinium, velhos e fiéis amigos velavam, pesarosamente, o corpo de Cornelius Helvetius Pisanus, covardemente assassinado pelo sobrinho. Sentados a um canto e tremendamente tristes pelo infausto acontecimento que vitimara o tão querido amigo, Caius e Drusilla Antónia conversavam baixinho.
– Triste m teve nosso querido Cornelius!... – exclama a matrona, entre lágrimas de tristeza. – tive-o sempre à conta de um irmão!... Dava-me conselhos e protecção, quando tu te ausentavas pelas longas campanhas, meu querido!... E agora?... Que será de mim?...
– Cornelius sempre menosprezou o bandido do sobrinho!... – exclama Caius, cheio de indignação. – Eu sabia que, cedo ou tarde, aquele demónio iria aprontar algo assim tão grave!... Não aceitou o fato de ser preterido por Susanna e procurou vingar-se da forma mais vil e abjecta!...
– E em que estado lastimável deixou a pobrezinha!... – observa Drusilla Antónia. – Se o que nos disse Tacitus realmente se efectivar, melhor seria que ela também se juntasse ao avô!...
– Drusilla!... – exclama Caius, admoestando-a pelas duras palavras. – Que dizes?!... Não tendes fé?...
– Oh, desculpa-me, meu amor!... – diz a matrona, abraçando-se ao marido. – Mas, é que, pelo estado em que a jovenzinha encontra-se, dificilmente creio que recobrará a normalidade. A pancada que aquele monstro deu-lhe à cabeça foi forte demais para ela. Deve ter-lhe afectado seriamente os miolos!
– Sabes que, a partir de agora, somos os responsáveis por ela, não? – diz o general. – Compete-nos cuidar para que recobre a saúde o mais depressa possível.
– Sim – concorda Drusilla Antónia. – E como faremos?
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:19 pm

– Após os funerais de Cornelius, transportá-la-emos para nossa casa e, sob os cuidados de Rufus, garanto-te que, em pouquíssimo tempo, tê-la-emos, novamente, sã e salva!... – diz o general, com os olhos brilhantes.
– Crês, realmente, nisso? – pergunta a matrona.
– Se Jesus curou-me, certamente curará, também, a que, doravante, passa a ser a nossa lha! – exclama ele, cheio de esperanças. A noite avançava lentamente, sacudida pelos lancinantes gritos e pungentes lamentações das carpideiras que se arrebentavam em lamúrias, diante do defunto que fora colocado sobre uma essa coberta com panos de linho branco. Cornelius guardara, às ceráceas feições, as últimas impressões que tivera neste mundo, amalgamadas num esgar de horror e ódio – sentimentos estranhamente colocados juntos, numa mesma expressão, que lhe deixavam transparecer a sensação altamente confrangedora pela qual passara em seus terríveis e derradeiros momentos de vida. Roma acabava de perder um de seus grandes baluartes pelas vis mãos de um infame assassino...
* * * * * * *
assim que cometera seu tresloucado gesto, assassinando fria e barbaramente o tio, de ter atacado, gravemente, Susanna e, por fim, apunhalado e ferido mortalmente uma porção de escravos e criados que tentavam interpor-se à sua passagem, impedindo-lhe a fuga, Iulius Maximus deixara a mansão de Cornelius e, conduzindo seu carro como um possesso pelas esburacadas ruas dos miseráveis subúrbios da cidade e pondo os pobres transeuntes em fuga desesperada para dar-lhe passagem, chegara à sua mansão e se arrojara sobre um canapeum no triclinium. Aos gritos, chamara pelo mordomo e pedira vinho. Somente depois de engolir, sofregamente, algumas taças do reconfortante líquido, é que as ideias principiaram a voltar-lhe ao normal e se dera conta, então, da enormidade da tragédia que provocara. Ainda bastante trémulo pela forte descarga emocional que sofrera, o rapaz, de repente, sente medo. E se viessem caçá-lo ali?... Caius Petronius Tarquinius era amicíssimo do tio, e o miserável – o noivo de Susanna – servia como ordenança do general, fato que poderia uni-los numa revanche!... Estarrecido, Iulius constatou que, se permanecesse em sua casa, correria risco de vida. Precisava fugir!... Mas, fugir para onde?...
Não possuía nenhuma propriedade em outro lugar. Apesar da imensa fortuna de que era detentor, estava ela totalmente aplicada em Roma e, se saísse às pressas, teria de deixar tudo para trás. Não, decididamente, não poderia ir para muito longe da cidade. De repente, súbita ideia clareia-lhe a mente: Nero!... E, satisfeito, dá com a ponta dos dedos à testa. Um sorriso de satisfação enche-lhe, plenamente, os lábios. Sim!... O imperador não era seu amigo pessoal?... Dar-lhe-ia protecção, com certeza!... E quem se atreveria a desafiar Nero?... Só se fosse doido!... Ligeiro, ordena ao mordomo que lhe arrumasse algumas peças de roupas e sai, sem dar a mínima explicação sobre o que faria, pois sempre agira assim. A tarde já principiava a cair, quando ele toma o carro e sai em disparada rumo ao Palatino, onde se localizava o palácio imperial.
* * * * * * *
– Dizeis, então, nobilíssimo Iulius Maximus, que destes cabo daquele velho infame? – pergunta Nero, altamente interessado e com o braço em torno do pescoço do jovem, enquanto passeavam a sós por exuberante aleia de um dos jardins do paço imperial. – Oh, que adorável notícia trazeis-nos esta tarde, meu querido!... Que mais um príncipe como nós poderia desejar no dia de hoje?...
