LUZ ESPÍRITA
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Página 1 de 6 1, 2, 3, 4, 5, 6  Seguinte

Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:41 pm

O pescador de almas
Válter Turini

pelo Espírito Monsenhor Eusébio Sintra

Palavras do Autor Espiritual
Nos primórdios do movimento cristão, o homem comum achava-se, indiscutivelmente, em situações ainda piores das que hoje se encontra, apesar da triste constatação, depois de se ponderar, seriamente, que a evolução muito pouco ou quase nada avançou, durante o transcorrer desse lapso de mais de dois mil anos de História. Contudo, enganam-se os que assim pensam!... É bem possível que a tirania e a vilania tenham ganhado tonalidades um pouco mais suaves de disfarçada polidez, mascarando o real sentido de sua frieza e crueldade, mas, se se cotejarem as duas épocas, poder-se-á, facilmente, aferir que boa parte da humanidade encontra-se já bem distanciada do nivelamento brutal que antes atingia a esmagadora maioria das criaturas.
Se, no grande panorama do mundo, o homem ainda é o grande sofredor – vítima de sua própria incúria e insensatez! –, por outro lado, o avanço das conquistas sociais no campo da previdência e assistência, embora incipiente, já é algo que se mostra palpável, mormente nos países ricos, facto que prova o real avanço em direcção à irmanação de todos os homens, aplainando, assim, equitativamente, os brutais desnivelamentos sociais, os principais causadores da segregação e do preconceito raciais.
Na Roma de antanho, panem et circenses – pão e circo – para engambelar e desviar a atenção da massa ignara e embrutecida; hoje, os modernos escravocratas usam de artifícios e subterfúgios não menos engenhosos e eficazes para alongarem o máximo possível o império das trevas da ignorância, a geradora de uma série de vantagens para os que almejam locupletar-se à custa do sangue humano!... Entretanto, Jesus, o insigne Senhor da Luz, permanece  el à Sua promessa de Consolador do Mundo e, embora tanto tempo já tenha se transcorrido desde a Sua passagem pelas terras da Palestina, Sua mensagem de paz e de consolo ainda não perdeu a validade: mantém-se mais evidente e actuante que nunca, a consolar os corações aflitos e a dar esperanças de que a vida não se finda sob a fria lápide de um túmulo; que continua, que vai mais além, a descortinar-se em regiões distintas, a receberem o homem segundo as obras que realizou no mundo, e não mais lhe dando estapafúrdias promessas simplistas de um céu de contemplação calcada na imobilidade ociosa, mas, sim, de trabalho constante em prol da própria evolução e da busca de conhecimentos infinitos, consoante a grandeza do Criador; nem, ainda, a ameaça de um inferno terrificante e assombroso, que lança o homem à danação eterna, sem a mínima chance de perdão e de reabilitação!... Que Deus seria esse?... Que Pai de misericórdia infinita condenaria seus próprios  lhos a tal degredo, sem qualquer chance de retorno a seus braços?... Nem mesmo o mais ímpio dos homens relegaria à sua prole tamanho castigo!...
Felizmente, o dealbar de Nova Era faz-se no horizonte da Terra!... A Ciência, a incontestável aliada da Verdade, aponta, indiscutivelmente, para o alto, desvelando os segredos do cosmo infinito e, ao mesmo tempo, aponta para baixo, revelando a intimidade do infinitamente pequeno, e ai daqueles que tentarem, doravante, pôr-lhe a mordaça!... A Liberdade de Expressão, finalmente, veio, como alavanca imprescindível à Evolução da Humanidade e a Verdade emergirá, cantando as marcescíveis glórias do Criador de todas as coisas!
Tupi Paulista, outono de 2006.

Eusébio Sintra
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:42 pm

Capítulo 1 - Mais uma vitória...
Caius Petronius Tarquínios, do alto de sua montaria, observa melancólico o campo de batalha, pejado de cadáveres. Uma saliva espessa, carregada de forte gosto amargo, invade-lhe a boca, e ele cospe, repetidas vezes. “Mais um galardão para depositar aos pés daquele monstro”, pensa, enquanto sente a boca enchendo-se, novamente, daquela baba absintada, e uma insofreável vontade de vomitar advém-lhe, fazendo-o curvar-se, acentuadamente, sobre a sela de seu cavalo, para premer fortemente o ventre. A voz de um de seus ordenanças tira-o daquela estranhíssima posição em que se colocara.
– Alguma ordem mais, general?
– Não, filho – responde ele com a voz fraca. – Faze soarem o toque de recolher e levantarem a flâmula de descanso. Que se distribuam rações de água e de pão. Dentro de duas horas, recolheremos nossos mortos e lhes daremos as honradas sepulturas.
– Estais passando bem, comandante?... – pergunta o jovem ordenança, percebendo que o outro se encontrava excessivamente pálido. – Desejais que vos traga um médico?
– Faz isso, Valerius – diz Caius Petronius Tarquinius. – Chama Cesonius, que eu o aguardarei em minha tenda.
Pouco depois, o velho general encontrava-se estirado sobre o catre recoberto de peles, e o médico examinava-lhe, cuidadosa e meticulosamente, o abdómen.
– Dói aqui, comandante? – pergunta o facultativo, apalpando-lhe, fortemente, à direita do alto ventre.
– Sim, aí, Cesonius!... – responde ele, com um gemido e contorcendo as feições num esgar doloroso. – Exactamente aí onde apertaste!...
– Tendes o fígado em frangalhos, comandante!... – diz o médico, encarando-o. E prossegue, demonstrando profunda preocupação: – Pela palpação, pude depreender que o órgão apresenta-se bastante avolumado; o ingurgitamento de vosso fígado é patente! O outro se limita a olhá-lo, esperando que lhe desse o resultado da anamnésia.
– Por ora, pouco posso fazer por vós; a não ser prescrever-vos infusões de matricária e de absinto e parcimónia na alimentação e, ainda, a completa abstinência de vinho. Entretanto, quando chegardes em Roma, é preciso que consulteis os sacerdotes de Aesculapius,1 o mais depressa possível – observa o médico.
Caius Petronius Tarquinius emite longo suspiro e nada diz. Depois, com um aceno de mão, despede o médico, que se afasta, fazendo ligeira reverência. A cabeça principia a martelar-lhe, nas têmporas, e o gosto amargo na boca é-lhe insuportável. Deitado de costas sobre o catre forrado de peles, olha desalentado para o tecto da tenda. Estava no m. Sabia que o m se lhe aproximava sorrateiro, cruel. Cospe a saliva grossa e amarga, e o cheiro de carne assada que se preparava no acampamento invade o ar, causando-lhe mais enjoo ainda. Ouve o riso e a algazarra dos jovens soldados – seus ordenanças – que bebiam vinho e jogavam dados, animadíssimos, no grande pátio, diante da tenda. “Ah, a juventude...”, pensa ele, olhando para as listras azuis e brancas da cúpula da tenda. “Que se reserva a essa juventude?...” Sabia que bom futuro não aguardava o povo romano. Tanta glória, tanta riqueza!... Os donos do mundo!... A águia voava soberana pelos quatro cantos da terra. Entretanto, não estava ele ali, na Gália, terminando de abafar mais uma rebelião? Quantas já não haviam acontecido?... Fecha os olhos e os preme forte. Estava cansado. Lembra-se da esposa, e profunda emoção invade-o. “Ah, Drusilla, que falta me fazem teus carinhos e teus conselhos!... Haverá, em todo o Império, criatura mais sábia que tu?...”, pensa ele e esboça um sorriso. Somente a lembrança da mulher amada para fazê-lo esquecer-se, temporariamente, dos desgostos que o vinham acometendo fazia já um bom tempo. “Sempre foste desmedidamente perfeita, durante esses anos todos; apenas pecaste numa só coisa, minha doce Drusilla: não me deste o tão sonhado herdeiro, o fruto de nosso amor!...”
– Agora, duzentos sestércios!...– Não, é muito!...
– Estás com medo?!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:43 pm

De fora, vem a saudável arenga e os gritos efusivos dos soldados, comemorando os resultados das partidas de dados. Isso o faz cogitar sobre o futuro daqueles rapazes e pensar sobre a sua própria vida. Como desejara ter um filho!... Entretanto, os deuses permaneceram insensíveis aos seus rogos, aliados aos de sua adorada Drusilla Antónia, que também não se cansara de suplicar aos imortais, frequentando-lhes, insistentemente, os diversos templos, espalhados por toda a cidade, e até haviam ido, em peregrinação, a santuários estrangeiros, famosos pelos milagres lá concedidos. Tudo em vão!... Quantos oráculos não haviam consultado?... Foram tantos os sacrifícios feitos em honra de tantos e de tão variados deuses!... Foram tantos os aruspícios!... E, a resposta era sempre e invariavelmente a mesma:
“Tereis muitos filhos!...” O tempo escoara-se, e tanto ele quanto Drusila Antónia envelheceram, sem terem recebido a graça de gerar o tão sonhado herdeiro!... E, com que pesar carregaram o eterno desgosto de verem frustrar-se, a cada dia que passava, o sonho eternamente acalentado e nunca realizado, culminando, por m, na senectude de ambos e na cruel constatação de que o que tão ardentemente desejavam não se realizaria jamais!... Por isso, talvez, é que se afeiçoava tanto àqueles jovens, filhos de patrícios amigos seus, que faziam questão de colocá-los nas mãos dele, para que os ensinasse a serem homens de verdade!... Toda a Roma sabia que o general Tarquinius tratava seus comandados como se fossem todos lhos seus!...
Caius Petronius Tarquinius dá um gemido de dor e tenta se virar no catre, procurando uma posição melhor. Roma... O que as legiões ora faziam era abafar as rebeliões; havia revoltas em quase todas as províncias. O imperador2 não tomava conhecimento: até já havia abandonado a Hispânia e a Britânia. As legiões lá sediadas haviam debandado e se passado para o lado inimigo!... O canalha apenas se dignara a decretar que os comandantes das guarnições sediadas naquelas regiões, dali para frente, passavam a ser considerados traidores da pátria e execrara-os publicamente. Em outros tempos, tais insubordinações afigurar-se-iam sobremodo intoleráveis e seriam afogadas num mar de sangue!... Quem diria!... Simplesmente, aquele imbecil execrava, publicamente, os insurrectos e decretava que não passavam de vis traidores e inimigos da pátria!... Havia feito tais coisas, dramaticamente, diante do Fórum e ido ao teatro tocar lira e cantar para uma súcia de bajuladores!... Será que estariam todos cegos?... Não enxergavam que o trono estava ocupado por um monstro?... Um monstro parricida!... Havia fortes indícios de que mandara envenenar o próprio pai adoptivo!... Claudius3 gozava de invejável saúde ao morrer. E Agrippina, sua mãe?... Fazia um ano já que havia morrido, e todos sabiam que a tinha mandado assassinar, alegando um pretenso crime de lesa-majestade!... A que ponto tinham chegado?... E a imperatriz Octávia?... Não conseguindo repudiá-la, como pretendia, sob a acusação de adultério, posto que a esposa sempre lhe fora el, subornou seu pedagogo, Anicetus, que acabou por confessar ter abusado da infeliz, condenando-a, assim, ao repúdio e à morte!
– Vosso remédio, comandante.
A voz do herbanarium tira-o das reflexões. Com alguma dificuldade, senta-se no catre e apanha o cálice que o outro lhe estende e ingere a beberagem, em largos goles.
Novamente só, deita-se no grabato recoberto de peles. A lembrança do antigo imperador fá-lo sorrir. Claudius havia criado um monstro pior que ele próprio!... Que maldição abater-se-ia sobre a família Domitia?... Sabia-se que procediam de dois dos mais valorosos ramos de distintíssimas famílias do patriciado romano, os Calvinus e os Enobarbus; entretanto, a loucura vinha, insistentemente, acometendo-os, um atrás do outro!... Agora, este que detinha a coroa, mostrava-se mais cruel e mais desumano que todos os seus antecessores juntos!...
Lá fora, a tarde caía lenta, e os rapazes haviam se aquietado. Certamente, estariam comendo e, apenas, ao longe, ouviam-se algumas gargalhadas.
– Trago vosso almoço, comandante? – pergunta um dos cozinheiros, entrando na tenda.
– Não, não desejo nada – responde ele e se levanta, meio cambaleante. Encaminha-se para fora, e a luz do sol fá-lo premer os olhos, para acostumá-los à forte claridade. As sentinelas que guardavam a entrada de sua tenda empertigam-se à sua passagem, batendo os tacões das caliga e umas às outras.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:44 pm

