LUZ ESPÍRITA
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:53 pm

Capítulo 4. Pela primeira vez, Jesus
O carro corria célere pela viela calçada de pedras e ladeada de exuberantes e altíssimos ciprestes verde-escuros e, em suaves ziguezagues, ia descendo o Palatino, onde se localizava o palácio imperial. Lá do alto, avistava-se a cidade que, espreguiçando-se, já se acordava, iluminada pelos fulgentes raios da manhã radiosa. Susanna Procula deliciava-se com a fresca brisa matinal a fustigar-lhe o rosto e a revoltar-lhe os longos cabelos cor de mel, enquanto a biga corria, habilmente conduzida pelo rapaz, que manejava as rédeas com destreza ímpar, ao mesmo tempo em que ia estalando no ar longo chicote, para incitar a belíssima parelha de fogosos corcéis negros que disparavam ligeiros, em desabalada carreira, batendo, ritmicamente, os cascos no calçamento irregular de pedras do caminho. “Abraça-te a mim, firme, para não caíres”, dissera-lhe ele, antes, ao tomarem o carro. “Em pouco tempo, deixar-te-ei sã e salva em tua casa!...”
Fortemente abraçada ao desconhecido, Susanna sentia-se estranhamente feliz. Amiúde, olhavam-se com o canto dos olhos e se riam contentíssimos.
Ele, por estar conduzindo preciosíssima carga em seu carro; ela, por estar ali, fortemente jungida àquele rapaz que, além de forte e musculoso, era dono de admirável beleza. E, com que naturalidade ela se agarrava a ele, enquanto o carro descia, celeremente, a viela cheia de curvas, em direcção da cidade!
Para Suzanna, foi inevitável a comparação de Flavius antoninus com Iulius. “Engraçado, nunca senti por Iulius o que sinto por este!...”, pensa ela, reconhecendo que se sentia atraída pelo rapaz que a salvara de situação tão difícil. “Não fosse por ele, ainda estaria perdida no bosque do paço imperial!... Deste, gosto do olhar, da voz, do sorriso!... Gosto de tudo, gosto até do cheiro dele!...” e, aproximando mais o rosto do fortíssimo dorso do rapaz, aspira-lhe o perfume. E ele, então, percebendo que ela se lhe recostava mais às costas, volta a cabeça e lhe sorri cheio de paixão. E Susanna permanece assim, mais colada, ainda, ao corpo do rapaz. “Que diferença de Iulius que, às vezes, irrita-me, com seu jeito mandão e prepotente!...”, pensa ela. “E, além do mais, tem um cheiro que não me agrada muito!...” O carro agora já percorria as estreitas ruas da periferia da cidade que, paulatinamente, ia enchendo-se de pessoas que caminhavam ligeiras, em direcção das actividades que as aguardavam, na própria cidade, ou nos campos e vilas adjacentes.
Quando se está feliz, o tempo voa. Susanna nem percebeu a enormidade da distância que haviam percorrido e foi com certa consternação que viu o carro estacionar diante da mansão de seu avô. Um tanto relutante, ela retirou os braços que, tão deliciosamente, trazia envolvidos ao corpo do rapaz. Ele também emitiu fundo suspiro de desolação, e uma intensa sensação de frio, de vazio, tomou-lhe a alma.
– Vem, que te apresento a meu avô!... – diz ela, quando ele lhe deu a mão, para ajudá-la a saltar do carro. – Ele cará feliz em conhecer-te!...
– Não sei se devo!... – diz ele, reticente. – Ainda é tão cedo!..
– Oh, vovô é um madrugador nato!... – diz ela, com os olhos brilhantes de expectativa. – E, a esta hora, já deve se achar no triclinium, comendo o ientaculum!...50
– Por onde andaste até a essa hora, menina?... – exclama Cornelius Helvetius, tentando ralhar com a neta que, como sempre, entrava intempestivamente no triclinium, onde ele, recostado num canapeum, principiava seu desjejum.
– Adivinha quem eu trouxe para conhecer-te, vovô!... – exclama ela, exibindo, orgulhosa, o desconhecido rapaz.
Cornelius olha espantado para o jovem que, um tanto envergonhado, adentrava o triclinium.
– Flavius Antoninus!... – exclama ela, tomando a mão do rapaz. – Salvou-me de ser devorada pelo leão de Nero, ontem à noite!
– Que dizes?!... – espanta-se o velho senador, empalidecendo ainda mais do que já lhe era natural. – Onde é que foste te meter, menina?!...
– Oh, explico-te, vovô!... – exclama ela, rindo-se. E, arrastando o rapaz pela mão, diz-lhe: – Senta-te aí e come connosco!... Não estás faminto?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:53 pm

Apanhando um grande pedaço de pão, Susanna untou-o de mel e o passou ao rapaz. Em seguida, preparou outro para si, não menor que o anterior, e enquanto comia com acentuado apetite, principiou a relatar ao avô, com riqueza de detalhes, a terrífica experiência da noite anterior.
Durante a esdrúxula narrativa da neta, Cornelius emitia uma série de exclamações de espanto e, estarrecido, passeava o olhar, da jovem, para o desconhecido rapaz, que comia calado e cheio de apetite, e apenas se limitando a olhar para o velho, com um par de olhos marrons cheios de bonomia.
– O imperador enlouqueceu!... – exclama o senador, levantando-se e se pondo a caminhar, enquanto falava, gesticulando muito. – Começo a temer pelos destinos do Império!... Onde já se viu cometer tais barbáries, indignas de um soberano de Roma?... Que ande a assassinar, desavergonhadamente, os seus inimigos políticos, suas esposas e até mesmo a mãe e os parentes, para manter-se no trono, vá lá, mas daí a atiçar feras sanhudas em gente indefesa já é sinal de iminente loucura!
– Vovô, não imaginas a que extraordinários combates assisti no paço imperial!... – exclama a jovem, dando pouca importância ao que falava o avô. – O próprio imperador conduziu o espectáculo!...
– Nero supera-se!... – exclama o velho, levantando ambas as mãos, em patente demonstração de escárnio. E prossegue, extravasando sua indignação: – E o que é pior: arrasta atrás de si a juventude, a na flor romana, que lhe segue os desvarios!... Oh, Susanna, jamais poderia supor que andavas a frequentar o paço, indo às festas daquele doido!...
– Iulius levou-me, vovô!... – exclama a jovem. – Eu andava louca para participar de um convivium de Nero!... Oh, havia tanta gente bonita, tanto esplendor, que jamais poderás imaginar!...
– Posso, sim, minha cara!... – contesta o velho, em tom de censura. – Posso, sim, imaginar a carrada de descaramentos e de impudência que presenciaste naquele lugar!... Oh, Susanna, desejei tanto que jamais viesses a pôr os pés naquele antro!... Mas, o traste de teu primo, malgrado as minhas instâncias e a minha resistência, está a arrastar-te à lama onde ele costuma chafurdar!...Flavius Antoninus mantinha-se quieto no seu canto, a roer grossa fatia de queijo de cabra e a observar atento o desenrolar do colóquio entre o avô e a neta. A desenvoltura, a graça e a beleza da jovenzinha encantavam-no, e ele se sentia magnetizado, preso àquele rosto de tez acentuadamente clara e ligeiramente a lado, de traços nobres, com os lábios bem delineados, sempre abertos num sorriso de satisfação e de jovialidade, em que exibia os dentinhos brancos e bem torneados; os olhos marrom-claros, sempre vivazes e brilhantes, passeavam alegres pelo ambiente e atentos a tudo que a cercava. O rapaz encantava-se e cava boquiaberto, seguindo-a com os olhos, sem lhe perder um mínimo movimento.
– E tu, meu rapaz, também lá estavas?... – pergunta Cornelius, deixando-se sentar, pesada e desanimadamente, no canapeum, e emitindo fundo suspiro de desolação. Só agora é que realmente reparava, com acentuada atenção, no rapagão que a neta arrastara consigo, ao adentrar, intempestivamente, o triclinium. – A propósito, não me lembro de tê-lo visto antes...
– Oh, ele é Flavius Antoninus!... – apressa-se Susanna em responder ao avô. – Como já te disse, salvou-me do leão de Nero!
– Por Hecate Infernal!... – exclama o velho, altamente agastado. – Como é que aquele doido lança leões sobre donzelas indefesas, assim, a torto e a direito?!... Ninguém toma providências acerca disso?
– Deixai-me explicar-vos, senador Pisanus – diz, gentilmente, o rapaz. – Primeiro, que me apresente: Flavius Antoninus Rimaltus, actualmente, servindo no exército do império e sob o comando do general Caius Petronius Tarquinius...
– Não me digas que és parente de Lucius Antoninus Rimaltus!... – atalha o velho, agora altamente interessado no rapaz.
– Sim, sou neto dele!... – diz, orgulhoso, Flavius Antoninus.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:53 pm

– Oh, que imenso prazer em ter-te aqui, meu rapaz!... – exclama Cornelius, abraçando, efusivamente, o jovem. – Que alegria ver alguém da família de Lucius Rimaltus!... Diz-me, ainda morais em Neapolis?
– Sim, moramos no mesmo lugar: a villa ao pé do Vesuvium! – Que saudade de meu velho companheiro de lutas!... – exclama o velho, contentíssimo por rememorar tempos que lhe foram muito bons, no passado. – Lucius e eu lutamos no exército, quando jovens, assim como tu, e depois, nomeados por Augustus51, servimos no senado, desde então. Mas, diz-me: como está teu avô?
– Vovô encontra-se razoavelmente bem – responde o rapaz, sempre gentil. – Porém, como a catarata cega-o, lentamente, quase não sai. Mamãe faz-lhe companhia, depois que papai morreu.
– És, então, lho de Caius Longinus – observa o velho senador. – Pelo que sei, teu avô só tinha a teu pai.
– Sim, sou lho único de Caius Longinus, morto na guerra, logo que nasci – explica o rapaz, entristecendo-se de repente. E, depois de instantes, prossegue cheio de orgulho: – Na realidade, educou-me o meu avô, a quem amo imensamente e devo tudo o que sou! – Tiveste, então, excelente educação, meu rapaz!... – exclama, enfático, Cornelius. – Digo-te isto, porque teu avô é uma das pessoas mais dignas que conheço!
Depois de algum tempo, durante o qual relata mais notícias acerca de sua família, Flavius Antoninus levanta-se e se predispõe a sair. Susanna, então, lépida como uma raposa, toma-o pela mão.
– Oh, não te vás ainda!... É tão cedo!... – exclama ela, súplice, olhando-o nos olhos.
– É cedo, mas te esqueces de que não dormimos nada?... – observa ele, mal sofreando um bocejo teimoso.
– Oh, mas promete que virás visitar-nos logo mais!... – diz ela, segurando, insistentemente, a mão dele.
– Sim, prezado Flavius, desejo que tu venhas visitar-nos, amiúde – diz Cornelius, satisfeitíssimo, em ver que a neta se interessava pelo rapaz. – Tua presença aqui será sempre uma honra para nós!
Conduzindo o carro, de volta para casa, Flavius Antoninus ria-se de satisfação. Como ela era linda!... Encantara-se com a jovenzinha e tinha a certeza de que ela também se encantara com ele!... E era neta de um grande amigo de seu avô!... isso facilitaria as coisas, pois nenhuma das famílias opor-se-ia ao relacionamento deles. Felicíssimo, fustigava os fogosos cavalos que disparavam, e o carro rodava veloz pelas estreitas ruas dos arrabaldes cheios de bulício: meninos descalços e queimados do sol corriam vivazes e, aos gritos, perseguiam-se em brincadeiras de pega-pega; mulheres desgrenhadas e sujas voltavam para casa, depois de venderem o corpo à soldadesca que, invariavelmente, infestava as tavernas pelo varar da noite, e vendedores ambulantes de leite, de frutas e de legumes, carregando pesadíssimas cestas de vime à cabeça, apregoavam suas mercadorias em altos brados.
Uma hora depois, Flavius estacionava o carro diante da grandiosa mansão que a família mantinha em Roma. O avô havia morado ali por muitos anos, enquanto tivera forças para exercer o mandato de senador; depois, envelhecera, a saúde debilitara-se-lhe e, como era natural do Sul da Península, resolvera fixar residência em Neapolis. Agora estava ele ali, morando sozinho, pelo menos enquanto durasse o serviço militar; depois, possivelmente, retornaria para o Sul, para viver ao lado do avô e da mãe.
– Ave, domine!... – exclama um criado que, ao vê-lo chegar, corre-lhe ao encontro e, pondo-se de joelhos, beija-lhe, respeitosamente, a mão e lhe pergunta: – Sirvo-vos o ientaculum?
– nada de comidas, Longinus – responde Flavius. E ordena ao servo que passa a segui-lo, enquanto adentra, rapidamente, o triclinium. – Prepara-me um banho.
Pouco depois, no balneum,52 mergulhado em riquíssima banheira de mármore branco, o jovem deleitava-se com o tepor da água que lhe propiciava um delicioso relaxamento dos músculos extenuados e doloridos pelo excesso de horas de vigília. Luta, então, como um desesperado, contra uma atrevida modorra que tenta dominá-lo. Mas, ele quer ficar lúcido, quer ficar envolvido pelas doces lembranças dos momentos que passara ao lado dela. Suzanna Procula... A imagem da mocinha não o deixava. O el servo permanecia a seu lado, calado, cuidando para que ele não dormisse e viesse a afogar-se na banheira.– Estais quase a dormir, domine!... – grita o criado, percebendo que o outro lutava, desesperadamente, para vencer a sonolência que o dominava. – Não seria melhor irdes para o cubiculum?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:53 pm