– Sim, Majestade – diz o rapaz, inchado de orgulho pela particular deferência que lhe despendia o soberano de Roma –, tive de matá-lo, pois opunha-se ao meu relacionamento com minha prima!
– Oh, sois por demais corajoso!... – exclama Nero, efusivamente. E, como era dado a mexericos, prossegue, procurando inteirar-se mais do assunto: – Dizei-nos, nobre Iulius, matastes também a moça?
– Não, Majestade – responde o rapaz –, apenas dei-lhe uma bem dada surra, para lembrar-lhe a quem é que deveria amar!...
– Ha! Ha! Ha! Ha!... – explode o imperador, numa gargalhada. – sois deveras excelente companhia, caríssimo jovem!... E, considerai-vos nosso hóspede e nosso protegido e ai daquele que ousar tocar em um único o de vossos cabelos!... Aqui tereis a protecção da el guarda pretoriana, escolhida a dedo por nós, e duvido de que alguém se atreva a desafiá-la!
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:21 pm

– Sou-vos imensamente grato, Majestade – diz o rapaz, ajoelhando-se e beijando a fimbria da toga do imperador.
– Oh, fizestes-nos um grande favor, nobilíssimo Iulius Maximus!... – exclama Nero, tomando-o pela mão e o fazendo levantar-se. – Nós, simplesmente, odiávamos o senador Cornelius helvetius Pisanus, e vós o matastes para nós!... – Que felicidade!... Pena que destes cabo de um deles, apenas, pois nosso real desejo era liquidar o senado todo!... Não desejais fazer isso por nós, não?... – e explode numa gargalhada: – Ha! Ha! Ha! Ha!...
– Certamente, brincais, Majestade!...
– Não!... Não!... – exclama Nero, agora fazendo-se sério. E prossegue, em tom rancoroso: – Nós e o senado não temos andado muito bem, ultimamente!... Se dependesse de nossa vontade, exclusivamente, matá-los-íamos todos, livrando o Império dessa casta de miseráveis corruptos!... E doaríamos as províncias todas, sem excepção, juntamente com os exércitos e seus odientos generais, aos nobres cavaleiros romanos que sejam leais ao trono, como vós!... – e abraça o jovem, efusivamente.
– Oh, obrigado, domine!... – diz o rapaz, altamente emocionado. E emite profundo suspiro. Agora sabia que estava a salvo sob a protecção de Nero.
Quem teria a mão suficientemente longa para alcançá-lo ali?
* * * * * * *
Fremindo de ódio, o jovem Flavius Antoninus estaciona sua biga diante da mansão de Iulius Maximus. O mordomo, solícito, corre até ele.
– Sede bem-vindo, domine!... – exclama o homem, pondo-se de joelhos e lhe beijando, respeitosamente, a mão.
– Depressa, conduze-me até o teu amo!... – diz Flavius, rispidamente.
– Nosso senhor não se encontra em casa, domine!... – responde o mordomo. – Saiu há poucas horas, muito apressado e carregando uma bagagem...
– Ah, fugiu, então, o maldito!... – explode o rapaz, crispando a palma da mão sobre o punho da espada que trazia à cinta. – Diz-me, homem, sabes para onde ele foi?
– Não, domine!... – responde o mordomo. – Nosso amo nunca nos diz aonde vai!
– Miserável!... – exclama o rapaz, rilhando os dentes. – Mas, eu te encontrarei, mesmo que seja no Avernum!...89
Ligeiro, o rapaz salta sobre o corro e, aos berros, incita a fogosa parelha de garbosos corcéis brancos, que dispara de imediato. Enquanto conduzia, celeremente, o carro pelas esburacadas vielas dos pobres arrabaldes de Roma, Flavius cogitava sobre o paradeiro de seu desafecto. Não seria difícil descobrir onde é que se entocara o miserável. De súbito, freia, bruscamente, a biga. Um pensamento desalentador perpassara-lhe a cabeça: e se o maldito já tivesse se escondido sob as asas do imperador?... Escondido no paço imperial, seria quase impossível atingi-lo!... Sente-se desolar. Ia retomar a marcha de volta para casa, porém se lembra de um conhecido, antigo camarada do exército, que ora servia na guarda pretoriana de Nero – a guarda de elite do imperador –, escolhida a dedo por ele mesmo. Lúcius Nigrus, o tal rapaz, era filho de distinta família de patrícios, e ele, Flavius, sabia onde moravam. Resoluto, faz meia volta e se dirige para a residência do amigo. Tinha a certeza de que, se ainda estivesse servindo na guarda, certamente teria acesso a todos os recantos do palácio imperial.
Hora e meia depois, estacionava o carro diante de formosa villa ao sopé do Aventino e teve sorte: Lúcius encontrava-se ali e o recebe de braços abertos:
– Quanto honra receber-te em minha casa, nobre Flavius!... – exclama o rapaz, abraçando, efusivamente, o amigo a quem não via fazia já algum tempo.
– A honra é minha, meu caro Lúcius! – exclama o recém-chegado, correspondendo ao abraço do amigo.
– Quanto tempo!... – diz Lúcius, conduzindo o outro para o interior da casa.
– Sim, faz já quase um ano que não nos vemos!... – concorda Flavius.
Refestelados em confortáveis canapés, no peristylium, principiam a conversar:
– Mas, diz-me a que viestes!... – pergunta Lúcius. – Sei que não foi somente para ver-me!... noto que estás um tanto nervoso e abatido!
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:21 pm

– Agora vejo como o exército fez-nos bem, pois além de transformar-nos em excelentes guerreiros, aguçou-nos o espírito, tornando-nos bastante perspicazes!... – diz Flavius, apertando forte o braço do amigo. – Acertaste!...