Ele dá alguns passos diante da tenda e observa a imensidão de tendas quadradas que se armavam, no ligeiro declive do campo que se estendia para baixo, em direcção do vale verdejante. O acampamento encontrava-se quieto; os soldados, possivelmente, faziam a sesta. Ainda tinha uma tarefa a desempenhar, antes de voltar para casa: precisava enterrar os mortos daquela derradeira batalha. Havia dado uma trégua aos remanescentes inimigos para que recolhessem os cadáveres dos seus; agora, era preciso que ele recolhesse os dele. Estava cansado daquilo, não mais sentia o prazer, o indescritível prazer da vitória. Seria, certamente, aclamado pelos patrícios e pela plebe e recebido com mais um aparatoso triumphus5 e incontáveis honras pelo... Como estava enojado!... Sentia-se enojado até em pronunciar-lhe o nome. Um príncipe!... Até onde havia chegado!... E, a dizer-se que havia lutado para pô-lo no trono!... Deveria era ter-se juntado aos que desejavam matá-lo!... Oh, como se arrependia de tê-lo defendido!...
Agora, pouco poderia fazer para desalojar aquela fera e expulsá-lo a pontapés do palácio real!... Sentia-se fraco, doente... Aquele verme enganara a todos!... Nos primeiros cinco anos de seu governo, mostrara-se tão humano, tão afável no trato!... Relegara ao seu praeceptore,6 Seneca,7 e à mãe, Agrippina, as questões mais importantes do governo; a si, auto-denominara-se de eterno aprendiz de ambos, ouvindo e deles acatando os sábios conselhos. Entretanto, pouco demorou para que a fera que dentro dele dormitava revelasse as fauces mais horrendas que se podia imaginar!... Bem depressa tratou de desfazer-se de seus dois mais preciosos alter egos: a mãe e o preceptor; àquela, depois de inúmeras tentativas de matá-la, simulando acidentes dos quais ela, milagrosamente, conseguira safar-se incólume, viu-se enredada, por fim, numa infame intriga, urdida pelo filho que, por esse tempo, já se havia aliado aos piores tipos de pessoas que possam existir, conseguindo, assim, Gusti cair-lhe o torpe assassinato, através de um inexistente crime de lesa-majestade; ao professor, amigo e filósofo, que tão esplendidamente o iniciara nas artes de bem governar, imputara-lhe o crime de alta traição, juntamente com o poeta e escritor Petronius,8 incluindo-os no rol dos que tomaram parte na conspiração dos Pisões, que pretendiam assassiná-lo. A Séneca, condenou-o a cometer suicídio; ao grande poeta Petronius, condenou-o à morte.
– Morbi animi perniciosiores sunt quam morbis corporis...9 – murmura baixinho e sorri. Depois, prossegue, cheio de amargura: – Eu tenho o corpo podre, e ele, a alma!...
– Comandante!...
Caius Petronius Tarquinius acorda um pouco irritado com os três rapazes que se achavam ali diante dele, olhando-o, apreensivos. A custo, adormecera havia poucos minutos e sonhava com Drusilla Antónia. No sonho, encontrava-se em sua villa, deitado no triclinium, recostando a cabeça ao colo da esposa, e ela lhe afagava, docemente, os cabelos, e ele se sentia deleitar, com a suavidade dos toques da mão dela.
– Soubemos que vos encontrais doente, comandante!... – diz, preocupado, um dos rapazes.
– Não há nada de grave, Antoninus – diz ele, mentindo e se levantando do leito.
– De facto, vossa aparência não é das mais agradáveis, comandante! – observa um outro rapaz.
– Sim, general – diz o terceiro jovem –, vossa pele encontra-se um pouquinho esverdeada!
– Acho que exageras, Silverius!... – exclama o velho comandante, mal disfarçando a irritabilidade que o acometia. E prossegue, depois de beber longos e muitos goles de uma taça com água: – Apenas uma ligeira indisposição. Não há motivo para tanta preocupação!
Os rapazes entreolham-se, muito pouco convencidos da veracidade das palavras do velho general.
– “Nullus locus est domestica sede iucundior!10” – exclama Caius Petronius Tarquinius, esforçando-se para mudar o humor ácido que o invadira. – Vamos para casa, que nossa missão aqui já se cumpriu!... Julius Vindex continua o vice-pretor da Gaula Cisalpina, e nada mais temos que fazer por aqui!...
Os rapazes entreolham-se, e seus olhos faíscam de alegria.
– Levantemos o acampamento e rumemos para casa!... – ordena resoluto Caius Petronius Tarquinius.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:44 pm

* * * * * * *
Drusilla Antónia passeava pelas aleias floridas do viridarium11 de sua villa. Naquela manhã, despertara feliz; sonhara com Caius Petronius e se animara mais ainda, pois tinha a certeza de que o marido estava retornando para casa. Sabia que ele não andava bem, ultimamente, e até já havia se queixado a ela, diversas vezes, sobre as fortes e constantes dores que vinha sentindo no abdómen. “Tu tens o fígado opilado. Por que não vais até o templo de Aesculapius?... Quem sabe lá não te darão um jeito?...”, dissera, preocupada, a ele. “Não tenho tempo para isso agora, minha cara!... Em primeiro lugar, chama-me o dever!... Os infames gauleses, uma vez mais, estão a dar-nos dores de cabeça e é preciso mostrar a eles quem é que manda!...”, respondera ele, rindo-se das preocupações dela. Por isso é que o amava e admirava tanto!... Pensava sempre na pátria e nos outros, acima de tudo!... Drusilla Antónia sorri, cheia de ternura, ao rememorar-lhe as feições queridas. Quantas vezes ele não declinara de coisas de que tanto gostava, somente para atender-lhe os mínimos caprichos?... E, ela se sentia lisonjear, ao vê-lo adulando-a e a cobrindo, sempre, de mimos e de eternas carícias!...
Ah, nem mesmo o tempo, que a tudo corrói, conseguira menoscabar o amor deles!...
– domina, um mensageiro da parte do nobre senador Cornelius Helvetius acaba de trazer-vos uma mensagem – diz uma criada, aproximando-se e a tirando desses pensamentos e lhe estendendo, com ligeira reverência, a correspondência, envolta num pano de linho branco.
Drusilla Antónia lê as palavras nervosamente rabiscadas na cera da tabula,12 numa caligrafia já bem conhecida sua, e seu semblante carrega-se de preocupação.– Dulcina, depressa, manda Iustus preparar a liteira!... – ordena ela para a criada. E prossegue, encaminhando-se, ligeira, para dentro de casa: – Vou sair dentro de meia hora!... Vamos, avia-te, sem delongas, que tenho muita pressa!...
Pouco tempo depois, enquanto transpunha os poucos quilómetros que separavam a sua casa da esplêndida residência do velho amigo de família e sacolejando, de leve, ao sabor dos passos dos carregadores de sua liteira, Drusilla Antónia cogitava sobre o que desejaria de si Cornelius Helvetius, para tê-la chamado, assim, às pressas.
– Ave, caríssima Drusilla!... – recebe-a o velho tribuno, no atrium de sua mansão.
– Ave, nobre Cornelius!... – diz ela, abraçando, ternamente, o velho amigo. E prossegue, enquanto se encaminhavam para o tablinum13, ainda repousando, amorosamente, os braços em redor do pescoço do velho senador: – Não me digas que pioraste!...
– Ah, Drusilla, Drusilla!... – exclama Cornelius Helvetius, osculando-a, terna e respeitosamente, à face. – Que bom que vieste, atendendo ao meu chamado!...
Uma vez acomodados no tablinum, refestelados em confortáveis cadeiras de buinho trançado, e servidos de bandejas de guloseimas, que serviçais prestimosos depuseram em rica mesa baixa, lavrada em madeira de lei, tauxiada em mar m e ouro, prosseguem a conversa.
– Diz-me, Cornelius, que é que te apoquenta, assim, a cabeça? – pergunta Drusilla, encarando-o, amorosamente, nos olhos, como era de seu feitio.
– Oh, minha boa amiga!... – exclama o velho senador, com a voz carregada de ternura por aquela mulher, a quem aprendera a amar e a respeitar, como a uma irmã, e que, coincidentemente, era a esposa de seu melhor amigo e companheiro de tantos anos. E prossegue, com a voz embargada pela emoção: – Tu e Caius Petronius sempre me fostes tão amigos e sempre estivestes a meu lado, nos bons e, também, nos maus momentos de minha vida!... – e se cala, por instantes, com a voz reprimida pela forte emoção.
Drusilla Antónia limita-se a encará-lo, também fortemente tocada pelas palavras do amigo.
– Não é segredo para ninguém o facto de eu me encontrar muito doente, minha cara... – prossegue, por m, o velho senador, após forte esforço para reprimir as emoções que o invadiam. – Entretanto, é a ti e a teu esposo a quem devo confiar minhas derradeiras vontades...
– Ora, Cornelius!... Deixa de dizer asneiras!... – exclama a matrona, ralhando, amorosamente, com o amigo. – Não creio que me tenhas aqui chamado para tais coisas!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:44 pm

– Sim, Drusilla, sei que esse assunto pode parecer-te penoso, mas é inútil postergá-lo! – diz o velho tribuno, emitindo longo suspiro. e, depois, fixando, demoradamente, o nada, como se ordenasse as ideias para o que iria expor, prossegue: – Tu e Caius Petronius sois, na realidade, os únicos e verdadeiros amigos que possuo neste mundo!...
– Não, Cornelius!... – atalha Drusilla. – Tens a Susanna Procula, tua adorável neta, e a Iulius Maximus, teu sobrinho, lho de tua irmã Metella!...
Estás, por acaso, esquecendo-te deles?...
Cornelius Helvetius fixa, demoradamente, na amiga, um par de insones e lassos olhos e abre um sorriso triste. Depois meneia, lentamente, a cabeça e prossegue:
– Ah, minha cara, para que, prematuramente, não concluas que ando caducando, deixa-me expor o que acontece!... antes de te mandar chamar, aqui esteve meu médico, a quem ordenei buscarem, às pressas, depois de eu ter passado uma noite terrível, premido por dores insuportáveis em meu estômago. Quando, de manhãzinha, pude, finalmente, conciliar o sono, não consegui descansar por muito tempo, pois, em uma hora e pouco, acordei-me sufocado por um vómito sanguinolento. Servula e Priscus socorreram-me, às pressas, com uma tisana de menta e limão, o que favoreceu, ao menos, temporariamente, a hemóstase, conforme me asseverou o médico; entretanto, ele não me deixou qualquer ilusão, minha cara: meu fim está próximo!...
– Oh, meu amigo!... – exclama Drusilla Antónia, com os olhos mareados de lágrimas. – Que tristes notícias estás a dar-me!...
– Entretanto, como sabes, Susanna Procula ainda é uma jovenzinha de catorze anos, e eu lhe tenho sido o pai e a mãe, desde que perdeu os genitores, quando ainda era um bebê recém-nascido!
– Sim, meu amigo!... – diz Drusilla Antónia, abrindo ligeiro sorriso, ao recordar-se dos atrapalhos pelos quais o avô tivera que passar, ao ver-se, de repente, às voltas com um bebezinho de poucos dias. – Tu realmente tiveste que abandonar tudo, para te dedicares à criação de tua neta!...
– Sim, Drusilla!... Por ela, abandonei tudo!... – exclama o velho, com o rosto repentinamente iluminado, ao lembrar-se de coisas que, efectivamente, deram-lhe prazer no passado. E prossegue, como se ganhasse inusitado vigor: – E tu, embora nunca tivesses sido mãe, de que valia me foste!...
– Puro instinto maternal, meu caro!... – exclama a matrona, rindo-se. E continua: – Puro instinto maternal!... Tu sabes que eu sempre fui doida por um bebê!...
– Eu havia perdido meu lho, , Cneius Cornelius, na guerra, e minha adorável nora, Lucilia Augusta, foi-se, em seguida, de parto, legando-me o rebento do amor deles: Susanna Procula!... Não fosse a existência de minha neta, eu, possivelmente, teria sucumbido de dor, já naquela época!...
– Sei que não te foi fácil perder a família toda, assim, de repente, meu caro!... – diz Drusilla Antónia. – Ainda bem que os imortais legaram-te Susanna Procula, para consolo de tua velhice!...
– Sim, Susanna Procula é a luz dos meus dias de velhice; entretanto, a danadinha está a dar-me terríveis preocupações... – diz o velho senador, segurando a cabeça com ambas as mãos. E prossegue, em tom de desabafo: – Imagina que agora vive intrigando-se com a ideia de que nada sabe sobre si, que desconhece, completamente, tudo sobre os pais, que a deixaram ainda quando era um bebê, e coisas assim!...– Adolescentia, meu caro, adolescentia!... – diz Drusilla Antónia, rindo-se do excesso de preocupações do amigo. – Não te esqueças de que essa fase da vida é deveras cheia de confusão!...
– Seria exagero de minha parte o fato de estar preocupando-me, assim, com as atitudes de minha neta, não fosse a persistência que ela demonstra, digo, quase uma fixação, em descobrir os gostos e preferências que tinham os pais, em relação a vestimentas, comidas, passatempos... Imagina, cara Drusilla, que vive nos templos, principalmente o de Vesta14, a ofertar incensos e sacrifícios, um atrás do outro, em busca de áugures!... Deseja, ardentemente, conhecer o futuro que a aguarda, se vai casar-se logo e com quem!... Que criatura!... Manda-me à morte, antes da hora!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:44 pm