– Oh, és um idiota, longinus!... – exclama, irritado, Flavius. – Principiava a sonhar com uma deusa, e tu me acordaste!... Melhor mesmo ir, de vez, ao cubiculum; só assim tu me deixarás em paz!
a seguir, extremamente agastado, o rapaz levanta-se da banheira, e o criado, então, enxuga-o, cuidadosa e meticulosamente, com alva toalha de linho. Depois, trajando leve pretexta de seda branca, toma a direcção do cubiculum e se atira sobre o leito. Ia dormir e, quem sabe, não sonharia com ela, a adorável mocinha de olhos cor de mel?
* * * * * * *
Diante das escadarias de mármore branco do Capitolium, Drusilla Antónia detém, por instantes, seu apressado marido.
– Vê bem o que vais fazer, Caius – cochicha ela ao ouvido dele –, não te vás deixar levar por mesquinharias, diante do sumo sacerdote de Júpiter Capitolinus, hein!... Jura-me aqui, antes, que farás tudo o que ele te mandar fazer!
– Ora, Drusilla!... – diz ele, olhando-a com ar divertido. – Mesmo que me esfolem vivo, juro-te que nada regatearei!... Darei tudo o que nosso Pai Júpiter solicitar de mim!...
O templo, àquela hora da manhã, fervilhava. toda a imponente construção fora erigida em mármore branco, ricamente embelezada com detalhes em granito rosa e em mármore negro. As colunas que sustentavam a cúpula do majestoso e colossal edifício eram imponentes, prova da capacidade arquitectónica de seus idealizadores. O interior do santuário encontrava-se inundado por espessa nuvem de fumaça de incenso que queimava em espantosa quantidade aos pés da agigantada estátua do pai dos deuses, cujos olhos altamente penetrantes, encravados num rosto extremamente severo e emoldurado pela longa barba bifurcada, parecia olhar a todos com austeridade e ameaçando fulminar os maus e os pecadores com o poderoso raio que trazia à mão direita.
O sumo sacerdote do capitolium aguardava-os e os recebe, solícito, conduzindo-os, a seguir, para o pátio dos sacrifícios que se situava nos fundos da imponente construção e se constituía, na verdade, mais de um horripilante matadouro de animais – desde pequeníssimos pardais e outras aves, a carneiros, bodes, bezerros e gigantescos bois – que eram imolados ao deus que ali se cultuava. O fortíssimo bodum exalado pelos bichos que aguardavam o momento de serem mortos empestava o lugar, causando náuseas aos menos acostumados àquele tipo de coisas, aliando-se, ainda, ao forte odor do sangue fresco que jorrava aos borbotões das centenas e centenas de gargantas degoladas, incessante e ininterruptamente, pelos afiadíssimos cutelos dos sacerdotes que oficiavam no majestoso templo de Júpiter Capitolinus...
– Os arúspices não vos predizem boas coisas, general – diz o sumo sacerdote. – De facto, vossa saúde encontra-se terrivelmente abalada e só teremos aplacada a ira de nosso Pai com uma hecatombe.53
Caius e Drusilla Antónia entreolham-se. Ele entendeu logo o que ela lhe queria dizer.
– Fazei conforme o solicitado – diz Caius, resoluto, ao sumo sacerdote. – Se é isso o que nosso Pai deseja para libertar-me deste mal, não poupeis nenhum sacrifício!...
– Só que imolaremos os bois de uma só vez, general – explica o sumo sacerdote. – E vós ambos devereis estar presentes no dia e hora aprazados.
– Assim faremos – diz Drusilla Antónia. – Para que meu Caius se restabeleça, qualquer coisa se Gusti ca!
– E, aconselho-vos, também, a sacrificarem a Aesculapius, para que não se ofenda e não vos mande mal pior! – diz o sumo sacerdote de Júpiter, despedindo-se deles, à porta do descomunal templo.
A praça do fórum fervilhava de gente que se juntava num gigantesco burburinho, entre transeuntes que passavam apressados, e outros que ali permaneciam, vendendo bugigangas, água, comida ou, ainda, conversando, animadamente, em duplas e em pequenos grupos. o sol brilhava forte, indicando que o dia avançava bastante. no palanque de proa de navio do comitium, um orador in amado discursava para reduzida, mas atenta plateia. Caius e Drusilla Antónia atravessam todo aquele bulício sem muita pressa e tomam a liteira que os aguardava numa das ruas laterais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:54 pm

Uma hora depois, ambos repousavam no peristylium,54 recostados em largos e confortáveis canapei de vime.
– Estás cada dia mais magro... – diz Drusilla Antónia, tomando a mão de Caius entre as suas e a acariciando ternamente.
Ele se limita a olhá-la e a lhe sorrir tristemente.
– Oh, Caius – continua ela cheia de preocupação –, há momentos em que noto que empalideces de repente!... Diz-me, são as dores, não é?
– Sim, minha cara – responde ele, baixando os olhos –, não adianta mentir-te!... As dores são-me insuportáveis!... Penso que não suportarei!
– Céus, meu amor!... – diz ela, levantando-se e se abraçando a ele. As lágrimas brotam-lhe dos olhos em catadupas. – Que posso fazer para ajudar-te a aliviar tal sofrimento?...
– Tu já tanto me auxilias, meu tesouro!... – diz ele, beijando-lhe os olhos molhados de lágrimas. – Sei que minhas dores são também tuas!... Sofres o tanto quanto eu!
– Oh, Júpiter Capitolinus!... – exclama ela, levantando os braços, em súplica. – Grandioso Pai, ouvi minhas preces!... Dar-vos-emos uma hecatombe em breve!... Sede misericordioso para com meu Caius!...
De um canto e semi-acobertados pela colunata do perystilium, Dulcina e Iustus, o el casal de servidores da casa, ouviam condoídos as súplicas que sua senhora fazia pela saúde de seu amado esposo.
– Nosso senhor sofre muito, Iustus – cochicha Dulcina ao ouvido de seu esposo. – Não achas que deveríamos conversar com Rufus?...
– Não sei, não – responde, preocupado, o majordomus. – Tu sabes como são nossos amos!... Crês que irão trocar Júpiter Capitolinus por Ele?...
Conheces muito bem os patricii55... São cheios de orgulho até as orelhas!...
Imagina se cultuarão um deus plebeius,56 um simples carpinteiro!...– Oh, mas a dor nivela-nos!... – exclama a criada. – Se concordares, falo hoje mesmo com nossa ama!... É pessoa bondosa e humana; penso que me ouvirá!...
– Não sei, não, minha cara! – exclama, hesitante, o majordomus. – Tu sabes como eles são!...
– Deixa-me tentar!... – diz ela, súplice. – Dói-me vê-los assim, sofrendo!... Quem sabe Rufus não atenderá nosso amo, mesmo sendo ele um patrício romano?
– Que Rufus o atenderá, não tenho a menor dúvida; o caso é se nosso amo irá até ele!
– Mas, Rufus poderá vir até aqui!... Se nós lhe pedirmos, tenho a certeza de que virá!
No final da tarde, Drusilla Antónia encontrava-se no balneum, mergulhada em sua banheira, e Dulcina lava-lhe os cabelos, esfregando-os, delicadamente, com a ponta dos dedos. Sua senhora tinha os olhos semicerrados e estava mais triste que nunca.
– Domina – arrisca-se a criada –, posso dizer-vos algo?
– Vai lá, diz-lo!... – exclama Drusilla Antónia, sem muita animação. – Que não sejam mexericos da culina57, pois hoje não estou para tais coisas!
– Sei o quanto sofreis, vós e vosso augusto esposo, domina! – diz a criada, enchendo-se de coragem. – Mas, penso que podemos ter a solução para isso!
– Que dizes, tonta?... – exclama Drusilla Antónia, abrindo os olhos e encarando a criada. – Sabes o que estás falando?... Já consultamos os melhores médicos de Roma, já fizemos uma carrada de sacrifícios a Aesculapius, a Júpiter Capitolinus e acho que ao panteão todo, sem nenhuma excepção!... E vens dizendo-me que tens a solução?... Pelo visto, perdeste o juízo!... – e volta a cerrar os olhos, altamente contrariada com a ousadia da criada.
– Não, não, domina!.... – diz a criada, persistindo em seu intento. – Existem outros métodos que, possivelmente, ainda não conheceis!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:39 am

Drusilla Antónia limita-se a olhá-la, abrindo apenas um dos olhos, tamanha era a desolação que a dominava. A outra, entretanto, continua, apesar do descaso que lhe mostrava a ama:
– Já ouvistes, por certo, falar em Jesus, o Carpinteiro Judeu!...
– Ah, a nova seita, a dos Cristãos, que encanta os pobres e os escravos!...
Não sabia que andavas a frequentar tais coisas!... Pelo que me consta, são cheios de superstições e de crendices absurdas, não é assim?... Prometem riquezas e glória num outro mundo!... E o tal carpinteiro, o fundador da seita, foi crucificado por subverter a ordem!...
A criada abre um ligeiro sorriso. Também sua ama achava tudo aquilo uma bobagem... Mas, não se contém e prossegue:
– Se me permitis, domina, digo-vos quem, na realidade, é Jesus, e qual é a mensagem que nos trouxe!
Drusilla Antónia dá de ombros. Sabia que, dificilmente, conseguiria calar as tagarelices de sua criada.
– Então crês que o tal deus judeu poderia curar meu Caius? – pergunta a matrona, com um sorriso de deboche nos lábios. – Como faria isso?... Acaso seria maior e mais poderoso que Júpiter Capitolinus?
– Rufus, um dos seguidores de Pedro, que foi apóstolo de Jesus, tem o dom de curas. Poderá curar vosso esposo, instantaneamente, apenas impondo-lhe as mãos e orando sobre ele!... Se tiverdes fé, domina, vosso esposo será curado!... Jesus, em sua vida pública, curou inúmeras pessoas:
cegos, coxos, paralíticos, leprosos, endemoninhados!... Até mortos ressuscitou!...
– Sinto muito, Dulcina – diz Drusilla Antónia, com um sorriso de incredulidade. – Mas, fazer com que Caius vá até um desses lugares onde se reúnem os cristãos seria uma tarefa impossível de realizar!... Conheço-o muito bem. Ele jamais trocaria Júpiter Capitolinus ou qualquer um dos deuses do Panteão por um deus carpinteiro!... E ainda mais judeu!... Acho que preferiria morrer!...
– Mas, domina, eu mesma vi!... – exclama a criada, cheia de extremo entusiasmo que em nada era partilhado pela outra. – Ontem mesmo, quando nos reunimos na casa de Rufus, várias pessoas foram curadas, instantaneamente, de males gravíssimos!... Até um velho leproso limpou-se, imediatamente, mal foi tocado pelas mãos do seguidor de Pedro!... é algo extraordinário!... Vede como Deus se manifesta todo-poderoso e mostrando Sua misericórdia infinita, através de seus verdadeiros seguidores!...
– Iustus também compartilha dessa tua fé? – pergunta Drusilla Antónia, intrigando-se com o tom de espontaneidade que percebera nas palavras e na narrativa da criada. Nunca dera muito trato às conversas de suas criadas, mas sabia que ninguém jamais conseguiria mentir com tal veemência.
Levanta-se resoluta da banheira e ordena:
– Veste-me e depois chama Iustus, que o aguardo no viridarium58.
Pouco depois, o majordomus apresenta-se a ela que passeava entre os perfumadíssimos canteiros de lilases a exalarem seu pitoresco perfume, na tepidez da tarde primaveril.
– Iustus, sei que és um homem correto e que não mentes, pois te conheço desde quando ainda eras um moçoilo, comprado por meu pai, no mercado de escravos – diz Drusilla Antónia, olhando firme nos olhos do criado.
– Sic est, domina!59 – responde o majordomus, baixando, humildemente, os olhos.
– Então, apelo para o teu carácter que sempre me pareceu, assim, impoluto e me respondas, sem nada omitires ou encobrires com a nódoa da mentira: estás a par do que me disse Dulcina, esta tarde, acerca da seita do Deus crucificado?
– Sim, domina – responde o majordomus. – estou a par de tudo.
– Então confirmas, sem reservas, o que me disse ela sobre as curas fantásticas que observastes em casa do mestre cristão?
– Perfeitamente, domina – confirma ele, sem titubear. – Tudo o que vos relatou Dulcina é verdadeiro!... Tendes a minha palavra!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:40 am