Encontro-me deveras atormentado pela ocorrência de gravíssimos fatos em minha vida... – e passa a narrar, minuciosamente, ao antigo companheiro de armas a tragédia ocorrida no dia anterior.
– O que me dizes é terrível, meu amigo!... – observa Lúcius, muito entristecido. E prossegue, cheio de amargura: – Não sabes o quanto me dói servir na tropa de elite daquele doido!... E quero que saibas que faço isso às instâncias de papai, que é grande fornecedor de provisões para o exército e depende da benevolência do imperador para continuar nesse negócio que, como deves imaginar, é muito lucrativo!... Não fora isso, eu não caria nem mais um só dia a ter de ver as fuças daquele depravado ridículo!... Mas, fica sossegado, que tenho acesso a todas as dependências do paço imperial e, se o miserável que assassinou, covardemente, o senador Pisanus e te feriu, gravemente, a noiva lá se encontrar entocado, eu descobrirei!
De volta para casa, Flavius remoía-se de ódio contra seu desafecto. Se Lúcius Nigrus realmente o encontrasse, no paço imperial, sob a custódia de Nero, não lhes seria difícil idearem um plano e atraírem o miserável para uma armadilha e o fazerem pagar pelos crimes. Seria perda de tempo denunciá-lo aos magistrados, pois estes não passavam de uma súcia de bandidos, nomeados pelo próprio imperador!... Que justiça poderia esperar daquele covil de lobos, sempre sanhudos, à espera de uma presa?... Onde é que andava o múnus público, que tanto engrandecera a Roma de antanho, proporcionando a Justiça e o Direito a todos os cidadãos,
independentemente da classe social a que pertenciam?... Outros tempos eram aqueles... Agora, quem realmente desejasse justiça, era preciso fazê-la com as próprias mãos!
Em casa, Flavius lembra a situação em que se encontrava sua amada Susanna, e as lágrimas vêm-lhe aos olhos. Que tragédia!... Ela sequer sabia da morte do avô!... Nem tivera condição de assistir-lhe aos funerais!...
Quando acordasse do coma – se é que acordaria! –, sofreria, imensamente, a perda do avô a quem tanto amava!... “Ah, Iulius Maximus, miserável covarde!..., pensa o rapaz, esmurrando, violentamente, a parede de seu cubiculum. “Tu sentirás o peso de minha mão!...”, e os soluços sacodem-no, insistentemente.
* * * * * * *
Terminadas as exéquias de Cornelius, e após lhe haverem sepultado o corpo no magnífico jardim de sua mansão, Caius e Drusilla Antónia encarregaram-se de transportar Susanna – que ainda permanecia inconsciente – para a casa deles, pois, assim, teriam condição de prestar assistência intensa à pobre enferma. Drusilla Antónia, qual mãe desvelada, não deixava a cabeceira da jovenzinha que, apesar dos intensos cuidados que lhe dispensava o médico Sempronius, nenhum resultado positivo demonstrava.
Fazia já uma semana que a tragédia acontecera e Susanna não dava nenhuma mostra de retornar à razão. Caius e Drusilla Antónia, então, resolveram apelar aos préstimos do bom Rufus e, como haviam se afastado, temporariamente, das actividades que desenvolviam ao lado do missionário cristão, na assistência aos doentes e aos órfãos, surpreendidos que foram pela terrível tragédia que vitimara os amigos Cornelius e Susanna, ora retomavam contacto com os amigos do templo cristão e solicitavam auxílio para a doente.
Pouco tempo depois, rufus assomava à porta do luxuoso aposento onde a jovem patrícia jazia quase sem vida, com as feições totalmente desfiguradas pela inclemente pancada que lhe desferira o tresloucado primo. O missionário cristão olha, demoradamente, para a jovenzinha e, condoidamente, levanta as mãos ao alto e brada, com a voz carregada de forte emoção:
– Oh, sublime Mestre Jesus!... Dignai-vos a olhar para as misérias deste mundo cruel!... Vede, Senhor, o que a maldade dos homens fez a esta criança!... Derramai sobre ela a Vossa Luz!... Devolvei-lhe a saúde, restituí-lhe a razão! – e estende as mãos sobre o rosto de Susanna que, ao leve toque da ponta dos dedos de Rufus, emite leve gemido e se agita no leito. Drusilla Antónia e Caius entreolham-se, maravilhados. Era a Força do Amor Crístico manifestando-se ali, em seu lar, pela segunda vez.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:21 pm

O missionário cristão continua a estender as mãos sobre a jovem que, paulatinamente, foi readquirindo as cores habituais e, ao longo de pouquíssimos minutos, abre os olhos e os corre, muito espantada, em redor.
– Drusilla!... Caius!... – exclama ela, já retomando a completa lucidez. – Que faço aqui em vossa casa?... Quem são essas pessoas?...
– Oh, meu bem!... – diz Drusilla Antónia, abraçando-a carinhosamente. – É uma longa história que te contarei em seguida!... – e, beijando-a, ternamente, à testa, prossegue: – Por ora, é bom que descanses um pouco mais!...
Sentindo muito sono, Susanna não reluta e se deixa levar pela doce tranquilidade que dela se apodera. Em pouquíssimo tempo, ressonava em paz como se jamais houvesse sofrido a terrível agressão.
– Deixem-na dormir, por ora – observa Rufus, serenamente, em voz baixa. – E, quando despertar, dêem-lhe de comer. Sobre os infaustos acontecimentos, contem-lhe aos poucos. A pobrezinha já sofreu demais... – e sai depressa, sem esperar pelos agradecimentos efusivos que, certamente, adviriam.