– Oh, meu bom Cornelius!... – exclama Drusilla Antónia, procurando reconfortar o amigo. – Tu te preocupas à toa!... Tua neta é uma criatura adorável, cheia de saúde e, principalmente, belíssima!...
– Aí é que reside minha maior preocupação, Drusilla!... – diz o velho senador, demonstrando excesso de preocupação. – Aí é que está o maior problema: a beleza de minha neta é realmente estonteante, e isso tem chamado a atenção de metade dos homens de Roma sobre ela!...
– E isso não deveria ser motivo de orgulho para ti? – pergunta Drusilla Antónia, olhando-o com ar divertido.
– Tu conheces muito bem Susanna, minha cara, posto que me ajudaste a criá-la!... Sabes o quanto é vaidosa, desde quando era pequenina!... Parece que a danadinha sempre teve noção da beleza com que lhe presentearam os imortais e começa, finalmente, a descobrir o fascínio que tal coisa exerce sobre os homens!...
– De facto, a beleza pode tornar-se perigosa arma nas mãos de quem não sabe manejá-la!... – concorda Drusilla Antónia, agora, também, preocupando-se. – Tu sabes o quanto andam mudados os tempos...
– Roma envergonha-me!... – exclama Cornelius, com a fisionomia arriada pela amargura. E, depois de estirar os lábios, numa larga expressão de desprezo, prossegue: – Longe vão os dias gloriosos de nossa pátria!... Por todos os lados, grassa a corrupção, impera a degradação dos valores mais sagrados e recrudesce a devassidão!... Não há limites para mais nada!...
– às vezes, compenso minha frustração por não ter dado à luz o herdeiro que meu adorado Caius tanto desejou, pensando no mundo que essa criança iria encontrar!... – diz a matrona, séria. – Como poderíamos nos sentir felizes e sossegados, sabendo que, por todo lado, viceja o crime, a degradação e os vícios mais degradantes?...
– Agora tens a exacta medida de minhas preocupações, cara Drusilla!... – exclama o velho senador, encarando-a, sério. E prossegue, depois de engolir em seco, por diversas vezes, como que a indicar que tinha que deglutir algo realmente muito indigesto e que o estava deveras incomodando. – Tu sabes agora o quanto me preocupa ver minha neta por aí, sendo assediada por todos os lados!... – e se cala, fixando o vazio.
– Sei que isso te incomoda muito, Cornelius – diz, séria, a matrona –, entretanto tenho que te dizer: a educação que deste a Susanna fez dela uma jovem muito independente e não te será fácil pôr-lhe os freios, agora que cresceu!...
– Tens toda a razão, minha amiga!... – concorda o senador. E prossegue, altamente amargurado: – Eu a criei, dando-lhe plena e total liberdade!...
Agora, faz o que deseja e não aceita que ninguém lhe dê ordens!...
– Por outro lado, acredito que isso seja passageiro, coisas da idade, que – queiram os imortais!... – seja, realmente, apenas uma fase!...
– Mas, o que mais me preocupa, querida Drusilla, é que estou no m... – diz o velho, grandemente alquebrado. – Acho que tenho pouquíssimo tempo de vida, e como cará minha netinha?...
Drusilla Antónia levanta-se da cadeira e abraça, condoída, o velho amigo.
Duas grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces emurchecidas.
– Ora, Cornelius, onde está o leão que conheci?... – ralha ela, amorosamente, com o amigo, e lhe afagando, ternamente, os encanecidos e ralos cabelos, prossegue: – Não vim até aqui para ouvir-te falar asneiras!...
– Não digo tolices, Drusilla!... – diz o velho, abrindo-se em lágrimas. A ternura e os carinhos que recebia da amiga acabam por desarmá-lo ainda mais, e ele chora, e diz, entre soluços pungentes: – Tu sabes que é verdade!...
Definho a cada dia!... As dores são-me insuportáveis!...
– Olha, Cornelius – diz Drusilla, ajoelhando-se diante dele e lhe tomando as mãos entre as suas –, se, de fato, essa tolice que dizes venha a realizar-se, juro-te, tomaremos, eu e meu adorado Caius, o lugar que ocupas na vida de Susanna!... Garanto-te, tua menina não cará desprotegida neste mundo!...
Nós a defenderemos como se fora tu próprio!... Fica tranquilo!...
– Oh, Drusilla, Drusilla!... – repete o velho, chorando e se abraçando à amiga. – Somente tu e Caius para ocupardes o meu lugar!... Ninguém mais mereceria minha confiança e meu respeito!... Oh, que peso tiras de meus ombros!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:44 pm

Lá fora, o dia avançava lindo, azul, com toda a força da primavera, e Drusilla Antónia envolveu o velho amigo em terno e caloroso abraço, e lhe osculou, repetidas vezes, as faces banhadas de lágrimas.
Pouco depois, percebendo que o amigo tranquilizava-se um pouquinho mais, Drusilla Antónia retoma o diálogo:
– A propósito, onde se encontra Susanna?
– Saiu bem cedinho, como sempre faz, às sextas-feiras, para ir ao templo de Apolo15, que, como sabes, é quando os áugures lêem o futuro no voo dos pássaros!... – exclama o velho, rindo-se. – E tu achas que Susanna iria perder isso?... Nem mesmo sabendo que eu não passava bem foi motivo para retê-la em casa!... Prometeu-me, entre uma nuvem de beijos que me enviava pelo ar, que iria oferecer um novilho a Júpiter Capitolinus16 pelo meu rápido restabelecimento, mas que já havia marcado encontrar-se com Iulius Maximus, e que não iria deixá-lo lá, esperando por ela, como um tonto.
“Sabes como Iulius é irascível, não é vovô?...”, disse-me ela, gritando lá de fora. “Se eu o fizer de bobo, nunca mais me acompanhará aos espectáculos no Circus Maximus,17 e sei que tu, com toda a certeza, nunca me levarás, não é mesmo?...”, e sumiu, apressada, a danadinha, fechando as cortinas da liteira nas minhas fuças!...– E Iulius Maximus acompanha-a sempre? – pergunta Drusilla, demonstrando ares de preocupação.
– Não se desgrudam, minha cara!... – responde o velho senador, de repente, também mostrando-se sério. – Noto que te preocupas com isso e eu muito mais!... Sabes o quanto ele é violento!... Metella e o pai mimaram-no muito e veja no que deu!... Quintus Salvius relatou-me, há dias, quando veio visitar-me, o que esses jovens patrícios vêm fazendo ultimamente!... Tu carás boquiaberta quando eu te contar!... Porém, antes, convido-te para almoçar, e não aceito recusas! – diz Cornelius, enchendo-se de ânimo, como se, de repente, os males que lhe acometiam o decrépito corpo não mais existissem.
Drusilla Antónia sorri, agradecida. Jamais recusaria um convite do amigo. Como as horas haviam passado!... o dia já avançara bastante, e ela nem tinha percebido.
Pouco depois, instalam-se no triclinium, refestelando-se em confortáveis canapei18, e solícitos serviçais trazem o almoço, que se constituía de variados e apetitosos manjares, servidos em bandejas de prata. O velho senador, entretanto, comia, com parcimónia, apenas pequenos pedaços de pão os quais ele mergulhava em leite de cabra, adoçado com mel.
– Ultimamente, meu alimento tem se reduzido a isto, minha cara!... – observa ele, ao constatar que a amiga estranhava o fato de ele não tocar nos outros alimentos. – Divitiarum gloria uxa fragilis est!...19 – exclama ele, olhando em redor. Depois, prossegue cheio de amargura: – De que me vale todo esse luxo, se não posso dele usufruir?...
– Non semper pretiosissimae res utilissimae sunt,20 meu caro amigo!... – exclama Drusilla, condoendo-se da terrível situação em que se encontrava o amigo.
– Eu que o diga, minha doce Drusilla!... eu que o diga!... – diz Cornelius Helvetius, meneando, tristemente, a cabeça. E prossegue: – Daria toda a minha fortuna em troca da saúde que já não mais possuo!... Mas, o que te dizia sobre meu sobrinho é deveras terrível!... Tu nem imaginas o que ele e outros rapazes – que deveriam ser a fina flor de nosso patriciado – andam aprontando por aí!...Tarde da noite, quando se faz bem escuro, saem em bandos, pelas ruas, cobertos por mantos para não serem reconhecidos, a maltratarem e a perseguirem os mendigos, os bêbados, as prostitutas e os retardatários, infligindo-lhes as maiores judiações!... E, o que me deixa ainda mais estarrecido é que, conforme me asseverou o capitão Primus Quintilianus, comandantes da guarda urbana e com quem detenho fortes laços de amizade, os rapazes andam afogando essas pobres criaturas nos regos dos esgotos, após terem nelas descarregado toda a sua fúria bestial!
– Não me espantam tais coisas, Cornelius!... – exclama Drusilla Antónia.
– Tu não desconheces que o próprio imperador fazia tais bestialidades pelas ruas, até há bem pouco tempo, quando ainda não detinha o ceptro!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:45 pm

– Sim, e deixou prosélitos, por sinal!... O capitão contou-me que recolhem, todas as manhãs, pelo menos uma dezena de corpos dos que foram afogados na imundície e sempre apresentando as mesmas características: os corpos tremendamente mutilados por severo espancamento!
– E o que te faz pensar que Iulius máximos encontra-se entre os tais? – pergunta Drusilla.
– O próprio capitão afirmou-mo. Diante do grande número de cadáveres encontrados em tal situação, passaram a vigiar, com mais atenção, as ruas mais escuras e chegaram aos executores de tais brutais assassinatos! E, após minuciosa investigação, chegaram aos culpados.
– Oh, se Metella e Octávio ainda vivessem, por certo, envergonhar-se-iam do filho!... – exclama a matrona.
– Entretanto, eu nada posso fazer por meu sobrinho, pois ele já tem dezoito anos e é dono de seus próprios actos!... O que realmente me entristece e me deixa deveras preocupado é que ele anda atrás de Susanna Procula como uma sombra!... E ela o admira, pois o acha arrojado e corajoso, e o que é pior: cuida para que os mínimos desejos dela sejam realizados!... Tu sabes que dinheiro nunca lhe foi problema, não é?... O pai deixou-lhe tamanha fortuna que nem ele mesmo conhece a extensão de tudo o que possui!...– Oh, pobre Cornelius!... – exclama Drusilla Antónia, apiedando-se da situação do amigo. – Começo a entender que a tua situação não é das melhores!...
– E, o que me entristece mais é saber que esse jovem continua terrivelmente cruel, como foi, desde menino!... É triste reconhecer que os pais nada fizeram para moldar-lhe o carácter, infundir-lhe novos e bons propósitos!... Que tolice pensar que a maturidade, como num passe de mágica, pudesse trazer firmeza de carácter a quem nunca se preocupou em cultivar valores e preceitos essenciais à boa vivência!... Minha irmã e meu cunhado criaram um monstro!...
– Oh, Cornelius, agora passo a compartilhar contigo a preocupação de que a companhia de Iulius Maximus poderá influenciar o comportamento de tua neta!... – exclama Drusilla Antónia, apertando forte a mão do amigo.
– Já a está influenciando, minha cara!... – diz o outro, cheio de desolação.
– Percebo, claramente, que o rapaz está perdidamente apaixonado por Susanna!
– Que te faz ter tanta certeza disso?
– O modo como ele se comporta com ela, perseguindo-a aonde quer que ela vá, como se fosse a sombra dela!... – diz ele, altamente consternado, e prossegue, com uma pontinha de despeito: – Traz-lhe mimos, faz-lhe agrados e gracejos, uns atrás dos outros, incansavelmente!...
Drusilla Antónia nada diz; apenas se limita a olhá-lo. o velho, então, prossegue, acabando por exaltar-se:
– Drusilla, Iulius Maximus não deixa esta casa!... Até parece que se mudou de vez para cá!...
– E tua neta corresponde aos agrados e gracejos dele? – pergunta a matrona.
– Susanna adora-o, minha cara!... – exclama Cornelius, extravasando ciúme por todos os poros. – Vivem ambos perdidos no mundo, e minha maior preocupação é que, na verdade, não sei o que andam fazendo por aí!...
– Não estás, acaso, com excesso de preocupação, Cornelius?... – pergunta Drusilla Antónia, percebendo que o amigo roía-se de ciúme da neta. – Concordo quando dizes que Iulius talvez não seja boa companhia para Susanna, mas teria ele coragem de fazer mal a ela, se, de fato, encontra-se tão apaixonado assim?... Não agiria, acaso, ao contrário, protegendo-a de casuais perigos que, eventualmente, ela correria?
– Não sei, minha cara – diz ele muito desolado. – O que realmente me preocupa é o rumo que as coisas estão tomando. Ao menos, se eu me encontrasse saudável, poderia seguir-lhes os passos e averiguar o que andam fazendo por aí!
– Aquieta o teu coração, cornelius!... – exclama Drusilla Antónia. – Assim que Caius Petronius regressar da Gália – e creio que isso está por acontecer muito brevemente –, nós te faremos esse favor. Desejo aproximar-me mais de Susanna – quem sabe até torna-me sua confidente –, e assim, ficaremos a par de tudo o que lhe vai pela cabeça!... Sossega a tua alma que as coisas arranjar-se-ão, não é mesmo?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 05, 2024 6:45 pm

O velho limita-se a sacudir a cabeça. Estava cansado. O estômago doía-lhe terrivelmente. Drusilla Antónia olha-o, apiedada. Levanta-se do canapeu e, aproximando-se do amigo, enlaça-lhe amorosamente a cabeça, atraindo-a para si. Com gestos suaves, acaricia-lhe, longa e demoradamente, os ralos cabelos encanecidos. Entendia, sim, o fogo que queimava o coração do amigo. Ele estava certo. Quem é que gostaria de perder o único tesouro que lhe restava?...
– Homini felici tempus breve est, infelici longum...21 – murmura ela, baixinho, e beija a testa do velho amigo, que lhe sorri, agradecido.
E, por muito tempo ainda, ela ali ficou confortando-o e lhe fazendo companhia. Lá fora, a tarde caía morna, banhada por radiante luminescência primaveril.
____________________________________________________________________________________
1. Esculápio, o deus da medicina, na mitologia romana.
2. Referência a Nero Cláudio César (37 – 68 d.C.), imperador romano.
3. Referência a Tibério Cláudio Druso (10 a.C – 54 d.C.), 4º imperador romano e antecessor de Nero.
4. Calçado militar, usado à época.
5. Na antiga Roma, entrada solene e aparatosa que a cidade fazia aos seus generais vitoriosos.6. Preceptor, em latim. Na antiga Roma, mestre encarregado da educação de crianças, no lar.
7. Lucius Aneus Seneca (02 – 66 d.C.), filósofo nascido em Córdoba, Espanha, e desencarnado em Roma.
8. Titus Petronius Arbiter, escritor e poeta latino, nascido na Gália, famoso pelo Satiricon, obra em que descreve, com excelente valor histórico, os desmandos, a degradação dos valores morais e a dissolução dos costumes, ocorridos à sua época. Foi condenado à morte por Nero, em 66 d.C.
9. “– As doenças da alma são tão perniciosas quanto as do corpo...”, em latim.
10. “– Nenhum lugar é mais bonito que o próprio lar!”, em latim.
11. O jardim, nas antigas casas romanas.
12. Pequena placa de madeira, mar m ou metal, escavada para conter camada de cera, na qual os antigos romanos escreviam com um estilo – pequena haste feita de osso, madeira ou metal, com uma extremidade pontiaguda e a outra espatulada.
13. Nas antigas casas romanas, era o lugar mais ou menos reservado, onde o anfitrião recebia os amigos e onde guardava os documentos da administração doméstica – modernamente, o escritório.
14. A deusa do fogo, na mitologia romana.
15. Deus da luz, das artes e da adivinhação – a personificação do Sol, na mitologia romana.
16. O pai dos deuses, na mitologia romana.
17. Antiga praça de arena, onde se realizavam espectáculos públicos com gladiadores, feras e outros de carácter circense. Posteriormente, o imperador Vespasiano iniciou a construção do Coliseu ou anfiteatro Flávio, em 69 d.C., e seu lho Tito terminou-o em 80 d.C. Esse novo circo era de proporções bem maiores que o antigo e cujas ruínas persistem até os dias de hoje, na cidade de Roma.
18. Canapés, em latim. Tratava-se de uma espécie de poltrona alongada, normalmente forrada de palhinhas trançadas ou de lona e recoberta de almofadões, sobre os quais era costume recostar-se, para tomar as refeições ou para conversar; esse móvel constituía parte da mobília do triclinium – lugar mais importante das antigas residências romanas e onde se recebiam as visitas.
19. “A glória das riquezas é instável e frágil!...”, em latim.
20. “Nem sempre as coisas mais preciosas são as mais úteis”, em latim.
21. “– O tempo feliz dos homens é breve, o infeliz é longo...”, em latim.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:26 am