Drusilla Antónia olha séria no rosto do majordomus como a lhe sondar fundo no recesso da alma. Ele lhe sustenta, firmemente, o olhar, e ela se convence: o homem não estava mentindo. Conhecia-o como a palma de sua mão.
– Diz-me, Iustus – diz ela, aproximando-se mais e quase a cochichar-lhe: – É verdade que o sacerdote cristão limpa leprosos, instantaneamente?– Sim, domina!... – exclama o criado, iluminando o rosto de súbita alegria. E prossegue, com os olhos tomados de brilho vivaz: – Não só leprosos limpam-se, mas também paralíticos voltam a caminhar com a maior desenvoltura, cegos vêem, dementes retomam a razão!... Oh, senhora, o poder de Jesus é insuperável!... E a mensagem de fé, de esperança e de consolo que nos legou?... Passamos horas, ouvindo-a, embevecidos!...
Drusilla Antónia ainda hesita. Não seria esse sacerdote cristão um poderoso feiticeiro a lançar estranhos encantamentos sobre essas criaturas ignorantes e crédulas?... Ouviam-se tantas coisas sobre os cristãos...
Estranhos e absurdos boatos corriam sobre a conduta dos seguidores do judeu crucificado: diziam que os adeptos daquela nova e estranha seita faziam rituais macabros, sacrificando crianças roubadas aos pais, bebendo-lhes o sangue e lhes devorando as carnes cruas, em diabólicos festins; outros, que eram perigosos revolucionários e que pretendiam insurgir-se e libertar os escravos, causando, assim, a falência do Império.
Drusilla Antónia sentia-se confundir. Contudo, ardente curiosidade apoderava-se dela.
– Diz-me, Iustus – pergunta ao majordomus –, quando é que ireis à casa do sacerdote cristão?
– Ainda esta noite, domina – reponde ele. – Quando tudo estiver quieto, e completarmos nossas tarefas, iremos Dulcina e eu.
– Também eu irei, Iustus!... – diz ela, resoluta. – Entretanto, não desejo que Caius saiba. Propinarei forte dose de ladanum60 a ele e, assim que adormecer, juntar-me-ei a vós.
A noite caíra escura e sem luar. Três vultos encapuzados caminhavam apressados, por sombria ruela esburacada e cheia de poças de água estagnada e malcheirosa, seguindo, cuidadosos, a frouxa claridade que derramava a pequena lanterna que Iustus carregava, dois passos adiante. O fedor de fezes e de urina humanas era insuportável, e era preciso caminhar premendo as narinas para não se enjoar. Tugúrios miseráveis, feitos de adobes e de terra batida, permeavam a viela que, àquela hora, silenciava pelo avançado das horas. Apenas se ouviam os latidos insistentes dos cães vadios e um ou outro grito que se perdiam no silêncio da noite.
Depois de caminharem por mais de hora e meia em marcha forçada, através de uma interminável sucessão de escuras e miseráveis ruelas, fétidas e esburacadas, o grupo pára diante da porta de pobre casa de tijolos de barro cru e coberta de grossa camada de colmo já bastante enegrecido pela intempérie. Iustus adianta-se e bate com a mão fechada, em toques pausados. Instantes depois, a porta abre-se com um chiado, surge uma cabeça e alumia o rosto dos recém-chegados com uma lanterna de azeite. dita uma curta senha, a entrada é-lhes franqueada, e os três desaparecem pelo interior da choupana.
Drusilla Antónia espanta-se com a penúria do ambiente. A pedido de Dulcina e de Iustus, declinara de seus ricos trajes costumeiros e se vestira com sobriedade para não chamar a atenção. Tiveram de sentar-se ao chão, sobre esteiras de palha, pois não havia qualquer móvel no ambiente, excepção de tosca mesa, sobre a qual havia alguns rolos de pergaminho e uma lamparina de azeite. A matrona, então, cheia de apreensão, passeia os olhos pelo ambiente. Às paredes, prendiam-se três fumarentas e malcheirosas tochas de betume, a lançarem fraca luminosidade no ambiente, que não passava de uma sala de médias proporções, em cujo assoalho de tijolos crus acocoravam-se umas três dezenas de pessoas que, em silêncio, pareciam, ansiosamente, aguardar por algo. Deitados sobre as esteiras de palha e envoltos em trapos imundos, havia alguns enfermos, notadamente cegos, paralíticos e portadores de enfermidades crónicas diversas e, mais afastadamente, ao fundo da sala, agrupavam-se quatro pessoas totalmente envoltas em panos, deixando à mostra, apenas os olhos, o que fez Drusilla Antónia, com um calafrio, constatar que se tratavam de leprosos.
Alguns minutos mais e, de uma porta lateral, adentrou um homem de meia idade, portando barbas longas e já um tanto grisalhas.
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:41 am

Postou-se ao lado da pequena mesa e, encarando a pequena assembleia com olhos brilhantes, disse:
– Que a paz de Nosso Senhor Jesus, o Cristo, esteja convosco! Depois, desenrolando um dos pergaminhos que se achavam sobre a mesa, aproximou-os da luz da lanterna e leu, com voz pausada: “Delendeabo essa templa et in treabus deabus ea reedi cata...”61
Em seguida, passeou demoradamente os olhos pela pequena assembleia e disse, com voz suave:
– Podem parecer estranhas essas palavras nos lábios dAquele que foi e é o Príncipe da Paz!... Não é à toa que se sentiram chocados os maiorais de Israel, quando souberam e disso também se utilizaram para forjarem as provas para o condenarem à morte!... Entretanto, caríssimos irmãos, não obstante queira ou não o grande sacerdócio organizado da terra, os ídolos estão cansados!... Não conseguem atender mais aos apelos e aos anseios dos que lhes frequentam os riquíssimos templos, erigidos em mármore e em granito. Permanecem mudos e impassíveis, do alto de seus pedestais, e se acham ricamente adornados de ouro, prata e preciosidades sem par, enquanto o grosso da humanidade encontra-se relegado à miséria!... Ah, a miséria, esse terrível monstro que campeia por todos os lados!...
O pregador silencia por instantes e passeia os olhos pela pequena assembleia que o ouvia atenta. Sorri um sorriso triste e prossegue:
– Que é pior, pergunto-vos: a miséria física ou a miséria moral?... Vós outros sofreis a sobejo a ambas, porque vos conheço, estou convosco todos os dias e, principalmente, porque sou um de vós!... Olhai em redor, irmãos!... O que vedes?... Miséria, miséria e mais miséria!... O luxo e a luxúria afrontam-nos todos os dias!... Os costumes barbarizam-se, fazendo as criaturas nivelarem-se às bestas mais rasteiras de que se tem notícia!...
Que fazem os poderosos, trancados em seus ricos e admiráveis palácios?...
Festejam Baccus62 e se locupletam nas mais dissolutas orgias, como se tudo isso fosse natural!... E, quando se encontram esgotados, doentes do corpo ou do espírito, vão aos pés de Aesculapius ou de Júpiter Capitolinus, e os sacerdotes desses santuários perguntam-lhes: “quanto podeis dar ao deus?...
Um boi?... Dois?... Trinta?... Uma hecatombe?...” Negociam, irmãos!...
Vendem os favores da divindade que representam!... E, nós, que nada temos?... “Não possuís nem um mísero sestércio para um pardal ou para uma pomba?...”, é o que nos perguntam eles que, de graça, nada fazem!...
Arrancam até dos que nada têm!... Como pode Deus cobrar pelo que faz?...
Imaginai se, de repente, Nosso Pai resolvesse cobrar-nos o ar que respiramos, a água que nos mata a sede ou a luz do sol que nos alumia?...
Pobres de nós!... Não, caríssimos irmãos!... O que vem de Deus não tem preço, porque o que ele nos venderia é de tão alto custo e de tão na procedência que nem o maior dos tesouros deste mundo seria suficiente para pagá-lo!...
Rufus silencia, novamente, enquanto parece reorganizar as ideias e, fazendo um largo gesto com as mãos, prossegue:
– “Destruirei esse templo...”, disse-nos, simbologicamente, o Mestre Nazareno, mas se referindo, na realidade, a que já é chegado o momento de novas e grandes mudanças para todos nós, pois a mensagem que nos trouxe é ímpar!... esse templo a que se referiu Jesus é a Fé, que deve se fundamentar no amor a Deus, ao próximo e à prática da caridade, coisas que, decididamente, minguam nos dias atuais!... onde o respeito às coisas santas?... O homem se embrutece e se envilece como nunca!... A injustiça, o egoísmo e o desamor imperam em toda a parte!... A humanidade está podre, carcomida pelo vício, pela incúria e pela insensatez e é preciso, bem depressa, reabilitarem-se as virtudes; é necessário, urgentemente, ressuscitar o amor nos corações dos homens!... Mas, para que isso aconteça, é preciso que se deite abaixo o antigo templo dos ídolos mudos e impassíveis, cheio de viciações, de superstições e de crenças absurdas, onde viceja a fé fria e exterior, e se reconstrua um novo, cujos alicerces fundamentem-se na rocha viva do Evangelho!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:41 am

Drusilla Antónia ouvia a pregação do missionário cristão e se espantava:
jamais ouvira coisas ditas assim e relacionadas à prática religiosa, com tamanho poder de incisão, e de forma a promover rupturas na estrutura da fé de alguém. Perturbara-se, e ligeiro mal-estar acomete-a. Aflita, busca o rosto dos companheiros e nota que eles se mantinham presos às falas do pregador cristão, cheios de embevecimento. E agora?... Começa a sentir medo. E se, de fato, fossem realmente bruxos e a enfeitiçassem?... Iustus e Dulcina pareciam magnetizados, com os olhos fixos no rosto do missionário, sem dele perderem um mínimo gesto. Às raias do desespero, Drusilla Antónia procura pela porta, com os olhos. “Se tentarem enfeitiçar-me, saio correndo!”, pensa.
– Agora, as bênçãos, para o encerramento – diz o pregador e sinaliza para dois auxiliares que se mantinham a postos, junto à porta de entrada.
Os dois homens, com gestos comedidos e portando os semblantes serenos, organizam pequena la que se forma diante de Rufus que se mantinha de pé, com os olhos semicerrados e em profunda concentração.
Em seguida, o insigne pregador ergue os braços ao alto e diz, com voz súplice:
– Ó Divino Mestre Jesus!... Seguimos as vossas recomendações e aqui estamos!... Diante de nós, acham-se os pequenos do mundo em busca de vosso amor!... Derramai sobre eles a vossa graça, senhor, e fazei segundo o merecimento de cada um!...
a seguir, atende ao primeiro da la: tratava-se de uma mulher excessivamente magra e maltrapilha e que trazia uma criança ao colo. Ela estende os braços descarnados, mais parecidos a dois galhos de árvore ressequidos que braços propriamente, e apresenta o seu bebê – uma pequenina trouxa, envolta em imundos farrapos, que sequer tinha forças para chorar. O pregador cristão olha, demoradamente, para a mulher e para o bebê que ela lhe estendia com os olhos súplices, olhos de uma mãe que via a ténue vida de seu rebento esvair-se-lhe por entre os dedos. Rufus, então, sente duas lágrimas descerem-lhe, teimosas, pelas faces, também largamente batidas pelas dores do tempo. A seguir, toma o bebê nos próprios braços e o ergue, acima da cabeça, e diz com a voz carregada de emoção:
– Vede, Senhor, a quantas andam os teus lhos!... Apiedai-vos desses pequenos!... Dai-lhes o consolo, conforme nos prometestes!
O bebê emite fraco vagido e se põe a mover as mãozinhas e as perninhas.
Contentíssima, a mãe recebe de volta o seu lho e o aconchega forte ao peito. A seguir, num ato espontâneo, ajoelha-se e, tomando a mão de Rufus, beija-a, agradecida. A um sinal do pregador cristão, um de seus auxiliares apanha uma das cestas de alimentos adrede preparadas e que se amontoavam num dos cantos da sala e a entrega à pobre mulher que se desmancha em agradecimentos.
Drusilla Antónia, ainda sentada sobre o estrado de palhas a tudo observava, cheia de espanto. Não se haviam colocado em la, juntamente com os demais, porque Iustus pretendia que cassem para o final dos atendimentos e, assim, teriam privacidade e mais tempo para conversarem com Rufus. A matrona, às vezes, sentia-se sufocar pelo cheiro nauseabundo, exalado por aquelas criaturas maltrapilhas, sujas e, na grande maioria, enfermas, acometidas de cegueira, aleijões, lepra, mas, mesmo assim, esforçava-se e seguia atenta ao desenrolar das actividades no singelo templo cristão e lhe era difícil entender aquelas coisas, pois não pertenciam a seu mundo. Sempre fora rica e vivera em estupendas mansões, erigidas em finíssimos mármores e em granitos reluzentes, e gozara sempre de todo o conforto que lhe propiciavam os bons móveis e o requinte das obras de arte, dos bons vestidos e das jóias de na lavra. Jamais supusera quão difícil e árdua era a vida de seus conterrâneos mais pobres. Por outro lado, como poderia aceitar um deus miserável como aquele que vivia entre gente tão esfarrapada e tão desprovida de tudo?... Que diferença entre o Capitolium e o Pantheonem63, onde a beleza e a exuberância de luxo marcavam a verdadeira morada de um deus!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:41 am