E, enquanto Susanna dormia, Caius e Drusilla Antónia observavam, estarrecidos, que o terrível hematoma que tomava todo o lado direito do rosto da pobrezinha desfazia-se como por encanto, dando lugar à delicada pele que o rostinho possuía antes da agressão.
– Ainda tens alguma dúvida se foi Júpiter Capitolinus ou Jesus que me devolveu a vida, minha cara?... – pergunta Caius, olhando nos olhos de sua mulher, em tom de brincadeira.
– Nenhuma dúvida, meu amor!... – responde ela, tomando as mãos do marido. E, abrindo um terno sorriso, repete: – Nenhuma dúvida...
Agora, só restava darem à pobrezinha a triste notícia da tragédia que vitimara o adorado avô!... Mas, só o fariam, assim que ela estivesse mais fortalecida. Ela era jovem e, certamente, suportaria mais aquele terrível golpe que lhe dava a vida, tão precocemente. Porém, eles estariam ali, ao lado dela, cobrindo-a de carinho e de atenção. O amor não era capaz de suprir todas as de ciências?...
O dia avançava, e ambos saem, pé ante pé, felicíssimos. Na soleira da porta, voltam-se e olham para a jovenzinha que dormia tranquilamente.
Como haviam sonhado ter uma lha!... Agora tinham uma!... Que mais lhes faltaria para coroar a felicidade?
____________________________________________________________________________________
88. Actual Nápoles, ao Sul da Itália.
89. Inferno, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 08, 2024 7:22 pm

Capítulo 9. Roma em chamas
Depois que deixara a casa de Lúcius Nigrus, Flavius sentia-se um pouco mais aliviado do terrível incêndio que lhe devastava o peito, pois, com a ajuda do amigo, vislumbrava alguma possibilidade de deitar as mãos no miserável que lhe destruíra os sonhos de casar-se e de ter uma vida feliz e aprazível, ao lado da eleita de seu coração. Agora, conduzia seu carro com menos violência pelas ruelas dos miseráveis arrabaldes, em direcção da villa do general Tarquinius. Sabia que haviam transportado Susanna para lá, a m de lhe dispensarem melhor tratamento. Caius e Drusilla Antónia eram pessoas altamente confiáveis e, doravante, seriam os pais adoptivos de sua noiva. À lembrança da mulher amada, seu peito freme de emoção. Como era tocante vê-la com o rosto todo desfigurado, vítima da brutalidade daquele desgraçado!... Ah, maldito cão infernal!... Não quisera aceitar a derrota e se vingara da forma mais vil e abjecta, assassinando, covardemente, um velho indefeso e descarregando sua fúria bestial sobre uma donzela frágil como era Susanna!... Somente um monstro como Iulius para executar tais barbaridades!... “Desgraçado!...”, murmura Flavius, entre dentes, enquanto fustiga os fogosos cavalos, estalando o chicote no ar. “Não sossegarei, enquanto não te sentir tremer, dando o último suspiro, na ponta de minha espada!...”
Ao saltar do carro, pouco tempo depois, diante da esplêndida mansão do general Caius Petronius Tarquinius, Drusilla Antónia vem recebê-lo à soleira do vestibulum.
– Oh, que bom que vieste, querido Flavius!... – diz a matrona, abraçando o rapaz e o beijando, respeitosamente, à face. – mandei que te avisassem em tua casa, mas não te encontraram!
– Não vais me dizer que Susanninha piorou!... – exclama o rapaz, de repente, empalidecendo.
– Oh, não, bobinho!... – diz Drusilla Antónia, puxando-o, cortesmente, pela mão. – Pelo contrário!... Vem tu mesmo conferir!...Ao deparar-se com a jovem que, recostada sobre confortável canapeum, banhava-se, langorosamente, nos esplendorosos raios do sol que penetravam pelo compluvium90 do centro do atrium onde descansava, recobrando as forças, depois do terrível incidente com Iulius, Flavius mal crê no que seus olhos vêem.
– Susanna!... Meu amor!... – grita ele, correndo a abraçá-la.
– Tu?!... – exclama a jovenzinha, cheia de felicidade. – Ah, onde é que te encontravas, maroto, que não te achavam?
– Oh, Susanna!... – diz ele, abraçando-se a ela e a beijando, afoitamente, aos olhos, à boca, ao rosto, aos cabelos, como se fosse, de repente, devorá-la, de tanta paixão.
– Doido!... – diz ela, rindo-se, espantada com a tremenda manifestação de alegria que ele lhe demonstrava. – Desse jeito, farás comigo o que aquele peste não conseguiu!... – brinca ela.
– Oh, meu amor, meu amor!... – repete ele, olhando-a e a beijando sem cessar. – Tu estás bem!... Tu voltaste para mim!...
Caius, que para ali acorrera, ao ouvir a efusão da alegria do reencontro dos jovens, abraçara-se a Drusilla Antónia e, divertidamente, olhavam ambos para o casal de namorados e se riam com a manifestação de júbilo de Flavius.
– Cuida para não estragá-la de novo, meu rapaz!... – brinca o general, diante da veemente demonstração de amor que o jovem dedicava à sua eleita. – Nem imaginas o que nos custou pô-la de pé!
Somente após ter o fogo da saudade abrandado é que Flavius dá-se conta da extraordinária e rápida recuperação de Susanna.