Capítulo 2. O regresso ao lar
A grande praça diante do fórum fervilhava. A tarde caía quente e abafada, e os vendedores ambulantes apregoavam, aos gritos, suas mercadorias. Susanna Procula e seu jovem companheiro, Iulius Maximus, desciam apressados as escadarias do Capitolium.22
– Oh, não pude aproximar-me do sumo sacerdote, o quanto eu desejava, para suplicar-lhe uma audiência! – exclama a mocinha, grandemente contrariada.
– Não te apoquentes, caríssima Susanna, pois te faço esse favor logo mais! – exclama o rapaz, cheio de si. E prossegue, puxando-a pela mão: – Cneius Horatius, o lho de Lucius Flamulus, o sumo sacerdote do Capitolium, é meu amigo e, mais tarde, conduzir-te-ei até a casa dele!...
– Verdade?!... – exclama a moça, detendo-se no meio da escadaria e fixando o rosto do companheiro com olhos extasiados. – Vais levar-me diante do grande Lucius Flamulus?...
– Garanto-te isso, minha cara!... – exclama ele, puxando-a, delicadamente, pela mão e a incitando a segui-lo. E prossegue, animadíssimo: – Mas, agora, vamos ao theatrum que o imperador, em pessoa, dará um recital de canto, acompanhando-se à lira!... – e completa, meneando a cabeça, divertido: – Não desejo perder essa, de jeito nenhum!...
– Mas, não seremos barrados, à entrada, pela guarda pretoriana? – pergunta, preocupada, a jovem.
– Que nada!... – diz ele, cheio de si. – Tu te esqueces de que eu tenho acesso até ao palácio imperial?... Não vivo sendo convidado para os festins que lá se realizam?... Nero é meu amigo de longa data, mesmo antes de meter as mãos na coroa!
– Ah, esquecia-me de que eras assim tão chegado à família real!... – exclama ela, cheia de sarcasmo. E prossegue, fazendo amuo: – Tu nunca te lembraste de me levar a uma dessas festas, não é mesmo?
– Oh, pressinto que ainda não tens idade suficiente para frequentares as festas que se dão no paço real, minha cara!... – diz ele, com um sorriso maroto.
– Por quê?... Que é que tem de mais em tais festas?... – pergunta ela, agora de braço dado com o rapaz, enquanto atravessavam, com passos ligeiríssimos, a longa praça rectangular, apinhada de transeuntes que, apressados, iam e vinham de todas as direcções.
– Nem te conto, minha cara!... – diz ele, com um riso malicioso nos lábios. E prossegue, olhando-a de soslaio: – O imperador é mestre na arte de agradar e de divertir seus convidados, com coisas inusitadas!... A cada festa, há sempre uma ou duas surpresas deveras impensadas!...
– Agora quero saber!... – exclama ela, beliscando-lhe o anco. – Tu me deixas curiosíssima e depois não vais me contar?...
– Ora, Susanna!... – diz ele, rindo-se. – São coisas para gente mais velha que tu!... Não posso te contar!...
– És um ingrato!... – diz ela, contrariada. – Tu me assanhas a curiosidade com tais coisas e depois nada me dizes!...
Nesse ínterim, aproximam-se das escadarias de mármore escuro do theatrum, e ele, desvencilhando-se do braço dela, precede-a, galgando apressado os degraus da larga escada até o grandioso pórtico da entrada principal do magnífico edifício que, no momento, encontrava-se guardada por grossa leira de pretorianos armados de lanças. Aproximando-se, Iulius Maximus cochicha algumas palavras ao ouvido do comandante, que lhe sorri e ordena, sem delongas, que lhe franqueiem a entrada. O rapaz, então, faz um sinal com a mão para Susanna, que o aguardava a alguns passos atrás, incitando-a a segui-lo.
Dentro do teatro, o espectáculo já começara, e se ouviam estrepitosas gargalhadas, sinal de que encenavam alguma comédia. Os jovens entram um tanto atropelados e se sentam na arquibancada. No palco, iluminados por velas e pequenas tochas envoltas em seda colorida, dois atores, caracterizados e mascarados, como era comum à época, encenavam um trecho.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:26 am

Um deles, pela forma característica do corpo, que apresentava cabeça redonda, pescoço grosso, ventre volumoso e pernas nas, bem desproporcionais ao conjunto, tratava-se, inegavelmente, de Nero, o imperador. O diálogo encenado seguia-se, acompanhado com extremo interesse pela plateia:
– Quomodos potes, Paule, annos gallinarum cognoscere?
– Ex dentibus, Antonii.
– Insanis, Pauli!...Gallinae dentes non habent!
– At ego habeo!...23
A plateia explode em risadas e esfuziantes aplausos. Uma sucessão de pequenos esquetes é apresentada, arrancando, invariavelmente, frenéticos aplausos e gargalhadas da plateia que se divertia às pampas. O tempo escoou-se até que o espectáculo mudou seu carácter. Da comédia, passou à dictione, apresentada pelo imperador. Nero surge a seguir, no palco, vestindo rica praetexta24 e empunhando sua lira dourada. Uma explosão de aplausos e vivas efusivos faz sacudir as estruturas do edifício do theatrum. O imperador, inchado de orgulho e de vaidade, sorri e se delicia com o estrugir da estupenda ovação que lhe tributam os mais fiéis bajuladores.
Escancarando-se em desmedidos sorrisos de satisfação, Nero faz ligeira reverência, e a plateia cala-se de inopino. O artista limpa, ruidosamente, a garganta, encara seus ouvintes com olhos brilhantes e principia a dedilhar o instrumento com relativa maestria. Principia a cantar, e a voz soa-lhe em timbre baixo, grave, um barítono mal trabalhado, roufenho e quase desagradável:
“Unda impellitur unda,
Urgenturque prior veniente, urgetque priorem:
Tempora sic fugiunt pariter, pariterque sequuntur;
Et nova sunt semper; nam quod fuit ante, relictum est;
Fitque quod haud fuerat; momentaque cuncta novantur...”25
O espectáculo encerra-se, após uma série de canções apresentadas pelo incansável Nero. a noite já caía quando Iulius Maximus e Susanna deixaram o theatrum. A praça do Fórum encontrava-se iluminada por uma infinidade de archotes, e as pessoas que ora transitavam por ela eram os trabalhadores que retornavam cansados para seus lares, depois de longa e estafante jornada despendida nas hortas e pomares situados nos campos adjacentes ou, ainda, nas olarias, marcenarias ou ferrarias e mesmo no ululante comércio que fervilhava na capital do império.
– Acompanho-te até a tua casa, Suzanna – diz o rapaz, tomando, delicadamente, o braço da jovem. – Sei que despachaste tua liteira de volta.
– Oh, sim! – exclama ela. – Tinha a certeza de que me levarias para casa!... – diz ela, piscando-lhe um olho, marotamente. – Só assim tomarás a cena26 comigo!
Acomodados na liteira, de volta para casa, o rapaz toma as mãos da jovem entre as dele, beija-as ternamente e, olhando-a firme, nos olhos, diz:
– Oh, Suzanna, acho que já percebeste o quanto me encontro apaixonado por ti!... Peço-te, aproveitemos a ocasião!... Deixa-me pedir a tua mão a Cornelius!...
– Ora, Iulius!... – exclama a jovenzinha, agastando-se e retirando, abruptamente, as mãos que ele, apaixonadamente, segurava entre as suas. – Lá vens de novo com essa insistência!... Já te disse que ainda não sei se é de ti que realmente gosto, entendes?... Já consultei os áugures de vários templos, mas ainda me encontro confusa!... As descrições que me deram de meu futuro marido nem sempre são condizentes contigo, percebes?
– Oh, e tu te deixas levar por tais coisas!... – diz ele, amuando-se. Mas, logo em seguida, recompõe-se e, tomando-lhe, de novo, as mãos e as beijando, com fervor, prossegue: – Por que não esqueces os áuspices e me aceita logo por teu esposo?... Imploro-te, deixa-me fazer o pedido a teu avô!...
– Ora, estás insistindo tanto, Iulius!... – diz ela, olhando-o, firme, no rosto. E prossegue, irritada: – Além do mais, sabias que meu avô não gosta de ti?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:26 am

– Sei muito bem que Cornelius não me suporta e que nem se preocupa em esconder isso! – diz o rapaz, altamente contrariado. E emenda, com um sorriso sardónico: – Mas, o que me importa o que pensa de mim aquele velho decrépito?... – Não é com ele que me casarei!... E, além do mais, sei que anda bem próximo de descer às profundas do Avernum,27 a render tributos a Hecate...28 Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...– Desse jeito tu o ofendes!... – diz ela, zangando-se com o deboche que ele lhe fizera do avô e o belisca forte, no dorso da mão.
– Ui!... – exclama o rapaz, retirando ligeiro a mão. – Até pareces uma gata acossada!... – e prossegue, assoprando a mão: – Entretanto, sabes que assim é!... Então, por que te ofendes?
– Ofendo-me, porque gosto dele! – diz ela, zangada. – E, por outro lado, nada fazes para te tornares agradável aos seus olhos!... E, ainda, tu te esqueces de que ele é teu tio, que foi o teu tutor, até há bem pouco tempo, e que, além de mim, é o único parente que te restou neste mundo!
– Ora, tal parente eu faço questão de esquecer!... – exclama o rapaz, cheio de desprezo.
– Entretanto, vives na casa dele, não é mesmo? – observa Suzanna, cheia de sarcasmo.
– Corrijo-te, minha cara – diz o rapaz, com o dedo indicador em riste –, vivo na tua casa, não na dele!...
– Insanis, Iulii!...29 – exclama ela, acabando por rir-se do jeito dele e dando um tapinha no dedo que ele lhe apontava. – Sabes muito bem que não tenho casa!... Eu vivo às custas de meu avô, esqueceste?
– Vives, porque queres!... – diz ele em tom de galhofa. – Se desejares, hoje mesmo poderás mudar-te para a minha casa!... Garanto-te que serás a dona dela!...
A jovem limita-se a olhá-lo com olhos brincalhões. Não conseguia brigar com ele e não conseguia, também, levá-lo muito a sério. Nesse ínterim, a liteira estaciona diante da mansão de Cornelius Helvetius. A tarde, paulatinamente, dava lugar à noite que se instalava num céu manchado de matizes vermelho-chama e azul-turquesa, típico das noites primaveris.
Joviais e saltitantes, ambos adentram a residência, já iluminada para a noite, e procuram por Cornelius, acabando por encontrá-lo que descansava, sentado num intercolúnio da exedra30.
– Oh, por onde andaste o dia inteiro, minha pombinha? – pergunta o velho senador, estendo os braços à neta que se lançava sobre ele e o cobria de beijos.– Oh, estive em mil lugares!... – exclama ela, como sempre, vivaz. – Iulius acompanhou-me o tempo todo!...
– Ave, caríssimo Cornelius!... – diz o rapaz, saudando-o com um aceno de mão. O velho responde-lhe ao cumprimento apenas com ligeiro sacudir de cabeça. Era patente que a presença do rapaz ali o desagradava muito.
– Já jantaste, vovô? – pergunta ela. – Espero que não, pois convidei Iulius Maximus para a cena!... Vamos, estou morta de fome!... – e dispara para o triclinium, onde os aguardavam estupendos manjares, servidos por pequeno batalhão de solícitos criados.
– Precisavas ver o theatrum, vovô!... – exclama Susanna, chupando a ponta dos dedos lambuzados de molho. – Nem imaginas quem estava lá, em pessoa!
– Imagino, sim, minha cara – diz o velho, olhando-a, sem muita animação. – O imperador... Acertei?...
– Oh, como sabias, vovô?... – pergunta ela, levando um pedaço de cordeiro assado à boca, com apetite voraz.
– Porque todo mundo sabe que o imperador de Roma diverte-se no theatrum, fazendo palhaçadas, enquanto o povo esfalfa-se para pagar os pesadíssimos tributos que lhe são impostos e que acabam sendo gastos por aquele inconsequente em frivolidades e luxos desmedidos! – diz o velho senador, cheio de sarcasmo, e olha firme para Iulius Maximus que se mantivera calado até então.
– Nero é um esteta nato, meu tio! – exclama o rapaz, percebendo que o outro o provocava. – eu mesmo já o ouvi dizer, reiteradas vezes, que considera o dinheiro não pelo valor que representa em si, mas pelas coisas belas e deliciosas que pode proporcionar! – Gostaria de saber se o imperador pensaria assim, se tivesse que gastar do próprio dinheiro, ganhado honestamente, às próprias custas, com suor e muito sacrifício, como faz o povo!... Será que continuaria atirando os milhões de sestércios aos esgotos, em festas exuberantes, em palácios, jóias, roupas, cavalos, como faz actualmente, a torto e a direito, sem dar satisfações a ninguém?...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:27 am