Depois de assistirem a uma dezena de curas e de manifestação de fé extraordinária, a la esgota-se, e Rufus, deitando os olhos sobre o pequeno grupo que restara acocorado sobre o estrado de palhas, faz-lhes um sinal com a mão, chamando-os a aproximarem-se. O coração de Drusilla Antónia principia a bater descompassado. Ela estava terrificada com as estranhas manifestações que houvera presenciado ali. Iustus olha para ela, encorajando-a, e Dulcina aperta-lhe forte a mão.
– Sede bem-vinda entre nós, domina! – exclama Rufus, sorrindo-lhe, gentil. – E não tenhais medo, pois Jesus é conhecido como o Cordeiro de Deus e, conforme sabeis, esses bichos são os mais mansos que existem! Drusilla Antónia limita-se a olhá-lo com os olhos desmedidamente abertos. Era patente o terror que ora a invadia.
– Se tiverdes fé, senhora, Jesus curará vosso esposo!...
– Co... co... mo sabeis que meu esposo está enfermo?!... – espanta-se ela. – acaso contou-vos Iustus?
– Não, domina – diz Rufus sem se alterar –, nada me disseram vossos servos; porém, o Sublime Cordeiro tudo sabe!... – e, apontando o dedo para o peito de Drusilla Antónia, prossegue incisivo: – Mas, primeiro, é preciso que derribeis o antigo templo que ainda aí se encontra erigido dentro de vosso coração, para que Jesus possa nele fazer sua morada...
– Prometemos uma hecatombe a Júpiter Capitolinus... – diz ela, baixando os olhos.
– Quando estiverdes pronta para a demolição, domina, retornai aqui que Jesus reconstruirá em vós um novo templo!... – exclama Rufus, fazendo-lhe ligeira reverência e desaparecendo, a seguir, pela porta lateral, seguido de seus dois auxiliares.
Drusilla Antónia, altamente consternada, olha para seus criados.
– Vamos, domina – convida Iustus.
e os três deixam o singelo templo, agora totalmente vazio, e saem para a madrugada escura e fria, de volta para casa. Apoiando-se em Dulcina, enquanto caminhavam pelas ruas escuras e esburacadas, Drusilla Antónia soluçava baixinho. A dor que lhe roía fundo a alma era a maior do mundo...
____________________________________________________________________________________
50. Na antiga Roma, a primeira refeição do dia, que se tomava bem de manhãzinha e que, normalmente, consistia de pão, frutas, leite e queijo.
51. Otavius Caesar Augustus, o 3º imperador de Roma.
52. Nas antigas casas romanas, o quarto de banho.
53. Nos antigos cultos pagãos, sacrifício de 100 bois.
54. Nas antigas casas romanas, extensa varanda sustentada por colunas e que dava para um jardim ou pátio interno.
55. Patrícios, em latim. Entre os antigos romanos, a classe dos aristocratas.
56. Plebeu, em latim. Na sociedade romana antiga, correspondia à classe mais humilde da população.
57. Cozinha, em latim.
58. O jardim, que costumeiramente enfeitava as antigas residências romanas, podendo ser interno ou externo.59. “– Assim é, senhora!...”, em latim.
60. ládano ou láudano, em latim. Sedativo derivado da esteva, planta da família das cistáceas.
61. “Destruirei esse templo e em três dias eu o reconstruirei...”, em latim. Evangelho de S. João 2-19.
62. O deus do vinho, na mitologia latina.
63. Panteão, templo arredondado que, tanto na Roma quanto na Grécia antigas, era dedicado a todos os deuses.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:41 am

Capítulo 5. O novo Templo...
Diante das escadarias do Capitolium, Drusilla Antónia pára. Seus olhos percorrem a imensidão do frontispício do magnificente templo, dedicado ao pai dos deuses. As altíssimas colunas jónicas em mármore negro; os capitéis redondos, coroando os fustes, ricamente trabalhados em alto-relevo, com bordaduras milimetricamente perfeitas. A profusão de mármore polido e de granito resplendente encantava os olhos. “A verdadeira morada de um deus!...”, pensa. E, consequentemente, sua mente busca a comparação com o tugúrio onde celebravam o deus Judeu. “Delendeabo essa templa...”, pareceu-lhe, então, ouvir, claramente, as palavras do pregador cristão. Um calafrio percorre-lhe a espinha de alto a baixo e, com o canto dos olhos, ela espiona Caius que se postava a seu lado, rindo para ela. Ele parecia feliz e confiante.
Iam imolar uma hecatombe a Júpiter Capitolinus, aplacando-lhe, assim, a fúria e, quem sabe, o grande pai não restituiria a saúde de seu amado esposo!... Tinha sido dessa forma que seus antepassados sempre haviam feito!... E então, por que é que ela iria, agora, atrás de um deus estrangeiro, um carpinteiro sem eira nem beira?... Que poder teria, realmente, aquele deus, se nem da crucificação conseguira escapar?... Que bobagem!... Aperta, ternamente, a mão de seu amado Caius e lhe sorri cheia de esperança.
– Vamos, que nosso pai espera por nós!... – diz Drusilla Antónia, puxando, amorosamente, o esposo pela mão.
no immolatorium64, o cheiro de sangue fresco era insuportável. Sob os certeiros golpes de afiadíssimo cutelo, nas hábeis mãos do sumo sacerdote, o sangue jorrava em catadupas, quente, fumegante – grossos borbotões rúbidos, que se lançavam em macabras e ininterruptas cascatas, inundando e tingindo de vermelho-rubro as pedras quadranguladas do granito cinza-claro do pavimento. Sob um dossel de seda alvinitente e franjado de ouro e de prata, e sentados em cadeirões de madeira pesada e ricamente lavrada e marchetada em mar m e em bronze polido, Drusilla Antónia e Caius assistiam à carnificina. O espectáculo era deveras dantesco: os bois eram conduzidos um a um, diante do altar de Júpiter, e degolados pelo sumo sacerdote, com destreza ímpar. Parte do sangue era, então, colhido em grandes taças de ouro e, ainda a exalar vapores, era depositado, solenemente, diante do altar do deus. A cada animal que abatia, o sumo sacerdote repetia uma série de orações e, em altos brados, emitia súplicas em favor da recuperação da saúde do general Caius Petronius Tarquinius. a carnificina durou algumas horas, e foi com grande alívio que Drusilla Antónia, altamente enjoada com o forte cheiro do sangue que empestava o ambiente, pôde, finalmente, respirar o ar puro da praça do Fórum. O dia avançara bastante, e a tarde caía luminosa e agradável. Caius Petronius caminhava a seu lado em silêncio. durante a cerimónia, mantivera-se calado, quase que o tempo todo, e Drusilla Antónia pensou que ele estivera assim, por ser muito devoto do deus, e que, certamente, suplicava pela graça que da divindade obteria, mediante a oferenda de sacrifício daquela monta. Entretanto, na liteira, de volta para casa, ele se recosta ao colo dela, e ela lhe sente as contracções dos espasmos doloridos que ele tenta, inutilmente, dela esconder.
– Sei que estás sofrendo muito, meu amor!... – exclama ela, beijando-lhe o alto da cabeça. – E sei, também, que tentas esconder de mim que tuas dores tornam-se, a cada dia que passa, mais constantes e insuportáveis para ti!
Como ele se encontrasse recostado ao colo dela, não se podiam olhar nos olhos. então, ela, delicadamente, levanta-lhe a cabeça e o olha no rosto.
Penalizada, constata que Caius tinha os olhos rasos de pranto.
– Haveria um modo de eu esconder algo de ti, minha rainha? – diz ele, baixinho, quase num sopro, com as palavras molhadas pelas lágrimas.
–Oh, meu amor!... meu amor!... – exclama ela, desesperada, abraçando-o forte. – Se pudesse trocar a minha vida pela tua!... Mas, tem fé!... Acabamos de imolar uma hecatombe a Júpiter Capitolinus e tenho a certeza de que ouvirá nossos apelos em favor de teu restabelecimento!...
– Nem Júpiter Capitolinus nem ninguém, minha querida!... – exclama ele, meneando a cabeça, cheio de desespero. – Rendo-me à Hecate Infernal!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:42 am

– Oh, não digas tal asneira! – diz ela, ralhando com ele. – Esqueceste a fé que sempre depositaste em teus lares?... Teu pai dedicou-te a Júpiter, quando nasceste, e tu jamais abandonaste teu numen65 e fizeste dele o tutelar de tua casa!... Por que blasfemas, agora?... Sempre te considerei um homem de fé!...
És bom, Caius!... Ninguém, mais do que tu, merece a atenção dos imortais!...
Imploro-te, querido, tem um pouco mais de paciência!...
Mais tarde, descansavam na exedra, recostados em confortáveis canapei, e Drusilla Antónia, estarrecida, percebia que seu esposo sofria muito:
encontrava-se extremamente abatido, tinha o rosto tomado por profunda palidez, e os olhos, bastante encovados, estavam emoldurados por escuras olheiras.
– Que desejas que te faça, meu amor? – pergunta ela, apertando-lhe forte a mão.
Caius Petronius limita-se a olhá-la, com um sorriso triste.
– Olha, bebe mais ladanum!... – exclama ela, apresentando-lhe uma taça.
– Não, minha cara – diz ele, tristemente. – O ladanum já não me surte mais nenhum efeito, a não ser provocar-me mais náusea!
– Oh, fazes-me desesperar, dizendo isso! – observa ela, altamente preocupada. – Que te darei a beber para as dores, então?
– Manda chamar o médico, minha querida – diz ele, contorcendo-se de dores. – Não suporto mais!
– Oh, Caius!... Caius!... – grita Drusilla Antónia, pondo-se de joelhos diante do marido e, tomando-lhe as mãos, banha-as de lágrimas. Depois, em desespero, levanta as mãos e brada: – Oh, Júpiter Capitolinus!... Uma hecatombe não foi suficiente para aplacar a vossa ira?... Que vos fez meu adorado Caius, para o perseguirdes dessa forma?...
– Drusilla... – geme Caius baixinho e prossegue com a voz fraca: – não te desesperes assim!... Apenas, manda que busquem Sempronius... Peço-te...
Pouco tempo depois, o majordomus anunciava a chegada do facultativo que, sem delongas, pôs-se a examinar Caius Petronius.
– Agora, somente o opium,66 general – diz o médico, após longo e meticuloso exame. – O ladanum não produz mais efeito...
– Dá-lhe o remédio, Sempronius!... – adianta-se Drusilla Antónia e prossegue, torcendo as mãos, nervosa: – Não suporto mais vê-lo dessa forma, sofrendo tanto!
– Entretanto, não é tão simples assim – observa, o médico. – Melhor é guardarmos o opium para... – e se cala receoso de continuar.
– Para o m?... – completa Caius Petronius, com um sorriso triste.
– Oh, não!... – grita a matrona, desesperada. – Sempronius, por favor, nada omitas!... Queres dizer que meu Caius sofrerá ainda mais?
– Assim será, cara Drusilla Antónia – diz o médico, sério. – Caius terá espasmos dolorosíssimos, até que lhe venha a derrocada final!... Se lhe propino o opium agora, nenhum efeito a ele fará depois, quando as dores realmente se lhe tornarem insuportáveis!... Essa substância perde a eficácia mais rapidamente que o ladanum!
– Que faremos por ora, então? – pergunta ela, cheia de dor.
Sempronius baixa a cabeça, desanimado, e dá de ombros. Depois, fixando-a, firme, nos olhos, diz, altamente consternado:
– Rezar, cara Drusilla, rezar muito e esperar... Infelizmente, apenas isso nos resta fazer...
* * * * * * *
Neste comenos, no triclinium da mansão de Cornelius Helvetius, o jovem Iulius Maximus caminhava de um lado para outro, agitadíssimo. O velho senador, recostado num canapeum, fingia ler um pergaminho e, disfarçadamente, observava o rapaz que extravasava ansiedade por todos os poros.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:42 am