– Dizei-me, general Tarquinius – pergunta ele, intrigando-se –, a que se deveram a rapidez e a perfeição da recuperação de Susanninha?... Ainda ontem ela se encontrava sem sentidos e com o rosto em lastimável estado, inchado e cheio das marcas da violência daquele desgraçado!... Como se explica isso?
Caius e Drusilla Antónia entreolham-se. Será que o rapaz teria condição de entender a grandeza daquilo?– Flavius, meu lho – diz, paternalmente, o general. – Deixa Drusilla Antónia tomando conta de tua Susanna e vem comigo até a exedra. Lá te explicarei tudo.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 09, 2024 9:46 am

Sentados em confortáveis cadeirões, na sala particular do general, a conversa prossegue:
– Sei que percebeste que a cura de Susanna não se deu pelos processos normais – diz Caius, encarando o jovem que o ouvia sério, acostumado que era a proceder assim, posto que servia ao general como ordenança e o amava e respeitava como a um pai. E, firme e objectivamente, como era de seu costume, o velho militar prossegue: – Ocorreu um facto aqui, ontem, e tu, como noivo de Susanna, tens o direito de saber!... – e, momentaneamente, cala-se, para recobrar-se da emoção que já principiava a embargar-lhe a voz.
E, depois de respirar fundo algumas vezes, prossegue: – Pois bem, meu caro, Jesus curou-a!...
O rapaz olha para o general com os olhos arregalados de espanto. Com a tragédia, esquecera-se de que seu comandante tornara-se cristão e que, doravante, Susanna, sendo sua tutelada, estaria também sujeita àquele tipo de influência.
– Mas, general, tendes certeza de que assim ocorreu?... – pergunta o rapaz, receoso de ferir a susceptibilidade de seu superior. – Não poderia ter sido outra coisa?... A fama dos cristãos não é nada boa e...
– O que dizem sobre os cristãos é tudo mentira!... – atalha o general de forma enérgica. – Espalharam uma série de boatos infundados, com a única finalidade de injuriar e suscitar perseguições gratuitas a essa gente que só tem feito o bem!... Ora, Flavius!... – prossegue o general, in amando-se. – tu me conheces há quanto tempo?... Não tens convivido comigo, na dureza dos campos de batalha?... Ter-me-ias, acaso, à conta de mentiroso?
– Por vós, empenho minha honra e minha vida, senhor!... – diz o rapaz, baixando a cabeça, envergonhado.
– Então, se te digo que Susanna foi merecedora de um milagre, directamente recebido das mãos de Jesus, digo-te que assim foi!... O Deus dos Cristãos curou-a!... E isso não te basta para crer?... E não me viste, também, à beira da morte, dias atrás?... Como explicas a minha recuperação tão rápida?...
– São coisas que não entendo, senhor!... – diz o rapaz, com os olhos rasos de lágrimas. – Entretanto, não gostaria de ver minha Susanna ligada a essa seita!... Amo-a por demais e vos pediria que deixásseis a ela escolher!
– Susanna veio para esta casa porque estava muito enferma e porque seu avô, meu insigne companheiro de tanto tempo, foi covardemente assassinado por um infame tresloucado!... Entretanto, ela é livre e livre será para ficar ou se ir, se esse for o seu desejo!... Apenas, que a derradeira vontade de Cornelius foi – se é que tu ainda não sabes! – que sua neta casse sob a nossa tutela até o seu casamento!
– Oh, desculpai-me, senhor!... – diz o rapaz, altamente arrependido do que dissera.
– E outra coisa: ela ainda não sabe sobre a tragédia que vitimou o avô!... – diz o general, levantando-se. – Esperávamos contar-lhe mais tarde, assim que se fortalecesse um pouco mais; entretanto, se fazes tanta questão de levá-la contigo, terás também essa terrível incumbência!... Só que, se ela, eventualmente, piorar, não me venhas devolvê-la para que Jesus a conserte para ti outra vez!... Seria bom tentares Júpiter Capitolinus... – e arremata, saindo da exedra: – Esse, garanto-te que não te envergonhará diante de Roma!...
Pouco depois, o rapaz retorna para junto de Susanna, um tanto desenxabido. A mocinha encontrava-se a sós, ainda no atrium.
– Voltaste meio sem-graça do colóquio que tiveste com o general... – diz ela, notando-lhe o desencanto que lhe ia ao semblante, momentos antes, tão cheio de alegria.
– Não é nada, meu amor!... – diz ele, tomando-lhe a mãozinha e a beijando, apaixonadamente. – Apenas, que reflecti mais seriamente sobre o quão te encontravas doente e como te recuperaste tão depressa!...
– Mas, isso não é motivo para ficares assim triste!... – diz ela. – Acho que existe algo mais sério por trás disso...– Não, não há nada!... – apressa-se ele em dizer. – Garanto-te que não há nada de errado comigo!... Fica tranquila!...
– Insisto: há algo que me intriga, meu querido! – diz ela, olhando firme nos olhos dele. – Por que me encontro aqui e não em minha casa?... E vovô, por que não vem me visitar?... Minha cabeça encontra-se ainda um pouco confusa... Lembro-me, vagamente, de como tudo aconteceu; recordo-me de Iulius Maximus, extremamente colérico, a gritar-me impropérios e depois, segurando-me, fortemente, pelo braço, dá-me forte soco ao rosto e...
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 09, 2024 9:46 am

– Ora, meu amor! – atalha ele. – Não é bom ficares relembrando tais coisas!... Procura descansar... – e, atraindo-a, docemente, ao peito, passa a acariciar-lhe os revoltos cabelos cor de mel. – Já sofreste tanto por causa daquele pulha...