O povo já se cansa!... Será que ele não tem exemplos suficientes do passado?... Sinto muito, mas não consigo prever um bom final para esse doido!...
– A pessoa do imperador é intocável, meu tio! – exclama o rapaz. e prossegue enfático: – Aquilae habent nidos in altis arboribus!31
– Mas, não te esqueças de que os homens sabem muito bem como cutucá-las com longas varas para desalojá-las dos ninhos, meu jovem! – diz o velho senador e prossegue, com um sorriso de deboche: Fortuna vitrea est: tum cum splendet, frangitur!32
O rapaz cala-se, diante do fortíssimo argumento do tio. Apenas, limita-se a olhá-lo com olhos ferozes. No íntimo, reconhecia que não era páreo para o arguto senador que lhe era infinitamente superior em inteligência, em cultura e em experiência de vida. Esforçando-se para controlar a raiva, estende a taça ao criado que a enche de vinho. Depois, mergulhando a ponta dos dedos na taça d’água que tinha diante de si, deixa escorrer algumas gotas dentro da taça de vinho, para a libação33. O tio segue-lhe o ritual com os olhos. “Não me enganas, safado!...”, pensa o velho, observando como o outro sorvia o vinho com avidez. “Tu és um beberrão nato!... Certamente, tomaste o gosto pelo vinho puro nas bacanais de que participas no paço imperial!...”
– Parece-nos que o mulsum34 já não te apetece mais, caro sobrinho!... – observa Cornelius com sarcasmo. – Vejo que bebes o vinho quase puro!
– Ora, tio, não me viste adicionar água ao vinho? – responde, irritado, o rapaz. – Ademais, não me agrada o gosto de teu mulsum!... Acho-o excessivamente aguado!
“Aguados são teus miolos!”, teve vontade de responder-lhe Caius Helvetius. Mas, conteve-se. Não pretendia agastar-me mais com aquele doidivanas. Por outro lado, percebia o quanto a neta gostava daquele idiota e não desejava indispor-se, também, com ela. Muda, então, o rumo da conversa:
– Diz-me, Iulius, não tomaste parte, desta vez, da campanha de teu regimento? Pelo que me consta, o general Galba encontra-se na Hispânia. Já deste baixa, por acaso?– Oh, não, meu tio – diz o rapaz, com um sorriso amarelo –, pedi licença ao exército para tratar de um problema de saúde.
– Verdade? – exclama a mocinha que, até então, única e exclusivamente, houvera se ocupado em devorar uma boa parte do lombo do cordeiro assado, com pão e ovos cozidos. – Não sabia que estavas doente, Iulius!
– Oh, sim, sinto tonteiras e zumbidos à cabeça! – exclama o rapaz, de repente empertigando-se e fingindo debilidade que, de facto, nem de longe, possuía.
Cornelius Helvetius limita-se a olhá-lo com desdém. “Poltrão, mentiroso!...”, pensa. “O que tens é medo de enfrentar as agruras das batalhas!... Se, de fato, sentes tonteiras e zumbidos, certamente, são motivados pelos excessos que vives cometendo nas esbórnias e nas carraspanas que tomas por aí!”
O jantar prosseguia e, através das colunas do perystilium,35 era possível perceber-se que a noite avançava, iluminada pela lua cheia.
– E não procuraste um médico, Iulius? – pergunta Susanna, apreensiva.– Oh, claro – responde o rapaz –, agora fingindo maior debilidade ainda, ao perceber que a jovem condoía-se dele. – Procurei Flavianus Taeclus, um dos médicos do imperador, que me recomendou banhos e ervas.
– E tens sentido melhoras? – pergunta a moça.
– Relativas melhoras – diz o rapaz –, olhando-a com olhos supostamente cheios de abatimento.
– E não te proibiu o médico de beberes vinho puro? – pergunta, sarcástico, Cornelius Helvetius. E prossegue, directo: – Digo-te tal coisa, porque o meu me proibiu até o mulsum!... Não te parece estranho isso?
– Acho que são doenças totalmente diferentes a minha e a tua, meu caríssimo tio! – exclama o rapaz, fulminando o outro com os olhos cheios de ódio. – Ademais, existem doenças para as quais o vinho é altamente recomendado!
Cornelius limita-se a olhá-lo com desdém. “Mas, não no teu caso, meu caro!”, pensa ele. entretanto nada diz.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:27 am

Levanta-se, dando a entender que o jantar encerrava-se e, para irritar ainda mais o outro, deselegantemente, despede-se dele, beija a neta à testa e deixa o triclinium.
– Teu avô manda-me embora, Susanna! – exclama o rapaz, furioso.
– Oh, Iulius, mas tu também tens culpa nisso! Vives provocando-o!... – diz ela. E prossegue, tentando acalmá-lo: – Agora quero que te vás!...
Amanhã prometeste levar-me à casa do sumo sacerdote de Júpiter Capitolinus, esqueceste?
– Oh, não!... Não me esqueci!... – exclama ele, iluminando os olhos e abrindo um sorriso. – Conseguir-te-ei uma audiência particular com Lucius Flamulus, conforme te prometi!
– Oh, mal posso esperar!... – diz a jovem, altamente excitada. – Acho que nem conseguirei dormir direito!
– Acalma-te, minha bela!... – diz ele, beijando-lhe, amorosamente, as mãos. – Onde nos encontraremos?
– Na praça, diante do comitium!...36 – grita ela, enquanto desaparecia pelo corredor que dava ao atrium.37 Certamente, encaminhava-se ao seu cubiculum38, para dormir.
Iulius Maximus permanece de pé, ainda por alguns instantes, no triclinium, olhando a porta do corredor por onde ela desaparecera. Trazia o rosto inchado de excitação e o peito quase a explodir-lhe de paixão. Depois, com passos rápidos, deixa a mansão de Cornelius Helvetius, já totalmente mergulhada em silêncio.
Na manhã do dia subsequente, a praça do Fórum fervilhava sob um radiante sol de primavera. Diante do comitium, Iulius Maximus, demonstrando excessivo nervosismo, andava de um lado para o outro.
Susanna, como sempre, atrasava-se, e isso o deixava maluco. De repente, vê-a que deixava a liteira, a poucos passos dali, e corre até ela.– Ufa!... – exclama ele, cheio de afobação. – Pensei que não viesses mais!
– Oh, desculpa-me, Iulius!... – diz ela, mirando-o com os olhos cor de mel que tanto o encantavam. E prossegue, beijando-o, delicadamente, na face: – vovô cismou de dar-me conselhos, logo de manhãzinha, durante oientaculum,39 e me foi tremendamente difícil escapar dele!... Perdoa-me, sim?...
– Não consigo zangar-me contigo, minha bela!... – exclama o rapaz, desarmando-se felicíssimo, ao receber-lhe o beijo, pois o simples contacto dos lábios de Susanna na pele de seu rosto tinham a capacidade de deixá-lo maluco.
Iulius Maximus ia puxar a mocinha pela mão, para conduzi-la ao Capitolium, quando, ao longe, ouvem-se os estrídulos clangores de trompas, e o rufar cadenciados de tambores e de caixas. Os olhos de ambos os jovens iluminam-se.
– Um triumphus!...40 Alguma legião retorna a Roma!... – exclama, excitadíssimo, o rapaz.
– Sim!... – concorda a jovem, não menos motivada. – Quem será que retorna?...
– Só saberemos se aguardarmos o desfile!... – diz, alegre, o rapaz. e pergunta: – Mas, e tua entrevista com Lucius Flamulus?
– Ora, não tenho tanta pressa, assim, em falar com o sumo sacerdote de Júpiter Capitolinus!... – responde ela, puxando-o pela mão. – Vamos até as escadarias do Fórum, pois é lá que o imperador, em pessoa, recepcionará os generais vencedores!
Quando chegam às escadarias do imponente edifício, a aglomeração de curiosos já era imensa. Abrindo caminho às cotoveladas, juntam-se à multidão que se amontoava curiosa, diante das escadarias do Fórum. O ruído do desfile militar aumentava, sinal de que se aproximava da grande praça. A população acorria de todas as direcções e, literalmente, em pouquíssimo tempo, um mar de cabeças tomava todo o fabuloso espaço da praça rectangular, mais as ruas e vielas que nela desembocavam.
Uma hora depois, o imperador surge no alto das escadarias do Fórum e é ovacionado pela plebe ululante. Nero estava sorridente e, abrindo os braços, pede silêncio à multidão, que se cala, de repente.
– Caius Petronius Tarquinius!... O apaziguador da Gália!... – brada ele, tomando o general vencedor pela mão e o apresentando ao público que explode em aplausos e estrondosa ovação.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:27 am

Em seguida, Nero apanha a coroa de louros, como era hábito fazer nas homenagens que se prestavam aos heróis nacionais, e a coloca na cabeça do general, que se postara de joelhos.
– Eis o ilustre lho da pátria!... – brada, orgulhoso, o imperador. Depois, estendendo-lhe a mão, fá-lo levantar-se e o apresenta, de novo, ao povo. Estrondoso rugir segue-se, numa onda intensa de aplausos, gritos e assobios. Caius Petronius olhava, sem muito ânimo, a multidão que o ovacionava. Estava desmedidamente pálido e tinha o estômago em pandarecos. No íntimo, o que desejava mesmo era ir depressa para casa e se atirar nos braços de Drusilla Antónia. Como sentia a falta dela!... Entretanto, sabia, de antemão, que o dia seria longo: homenagens públicas, homenagens no senado, onde ouviria extensíssimos e enfadonhos discursos e, para coroar a chateação, o convivium41 no paço real!... De todas as homenagens, o convivium, certamente, era-lhe o mais insuportável, que somente se abrandava, porque nele poderia ter a companhia de Drusilla. Não o agradava nada o fato de obrigar-se a compartilhar a mesa com aquele bandido e, ainda, ter de assistir às indecências que ele costumava proporcionar aos convidados, à guisa de atracções, sempre bizarras e, invariavelmente, de muito mau gosto!... Mas, que fazer?... Se declinasse do convite, o imperador poderia tomar como ofensa pessoal e, louco como era, seria bem capaz de botar alguma tolice à cabeça e achar que lhe estariam planejando algum ato de traição. Infelizmente, se não desejasse enfrentar terríveis dissabores, teria que se curvar diante das vontades daquele doido.
Caius Petronius passeia os olhos pela multidão ululante. Sente ligeira tontura e precisou esforçar-se ao máximo para não cair desfalecido ali mesmo.
Quase nem ouvia as palavras do discurso cheio de elogios, a soar-lhe tão falso, nos lábios de Nero, que o pronunciava facundo e cheio de dramaticidade, ali, dois passos à sua frente. “Acho que nem ele mesmo crê no que diz!...”, pensa, olhando para a nuca de Nero, esmeradamente penteada em cachos dourados, enquanto este discursava, encomiasticamente, sobre os feitos do povo romano – passados e presentes –, principalmente, os mais recentes, e evidenciando ser ele, Nero, o principal artífice das vitórias, que eram bem menores, em relação às fragorosas derrotas que Roma vinha sofrendo em todas as fronteiras, com as constantes revoltas dos povos dominados.– Eos, qui boni sunt, remunerabor!...42 – diz Nero, votando-se para o general. E, retirando esplendoroso anel de na lavra que trazia no indicador da mão direita, estende-o a Caius Petronius, dizendo: – Por nós e por Roma, aceitai esta dádiva, general!
Caius Petronius estende-lhe a mão direita, e o imperador coloca-lhe a preciosa jóia no dedo. Em seguida, Nero abraça-o, efusivamente, osculando-o em ambas as faces. A multidão ulula, gritando o nome de Nero que, satisfeitíssimo, faz ligeira reverência e, abruptamente, desaparece no interior do Fórum, seguido de seu pequeno, mas constante e fiel séquito de bajuladores. Caius Petronius emite longo suspiro. A primeira de toda uma série de chateações encerrava-se. Entretanto, antes de rever sua rainha, teria de enfrentar as longuíssimas e maçantes homenagens que lhe prestaria o senatum. O estômago enjoava-se-lhe mais e mais. O povo principia a dispersar-se pela praça e pelas ruas, e o velho general, cansado das batalhas e das agruras da vida, encaminha-se, com passos rápidos, em direcção das escadarias do vetusto edifício do Senatum, onde outrora vicejara a impoluta cohortem maxima43 dos áureos tempos da República, mas que ora, na vigência do Império, não passava de um covil de velhos e insaciáveis lobos sanguinários, sempre dispostos a se locupletarem com o suor, as carnes e o sangue dos oprimidos e dos espoliados pelo cruel regime que representavam.
A manhã seguia radiosa, e Iulius Maximus e sua adorável companheira ainda permaneciam na praça diante do Fórum.
– Acho que hoje não te posso levar ao Capitolium, minha cara – diz ele. – As entrevistas com o sumo sacerdote podem demorar-se e, sabes, com a chegada de uma legião tão importante como a do general Tarquinius, certamente haverá um convivium no paço imperial!– Já entendi! – exclama ela, tremendamente decepcionada. – Preferes ir ao banquete no palácio, não é mesmo?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:27 am