– Senta-te aí e te aquieta, Iulius!... – brada, por m, Cornelius, irritado com o vaivém do rapaz pela sua sala.
– Susanna demora-se, titio!... – diz o rapaz. – Dessa forma, perderemos os espectáculos no Circus Maximus!...
– Até parece que ainda não conheces Susanna!... – exclama o velho senador, cheio de ironia. – Melhor é te sentares aí e sossegares que, antes de uma hora, garanto-te que ela não se apronta!...
– Mas, ela não pode fazer isso comigo!... – exclama o rapaz, altamente agastado. – Combinamos tudo direitinho, ontem, e me jurou não se atrasar!...
– E acreditaste nela?... – observa o velho, rindo-se.
– A propósito, titio – diz o rapaz, como se de repente se lembrasse de algo muito importante –, Susanna já completou catorze anos, e acho que está em idade de arranjar um noivo!
Cornelius olha-o, cheio de raiva. então aquele fedelho insuportável estava a dar-lhe ordens, é?
– Achas o quê, Iulius?... – pergunta, empertigando-se furibundo, no canapeum, e prossegue, espumando de raiva: – Fica sabendo que ainda não morri, e quem deve achar se Susanna está pronta para encontrar um noivo ou não, ainda sou eu!...
O orgulhoso mancebo lança-lhe um olhar carregado de desdém e diz, cheio de empáfia:
– Pois é bom que saibas de uma vez, meu tio, que Susanna já me escolheu!... Considero-me seu noivo!
– Caro Iulius – diz o velho senador, de repente se lembrando de algo com que poderia, com facilidade, ferir mortalmente aquele imbecil –, não sei se o que me dizes é facto, mas outro dia aqui esteve o neto do senador Lucius Antoninus Rimaltus, antigo camarada meu, e me pareceu que o jovem impressionou deveras a minha neta!... Pressinto não sejas o único da fila, querido sobrinho!...
– Que dizes!?... – exclama o rapaz, levantando-se de um salto como se tivesse sido picado por uma vespa. – Quem é o tal?...
– Flavius Antoninus Rimaltus, o mesmo que salvou Susanna de ser devorada pelo leão daquele doido, quando tu a abandonaste à própria sorte, nos jardins do paço imperial, lembras-te? – diz Cornelius, olhando-o firme nos olhos e saboreando, enormemente, as reacções de despeito e de quase desespero que se apoderavam do rapaz.
– Mentes! – explode Iulius, com as feições transtornadas num rictus de raiva suprema. – Tu me odeias e inventaste toda essa mentira suja!
– Quando estiveres a sós com Susanna, tu mesmo lhe perguntarás tudo, e ela lhe relatará com riqueza de detalhes!... Então, verás se estou mentindo!...– diz Cornelius, levantando-se e deixando o triclinium, quase a explodir de tanta satisfação.
Antes, porém, de abandonar o salão, na soleira da porta, volta-se e confere: Iulius fuzilava de raiva e até parecia ter calafrios a percorrer-lhe o corpo. Cornelius meneia a cabeça e se ri, satisfeitíssimo, desaparecendo, a seguir, na semi-obscuridade do corredor.
O Circus Maximus ululava na tarde quente de primavera. Iulius puxava Susanna pela mão, com modos grosseiros, praticamente arrastava-a atrás de si, enquanto que, com os olhos, sondava a plateia, em busca de algum lugar que, eventualmente, sobrara no renque de assentos do anfiteatro.
– demoraste tanto a te aprontar que não resta mais um só lugar plausível, minha cara!... – diz ele, espumando de raiva. – Teremos de nos contentar com os que sobraram lá em cima e nada veremos dos espectáculos!
– Por que permaneces emburrado, Iulius? – pergunta Susanna ao se sentarem, após verdadeira maratona para galgarem o topo do renque de assentos em forma de escadaria. – Sequer conversaste comigo, durante o trajecto!... Tudo isso somente porque me atrasei um pouco?
O rapaz limita-se a fuzilá-la com um par de olhos raivosos. Susanna dá de ombros e passa a vibrar com o andamento dos espectáculos. Lá embaixo, na arena, um grupo de excelentes malabaristas apresentava-se, arrojando-se para o ar em prodigiosos saltos, como se portassem asas. De repente, tonitruante som de trompas interrompe o espectáculo: era o imperador que chegava ao circus Maximus.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:42 am

Todas as cabeças voltam-se, tautocronamente, para o camarote imperial, e Nero surge, acompanhado da imperatriz Popeia Sabina. Um frémito ululante percorre a multidão e, num crescendo, explode em gritos e em assovios de ovação ao imperador de Roma. Nero, satisfeitíssimo com a grandiosa manifestação que lhe dedicava o povo, incha-se todo de orgulho e, levantando as mãos, agradece os aplausos, abrindo-se em sorrisos e fazendo ligeiras reverências em todas as direcções.
– Nosso povo nos ama!... – exclama ele para Popeia Sabina ao recostar-se, depois, em seu luxuosíssimo canapeum forrado de seda púrpura.– Vós o mereceis, Majestade – diz a imperatriz, cheia de inveja. E olha para Nero com olhos malevolentíssimos, incrustados num rosto ridiculamente carregado de maquiagem berrante.
A tarde transcorre-se cheia de excitantíssimas apresentações de artistas circenses, num variadíssimo repertório de números altamente interessantes e bizarros. No final, o espectáculo chega ao ápice com a apresentação dos gladiadores mais famosos de Roma, em combates mortais, entre si, e com feras terríveis, trazendo ao povo sensações inimagináveis.
Iulius Maximus permanecera o tempo todo calado, cheio de amuos.
Baldadamente, Susanna intentara arrancar-lhe o motivo de tamanha mudança no humor, mas foram tentativas em vão. O rapaz negava-se a dizer o porquê de tal atitude. O dia chega ao fim, e os espectáculos no Circus Maximus também. De volta para casa, Iulius conduzia o carro, nervosamente, aplicando sua fúria nos cavalos que, altamente fustigados pelo inclemente chicote do rapaz, abriam-se em desabalada carreira, pelas ruelas estreitas e esburacadas dos arrabaldes de Roma.
– Assim tu acabarás por virar o carro! – grita Susanna que se mantinha agarrada firme ao dorso do rapaz.
Ele se limita a olhá-la com o canto dos olhos e fustiga ainda mais os cavalos.
– Iulius, peço-te!... Vai mais devagar!... – suplica ela, quase em lágrimas.
O carro seguia correndo em altíssima velocidade, sacolejando e saltando, amiúde, perigosamente com ambas as rodas no ar, na iminência de provocar gravíssimo acidente. Transeuntes esbaforidos colavam-se às paredes das casas, para deixarem o trânsito livre ao carro que surgia de inopino em alta velocidade. Entretanto, em dado momento do percurso, após dobrarem uma curva acentuada, deparam-se, de repente, à frente, no meio da estreita via, com um ancião trémulo e amedrontado que se atrapalha e não consegue furtar-se a tempo e é violentamente colhido e pisoteado pelas patas dos possantes corcéis. As rodas do pesado carro arrematam a tragédia com violenta pancada, passando por cima do pobre velho, esmagando-lhe, cruelmente, o tórax. Susanna emite um grito terrível.
– Atropelaste um homem, Iulius!... Pára!...
O rapaz sequer se volta para trás. Ainda mais furioso, desfere uma série de violentas chicotadas aos lombos dos animais que pareciam voar. Susanna principia a soluçar, cheia de medo.
– És um monstro, Iulius!... Pára o carro, por favor!... Peço-te, por Júpiter!... – grita ela e desfere, com uma das mãos, uma série de tapas à nuca do rapaz.
O jovem, tresloucado, ignorava-lhe as súplicas e continuava fustigando os cavalos. Ela, então, às raias do desespero, aplica-lhe formidável mordida ao ombro.
A dor que ele sente é tremenda. Entretanto, não pára o carro, apenas diminui-lhe a velocidade. Furioso, aplica formidável cotovelada ao estômago da moça, e ela se curva, premida pela dor do golpe recebido.
– Monstro!... – geme ela, e principia a soluçar.
Pouco mais e o carro estaciona diante da mansão de Cornelius Helvetius.
Susanna salta sozinha da biga e corre para dentro, em pranto. O rapaz, carrancudo e com os olhos terrivelmente injectados pelo ódio, vai atrás dela.
Encontra-a em seu cubiculum. Estava arrojada sobre o leito e soluçava.
Violentamente, puxa-a pelos cabelos e a faz sentar-se na cama.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 10:42 am

– Diz-me, sua leviana, é verdade que andaste a flertar com outro? – pergunta ele, segurando-a, forte, pelos pulsos.
Susanna Procula olha para ele, com os olhos inchados pelo pranto, e nada consegue dizer. Apenas chora, e os soluços convulsionam-na, violentamente.
– Vamos, conta-me, rameirinha!... – diz ele, quase aos gritos. – é mesmo verdade o que me disse teu avô?... Andas pendendo para o lado de algum vagabundo?
Susanna dá um safanão e tenta libertar-se das mãos do rapaz que, como se fossem duas tenazes de ferro, prendiam-lhe os braços.
– Solta-me, Iulius!... – consegue ela, por fim, gritar. – Não tens nenhum direito sobre mim!...
– Ah, não tenho?!... – diz ele, irónico. – Dás-me todas as esperanças do mundo e dizes agora que não tenho nenhum direito sobre ti?!... Vamos, anda, quem é o traste que anda atrás de ti?...
– Não existe ninguém atrás de mim, Iulius, juro-te!... – diz ela, na expectativa de que ele se acalmasse.
– Verdade?... – exclama ele, cheio de ironia. – Mentiu o teu avô, então?... Não sabia que o senador Pisanus era um grandíssimo mentiroso!... Vou atirar-lhe às fuças, então, que não passa de um velho mexeriqueiro!...
– Vovô não é mentiroso e muito menos mexeriqueiro!... – exclama a jovenzinha, arrostando-o, furiosa. E, num rompante de raiva, diz: – E, se queres mesmo saber, há, sim, um outro em minha vida!... E, muitíssimo melhor, mais bonito, mais forte e mais rico que tu!
Iulius Maximus sente-se zonzear. Era verdade, então!... Tudo pareceu escurecer-se diante dele, e um calafrio percorreu-lhe a espinha de alto a baixo. A revelação desabara sobre ele como uma avalancha de pedras, esmagando-o. Sentiu o sangue martelando-lhe nas têmporas. Não, não poderia ser verdade!... Estavam mentindo para ele. Sente as pernas fraquejarem-se-lhe, e se senta na cama, diante dela. Toma as mãos da jovem entre as suas e, olhando-a, firme, nos olhos, diz:
– Diz-me que estás mentindo, Susanna!... Não há nenhum outro homem em teu coração!
– Há, sim, Iulius! – responde ela. – Conheci-o na festa de Nero. Ele me salvou do leão!
O rapaz olha-a, com os olhos cheios de revolta e de ódio. Em seguida, depõe a mão dela sobre a cama, levanta-se e sai, sem olhá-la uma única vez e sem dizer qualquer coisa.
Susanna segue-o, com os olhos mareados de lágrimas. Por que Iulius tinha de ser tão temperamental, tão impulsivo?... É verdade que Flavius Antoninus encantara-a, enormemente, e, entre ambos os rapazes, seu coraçãozinho balançava. Mas, Iulius era seu primo e seu amigo, antes de tudo. Por que se enfurecera daquela forma?... Amá-la-ia tanto assim, a ponto de maltratá-la daquele jeito e até de matar um pobre velho atropelado, sem sequer se voltar para trás ou esboçar o mínimo gesto de arrependimento até então?
– Iulius é um monstro!... – murmura Susanna baixinho, entre lágrimas, e afunda o rosto na fofa almofada de penas de ganso. Uma sucessão de soluços sacode-a, violentamente. E prossegue, tomada de profunda desolação: – Não posso amar um monstro que já começa a se voltar contra mim na menor das contrariedades!...
O cubiculum, paulatinamente, vai mergulhando na mais absoluta escuridão e Susanna, vencida pelo cansaço e pelas fortes emoções daquela tarde, acaba por adormecer.
– Susanna... Susanna...
A voz doce e delicada do avô fá-la despertar. Cornelius afagava-lhe, docemente, os cabelos.
– Esperei-te, tanto, para a cena e, como não aparecias, vim à tua procura! – diz ele, sorrindo-lhe, afável.
– Oh, vovô!... Vovô!... – exclama ela, abraçando-se, firme, ao velho.
– Quer tens, meu tesouro? – pergunta Cornelius, olhando-a à pálida luz da lanterna que trouxera consigo e depositara sobre uma mesinha. – Tens os olhos desmedidamente inchados!... Acaso andaste chorando?...
Suzanna enterra o rosto no peito do avô e retoma o choro, sem nada dizer.
– Foi aquele traste miserável que judiou de ti? – pergunta o velho senador, já se enchendo de indignação. – Só pode ter sido aquele pulha, porque eu estava no viridarium e vi quando ele saiu, intempestivamente, como um desvairado!... Que te fez ele?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:08 pm