– Estou tão confusa, meu amor... – murmura susanna, quase inaudivelmente, e ele sente que grossas lágrimas brotavam dos olhos dela.
– Oh, estás chorando!... – exclama o jovem, afastando a cabeça dela do peito e a fixando no rosto. – Por que estás chorando, minha linda?...
Ela nada lhe responde. Apenas uma sucessão de soluços acomete-a, sacudindo-a, violentamente.
– Oh, Susanna!... Susanninha!... – exclama ele, abraçando-a mais fortemente. – Não há mais nada!... Tu já te encontras fora de perigo!... Como me afirmou Drusilla Antónia, Sempronius já te examinou, detalhadamente, e nada mais encontrou de anormal em ti e que pudesse trazer-te algum mal!...
Tu estás curada!...
A jovem continuava sem nada responder. Preocupado, Flavius constatou que ela agia de modo diferente do que costumava ser antes do incidente com Iulius. A vivacidade e a loquacidade que lhe eram tão peculiares davam lugar a um estranho mutismo melancólico, sensível, e ganhara, às feições, um ar de resplendente bonomia e os gestos, antes nervosos e agitados, agora os trazia cheios de comedimento e de suavidade.
– Flavius... – diz ela baixinho. – Posso perguntar-te algo, e juras que me dirás a verdade?– Sim, meu amor... – responde ele, cheio de ternura. – Pergunta o que quiseres...
– Vovô está morto, não está?
Ele não responde de imediato. Apenas, aperta-a mais fortemente ao peito e lhe beija o alto da cabeça, repetidas vezes. Como ela reagiria à verdade?...
Mas, prometera dizer-lhe a verdade e, depois de engolir em seco por diversas vezes, dá-lhe a triste notícia:
– Sim, meu amor!... Teu avô já se foi...
Susanna afasta a cabeça do peito de seu amado para poder olhá-lo nos olhos.
– Diz-me, querido, como foi?...
Flavius titubeia. Como iria dizer-lhe que Iulius houvera assassinado Cornelius?... Ela continuava olhando-o, com os grandes olhos marrom amendoados, inchados pelo choro, na expectativa da resposta.
– Iulius matou-o... – diz Flavius, de uma só vez, e a abraça forte, como se quisesse absorver para si todo o ardor daquela terrível punhalada.
– Oh, não!... – exclama ela, desmanchando-se em lágrimas. – Por que ele teve de fazer isso?
Por longo tempo Susanna e Flavius choraram abraçados. A perda de Cornelius para eles era insuperável. Amavam o bom velhinho, de coração, e contavam tê-lo, ainda por muito tempo, apesar da terrível doença que o carcomia, inclemente. Quando perceberam, a noite já havia caído, e Drusilla Antónia vinha chamá-los para a cena.
– Poupávamos-te sobre a morte de Cornelius, minha querida, para que não sofresses ainda mais!... – diz Drusilla Antónia a Susanna, enquanto a ajeitava num canapeum ao lado de Flavius, já no triclinium, prontos para a cena.
– Sim, querida – completa Caius –, víamos-te ainda tão debilitada e não te queríamos dar mais esse terrível golpe!
– E eu me precipitei a dar-te tal notícia!... – desculpa-se o rapaz. – eu já desconfiava de que algo de errado havia acontecido com vovô e, cedo ou tarde, acabaria sabendo, meu querido – diz ela, demonstrando uma tranquilidade que impressionava a todos. – Não se mortifiquem por isso!...
Hoje creio, sem sombra de dúvida, que meu adorado avô encontra-se feliz ao lado de seus parentes e amigos, do outro lado da vida!...
Drusilla Antónia e Caius entreolham-se, espantados com as palavras da mocinha. Já haviam notado que ela saíra diferente do terrível acidente pelo qual passara, mas surpreendia-os cada vez mais com as novas ideias que apresentava.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 09, 2024 9:46 am

– General Tarquinius – diz ela –, sei que vos tornastes cristão, convencido pelo milagre que recebestes das mãos de Rufus, o homem que trouxestes aqui para curar-me também!
– mas, como sabes que te trouxemos Rufus?! – pergunta, espantada, Drusilla Antónia. – Nada te dissemos sobre isso!
– Sim – concorda o general, admiradíssimo com o fato. – Pouquíssimas pessoas aproximaram-se de ti, além de mim, de Drusilla, de Sempronius, o médico que de ti cuidou, e de uma escrava que é muda!... Ninguém mais!...
Impossível que soubesses tal coisa!... Além disso, passaste todo o tempo sem sentidos!
– Mas, alguém me revelou, sim, general – diz a moça, com um sorriso de satisfação aos lábios. – Alguém muito especial revelou-mo!...
– E quem te contou que foste curada pelos cristãos, se ninguém mais falou contigo, senão nós, os da casa, e proibimos os servos de tocarem no assunto? – observa Drusilla Antónia, estranhando o facto. A jovem permaneceu calada por instantes, tomada de forte emoção, e depois, com lágrimas aos olhos, prosseguiu:
– Um enviado de Jesus contou-me!...
Drusilla Antónia e Caius olham-se, espantados e cheios de emoção.– Conta-nos, minha lha – apressa-se em dizer o militar. – Consegues lembrar-te de como foi?
– Sim, general – responde ela, e prossegue com segurança: – Até então, de nada eu tivera consciência; havia apenas escuridão e o vazio, em minha alma. De repente, senti alguém me tocar, com extrema leveza, à testa, com a ponta dos dedos, e chamar pelo meu nome. Ao abrir os olhos, deparei-me com um rosto magnificentemente nimbado de luz que me sorriu, bondosamente, e depois me disse: “Susanna, desejo que voltes, imediatamente, para a tua casa!...” Eu, então, perguntei-lhe: “Quem sois, senhor?” Ele me olhou, com um par de olhos inesquecivelmente azuis, e me respondeu: “Meu nome não importa!... Importa que Jesus mandou que eu te curasse!... Agora, vai e dá testemunho do poder que tem o Deus vivo!...”
Susanna cala-se, extremamente emocionada. As lágrimas descem-lhe, abundantes, dos olhos. O rapaz, altamente comovido pelo estado em que encontrava a amada, levanta-se a enlaça, amorosamente, aos braços.
– Oh, Susanna!... – exclama ele. – Tens certeza de que não sonhaste tudo isso?... Não te deixes levar por fantasias!...
– Não são fantasias, meu caro! – exclama ela, olhando-o, firme, nos olhos. – Depois que me encontrei com o enviado de Jesus, disso não consigo mais me esquecer!... Sua voz magnífica, seus olhos fantásticos e suas palavras seguem-me, insistentemente, desde então!
– Oh, esses malditos cristãos enfeitiçaram-te, meu amor!... – exclama o rapaz, desesperando-se.
– Não digas tal absurdo, Flavius!... – brada ela, arrostando-o, cheia de indignação. – Se repetires essa barbaridade, deixo-te, imediatamente!
– Far-me-ias tal despropósito?!... – diz ele, altamente melindrado pelas palavras da noiva. – Trocar-me-ias por esse Carpinteiro Judeu?!...
– Sem titubear um só instante! – diz ela, resoluta.
Desesperado, o rapaz olha para Caius e para Drusilla Antónia que se mantinham calados, apenas observando o desenrolar dos factos.
– E vós, o que dizeis sobre isso?... – pergunta ele, altamente confuso.
– Já conheces o nosso ponto de vista, meu rapaz – observa o general. – Susanna é livre para escolher seu caminho...
– Olha, meu amor – diz ele, nervosamente, ajoelhando-se ao lado do canapeum da amada. – Ainda outro dia, disseste não acreditar nesses fanáticos cristãos e que achavas mesmo que quem havia curado o general Tarquinius era Júpiter Capitolinus, não esse... esse...– Jesus!... – atalha ela, séria. – E me lembro, perfeitamente, do que eu disse. Mas, isso foi antes, Flavius!... Agora, mudei de ideia!...
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 09, 2024 9:46 am

– Estás mesmo enfeitiçada!... – exclama o rapaz, consternado, e, meneando a cabeça, deixa-se sentar, pesadamente, em seu canapeum. – Que farei para tirar essas ideias malucas da tua cabeça?
– Benditos feiticeiros, então, esses que nos devolvem a saúde, instantaneamente, e nos abrem os olhos, fazendo-nos ver o quanto caminhávamos por sendas tortuosas e cheias de escolhos!... – exclama a jovem, de forma decidida.
Flavius olha-a, ainda mais espantado. Susanna jamais fora dada àquele tipo de conversa.
– Oh, meu bem!... – diz ele, tentando demovê-la daquelas ideias. – Acho que aquele maldito bateu com demasiada força à tua cabeça!... Só pode ser essa a explicação!... Esses cristãos ignorantes não poderiam ter posto essas coisas em teu coração, assim tão depressa!... Tu ainda tens o cérebro afectado!
– Não, meu amor! – diz ela, com segurança. – Se ainda me amas, deves acreditar em mim!... Ninguém me meteu nada à cabeça!... Nem precisou!...
Jesus curou-me, eu tenho certeza disso, como curou também o general Tarquinius!... Só tu não consegues enxergar isso!...
Flavius levanta-se e se põe a caminhar pela sala. Notava-se que se encontrava grandemente preocupado com a mudança que a noiva apresentava. Se teimasse em levá-la dali, certamente ela resistiria, desejando permanecer com seus tutores e amigos. E, além do mais, o general já havia demonstrado grande contrariedade pelo fato de ele, Flavius, não aceitar os cristãos!... Agora, Susanna perdia-se também nessas esquisitices!... Se a noiva permanecesse ali, seus tutores, agora fanáticos cristãos, iriam meter-lhe mais doidices à cabeça!... Que faria?... A dúvida invadia-o, atrozmente.
Precisava pensar rápido. Era bem capaz de perder Susanna, se persistisse num ponto de vista assim tão radical. Só havia uma solução: casar-se com ela, o mais rapidamente possível. Uma vez casados, mantê-la-ia longe, quem sabe em Neapolis, junto da mãe e do avô, e sua amada, então, bem depressa, esquecer-se-ia do tal Judeu Carpinteiro. Sim, essa era a melhor solução. Bem depressa, muda de atitude e se volta para a noiva:
– Ora, como sou estúpido, meu amor! – exclama ele, ajoelhando-se ao lado dela e, tomando-lhe a mão, beija-a, repetidas vezes. – Tu te encontras ainda tão frágil, e eu te colocando num impasse assim tão difícil, exigindo-te coisas!... Perdoa-me, meu bem!... sou um imbecil!...
– Ficaste preocupado, meu querido!... – diz ela, sorrindo-lhe, meigamente. – Apenas isso!... tu te preocupaste em demasia comigo!... Mas, tranquiliza-te!... Estou bem!...
Entretanto, a ligeira mudança de comportamento que o rapaz passa a apresentar não passa despercebida de Caius, tão experiente era ele nas lides com as pessoas. O esperto general troca longo e significativo olhar com a sua esposa que também percebera tudo. Sabiam que o jovem, no íntimo, não aceitara nada; apenas, fingia conformar-se. Porém, Susanna, dada à sua inexperiência com as pessoas ou porque amasse, perdidamente, o rapaz, nada percebeu e emite sentido e fundo suspiro de alívio, quando ele a abraçou, fortemente, e a beijou repetidas e apaixonadas vezes aos lábios. Em seguida, Flavius despede-se e sai, prometendo vir vê-la na manhã do dia subsequente.
* * * * * * *
Alguns dias passaram-se, após os tristes acontecimentos que mudaram, radicalmente, a vida de Susanna. Seu noivo vinha vê-la todos os dias e, aparentemente, aceitava o fato de ela pretender tornar-se cristã, seguindo o que faziam seus tutores – Caius e Drusilla Antónia –, e ela, Susanna, até já havia manifestado, abertamente, o desejo de conhecer o templo onde cultuavam jesus. Só não tivera ainda realizado esse desejo, porque não queriam que ela se indispusesse com o noivo. Entretanto, a mocinha era pertinaz em sua vontade e vivia insistindo com os amigos que a levassem, também, quando estes saíam para desenvolver suas actividades de assistência aos órfãos e doentes que se asilavam sob a protecção e o amparo da singela comunidade cristã que Rufus fundara e, incansável e amorosamente, dirigia. Àquela tarde de final de verão, Flavius viera visitá-la, e Susanna estava só, pois seus tutores encontravam-se no templo cristão, em auxílio aos necessitados. O rapaz trazia-lhe novidades.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 09, 2024 9:46 am

– Encontramos Iulius, minha cara!... – diz ele, com a voz tremendo de raiva. – Meu antigo companheiro de armas, Lúcius Nigrus, e que hoje serve na guarda pretoriana, achou-o entocado no paço imperial!... E o desgraçado encontra-se sob as asas de Nero, exactamente, como eu supunha!...
– Oh, meu amor!... – exclama a mocinha, tomando-lhe as mãos e as beijando, fervorosamente. – Suplico-te: nada tentes contra vida de Iulius!...
– Como?!... – espanta-se o rapaz. – Percebes o que me pedes?... Iulius assassinou, bárbara e friamente, teu avô, e tu o perdoas?!... E a ti deixou-te em estado tão lastimável que até hoje não consigo entender como conseguiste voltar ao normal!
– Sei de tudo isso, meu adorado!... – exclama Susanna, com os olhos cheios de lágrimas. – Mas, imploro-te: não manches as tuas mãos com o sangue daquele infeliz!... A própria vida encarregar-se-á de dar-lhe cobro aos malefícios que ele vive fazendo aos outros!...
– Susanna!... – diz o rapaz, olhando-a nos olhos. – Desconheço-te, completamente!... O que me pedes é impossível!... Eu devo lavar a tua honra com sangue!... Esqueces de que esse é o costume?...
– Não, meu amor!... – diz ela, pondo-se de joelhos diante dele. – Penso diferente, agora!... Olha, é preciso perdoar aos nossos inimigos e àqueles que nos perseguem!...
– De onde tiraste tais ideias, minha cara?... – pergunta ele, olhando-a de modo estranho. – Não vais dizer-me que isso são ideias do... daquele...
– Sim, meu querido! – diz ela, segurando as mãos dele e as cobrindo de beijos e de lágrimas. – São ensinamentos de Jesus!...
– Ah, Susanna!... Susanna!... – exclama Flavius, retirando as mãos que ela tanto beijava. – Por certo, enlouqueceste!... Como posso perdoar tais afrontas?... De onde esse Judeu Carpinteiro tirou essas ideias absurdas?...
Onde iremos parar, se sairmos por aí, perdoando a todos que nos fazem mal?... Não percebes o absurdo dessa atitude?... Os maus e delinquentes ganharão força sobre os puros de coração e, então, advirá o caos!...
– Não!... – exclama ela. – Errados estão os conceitos da vingança!... Não percebes que sangue derramado atrai mais sangue?... Quantos casos de vingança tu não conheces que não acabam nunca?... Matam-se, indefinidamente, com a desculpa de se estarem vingando, mutuamente!...
Ou tu achas que, matando Iulius Maximus, não atrairás a ira do imperador sobre ti e sobre nossa casa?... Tu mesmo acabas de me dizer que Iulius esconde-se sob a protecção de Nero!... Sabemos que são amigos!... Queres, acaso, atrair mais desgraças sobre nós?... É isso que realmente desejas, meu amor?
Flavius cala-se. Os argumentos que ela acabava de apresentar-lhe eram fortes demais. Se atraísse Iulius para uma emboscada e conseguisse matar o infame, seria bem possível que Nero ligasse uma coisa a outra e resolvesse desferir uma perseguição contra ele! E, depois de ponderar bastante sobre as palavras da noiva, o rapaz abraça-a, comovido, e diz:
– Acho que tens mais juízo que eu, meu amor!... Se mato Iulius, é bem capaz que o doido do Nero declare-me o assassino daquele desgraçado e então...
– Então, estarás perdido, meu amor! – atalha Susanna, abraçando-o forte.
– Melhor é esquecermos o que passou!... A divina Justiça encarregar-se-á de punir os crimes de Iulius!... E que não seja por nossas mãos, meu amor!...
– Tens razão, meu tesouro! – exclama ele. – Amo-te por demais, para perder-te assim, tão cedo!... – e lhe sela os lábios com ardente beijo.
* * * * * * *
No exacto momento em que ocorria o diálogo entre Flavius e Susanna, no outro lado da cidade, no paço imperial, Nero e Iulius Maximus almoçavam a sós.
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