– Ora, espero que não vás te aborrecer comigo, só porque não te levo hoje ao templo de Júpiter!... – exclama ele, segurando-a forte pela mão. – Amanhã, prometo-te, colocar-te-ei, sem falta, diante de Lucius Flamulus!...
Palavra de honra!...
– E, por que não me levas ao convivium?... – pergunta ela, de repente, com os olhos iluminados de expectativa.
O rapaz coça, freneticamente, o alto da cabeça com a ponta dos dedos.
Pensava se lhe convinha levar a jovem ao banquete. Depois de alguns instantes de terríveis cogitações, decide-se:
– Está bem!... Levo-te ao convivium!... Mas, vê lá, hein?... Nada de atrasos!
A jovem emite estrondoso grito e lhe salta ao pescoço, cobrindo-o de beijos.– Oh, Iulius!... – diz ela, extremamente feliz. – Sabia que não me negarias tal pedido!... Só tu para me fazeres feliz assim!...
– Percebes agora o quanto te amo?... – diz ele, olhando-a nos olhos e lhe acariciando ternamente a branquíssima cútis do rosto, com a ponta dos dedos. – Quem sabe não te decides a aceitar-me como noivo ainda hoje?
– Quem sabe, não é, Iulius?... – exclama ela, afastando-se. – Mas, agora corro, pois quero embelezar-me para a noite!...
– Lembra-te, hein!... – grita ele com as mãos em concha sobre os lábios. – Nada de atrasos, ou te deixarei para trás!...
Susanna Procula limita-se a abanar-lhe a mão, de longe, correndo como uma doida em direcção de sua liteira que a aguardava, numa das ruas que davam para a praça.
O rapaz permanece por algum tempo de pé no meio da praça, vendo-a afastar-se, felicíssima. Tinha os olhos brilhantes de emoção. Depois, rindo-se de contentamento, dirige-se para a liteira que o levaria para casa.
____________________________________________________________________________________
22. Na antiga Roma, o magnífico templo erigido em honra de Júpiter, o pai de todos os deuses.
23. “– De que maneira podes, Paulo, saber quantos anos tem uma galinha?
– Pelos dentes, António.
– És um bobo, Paulo!... As galinhas não têm dentes!
– Mas eu tenho!...”, em latim.
24. Toga branca, franjada de púrpura, que usavam, na antiga Roma, os jovens das famílias patrícias, os senadores e os altos magistrados.
25. “Uma onda pela outra é impelida,
Cada uma é empurrada pela que lhe segue
E empurra, por sua vez, a que lhe precedeu;
E assim é o tempo: os momentos fogem da mesma forma,
E, da mesma forma se seguem; e sempre é um tempo novo;
Pois o que anteriormente foi, ficou abandonado;
E vem a ser o que não havia sido;
E todos os momentos sofrem transformação...”
O trecho acima pertence à XV Metamorfosis, de Publius Ovidius Naso, (43 a.C. – 16 d.C.), poeta latino, também autor de “Fastus”.
26. Tratava-se da última e da principal refeição do dia, para os antigos romanos, e se realizava à noitinha, por volta das 18 horas
27. Na mitologia latina, o local onde cavam as almas depois da morte.
28. A guardiã do reino das sombras, nome que recebia a deusa Diana, em seu culto subterrâneo, na mitologia latina.
29. “– És um bobo, Iulius!...”, em latim.
30. Espécie de sala de estar de formato circular e rodeada de colunas, nas antigas residências romanas.
31. “– As águias têm ninhos nas árvores altas!”, em latim.
32. “A sorte é como o vidro: da mesma forma que brilha, quebra-se!”, em latim. Citação do poeta Publius Sirus.
33. Na antiga Roma, o vinho era tomado, misturando-o com mel ou água – o mulso –, pois tomá-lo puro era considerado indigno de um homem de bem.
34. Mulso, em latim. Mistura de vinho com mel ou água, o hidromel.
35. Peristilo, em latim. Varanda com colunas, que davam para um jardim interno, nas antigas residências romanas.
36. Na antiga Roma, palanque em forma de proa de navio, construído diante do Fórum, e local onde os cidadãos eminentes – principalmente os políticos – falavam ao povo.
37. O segundo vestíbulo, nas residências da antigas Roma, e que dava para os quartos de dormir.
38. quarto de dormir, nas antigas residências romanas.
39. Na antiga Roma, a primeira refeição do dia, normalmente consistindo em alimentos leves como pão, frutas, leite e queijo.
40. Entrada solene e aparatosa dos generais, em Roma, após vencerem as batalhas.
41. Banquete, em latim.
42. “– Premiarei os que são bons!...”, em latim.
43. Corte Máxima, em latim.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:28 am

Capítulo 3. O banquete de Nero
A tarde já avançava bastante, quando Caius Petronius Tarquinius apeia de seu cavalo, diante de sua villa. Pequeno exército de criados e de escravos domésticos acorrera à sua chegada e se colocava de joelhos diante dele, com os rostos voltados para o chão. Apenas Iustus, o mordomo, ousa aproximar-se e, ajoelhando-se humilde, toma-lhe a mão e a beija, respeitosamente.
– Sede bem-vindo, domine!... – exclama o mordomo.
Caius Petronius mal responde ao criado, agradecendo-lhe. Seus olhos buscavam ansiosamente por ela, Drusilla Antónia, que o aguardava na soleira do pórtico do atrium, com um largo sorriso de satisfação aos lábios e banhada pela luz dourada do sol que se coava pela abertura do compluvium.44 E ele, como um colegial, corre ao encontro dela que o recebe de braços abertos, culminando em efusivo e apaixonado abraço de reencontro.– Oh, meu amor!... – exclama ele, beijando-a repetidas vezes ao rosto, à boca e aos olhos.
– Vem – diz ela, puxando-o amorosamente pela mão. – Já te preparei o incenso para os Lares45.
Como se sentia bem ao lado dela!... Com o canto dos olhos, não se cansava de olhá-la, enquanto incensava os ídolos que tanto lhe eram sagrados e as efígies dos pais, mortos há tanto tempo. Drusilla Antónia, altamente concentrada, movia os lábios em fervorosa prece. Certamente, agradecia aos imortais o retorno do amado esposo.
Depois de aplacada a saudade que os consumia, conversavam, reclinados em confortáveis canapei, no triclinium, onde tomavam leve refeição de leite, pão e frutas secas.
– Não comas demais, minha cara!... – exclama ele, olhando-a com ar divertido. – Logo mais, teremos as delícias da estupenda mesa de Nero!...
– Oh, bem que tu me podias deixar de lado dessa!... – exclama ela, com leve ponta de sarcasmo. – Tu sabes o quanto abomino as festas no paço imperial!– Sei que te aborrecem tais banquetes, minha querida, mas terás a coragem de deixar-me ir sozinho a lugar tão detestável? – diz ele, sério. E prossegue, olhando-a, firme, nos olhos: – E, depois, o imperador poderá tomar a tua ausência como ofensa pessoal!... Sabes o quanto ele é louco!...
– Oh, faço-o apenas por ti, meu amor!... – exclama ela, levantando-se e o abraçando com desvelado carinho. E prossegue, depois de beijá-lo, carinhosamente, à testa:– E, porque sei que te encontras, de fato, muito doente!...
Caius Petronius ca sério. Não lhe era fácil enganá-la.
– Oh, exageras!... – diz ele, disfarçando.
– Podes negar o quanto quiseres, Caius – observa ela, acariciando-lhe, ternamente, os cabelos, com a mão –, mas não me enganas, pois há momentos em que empalideces grandemente!... É a dor insuportável, não é mesmo?
O velho general olha-a longamente. Não adiantava mentir-lhe.
– É verdade, Drusilla – diz ele, baixando os olhos. – As dores tornam-se-me insuportáveis, e temo que o pior aconteça, muito em breve.– Oh, não digas tal coisa!... – exclama ela, com os olhos cheios de lágrimas. – Amanhã mesmo, depois que terminarem todas essas detestáveis homenagens, eu mesma te levarei ao templo de Aesculapius!... Mas, por ora, é bom que nos aviemos a preparar-nos para o convivium!... Vem!... – diz ela, levantando-se e lhe estendendo, amorosamente, os braços.
Lá fora, a tarde declinava, e a noite chegava de mansinho, temperada por amena brisa de primavera.
Quando a noite caiu de vez, lá no alto do Monte Palatino, os estupendos jardins do paço imperial encontravam-se literalmente tomados por alguns milhares de convivas de esplêndido banquete que se oferecia em homenagens às extraordinárias vitórias sobre a Gália, obtidas pelas legiões comandadas pelo general Caius Petronius Tarquinius. Por todos os recantos das magníficas aleias de tílias e de rododendros floridos, pendiam fantásticas guirlandas de perfumadíssimas ores, aliadas a uma enormidade de vasos de jasmins, oleandros, lavândulas e gerânios, colocados em profusão, por todos os lados, a despejarem agradabilíssimos odores em estonteantes ondas, carreadas por subtil e agradável brisa primaveril a espalhar e a impregnar de deleitantes olores todos os recantos do extraordinário jardim; nos corredores das aleias, colocavam-se centenas e centena de pequenas mesas com tampo de mármore branco, repletas de finíssimas iguarias: carnes assadas frias de várias espécies, pão de trigo, pão de mel, doces variadíssimos, frutas frescas, frutas secas, frutas em compotas e vinho, muito vinho, de excelente qualidade, tudo servido por uma legião de escravos domésticos, ricamente vestidos de peplos de linho alvinitente e presos aos ombros por velas de prata; aos pés, traziam sandálias de couro curtido – luxo para escravos que, usualmente, caminhavam descalços ou, no máximo, calçavam sandálias de couro cru, que mais lhes martirizavam os pés que lhes davam algum conforto –, mas que ali, por tratar-se do paço imperial e, obviamente, para não contrastar e destoar com o desmedido luxo reinante, até esse facto escapava à regra.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:28 am

E eram criaturas formosíssimas: não se admitiam criados velhos no palácio imperial; somente moças e rapazes portadores de espectacular beleza e que demonstrassem graça e desenvoltura, pois o imperador era exigentíssimo nesses critérios.
Nero esbanjava luxo e requinte no vestir-se: trajava fina pretexta de seda branca, franjada de dourado e, aos ombros, preso por descomunal broche de ouro maciço, pendia-lhe um manto de linho púrpura; trazia, ainda, grossos braceletes de ouro puro enroscados aos braços, valiosíssimos anéis aos dedos e, à cabeça, ostentava a coroa imperial e se fazia acompanhar de sua segunda esposa, a imperatriz Popeia Sabina46; felicíssimo, passeava por entre seus convidados, sempre sorridente e inchado como um pavão, e recebendo deles uma série de falsos elogios, como falso cheirava e, certamente, era tudo que ali se encontrava.
Numa praça do jardim principal e sob alto dossel de seda levantina púrpura, armava-se extensíssima mesa, ricamente decorada e contendo impensados manjares, onde o imperador e seus convidados mais proeminentes reclinar-se-iam em canapei forrados de almofadões de seda vermelho-escura com franjas douradas. ao lado da mesa principal, colocava-se grande orquestra de cordas, sopro e percussão e cujos músicos arrancavam, magistralmente, sonoros acordes de agradável melodia. era muito grande a expectativa para saber quem seriam os convidados a terem o privilégio de sentar-se à mesa principal do convivium, ao lado de Nero e da imperatriz, além do homenageado e de sua esposa. Os olhos faiscavam de ansiedade, e os cochichos ao pé do ouvido ocorriam por toda parte. O fogo que ardia nos fachos breados, presos a tocheiros de ferro, espalhados por toda parte, arrancava faíscas às preciosidades que ornamentavam os cabelos, os pescoços, os braços, punhos e dedos do no patriciado da Roma Imperial que ali acorria em peso, para festim daquela monta!... Apenas o principal homenageado e sua adorável companheira não compartilhavam de toda aquela expectativa que arrancava risinhos nervosos e gritinhos que mal disfarçavam o concorridíssimo interesse de ganhar a preferência e a atenção do imperador, nem que fosse por aquela noite, apenas. Nero caminhava por entre seus convidados, gozando-lhes da excessiva bajulação; beijava uma dama aqui, apertava a mão de um cavalheiro ali, distribuía acenos e desfilava, acompanhado da esposa que o seguia, com o rosto coberto de maquiagem berrante e pesada a emoldurar-lhe uma fisionomia bela, mas em cujos traços predominavam o deboche, o cinismo e as viciações morais mais detestáveis que se possa imaginar. Popeia Sabina ia despejando seu riso fácil e falso, em todas as direcções, sempre mantendo a cabeça altiva e encimada pela coroa imperial de ouro e sobejamente cravejada de rubis e de diamantes fabulosos, a espalharem esplêndidas faíscas, petiscadas pelo dançante fogo que brilhava nos archotes que iluminavam a noite.
A um canto, Caius Petronius Tarquinius e Drusilla Antónia, com ligeiros acenos de mão e balançares de cabeça, cumprimentavam os conhecidos que por ali passavam, no incansável ir e vir pelas alamedas do jardim, vendo e sendo vistos; mostrando, inchados de orgulho e de vaidade, a exuberância e o requinte das jóias, das vestes e dos impecáveis penteados, que costumavam levar horas intermináveis para serem confeccionados por incansáveis e pacientíssimos criados e escravos, até serem aprovados pelos seus donos, não sem terem aquelas pobres criaturas, antes, levado uma carrada dexingos, beliscões, pontapés, queimaduras com tições e violentas chicotadas e, com muita frequência, acontecia que muitos deles acabavam freneticamente apunhalados até a morte por seus temperamentais senhores, em terríveis e tétricos descargos de fúria, quando estes, tomados de crises de furor extremo, exasperavam-se ao verem que seus trajes e penteados não lhes atendiam ao apuro desejado!... Triste era a condição dos servos e escravos dessa terrível época da Humanidade!... O valor de um excelente cavalo de raça superava muito o de um ser humano!
A noite avançava e a angústia de Caius Petronius e de Drusilla Antónia aumentava. Sabiam que os banquetes no paço imperial costumavam virar a noite e até durar dias, se o imperador estivesse bem animado! Ambos torciam para que Nero se indispusesse bem depressa e se retirasse logo, coisa que, fatalmente, acabaria com a festa; entretanto, já haviam se entrevistado com o soberano e este demonstrara estar muitíssimo bem disposto e de excelente humor.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 10:30 am