Susanna volta a olhá-lo, com os olhos terrivelmente inchados pelo excesso de choro. Não adiantava mentir para o avô.
– Iulius maltratou-me, vovô, por causa de Flavius...
– Ah, maltratou-te o miserável, então?... – observa Cornelius, furioso. – Mas, era a mim que o desgraçado deveria maltratar, não a ti!... Fui eu que o espicacei, ainda antes de sairdes para o Circus Maximus!– Oh, vovô!... acalma-te!... – dia Susanna, abraçando-o. – Estás tão doente, e não quero que te enerves, assim, por causa de Iulius!
– Só me acalmarei, se tu me relatares tudo o que aquele maldito fez-te hoje!... – diz o velho, levantando-se e se pondo a caminhar, altamente enraivecido, pelos aposentos da neta.
A jovem, então, obedientemente, reporta ao avô os terríveis factos daquela tarde.
– Ah, desgraçado!... Desgraçado!... Eu sabia!... – brada Cornelius, espumando de raiva. – Como eu temia: ele é um monstro!... Um terrível e frio assassino!... Não, Susanna, não posso jamais permitir que esse demónio continue a rodear-te, fazendo-te a corte!... Para teu bem, é hora de eu proibir as visitas de Iulius a esta casa!...
– Às vezes, tenho medo de Iulius, vovô!... – diz a jovem, encolhendo-se no leito.
– Nada temas, meu amor!... – diz Cornelius, abraçando-a. – Estou velho, terrivelmente doente e enfraquecido, mas ainda não estou morto!... Esse canalha não se aproximará mais de ti!... Garanto-te!... Agora vem, vamos comer que já é tarde!
* * * * * * *
Naquele mesmo instante, na mansão do general Tarquinius, Drusilla Antónia desesperava-se. Seu amado esposo contorcia-se no leito, premido pelos fortíssimos espasmos da dor excruciante que lhe acometia o abdómen.
Não sabendo mais o que fazer para aliviar as terríveis dores que atacavam, impiedosamente, seu querido Caius, mandara buscar o médico que, naquele momento, examinava, pacientemente, o doente.
– É chegado o momento de propinar-lhe o opium, Drusilla – cochicha-lhe o facultativo, após minucioso exame. – Doravante, ele não suportará mais as dores. Entretanto, advirto-te: o efeito anestésico durará pouco tempo e, em pouquíssimos dias, nenhum alívio mais lhe trará.
– Que faremos então, Sempronius? – pergunta ela, com os olhos mareados de lágrimas. O médico olha-a, sério, no fundo dos olhos, e pensa por instantes. Era cruel o que ia dizer-lhe.
– Sei que amas Caius mais que a ti mesma, Drusilla, pois sois meus amigos, há muito tempo – diz o médico, segurando, ternamente, as trémulas mãos da matrona. – E sei também que, por amá-lo tanto, não desejarás vê-lo extinguir-se entre sofrimentos inimagináveis, sem nada podermos fazer para minimizar-lhe as excruciantes dores. Só nos restará uma saída, então, quando o opium deixar de fazer efeito: dar-lhe um m piedoso!
– Não!... – grita, aterrorizada, Drusilla Antónia, retirando, abruptamente, as mãos que o médico segurava entre as dele. – Não, Sempronius!... Isso, não!
– Mas, Drusilla, não há outra saída! – diz o médico, tentando convencê-la. – é terrível, mas é a única coisa que poderemos fazer por ele!... Propinar-lhe-ei forte e fatal dose de digitalis67 e seu decesso dar-se-á rápido e sem dores!
Drusilla Antónia olha para o médico, cheia de horror. Quis xingá-lo, descarregar nele toda a sua frustração, a sua raiva, o seu medo, mas calou-se.
O velho amigo não tinha culpa de nada. Limita-se, então, a abraçar-se a ele, soluçando.
– Pensa nisso, minha cara... – diz-lhe o médico, suavemente, ao ouvido. – Pensa nisso...
Pouco depois, a sós com o esposo que, finalmente ressonava, descansando, Drusilla Antónia, sentada ao lado do leito, acariciava-lhe, docemente, os cabelos já quase totalmente encanecidos. O médico propinara-lhe boa dose de opium, e o temporário alívio das dores favorecia-lhe dormir.
Pé ante pé, ela deixa o cubiculum e sai. Vai até o triclinium e, no altar doméstico, prostra-se de joelhos diante da estátua de Júpiter.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:08 pm

– Oh, Pai amantíssimo!... – suplica ela, com as lágrimas a rolarem-lhe face abaixo. – Demos-vos, ainda dias atrás, uma hecatombe e continuastes surdo a nossos apelos!... Que vos fizemos, Caius e eu, para que assim continueis, tão impassível a nossos rogos?... Olhai, grande Pai!... Dar-vos-emos outra hecatombe!... Creio que vossa sede de sangue aplacar-se-á e devolvereis a saúde a nosso Caius!... Amanhã, mesmo, irei ter com vosso
sacerdote no Capitolium e vos prometo, grandiosíssimo Júpiter!... Tereis mais uma hecatombe!
Lá do alto de seu pedestal, na e esplendorosamente esculpida em mármore alvinitente, a estátua permanecia na sua fria impassibilidade. E Drusilla Antónia, cheia de fé, movia os lábios, murmurando sentida e fervorosa prece ao pai de todos os deuses...
Cinco dias depois, ei-la a galgar, novamente, as escadarias do Capitolium. Dessa vez, ia só. Seu amado Caius encontrava-se tão debilitado que sequer conseguia levantar-se do leito. Resoluta, transpõe o imenso portal do templo, e a colossal estátua do deus dominava toda a nave com sua exuberante imponência de mármore alvinitente, incomensurável gigante, que as mãos de hábeis artesãos haviam esculpido, e que ora reinava soberbo, acima de suas pretensas criaturas a fervilharem como formigas a seus poderosos pés, rendendo-lhe honras, queimando nuvens de incenso e, continuamente, tributando-lhe preces e sacrifícios.
Antes de procurar a porta que dava para o immolatorium, Drusilla Antónia coloca-se diante da estátua de Júpiter e, ousadamente, arrosta-o, fixando-lhe, firmemente, os olhos no rosto severo.
– Grande Pai!... – murmura ela, súplice. – Por que vos fazeis surdo a meus rogos?... Não vedes que nosso Caius apodrece em vida?... – e lágrimas brotam-lhe, aos borbotões, dos tristíssimos olhos. E, cheia de dor, prossegue, encarando, fixamente, o rosto do ídolo: – Mal lhe suporto o hálito pútrido!...
Oh, grande e misericordioso Júpiter!... Que vos fez meu adorado amor?...
Sentis tanta raiva assim dele?... Olhai bem, que hoje vos aplaco a sede com nova hecatombe!... E vos prometo, ainda, se restabelecerdes a saúde a Caius, mandar imolar, em vossa honra, uma rês, diariamente, durante um ano todo!...
Do alto de seu imenso pedestal de granito negro, o colosso de Júpiter permanecia frio, insensível e imóvel, envolto numa nuvem de aromal incenso de mirra.
Segurava, ameaçadoramente, o raio, à mão, como se fosse arremessá-lo, a qualquer instante, calcinando, inopinadamente, aquele mundéu de fiéis que se juntava a seus pés!
Cheia de fé, Drusilla Antónia acompanha, uma vez mais, a matança dos bois em honra de Júpiter Capitolinus. Novamente, sente-se enjoar, grandemente, pelo odor adocicado do sangue a jorrar quente e aos borbotões das gargantas, precisa e rapidamente degoladas pelo hábil cutelo do sumo sacerdote. Uma centena de libações, oferecidas em gigantescas taças fundidas em ouro puro e cheias de sangue ainda fumegante, para aplacar a ira e a sede de Júpiter Capitolinus!
A matrona acompanhava, com o coração carregado de fé, cada taça transbordante de sangue que os acólitos da cerimónia depositavam aos pés da estátua do deus e se juntava às súplicas que os sacerdotes faziam à divindade, em nome de Caius Petronius. Depois de quase três horas, a matança chega ao m, e o sumo sacerdote, embebendo um lenço de seda alvinitente na derradeira taça de sangue deposta aos pés da estátua, entrega-a a Drusilla Antónia.
– Colocai esse sangue consagrado sobre o ventre do general, domina – diz o sumo sacerdote. – Nele está toda a força de nosso pai Júpiter, e constatareis com que furor vê-lo-eis curar vosso esposo!
Drusilla Antónia apanha, respeitosamente, o tecido manchado de sangue e sai. Atravessa a imensa nave do templo e, ao transpor o altíssimo portal do santuário, volta-se, instintivamente, para trás. Lá no fundo, perdido no meio das abundantes brumas do incenso de mirra, Júpiter olhava-a, cheio de raiva. “Delendeabo essa templa et in treabus deabus ea reedi cata!...”, uma voz potentíssima explode dentro de sua cabeça. A matrona sente-se zonzear, e um forte calafrio percorre-lhe o corpo de alto a baixo. “Oh, Júpiter, meu pai!...”, exclama, cheia de temor. Terrível ideia perpassa-lhe a cabeça:
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:08 pm

“Aqueles cristãos enfeitiçaram-me!...”, murmura baixinho e se põe a descer as escadarias, ligeira, e atravessa a praça quase a correr, em direcção da liteira que a aguardava numa das ruas laterais.
– Tem fé, meu amor!... – exclama Drusilla Antónia, passando o lenço manchado de sangue sobre o ventre de Caius. – Jurou-me o sumo sacerdote do Capitolium que este sangue consagrado a Júpiter curar-te-á, instantaneamente!
– Oh, Drusilla!... Drusilla!... – murmura o general, com os lábios ressecados e partidos pela sede constante. – Ainda crês que nosso Pai Júpiter irá lembrar-se mim?... Não, meu amor!... – prossegue ele, com os olhos brilhantes pela febre altíssima. – Deixa-me morrer...
– Não!... Não!... Enquanto houver luz em teus olhos, meu amor, lutarei por ti!... – grita ela, alçando-o aos braços e o apertando forte de encontro ao peito. – Se te fores, vou-me em seguida!...
E, segurando-o assim tão perto, tão fortemente jungido a si, percebe-lhe, estarrecida, o hálito apodrecido, fétido, insuportável. “Ele apodrece!...”, pensa, com os olhos cheios de lágrimas, e os soluços a sacudirem-na, violentamente. Como estava magro!... Onde se escondia o homenzarrão forte, bonito e tão valentemente destemido que fazia tremer o inimigo só de ouvir falar-lhe o nome?... “Se te fores, mato-me, em seguida!...”, pensa e estremece de tanta dor. “Vinde a mim, todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei...”68 Estranha e potente voz grita-lhe, de inopino, dentro da cabeça. Horrorizada, levanta-se e, apertando os ouvidos, exclama:
– Afasta-te de mim, demónio!...
– Que tens, meu amor?... – pergunta Caius, espantado com a atitude da mulher e se esforça ao máximo para erguer-se do leito. Mas, encontrava-se tão fraco que a vista se lhe escurece e a respiração principia a tornar-se-lhe ofegante. Gélidas gotas de suor brotam-lhe à testa.
– Oh, assustei-te, meu amor? – acorre ela, solícita, a enxugar-lhe o suor que abundava, molhando-lhe as vestes.
– Diz-me, Drusilla, por que gritaste?... – insiste ele, tomando-a pela mão.
– Não foi nada!... Assustei-me!... – mente ela.
– Não cas nada bem, mentindo-me, meu amor!... – diz ele, olhando-a nos olhos.
– Está bem!... – aquiesce ela, abrindo ligeiro sorriso. – Quando é que consegui mentir-te alguma vez?
E passa a narrar a Caius a estranha aventura que vivera no templo cristão, e as estranhas vozes que passara a ouvir desde então. Ele a escuta, sem interromper, demonstrando um interesse que Drusilla Antónia chegou até a estranhar.
– Vejo que isso te perturbou, meu amor!... – exclama ela, abraçando-o. – Não sabes o quanto me arrependo!... Mas, crê!... Fi-lo por ti!...
– Eu o sei, meu amor!... – diz ele, conseguindo sorrir para ela, a despeito das dores intensas. – Entretanto, tenho também algo a dizer-te: faz três dias que me aparece em sonho um homem de meia idade, de barbas e cabelos longos e se diz pescador. No sonho, presenteia-me com um cesto repleto de peixes prateados e ainda vivos, e me diz que me traz os peixes a mando de seu Mestre!... E eu, então, como dos peixes e me curo, instantaneamente!...
Esse sonho vem se repetindo exactamente igual, por três dias, e essa noite, intrigado, perguntei ao pescador: “Quem é teu Mestre?...” Ele, então, olhou-me, fundo, nos olhos, e disse, com a voz cheia de ternura: “Meu Mestre é pescador de almas!...”
Drusilla Antónia olha, espantada, para Caius.
– O feitiço alcançou-te, também!... – exclama, apavorada. – Oh, Júpiter Capitolinus!... Mais essa agora!...
– Oh, não!... – diz Caius, sereno, segurando a mão dela. – Não creio que os demónios intentem curar alguém!... Não lhes é do feitio, não concordas?...
– Oh, não sei, não!... – responde ela, receosa. – os senhores das sombras vivem a rondar-nos a todo instante, meu amor!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:08 pm

– Como disseste que era o pregador cristão? – pergunta Caius.
– Ah, meu amor!... Não é melhor esquecermos tudo isso?
– Não, Drusilla – diz ele, firme. – Pelo que me descreveste de Rufus, é ele o pescador que me visita em sonhos...
– Que dizes?!... – brada ela, aterrorizada, dando um salto e se levantando da cama. – Se for ele, poderemos mesmo ter certeza: os cristãos são terríveis feiticeiros!
– Insisto, Drusilla!... – diz caius, resolutamente. – Desejo ver Rufus!...
A matrona olha para o marido, cheia de dúvidas. Sonda-lhe o rosto esquálido, quase cadavérico. Os olhos súplices convencem-na. Como poderia deixar de atender a um pedido dele?... Determinada, levanta-se e sai. Ia em busca de Rufus.
____________________________________________________________________________________
64. Nos antigos templos pagãos, lugar onde se imolavam os animais.
65. Divindade mitológica.
66. Ópio, em latim – potente narcótico, extraído dos frutos imaturos da papoula.
67. Digitalis pupurea, planta herbácea eurasiana, cujas folhas fornecem a digitalina – substância cristalina empregada como tónico cardíaco.
68. Evangelho de S. Mateus, 11.28.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:09 pm

Capítulo 6. Conhecendo Jesus
Rufus olha, demoradamente, para o homem que se achava prostrado diante dele, no leito. Estranhamente, pareceu-lhe já tê-lo visto antes, mas não conseguia lembrar-se de onde.
– General... – diz-lhe, timidamente, pois o outro achava-se adormecido.
Caius Petronius abre os olhos e tem um sobressalto: era ele!... Tenta soerguer-se na cama, mas não tinha forças.
– Permanecei deitado, domine!... – ordena-lhe, firme, o missionário cristão.
Em seguida, aproxima-se mais do leito, estende as mãos sobre o doente e, elevando a voz, diz, súplice:
– Senhor Jesus!... Oh, amantíssimo Mestre!... Olhai por nosso irmão que tanto sofre!... Derramai sobre ele o vosso amor!... Restituí-lhe as forças, Senhor!...
De um canto do amplo e luxuoso cubiculum, Drusilla Antónia, Iustus e Dulcina acompanhavam, em silencioso respeito, a fervorosa prece de Rufus.
E, facto inusitado acontece: a matrona, que se mantinha altamente vigilante, pois ainda temia que os cristãos pudessem conjurar algum terrível sortilégio contra seu amado esposo, passa, estarrecida, a observar que as feições do doente iam, paulatinamente, adquirindo uma tonalidade rósea, substituindo a palidez cadavérica que ele possuía até minutos antes; a respiração, outrora difícil e entrecortada por dolorosa apneia, regularizava-se, ganhando níveis de normalidade.
Caius, então, readquirindo súbita e instantânea força, busca, afoitamente, com os olhos, pela esposa e, quando se acham, fixam o olhar um no outro, e uma explosão de alegria ilumina-os.
– Caius!... – grita ela, correndo e se lançando aos braços que ele, amorosamente, estendia-lhe.
– Estou bem, meu amor!... – grita o general, sentando-se no leito, muito bem disposto. – Rufus curou-me!...Drusilla Antónia então se volta e, banhada em lágrimas, lança-se aos pés do tímido pregador cristão, que se sentia vexadíssimo, com a atitude de espontânea humildade e gratidão que revelava a finíssima dama.
– Oh, não!... Não, domina!... – exclama ele e, amorosamente, segura a matrona pelas mãos e a levanta do chão.
Caius Petronius, tomado de intensa emoção, soluçava. As terríveis dores haviam sumido por completo!
– Oh, Rufus!... Rufus!... – diz-me o que queres que faça por ti e eu farei!... – exclama o general, entre lágrimas de alegria e de gratidão. – Sou um homem muito rico!... Diz-me o que desejas, e eu te darei!...
– Nada desejo, senhor... – responde o pregador cristão, com sincera humildade. – Nada fiz para merecer pagamento algum, pois quem vos curou foi Jesus!... Eu apenas lhe servi de instrumento, nada mais!...
– Oh, és por demais modesto, Rufus!... – exclama Drusilla Antónia, agora felicíssima com o restabelecimento de seu Caius. – Entretanto, sei que és infinitamente pobre!... Vamos!... Aceita o que te dá meu adorado esposo!
– Cara domina, sou-vos imensamente grato pela oferta que me fazeis – diz Rufus, encarando firme a matrona nos olhos. E, sem perder a afabilidade em nenhum momento, prossegue: – entretanto, Jesus, o ser mais poderoso que este mundo já viu, nada tinha de seu!... Pregou e viveu, ele mesmo, na mais honrada pobreza, posto que era um simples carpinteiro, e nos deu o exemplo vivo de que as coisas transitórias da vida têm apenas o seu valor relativo!... Nada mais que isso!... Ensinou-nos que deveríamos cuidar dos tesouros da alma – riquezas que a traça e a ferrugem não corroem e os ladrões não roubam!69
Drusilla Antónia e Caius entreolham-se, admirados com a lógica e a sinceridade nas palavras do homem. Até então, tudo o que se referira à religião custara-lhes caro, muito caro...
– Tenho fome, querida... – diz Caius Petronius, olhando para a esposa. Uma alegria intensa estampa-se no rosto da mulher.
– Mandarei que te façam um convivium, como nunca tiveste!... E com mensae postremae70 que jamais provaste em lugar algum!... Agora, entretanto, a comissatio!...71 Por ora, permanece no leito um pouco mais!...
Não te quero por aí, fazendo traquinagens!... – exclama ela, com os olhos brilhantes, e grita, feliz: – Iustus, a postos!... ao trabalho, sem delongas, que temos muito a fazer!
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O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:09 pm

Drusilla Antónia deixa, apressada, o cubiculum, seguida pelo majordomus e pela criada. Caius permanece no leito, e Rufus senta-se a seu lado, em confortável cadeira, fazendo-lhe companhia.
– Omnia vincit amor!...72 – diz Rufus, altamente comovido com as demonstrações de legítimo carinho e amorosa atenção que a matrona dispensava ao marido.
– És meu principal convidado para o convivium, Rufus – diz Caius Petronius, altamente comovido, ao pregador cristão.
– Não me leveis a mal, general, mas não posso aceitar essa homenagem que me fazeis – replica o homem, com sincera humildade.
– Como, não?!... – estranha Caius. – Realizaste o maior prodígio que já presenciei em toda a minha vida!... quero mostrar-me aos meus principais amigos e lhes dizer que tu és o principal responsável por isso!...
– Sei que realizamos prodígios fantásticos, general! Mas, nada tão grandioso perto do que realizou Jesus em sua curta vida terrestre!... – diz, humilde, o missionário. – Sei que vos encontrais altamente agradecido pelo que hoje recebestes. Entretanto, as honras e tributos do mundo não nos interessam. Ensinou-nos o amantíssimo Mestre que os que buscam fazer o bem com ostentação já recebem seu galardão de antemão, aqui mesmo, na terra;73 mas, o mundo que nós, os cristãos, almejamos não é este!... Ensinou-nos o Cristo que seu reino não é deste mundo!74
– Estranha moral essa pregada por teu deus!... – observa, admiradíssimo, o general. – De todas as criaturas que conheço, sei que nenhuma delas jamais declinaria de quaisquer riquezas e de glórias que se lhe oferecessem!... Entretanto, vós deixais escapar tudo isso, assim, sem mais nem menos?... desculpa-me, Rufus, mas me é extremamente difícil entender isso!– Parece-vos estranho, senhor, porque vossa vida se volta, exclusivamente, aos valores do mundo!... Porém, que vos deu o mundo?...
Glórias transitórias e dores, nada mais que isso!... Onde é que estavam os vossos amigos leais, ainda há pouco, quando estáveis mesmo à beira da morte?... Sequer vos vinham visitar, com medo da doença!... Não é assim?...
E o Império?... Quando veio o Imperador visitar-vos alguma vez?... E vós não trouxestes tantas glórias a Roma?...
Caius Petronius Tarquinius ouvia, cabisbaixo, o missionário cristão.
Calava-se diante de argumentos tão fortes.
– Mesmo Júpiter Capitolinus... – prossegue Rufus, que agora ia tocar na ferida mais dolorosa do general: a fé. – Mesmo Júpiter... Não prometestes a ele uma hecatombe?...
– Demos-lhe duas... – diz o general, em voz baixa, sem encarar o outro.
– E, mesmo assim, ficou insensível a vossos rogos...
– é... – concorda Caius, ainda sem coragem de olhar para Rufus.
Nesse ínterim, Drusilla Antónia adentra o cubiculum.
– Passemos ao triclinium, que a comissatio está pronta!... – observa, alegre, a matrona.
– Acautelai-vos, general, das glórias do mundo, para que algo pior não vos aconteça! – diz o missionário cristão. E prossegue, levantando-se, resoluto: – Agradeço, sinceramente, tudo o que desejastes fazer por mim, mas, em verdade, nada posso aceitar!... Nem mesmo a comissatio!
Em seguida, olha, demoradamente, para Caius e, depois, para Drusilla Antónia. faz longa reverência diante de ambos e sai abruptamente.
– Que lhe disseste, Caius?... – pergunta, preocupada, a matrona e sem nada entender sobre a atitude do homem.
– Melhor perguntares o que me disse ele, minha cara... – diz caius, entre pensativo e melancólico.
Pelo resto daquele dia, o general permaneceu no leito. sentia-se miraculosamente bem, as terríveis dores haviam desaparecido por completo e estava até sentindo fome!... encontrava-se tão bem disposto que tinha desejo de levantar-se, de caminhar pela casa e de ir até o viridarium e passear entre as aleias floridas. entretanto, Drusilla Antónia permaneceu vigilante e não admitiu que ele deixasse o cubiculum de jeito nenhum. Na manhã do dia seguinte, porém, despertou bem mais disposto e conseguia caminhar, se bem que ainda com certa dificuldade, em virtude da extrema debilidade física em que se encontrara até então.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:09 pm

Contudo, misteriosamente, sentia-se mais e mais fortalecer à medida que as horas passavam. Havia tomado leve refeição, constituída de sopa de legumes e de pequeno pedaço de pão. A esposa seguia-o, fazendo-lhe companhia, pois ele queria visitar cada canto da casa. À entrada do triclinium, onde se localizava o altar dos lares – as divindades domésticas –, Caius pára diante da estátua de Júpiter. O fogo sagrado bruxuleava aos pés do níveo ídolo, e Drusilla Antónia havia acendido longa vareta de incenso de mirra que queimava, lançando ao ar uma coluna de fumaça branca que subia em forma de espira.
Caius Petronius olha, longamente, para o rosto da estátua do patrono de sua casa. Depois, passeia os olhos pela efígie do pai, gravada em cera e também colocada no altar, ali bem ao lado de Júpiter. Ao nascer, seu pai consagrara-o à tutela daquele numen e, desde então, fora aprendendo a cultuar e a reverenciar o deus, com especial carinho e sempre cheio de deferência. Volta a olhar, demoradamente, para o rosto frio e impassível de Júpiter e meneia a cabeça, em patente demonstração de desagrado e de reprovação. “Traidor!...”, pensa o general, mantendo firme os olhos no rosto do ídolo de mármore alvinitente. “Fostes vencido por um deus estrangeiro, um judeu carpinteiro!... Não vos envergonhais disso?...” E estranha cólera foi assenhoreando-se de Caius Petronius. Num ímpeto, lança-se sobre a estátua e, com todo o furor que lhe permitia as parcas forças, atira a estátua ao chão, espatifando-a em mil pedaços.
– Oh, não, Caius!!!... – grita Drusilla Antónia, espantadíssima com a atitude do esposo. – Que fizeste?!... Acabas de destruir a estátua de teu numen sagrado!
– Que me vale um deus imprestável e que se faz surdo e insensível aos meus apelos?... – diz ele ainda ofegante pelo rompante. E, devagarinho, sentou-se no chão, posto que o esforço fizera-o perder a sustentabilidade das pernas. Passa a mão sobre a testa e sobre o rosto para enxugar o suor frio que lhe exsudava, abundante, em grossos bagos, e depois, prossegue cheio de mágoa: – Melhor matá-lo, de vez, em meu coração!...
– Oh, meu Caius!... Meu querido Caius!... A dor suprema mutilou-te a alma a ponto de execrares o deus de teus antepassados!... – diz a matrona, também se sentando no chão ao lado dele e o abraçando ternamente.
– Não, minha cara!... – exclama o general, com os olhos cheios de lágrimas. – Não estou matando o deus de meus antepassados!... Mato um deus que já estava morto e o troco por outro – o Deus vivo, que me tirou da gafa da morte!
– Não entendo o que dizes, Caius... – diz a matrona, olhando-o, confusa.
– Simples, minha cara: doravante sou cristão! – declara ele, olhando-a, firme, nos olhos.
– Que dizes?!... – exclama ela, levantando-se, abruptamente, cheia de espanto. – renegas a religião de teus antepassados?!... Oh, Caius, não é porque te salvaram da morte, coisa que ainda me suscita dúvidas, pois não deves te esquecer de que, concomitantemente, demos duas hecatombes a Júpiter Capitolinus!... Como podes ter tanta certeza de que não foi nosso Pai Júpiter que te devolveu a saúde e não o deus estrangeiro a quem nunca rendeste uma única homenagem sequer?... Não te parece estranho?... Como Ele poderia gostar de ti, se nem te conhecia?
Caius olha, demoradamente, para o rosto nervoso da esposa. Os argumentos dela pareceram-lhe, de repente, tão infantis, como infantil e vazia se lhe afigurava a crença que abraçara pela vida inteira. “Os ídolos principiam a morrer...”, ouve ele, no recôndito da mente. “Todos cairão, um a um, vencidos e derrotados, aos pés do Cordeiro...”, prossegue a voz, e seus olhos enchem-se de lágrimas.
Drusilla Antónia espanta-se. Como seu marido estava frágil!... Agora andava chorando a torto e a direito!... Onde é que se escondia o valoroso, destemido e intrépido general de Roma?... Caius Petronius estava deveras irreconhecível.– Não achas melhor pensares um pouco mais, antes de te declarares cristão, assim, abertamente?... – observa ela, cheia de apreensão. – primeiro, darei baixa no exército... – diz ele com a voz tremendamente mudada, muito diferente do tom que sempre lhe fora habitual: forte, alto, decidido. Agora, ele falava mansamente, tinha o semblante tranquilo e pensava muito, antes de emitir uma frase. – Depois, dedicar-me-ei a conhecer, profundamente, a seita dos cristãos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:09 pm

– Oh, meu amor!... – diz Drusilla Antónia, abraçando-se a ele. – Temo tanto que essa tua atitude venha a trazer-nos muitos dissabores!... Tu sabes o quanto os cristãos são malvistos e execrados!... Tenho a absoluta certeza de que todo o patriciado romano rir-se-á de nós, ao saber-nos seguidores do carpinteiro judeu!... Diz-me, com toda a sinceridade: não temes o escárnio público?
Caius Petronius olha-a, longamente, nos olhos. Amava-a muito e não gostava de indispor-se com ela.
– Meu amor – diz ele, sem demonstrar o mínimo de impaciência, mesmo sabendo que ela tentava demovê-lo daquelas ideias –, pouco se me importa o que Roma ou o Império todo diga sobre minha vida!... Quando sentimos o bafejo pútrido da morte, que vem dar-nos o seu beijo fatal, e quando perdemos de vez as esperanças, vendo frustradas e malogradas todas as tentativas de escaparmos da algidez da noite eterna do frio Averno, vemos quantos amigos temos de verdade!... Os meus, minha cara, foram tão poucos a me visitar que, contando-os aos dedos de uma só mão, garanto-te que sobrou a metade dos dedos por contar!... Encontrava-me tão desesperançado, tão perdido no meio das trevas da aflição e, de repente, fez-se o Sol em meu viver!... Ingrato seria eu, se não reconhecesse de onde me veio a salvação!... Não, Drusilla, não me engano!... Estou convencido sobre a veracidade da doutrina dos cristãos!... e, digo-te mais: paradoxalmente, hoje, seria capaz de dar minha vida por Jesus!... ele ma salvou, e eu a dou por Ele!
Drusilla Antónia olhava-o, sem entender muita coisa do que ele lhe falava. Mas, com profundo suspiro, principiava a resignar-se: tinha de volta o seu amor!... Que mais desejaria neste mundo?... Cristão ou não, o que importava é que ela o tinha de novo ali, fortalecendo-se a olhos vistos e, em pouquíssimo tempo, agora tinha a absoluta certeza, estaria bonito e forte como antes!... E, como era de seu feitio, abraça-o, de inopino, e o cobre de beijos, até cansá-lo. Ele não era o seu amor?...
* * * * * * *
A notícia do rápido restabelecimento de Caius Petronius chegou até Cornelius Helvetius. Fortemente emocionado, ainda segurava às mãos a tabula que Drusilla Antónia lhe mandara, havia pouco, por um mensageiro.
“Então ele se recuperou!...”, pensa, alegre, o velho senador. Entretanto, intriga-se: “Como é que conseguiu, se andava mesmo à beira da morte?...
Preciso vê-lo!...”, e se ri, contente. Cornelius andava tão mal, tão desgostoso com as confusões em que vivia se metendo a neta, mas, mesmo assim, arrebanharia forças para visitar o velho amigo. Custava-lhe crer que Caius conseguira restabelecer-se de doença tão grave, pois segundo os relatos que obtivera de Drusilla Antónia, o esposo encontrava-se moribundo. “Ah, Caius, Caius...”, pensa, cheio de pesar, o velho senador. “És um dos últimos baluartes do Império!... Se te vais, mais um passo damos para a derrocada final!...” Com o inesperado restabelecimento do amigo, Cornelius sentia-se deveras feliz e também, aliviado, pois Caius seria a única pessoa, em toda a Roma, a quem, de olhos fechados, confiaria a tutela de Susanna. E, além disso, sua neta teria a constante presença de Drusilla Antónia a acompanhar-lhe os passos, orientando-a com sabedoria e amor, como se lhe fosse a verdadeira mãe. “Agora posso morrer feliz...”, pensa o velho, com os olhos cheios de lágrimas. Resoluto, Cornelius bate palmas, do tablinum onde se sentara para ler a correspondência, e ordena ao mordomo que assoma, solícito, à porta.
– Aulus, prepara-me a liteira, que vou sair.
O outro se espanta e, momentaneamente, fica sem acção. Fazia anos que o senador não deixava a villa.
– Vamos, homem, mexe-te! – exclama Cornelius, agastando-se com a parvalhice de seu mordomo. Uma hora depois, amparado pelo major domus que com ele viera, Cornelius galgava, dificultosamente, os degraus que davam ao atrium da casa de seus amigos.
– Cornelius!... Que surpresa!... – exclama Drusilla Antónia, contentíssima, recebendo o velho amigo à porta. – Vem, que Caius aguarda-nos no peristylium!... Far-lhe-ás uma surpresa!... Nada lhe disse sobre a tua chegada!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:10 pm

O general abre-se em largo sorriso de contentamento ao ver o velho companheiro que assomava por um dos corredores. Levanta-se e corre a abraçá-lo, ajudando-o a sentar-se num canapeum, pois o outro caminhava com extrema dificuldade, amparado por Drusilla Antónia e pelo major domus.– Oh, Cornelius!... Cornelius!... – exclama Caius, felicíssimo. – Que bom que vieste!
– Folgo em vê-lo recuperando-se, Caius!... – diz o velho senador, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, pois o esforço para caminhar judiava muito dele.
Drusilla Antónia desculpa-se e se afasta para dar algumas ordens ao majordomus. Os dois amigos permanecem sós e se entreolham, emocionadíssimos, por alguns instantes.
– E como estás, meu bom amigo? – pergunta Caius, despendendo o máximo de atenção ao combalido amigo.
– Mal, meu caro, muito mal... – diz Cornelius, olhando, triste, para o outro. – Acho que foi até uma temeridade vir até aqui, ter contigo!... Se Tacitus, meu médico, disso tomar conhecimento, passarei por maus bocados!... Mas, tinha duas coisas a fazer, antes de morrer: ver-te novamente cheio de saúde e... – cala-se, então, por instantes, como a se preparar para o que iria dizer. E, depois de algum tempo, esforçando-se ao máximo para conter a emoção que teimava em embargar-lhe a garganta, prossegue: – E, a segunda coisa, é um pedido que te faço, do fundo de minha alma, e espero que não mo recuses, Caius!...
– Ora, Cornelius!... – diz o general. – Que te negaria eu?– Pois bem, meu amigo – continua o outro –, sei que meu fim se aproxima!...
– Ora, Cornelius, deixa de dizer asneiras!
– Não, não me engano!... – sorri, tristemente, o velho senador ao outro que lhe cortara as palavras, reprovando-lhe a triste afirmação e continua: – Estou morrendo, meu caro, e, diferentemente, de ti, que não sei de onde tiraste de volta a tua saúde, a minha esvai-se, celeremente!... Morro e temo deixar Susanna, minha dilecta neta, sozinha, neste mundo terrível em que vivemos!... Pensei casá-la, mas com quem?... com o pulha de meu sobrinho, filho de minha irmã Metella, que se mostra doido por ela, mas que é um monstro, um assassino e que, com toda a certeza, irá machucar e magoar muito a minha menina!...
Cornelius cala-se, altamente comovido, e enxuga uma lágrima que lhe rolara pelas faces macilentas e grandemente enrugadas.
– Que pensas fazer, então, Cornelius? – pergunta Caius, tocado pela aflição do amigo.
– Susanna é muito rica, pois é minha única herdeira, Caius – continua o velho. – Se morro e a deixo por aí, sozinha, choverão os interesseiros, os rapinadores, que tentarão, a todo custo, espoliar-lhe os bens!
– Além de teu sobrinho, nenhum outro pretendente sério dela se aproximou? – pergunta Caius. – Quantos anos tem Susanna?
– Já fez catorze anos – responde Cornelius. – Sei que está na hora de arranjar-lhe um casamento.
– Sim – concorda Caius. – Mas, a quem darás a tua neta em casamento?
– Outro dia, ela me trouxe alguém que poderia, talvez, ser-lhe um bom marido. Lembras-te de Lucius Antoninus Rimaltus? – pergunta Cornelius.
– Como não?... – responde Caius. – O senador Rimaltus é velho conhecido meu, mas ao que me consta, deixou Roma há muito tempo.
Reencontraste-o, então?...
– O neto dele – diz Cornelius. – Susanna encontrou o rapaz num banquete de Nero, numa situação estranhíssima, quando um dos leões escapou da jaula e atacou os convivas!... Parece-me que o jovem ajudou minha neta a voltar para casa.
– E que te pareceu o rapaz?
– De berço, meu caro!... De berço, como nós!... – exclama Cornelius, com os olhos brilhantes. – Aliás, foi criado e educado por Lucius, o avô, pois o pai, Caius Longinus, morreu ainda jovem, na guerra, deixando-o órfão. É um excelente rapaz, forte e educado, digno de esposar minha neta!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 07, 2024 7:10 pm

– E, por que não acertas o noivado com ele? – pergunta Caius. – tua neta não gostou dele?
– Tenho a certeza de que gostou!... – exclama Cornelius, animando-se. – entretanto, o demónio de Iulius, meu sobrinho, interpõe-se entre eles como uma sombra sórdida!... Não desgruda de Susanna um só dia, levando-a, para baixo e para cima, ao Circus Maximus e ao theatrum, e a enchendo de mimos e de agrados!... Não podes aquilatar o desgosto que isso me traz!
– Pois pode te alegrar, caro Cornelius! – exclama o general, contente. – O jovem a que te referes encontra-se muito próximo de mim!... é um de meus ordenanças!
– Pequeno mundo esse, não? – observa o velho senador, abrindo-se em largo sorriso de satisfação. – Dizes então que conheces e muito bem o jovem rimaltus?
– Como a palma de minha mão!... – diz Caius Petronius. – E não será fácil trazê-lo para junto de tua neta, não, meu amigo!... Fica tranquilo!... Se o rapaz, de facto, interessou-se por ela, daremos um jeito nisso!
Cornelius emite longo e profundo suspiro de alívio. Finalmente as coisas davam mostras de acomodar-se! Se caius empenhava-lhe a palavra, poderia confiar! Satisfeitíssimo, pareceu ganhar inusitado vigor à face e muda o rumo da conversa.
– Queres dizer, então, que te livraste de vez da gafa de Hecate?... – exclama Cornelius, iluminando o rosto com um sorriso. – Quem diria?
– Sim, Cornelius – diz o general, baixando os olhos. – Encontrava-me já desesperançado e pronto para deixar este mundo! – Mas, conta-me, Caius, como tudo aconteceu? – pergunta Cornelius altamente interessado.
Caius Petronius tarquinius fita longamente o vazio, sem nada dizer, enquanto duas lágrimas brotam-lhe dos olhos. Depois, ele as enxuga com a ponta dos dedos e diz:
– O deus dos cristãos curou-me, Cornelius!
– Que dizes?!... – espanta-se o velho senador, empertigando-se no canapeum. – Ouvi direito?... Disseste que os cristãos curaram-te?!
– Sim, meu amigo – responde o outro, fitando-o, firme, nos olhos. – Sei que isso pode parecer-te esdrúxulo e inusitado, logo em mim, que sempre fui fiel ao meu numen de nascimento!... Entretanto, estranhos factos aconteceram...
E, minuciosamente, Caius relata ao espantado senador seus misteriosos sonhos com o pregador cristão, e a consequente cura milagrosa que recebera das mãos deste, em nome de Jesus. Após o término do relato, Cornelius meneia, longamente, a cabeça e diz:
– Caius, sei que és um dos maiores generais que o Império já possuiu!
Louco seria eu, se duvidasse de tuas palavras; entretanto, o que me relataste é por demais estranho!... Não te precipitas em declarar-te cristão, assim, abertamente?... Sabes muito bem qual é a fama que acompanha os seguidores dessa seita!
– Sei, perfeitamente, Cornelius – rebate o general –, que o conceito que fazem dos seguidores do carpinteiro judeu não é nada agradável; entretanto, posso afiançar-te de que nada disso é verdadeiro!... Tudo não passa de calúnia e de difamação!... Como poderiam criaturas tão abjectas – como dizem que são os cristãos – fazerem o bem dessa maneira tão extraordinária como nunca se viu antes?... E sem nenhuma ostentação ou remuneração?...
E, olha, Cornelius, que lhe ofereci dinheiro e fama, e ele nada aceitou; pelo contrário, sentiu-se até ofender!
– Oh, Caius, Caius!... – exclama o velho senador, apertando forte a mão do amigo. – Acautela-te das coisas que não conheces!... Não estarias enfeitiçado?... Ouvem-se tantas coisas acerca dessa gente...– Juro-te, Cornelius – diz Caius, inflamando-se por estranha e potente força que o dominava, sempre que se referia à seita que abraçara –, que tudo o que te disse é verdade e que não me senti, em nenhum momento, coagido ou vítima de algum sortilégio desconhecido!... Nada disso: apenas coisas feitas às claras e dentro da mais rígida razão!... Muito mais racional, aliás, do que pregam os ilustres sacerdotes do Capitolium cuja única preocupação tem sido o quanto de ouro ofertamos ao gazo lácio do templo...
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