– Prepara-te, minha cara – cochicha ele à mulher –, pois este convivium durará, no mínimo, uns três dias!...
– Por Júpiter!... – exclama ela, fitando-o com olhos brilhantes. – Não sabes o quanto sacrifiquei aos imortais para que tremenda tempestade desabe sobre Roma, ainda esta noite!
– Oh, és de fato uma mulher sapientíssima!... – exclama ele, beijando-lhe, amorosamente, as mãos. – Que Júpiter Capitolinus te ouça e mande, de facto, terrível tempestade, recheadíssima de ventos fortes e de raios fulminantes, que ponham toda essa escória a correr como baratas afrontadas no ninho!...
– Tu verás, meu adorado!... Tu verás!... – diz ela, piscando-lhe um olho maroto. – Mandei que sacrificassem cem pombas e três bezerros!...
– Oh, com tal presente, duvido que nosso pai não vá atendê-la, minha cara!... – exclama ele, divertidíssimo.
Neste comenos, o mestre de cerimónias aproxima-se de ambos e, gentilmente, condu-los à mesa principal, onde já os aguardavam Nero e a imperatriz.– Aproximai-vos, general! – grita Nero, cheio de agrados, ao vê-los aproximarem-se. – Assentai-vos aqui, bem próximos de nós – e lhes indica dois dos canapés que se postavam vazios ao lado dos que ocupavam ele e sua esposa.
– Magnífica festa, Majestade!... – exclama Drusilla antónia, fazendo longa reverência diante de Nero.
– Oh, Drusilla!... Drusilla!... – grita Nero, puxando-a, deselegantemente, para si e a beijando, efusivamente, às faces e depois, à boca, dando largas mostras de que já se encontrava grandemente embriagado pelo vinho. E prossegue, quase a berrar: – Fina flor da sociedade romana!...
Popeia Sabina limita-se a olhar para a outra com um sorriso falso.– Reservo-vos espectáculos interessantíssimos para esta noite, caríssimo general!... – exclama o imperador, dirigindo-se, em seguida, a Caius Petronius.
“Tu próprio já és um grande espectáculo!...”, pensa o general, enquanto sorri, forçadamente, para Nero.
Diante da mesa principal, em extenso tablado recoberto de lona rubra, uma porção de bailarinos – rapazes e moças seminus – dançavam frenético e lascivo bailado, embalados por música ligeira e inebriante. O banquete começara e, em toda a parte, a comilança era desbragada, chegando às raias da indecência. O vinho capitoso era servido em profusão, coisa que vinha fugindo à tradição, pois, na Roma republicana de antanho, nos tempos áureos de glória e grandeza, pessoas distintas jamais bebiam vinho puro; entretanto, Nero fomentava a ingestão da jeropiga nos banquetes palacianos, fato que proporcionava estados de alta embriaguez, em pouquíssimo tempo.
As horas passavam, e a noite avançava agradável e refrescada por brisa amena. No céu, a lua cheia caminhava lenta e ia derramando sua luminescência opalescente sobre os miríficos jardins do palácio de Nero. Risadas, gargalhadas e gritos de euforia ouviam-se por todos os lados, entressachando-se ao som estrugidor da orquestra que tocava sem cessar, e o abuso do álcool provocava indecências gritantes que se viam por todos os lados. A comilança, regada de vinho em profusão, varava a noite. À toda hora, alguns criados, especialmente treinados em promoverem o vomitum,47 corriam de um lado para outro, atendendo aos insistentes chamados que lhes dirigiam os glutões. Casais seminus abraçavam-se, escandalosamente, em colóquios libidinosos, enquanto que, no tablado, os bailarinos desenvolviam danças com movimentos altamente eróticos e cheios de sensualidade. Nero vibrava com o andamento de sua festa. Aos berros, incitava os dançarinos e não raras vezes tinha ele mesmo saltado para o palco e, juntamente com os bailadores, ensaiado uma série de movimentos daquela dança sensual. Roma degradava-se, e aquilo trazia dor aos poucos que permaneciam fiéis aos costumes e tradições ancestrais que tanto haviam engrandecido e diferenciado o povo latino dos demais povos existentes então. O general Caius Petronius Tarquinius e sua esposa eram dos poucos que ainda permaneciam fiéis à tradição e velavam pela manutenção da moral e dos bons costumes que tanto haviam elevado seu povo; entretanto, ambos viam, altamente entristecidos, que os tempos mudavam, que as pessoas, paulatinamente, iam ganhando novos e estranhos hábitos, que bebiam mais, que comiam mais, que valorizavam mais o excesso de requinte e de luxo, em detrimento dos valores morais que Roma tão sabiamente soubera acalentar e cultivar entre seus lhos!... Roma ensinara ao mundo o senso de justiça, através do Direito, que sempre se praticara no Fórum, através dos Magistrati48. E a Política?... A Filoso a?... A Religião?...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:52 pm

Caius Petronius e Drusilla Antónia mal tocavam nos alimentos. Amiúde se olhavam e encontravam, reciprocamente, na luz dos significativos olhares que trocavam, o desdém e o repúdio que ambos sentiam por aquelas coisas.
Nero espiava-os com o canto dos olhos. No íntimo – embora não o demonstrasse de jeito nenhum –, admirava o general e, no fundo, tinha inveja dele. Invejava-o por dois motivos: primeiro, pela inteligência e capacidade incontestável que o militar possuía como estrategista imbatível; segundo, porque amava e era amado por Drusilla Antónia!... E era amor de verdade!... Nero sabia disso e se roía de despeito, posto que jamais amara ou fora amado assim! A intervalos, cochichava aos ouvidos de Popeia Sabina, e ambos riam, sarcasticamente, enquanto olhavam para Caius e para Drusilla. Era uma maneira de vingar-se deles: humilhando-os, desdenhando-os. O general tinha vontade de se levantar e de esbofetear a ambos, repetidas vezes, até se cansar. Drusilla Antónia apaziguava-o com os olhos. Sabia que, se o marido cometesse tal afronta, acabaria morto ali mesmo, diante de todos. E talvez fosse isso mesmo o que Nero desejasse: um espectáculo de alta monta!... Não era o que sempre vivia proporcionando aos seus convidados?
Nero continuava mordiscando a orelha de sua esposa e lhe cochichando indecências ao ouvido. Notava-se que era grande seu estado de embriaguez.
A imperatriz, não menos bêbada que seu esposo, escancarava-se, agora, em escandalosas gargalhadas. Olhando para Drusilla Antónia com acentuado desdém, cochichava ao ouvido de Nero que se espatifava de rir, enquanto olhava para o casal que se mantinha sério e sóbrio o tempo todo.
– O general Tarquinius se enraivecesse, querida! – cochicha Nero ao ouvido de Popeia Sabina. – Quero ver até onde vai, sem afrontar-nos!
– Que fareis, se ele saltar sobre vós?... – sussurra, divertida, a imperatriz, ao ouvido de Nero. – Acho que tereis de matá-lo!
– Oh, não!... – responde Nero. – Conhecemos o general!... Ele não fará isso!... É um cavalheiro!... Sabias que nós o admiramos muito?...
A imperatriz não entendeu o real sentido das palavras de Nero. Achou que ainda zombava do outro e explodiu em estrondosa gargalhada.
Caius Petronius lutou bravamente consigo mesmo para não cometer o regicídio. Várias vezes acariciara o cabo do punhal que trazia guardado por dentro, junto ao peito, numa dobra de sua pesada praetexta de linho branco.
Tivera ímpetos de lançar-se sobre aquele porco imundo e apunhalá-lo até se esfalfar, mas se contivera por ela, Drusilla Antónia, que, com os olhos súplices, vigiara-o e o controlara todo o tempo.
Entretanto, pouco depois, como não obtivesse resposta das provocações e como se cansasse logo das coisas, Nero passou, deliberadamente, a ignorar o general e sua esposa, e principiou a dar atenção a outros que lhe estavam próximos.
De repente, como se se lembrasse de algo sumamente importante, o imperador de Roma levantou-se e, aos berros, pediu silêncio. A orquestra estacou, e um burburinho geral percorreu a imensidão de convidados que se acotovelava em derredor do imenso tablado coberto de lona vermelha. O mestre-de-cerimónias bateu palmas, e os bailarinos recolheram-se céleres.
– A luta!... – a seguir grita Nero, estentóreo. – Que entre therupon!...
Depois, truculento gladiador de tez amorenada salta lépido para o tablado e se exibe para a plateia ululante. Nero salta também para a arena, que ali se improvisava, e passa a examinar, com minudências, o físico avantajado do lutador que, seminu e enrijecendo, forte e propositadamente, o corpo todo, fazia sobressair a desmedida musculatura dos braços, do peito, dos ombros e do dorso avantajado, como o de um gigantesco urso.
– therupon, o egípcio!... – grita Nero, apresentando orgulhoso o que seria a sua maior surpresa para a noite. – Já o vi matar um cavalo e dois leões com as mãos!...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:52 pm

A plateia emite sonora exclamação de admiração e de espanto e se enche de ansiedade e de expectativa para o que, certamente, seria o espectacular corolário daquela noite.
Acotovelando-se e se empurrando, para disputarem melhor lugar para apreciarem a luta, os convidados de Nero fechavam o círculo em torno do imenso tablado recoberto de lona vermelha. Grandemente espremidos, na primeira la de expectadores, achavam-se Iulius Maximus e sua jovem companheira Susanna Procula. A mocinha deslumbrava-se com as maravilhas do convivium. Era o primeiro do qual participava e se sentia cheia de euforia, pois sabia que, a partir daquele, seu companheiro certamente levá-la-ia aos próximos que ali houvesse.
– Oh, Iulius!... – exclama ela, apertando-lhe fortemente a mão. – Não sabes o quanto me sinto feliz!... Não imaginas como tinha curiosidade em saber como eram os banquetes no paço imperial!... Promete que me trarás de novo!... Vamos!... Promete!...
– Prometo-te, minha querida!... – diz ele, atraindo-a para si, num forte abraço. – Doravante, como minha noiva, tu irás aonde eu for!...
– Que entre o primeiro adversário!... – grita Nero. Faz-se silêncio total, e entra outro gladiador, não tão forte quanto o primeiro, mas também dono de avantajado físico.
– As apostas!... As apostas!... Senhores, fazei vossas apostas!... – grita Nero, excitadíssimo como um doido, enquanto corria descalço e totalmente descomposto, em derredor da arena.
Um burburinho de vozes inquietas e cheias de excitante expectativa perpassava pela multidão, enquanto se colectava o dinheiro das apostas. Depois, Nero, à guisa de juiz, ordena que o combate se inicie. E os dois gladiadores, como duas feras sanhudas, a princípio estudam-se, meticulosamente, por instantes, e em seguida, lançam-se em feroz combate de luta livre. O silêncio faz-se e é quebrado apenas pelas exclamações da plateia que, atenta, não perdia nenhum dos golpes de ataque e de defesa que se aplicavam os hábeis lutadores, no combate feroz. Nero saltitava em volta dos contendores, incitando-os ao embate brutal, ora rindo, ora gritando como um desvairado e aplicando formidáveis pontapés aos ancos dos dois gigantes, divertindo-se grandemente em provocar-lhes, assim, ainda mais dificuldades para a defesa ou para o ataque.
Como ambos os contendores eram muito fortes e treinadíssimos, a luta equilibrou-se por longo tempo, mas o egípcio, por ser um pouco mais avantajado que seu opositor, passou a dominar a contenda e, habilmente, desferiu golpe certeiro, aplicando terrível gravata em seu adversário e passou a sufocá-lo com seu possante braço. O outro envidou esforços hercúleos para livrar-se da terrível tenaz que lhe aplicava ao pescoço o gigantesco egípcio, mas foi em vão: era-lhe inferior em força e em habilidade de
combate e acabou por tombar sem vida, depois de algum tempo de inútil resistência. Um frémito de gozo intenso percorreu a multidão que se deliciou com o brutal desfecho da contenda. Nero, tresloucado, saltitava sobre o ventre do gladiador morto, e seus convidados aplaudiam-no, freneticamente, gritando-lhe o nome em coro. Mas, o que fez aquela plateia deliciar-se e entrar em delírios de êxtase foi quando o terrível gladiador egípcio ajoelhou-se ao lado do cadáver de seu oponente e, mordendo-lhe uma das orelhas, arrancou-a de uma só dentada. Em seguida, mastigou-a e a engoliu, ali, diante de todos, com o sangue do infeliz a escorrer-lhe pelos cantos da boca!
Nero extasiava-se. Rindo-se, às gargalhadas, retirou finíssimo anel que trazia ao dedo indicador da mão direita e o estendeu a therupon, beijando-o, a seguir, às faces, repetidas vezes.
– Quod vult perdere, primus dementat Júpiter!...49 – exclama Caius Petronius cheio de ironia. – Esse louco não demora a colher o que está semeando!...
Drusilla Antónia limita-se a olhar horrorizada para o marido. Aquelas cenas terríveis eram demais para ela.
– Vamo-nos daqui, minha cara! – exclama o general, levantando-se, decidido. – Isso aqui não é lugar para nós!... Nero está tão bêbado que sequer sentirá a nossa falta!... Vamo-nos, sem mais delongas!...
A multidão ululava de prazer pelo espectáculo que lhes apresentara o imperador. Em seguida, fazem entrar na arena fogoso corcel negro, ainda semi-selvagem e conduzido por hábeis palafreneiros que o sustinham, firmemente, por uma corda a lhe prender o pescoço.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:52 pm

O cavalo, grandemente assustado pelo vozerio da plateia, empinava e negaceava, bufando e escoiceando, a torto e a direito, em todas as direcções.
O animal, depois de algum tempo e a muito custo, foi razoavelmente contido no centro do tablado de lona rubra, e Nero, pedindo silêncio, bradou:
– Patrícios, lançai vossas apostas!... therupon ou o cavalo!...
Feitas as apostas rapidamente, o egípcio saltou para o centro do tablado e fez um gesto para que os cavalariços soltassem a corda que continha o animal. O bicho, sentindo-se solto, quis fugir, mas o gladiador, ligeiro como uma fera, saltou-lhe sobre o dorso, abraçando-se fortemente ao pescoço do animal, que começa a empinar e a corcovear, tentando arrojar o intruso de sobre si. Entretanto, o gladiador grudara-se-lhe ao pescoço e nem se mexia, malgrado todas as tentativas que o cavalo fazia para livrar-se da indesejada carga. Por longos minutos, durou a luta que se igualava em força e em selvageria. Entretanto, o cavalo cansava-se, e therupon, aplicando-lhe forte gravata ao pescoço, passou a sufocá-lo, minando-lhe as forças. Debalde o bicho lutou, feroz e valorosamente, para livrar-se daquele terrível torniquete, saltando, negaceando, escoiceando e correndo em círculos pelo tablado, mas vencido, tombou pesadamente, já sem vida. O terrível gladiador egípcio havia quebrado o pescoço do cavalo com as mãos!
Nero exultava tresloucado, correndo de um lado para outro, enquanto seus convidados ululavam de prazer e de excitação.
– Oh, que coisa extraordinária!... – exclama Susanna Procula que a tudo assistira, cheia de excitação, diante daquelas chocantes apresentações, até então inusitadas para ela. – Não supunha o quanto eram singulares as atracções que Nero propiciava a seus convidados!...
– Nem no Circus Maximus jamais verás coisas assim com tamanha intensidade, minha cara!... – exclama Iulius, inchando-se de satisfação. Sabia que, com aquilo, ia ganhando as graças da mocinha.
– O leão!... O leão!... – grita Nero, enlouquecido.
A seguir, avantajada jaula, contendo um enorme leão, é colocada bem no centro do tablado. A fera, propositadamente mantida sem alimentação, estava furiosa ao máximo e se arrojava, altamente enfurecida, contra as grades de ferro que a sustinham. Com modos altamente grosseiros, Nero retira das mãos de um dos tratadores uma garrocha de cabo longo e passa a espicaçar, insistentemente, o bicho, deixando-o extremamente irritado a dar patadas violentas e a morder os ferros da jaula com as potentes e afiadíssimas presas, que se mostravam como terríveis punhais. Tamanho era o rebuliço que o imperador aprontava com o leão que a enorme jaula de madeira balançava, perigosamente, o que fazia os tratadores do bicho entreolharem-se, cheios de receio. Temiam que a jaula não tivesse a segurança necessária para tamanha desordem, mas não ousavam nada dizer.
Quem é que tinha a coragem de enfrentar a fera que estava pelo lado de fora da jaula?... Certamente era bem pior do que a que estava por dentro...
E, o que os tímidos tratadores temiam aconteceu. Como o leão era extremamente avantajado e, aliando-se a isso a fúria que nele o insolente Nero despertava, o bicho, altamente enfurecido, acabou por lançar-se com tal impetuosidade sobre a gradaria que acabou por estourar as grossas traves de madeira que sustentavam as barras de ferro das grades da jaula, fazendo-a esboroar-se, desmanchando-se toda.
Um terrível frémito de desespero percorreu a plateia que, até então, divertia-se às pampas, com mais aquela paspalhice que lhes apresentava o imperador de Roma. estarrecidos, sentiram o sangue enregelar-se-lhes nas veias, diante da iminência da tragédia. Entretanto, Nero, com magistral presença de espírito, defendia-se, controlando e mantendo o leão a distância, ameaçando-o com a longa garrocha e conseguindo, por m, correr e saltar sobre a mesa do banquete, pondo-se, assim, a salvo do ataque da fera.
Entretanto, a turba desesperou-se ao ver o bicho solto que, recompondo-se, saltou sobre um dos tratadores, arrancando-lhe, de uma só patada, um ombro inteiro, com o braço junto.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:52 pm

A correria tresloucada instaurou-se e Nero, de cima da mesa do banquete, gritava como um possesso, para que não matassem o bicho, pois se divertia às pampas, vendo o leão fartar-se das carnes do infeliz tratador que agora lhe servia de pasto.
Com o leão solto, a balbúrdia que se instalou foi total: pessoas aos gritos, correndo, desesperadamente, para todos os lados; outras, desmaiando estrondosamente, e outras, ainda, sendo derrubadas e pisoteadas, sem comiseração, pela turbamulta em debandada.
Susanna e Iulius, fortemente empurrados e prensados pela onda humana que se abateu, de inopino, sobre eles, separaram-se, perdendo-se um do outro. A jovenzinha, terrivelmente assustada, juntou-se, também, àquela avalanche que corria apavorada, buscando refúgio entre as árvores do bosque que circundava o palácio. Pouco depois, tremia de medo, sozinha e perdida, no meio da imensidão do arvoredo. A ténue luminescência prateada da lua cheia coava-se por entre a ramaria das árvores e formava uma penumbra opalescente, dando ao ambiente um tom tétrico e fantasmagórico. Ao longe, ainda se ouviam estridentes gritos de pavor. Susanna Procula, premida pelo medo intenso, pôs-se a correr por entre os troncos retorcidos das árvores, soluçando e chamando por Iulius Maximus, primeiro, em voz baixa, e depois, em altos brados. De repente, do alto de um galho de árvore, saltou-lhe um vulto à frente, e antes que dele se pudesse esquivar, o estranho tomou-a e a reteve num forte abraço.
– Iulius?... – pergunta ela, não lhe podendo reconhecer as feições na penumbra do bosque.
– Não... – diz ele e, tomando-a pela mão, puxa-a, delicadamente. – Mas, acalma-te!... vem que te guio para fora daqui!
Susanna Procula hesita por instantes, mas aquela voz suave, porém, ao mesmo tempo, firme e resoluta, dá-lhe confiança e ela o segue, sem opor resistência. Por um bom tempo, ele a guiou para fora do bosque, e ela o seguia e lhe sentia a mão quente, forte, segura; entretanto, ainda não conseguia divisar nada dele, a não ser o porte avantajado, de ombros largos, quando se acharam nas alamedas iluminadas do jardim principal, onde, pouco antes, acontecia a festa, respirou aliviada. Agora, poderia, finalmente, ver-lhe o rosto. Tudo em redor estava mergulhado em silêncio; não se via ninguém por ali, e o convivium, certamente, já se haveria encerrado.
Deliberadamente, ele a conduziu bem próximo de um tocheiro, pois também ele estava morrendo de vontade de ver o rosto dela. E, quando os olhares encontraram-se, algo de mágico aconteceu: Susanna tremeu de emoção ao fixar-lhe o rosto amorenado, bem delineado, iluminado por um par de tocantes olhos marrom-escuros. Suas pernas bambearam, e ela quase caiu, se ele, ligeiro, não a tivesse amparado com os braços fortes. E ela quase desapareceu, engolida pela imensidão daqueles potentes braços. Nada se disseram, apenas, por longos instantes, ele a abraçou, e ela se deixou abraçar, sentindo-lhe a fortaleza dos músculos apertando-a forte, como jamais houvera sentido antes.
– Está tudo bem, agora!... – exclama ele, apertando-a forte.
E ela, então, deixa as lágrimas correrem. Era a tensão que se desmanchava, após terríveis momentos de aflitiva apreensão.
Depois de extravasar a angústia que a sufocava desde o início da tragédia, Susanna levanta a cabeça, que até então mantivera recostada ao peito dele, e o olha no rosto. E ele lhe sorri amigo, afagando-lhe, delicadamente, os cabelos cor de mel. A seguir, gentilmente, puxa-a pela mão, convidando-a a sentar-se em níveo banco de mármore, sob o dossel das estrelas que, lá no alto do céu, seguiam seu eterno pisca-piscar. A noite já avançara bastante, e a madrugada chegava, embalada por leve brisa refrescante.
– Oh, sinto-me grata pela ajuda!... – diz ela, por m. – Que horror!... Se não fosse por ti, ainda estaria correndo, perdida no meio daquele bosque!
– Ora!... – diz ele, olhando-a no rosto, sempre, como se estivesse embriagado pela beleza da jovenzinha. – Nada z além de minha obrigação!... Como conheço bem este palácio, não me foi difícil andar por aí, também à noite!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 06, 2024 7:53 pm

O rapaz continua a olhá-la, como se estivesse magnetizado pela candura da jovem. Seus olhos passeavam dos cabelos para o rosto, para os braços, para as mãos, de novo para o rosto. Encantava-se com a delicadeza e o jeitinho agradável da mocinha. Susanna, percebendo-lhe o intenso interesse, sente-se corar diante do insistente olhar dele. Era estranho aquilo!... Ela não costumava ruborizar-se diante de ninguém!... Entretanto, ao lado daquele rapagão que lhe era totalmente desconhecido, sentia-se frágil, totalmente vulnerável.
– Oh, que indelicadeza a minha!... – diz ela, recobrando, depois de algum esforço, a loquacidade que lhe era peculiar: – deixa que me apresente:
Susanna Procula, neta de Cornelius Helvetius Pisanus!
– Não me digas que és neta do grande senador Cornelius Pisanus?... – exclama ele, cheio de admiração. – Meu avô foi grande amigo do teu!... Eu sou Flavius Antoninus Rimaltus!
– Acho que já ouvi vovô falar sobre os Rimalti! – diz ela, altamente interessada. – E tua família não é natural de Roma!... Acertei?...
– Acertou!... – exclama ele, rindo-se e mostrando, pela primeira vez, os dentes incisivos, brancos e bem-feitos. – Somos de Neapolis!...
– É por isso, então, que ainda não te vi pela cidade!... – exclama ela. – Pois vivo no circus Maximus e no theatrum, com meu noivo, e não me lembro de ter-te encontrado antes! Ao ouvi-la dizer que era noiva, o rapaz abaixa triste os olhos. A Susanna não passa despercebida a súbita mudança no brilho dos olhos dele. Dá-se conta então de que Iulius desaparecera, deixando-a sozinha.
– E onde está teu noivo agora? – pergunta ele, com uma pontinha de ironia.
– Iulius apartou-se de mim, quando começou a correria – diz ela, um pouco envergonhada. – Já deve ter-se ido.
– Deixando-te só?... – pergunta Flavius Antoninus, olhando-a, matreiramente, com o rabo dos olhos.
– Deve se ter cansado de procurar-me... – diz ela, altamente desapontada.
– Agora não sei como voltar para casa, pois vim acompanhando-o em sua liteira.
– Posso resolver isso, se quiseres – diz ele, olhando-a nos olhos. – Tenho meu carro estacionado na viela diante do palácio. Posso conduzir-te a casa...
Susanna levanta-se e se coloca diante dele.
– Vamos, que já amanhece... – diz ela, estendendo-lhe a mão.
No horizonte, a aurora chegava de mansinho, acendendo um lumaréu róseo no límpido céu azul- turquesa...
____________________________________________________________________________________
44. Nas antigas casas romanas, abertura circular ou quadrada que se abria no tecto inclinado do triclinium, pela qual se canalizavam as chuvas, direccionando-as à cisterna – o impluvium – reservatório subterrâneo de água potável.
45. Conjunto dos deuses domésticos, cultuados na antiga Roma, cujas estátuas se colocavam à entrada do triclinium, numa espécie de altar, juntamente com as imagens dos antepassados, normalmente esculpidas em cera e, também, local onde se faziam as orações diárias e, ainda, ardia, continuamente, o fogo doméstico.
46. Nero teve três esposas: a primeira, Octávia, era lha de seu antecessor, o imperador Claudius, mas, repudiando-a por estéril, Nero, a seguir, dela se divorciou, exilando-a de Roma e, finalmente, não satisfeito, forjou-lhe um pretenso adultério e a mandou executar; a segunda foi Popeia Sabina, com quem teve uma lha, Claudia Augusta, falecida ainda pequena; entretanto, Nero matou Popeia com um pontapé, chutando-lhe a barriga, quando grávida, ela o repreendia por ter chegado tarde de uma corrida de bigas, e a terceira esposa foi Estatilia Messalina, personagem que se tornou famosíssima na História pela sua habilidade em armar intrigas e por saber manejar os venenos como ninguém.
47. Vómito, em latim. Nos banquetes que se faziam na antiga Roma Imperial, comia-se muito, sem parar, e às vezes, por dias seguidos. Então, era prática comum, uma vez saciado o apetite, provocar-se o vómito e, a seguir, prosseguir-se comendo, repetindo essa acção, indefinidas vezes. Os criados especializados em provocar o vómito agiam assim: empregando longa e delgada varinha de mar m, faziam cócegas na garganta do comensal, provocando-lhe o vómito, que era recolhido em bacias. A seguir, para se tirar a acidez que permanecia na boca, enxaguavam-na, abundantemente, com água, e, em seguida, mastigavam um olho de lebre cru, embebido em mel de abelhas – a acção do humor aquoso contido no globo ocular neutralizava-lhes a acidez da boca provocada pelo vómito.
48. Magistrados, em latim. O conjunto dos juízes, promotores e ministros que actuavam nas cortes de justiça.
49. “– Aqueles que Júpiter quer arruinar, primeiro os enlouquece!”..., em latim.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O pescador de almas - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Conteúdo patrocinado


Conteúdo patrocinado


Ir para o topo Ir para baixo

Página 1 de 6 1, 2, 3, 4, 5, 6  Seguinte

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos