LUZ ESPÍRITA
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 3 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:55 am

Às descrições freudianas do trabalho com os sonhos, Jung acrescentou a ideia do inconsciente colectivo, no qual as imagens são comuns não só à vida de cada um, mas também à do universo. Ele também percebeu que os sonhos não eram só desejos vicariamente satisfeitos, porém, muitas vezes, comentários espontâneos do Si-mesmo a respeito da vida do sonhador. De acordo com Jung, os sonhos podem ser não só teleológicos, promovendo as metas da consciência e da completude, mas também estão em busca de compensações para as unilateralidades das adaptações conscientes. Dessa maneira, são dotados de propósito e capazes de efectuar correcções, desde que, é óbvio, a pessoa possa assimilar conscientemente a mensagem.
Na mesma medida que a psique é atemporal e abarca todas as coisas humanas, devemos reconhecer e admitir que as vidas que construímos são parciais, contidas pelo tempo e fragmentárias. Se pendemos à direita privilegiando as escolhas conscientes, a psique nos arrasta para a esquerda a fim de nos centrar. Os sonhos, por conseguinte, confrontam-nos com nossas vidas não-vividas, não com o que somos, mas com o que poderíamos nos tornar; não com o que fizemos, mas com o que não conseguimos realizar.
Quando discernimos a natureza e o motivo do trabalho onírico, podemos igualmente perceber o mesmo processo em funcionamento no trabalho mítico. Já se disse que o sonho é a mitologia da pessoa e que o mito é o sonho de uma tribo. Ambos originam-se espontaneamente das profundezas e confirmam as actividades de auto-regulação do psiquismo. Da mesma forma que os sonhos fazem parte do correctivo teleológico exercido pela psique individual, dando continuidade à misteriosa missão da natureza no íntimo de cada um de nós, também os mitos, procedendo das mesmas camadas abissais, contêm o correctivo teleológico da alma. Ao aceitarmos a premissa de que os sonhos têm sentido, podemos compreender que o trabalho dos esquizofrénicos seja significativo, não só no contexto de vida de cada indivíduo, mas também em termos da vida da tribo, posto que cada pessoa é um portador do universal.
Nas próximas páginas estaremos examinando os desenhos realizados por dois pacientes diagnosticados como esquizofrénicos. Os dois tinham menos de vinte anos nessa época, e haviam frequentado a escola até que seu processo de pensamento tornou-se desorganizado e ineficaz.

A borboleta de ferro
Os dois primeiros desenhos foram feitos por uma moça de 17 anos a quem chamarei Susan. Era filha de uma família de classe média sem qualquer histórico anterior de distúrbio mental. Teve uma educação normal em que existiam apenas as tormentas usuais da adolescência. Embora tivesse experimentado maconha, não apresentava história de vício em drogas. Tinha começado a ouvir vozes na escola ainda, vozes que lhe diziam que tinha dons especiais de compreensão e intuição, e que o mundo iria beneficiar-se desses talentos. Então, um dia saiu andando e se meteu no meio de uma via expressa de quatro pistas, a caminho de visitar o então presidente Carter para expor seus planos para a paz mundial. Foi recolhida por policiais e levada até o hospital psiquiátrico local, avaliada, medicada e internada num confinamento involuntário de 21 dias.
Muito compreensivelmente, Susan percebia a vida hospitalar como uma forma de encarceramento. Embora percebesse que alguma coisa estava seriamente errada, queria mais que tudo ser solta para voltar para os pais.
Além de passar por terapia em grupo e tomar remédios, era semanalmente visitada três vezes por sua psicoterapeuta. Conversava de maneira relativamente coerente, embora persistisse seu delírio de grandiosidade, e ela concordava de bom grado em expressar seus sentimentos na forma de desenhos. Usando canetas coloridas ela desenhava uma série de figuras que identificava como “a borboleta de ferro”. O desenho que mostramos na página seguinte é típico.
Susan sentia-se atraída pela imagem da borboleta de ferro porque ecoava suas vivências pessoais. Ela não sabia conscientemente que uma das raízes etimológicas da psique é, de fato, “borboleta”, muito possivelmente porque, como a alma, a borboleta é obrigada a atravessar estágios de transformação antes de alcançar beleza final, frágil e fugaz, que é seu destino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:55 am

Ao mesmo tempo, essa criatura esvoaçante e frágil está circunscrita ao mundo arcaico, férreo. As imagens de Susan são arquetípicas e ela não tem a menor percepção consciente de seu significado mais profundo. As palavras escritas na borboleta expressam a cisão que sente — esperanças de “paz e amor” numa parte, vazio e solidão na outra.
Esses sentimentos irão aparecer em qualquer adolescente que você “apertar”, mas o contexto geral no caso de Susan, como vemos no canto superior direito, é estar contida dentro de um “bloco de gelo”, a imobilização do movimento psíquico. Em seu centro vemos a esperança de um desenrolar favorável do processo — “eu como pessoa forte” — mesmo que a borboleta tenha uma expressão lacrimosa, esteja chorando. Ela é capaz de expressar bastante bem suas tensões e as cisões que sente são identificáveis. Eis aí um bom sinal, pois aquelas partes da psique que podem ser identificadas, com as quais se pode manter diálogo, serão em última análise integradas. Acima de tudo, o tema da quaternidade é comum aos seus desenhos; arquetipicamente, esse número sugere a totalidade, quer dizer, a integração dos opostos.{132}
O desenho de Susan, que ela chamava de auto-retrato, estava repleto de dados míticos. Embora ela pudesse conscientemente denominar as tensões que sentia, o que servia de bom presságio de seu potencial de cura, ela também sentia um torpor profundo e a intensa atracção da dimensão arcaica.
Talvez fosse essa sensação da força de atracção do inconsciente que causava seus voos compensatórios de grandiosidade. A jornada universal do herói é evidente na luta da alma desta garota para integrar as partes separadas de sua experiência de vida, em sua busca de transcender os liames que a atavam ao mundo arcaico. Entretanto, a confluência de forças afectivas e bioquímicas havia exaurido sua energia vital e desestabilizado seu ego.

Na mata escura
Lembremos as primeiras linhas da descida de Dante ao inferno: “A meio caminho da jornada da vida, encontrei-me numa mata escura, depois de ter perdido o meu caminho.”{133} Embora Susan ainda estivesse na adolescência, é esse motivo arquetípico que ela ilustrou em outra série de desenhos, dos quais o da página seguinte é uma ilustração.
Quem conhece literatura ou mitologia, e estuda sonhos, rapidamente reconhecerá os motivos deste desenho. Susan coloca a si mesma — "Mmim", no centro de uma estrutura quadrada. Muitas e muitas vezes, a floresta e o oceano, de maneira primal que não deixa rastros, servem de símbolos arquetípicos para o inconsciente. Em sua descida, Susan fica perdida numa floresta escura, depois de desviar-se de seu caminho. Ela conhece o poder das regiões inferiores, o mundo arcaico, e sabe que precisa de “ajuda para ser livre!” Recorre ao pensamento cristão como amparo (esquerda, embaixo) embora sinta o peso de Saturno, associado à depressão e ao estado de ânimo sombrio. Sem ter jamais ouvido falar de inconsciente colectivo, Susan ainda rotula essa parte de si mesma de “universal”. A mata à esquerda contém “membros de sua família” (que em geral lhe davam apoio). Suas associações astrológicas variam da possibilidade de felicidade, tradicionalmente associada com Júpiter, à ajuda de Mercúrio, o traquinas. Por um lado, constatamos como Susan está emaranhada no mundo arcaico da letargia adolescente, amplificada uma centena de vezes por sua cisão psicótica, e, por outro, os recursos disponíveis para “crescimento” e “maturidade”. O quadrante superior representa seu futuro “MIM”, o sol a pino sobre as montanhas distantes, informando a extensão e o rigor de sua jornada, assim como a promessa da viagem de transformação. As outras letras “M” lhe pareceram ser ela mesma, mas também lhe deram a sensação de pássaros, sugerindo a liberação do espírito, a libertação da borboleta de ferro.
Em seus desenhos espontâneos, Susan era capaz de configurar mitopoeticamente seu dilema e sua jornada. Sentia-se terrivelmente imobilizada, mas o fato de ter condições de rotular esses trechos e sectores sugere que havia agrupamentos da energia consciente logo abaixo da superfície, capazes de trabalhar pela assimilação e integração das partes cindidas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:55 am

O sol brilha no topo dessas montanhas, como a sabedoria da alma individual.
Susan estava perdida na floresta escura, mas um processo interior estava em andamento, um processo que, em última análise, iria libertá-la e lhe permitir um bem-sucedido retorno à sua família e escola. Em seus desenhos pueris, vemos o ciclo da morte-renascimento e a jornada do herói.
Como contém o elemento universal, e visitou o lugar de onde se originam sonhos e visões, suas imagens tão pessoais falam a todos nós. Susan não está criando um mito; o mito é que a está criando. A tarefa dela é a mesma que a nossa: tornar esse mito consciente para que possamos valer-nos de sua energia de maneira a cooperar com a misteriosa teleologia da alma. Os que se colocam num relacionamento consciente com essas imagens profundas, que apreendem o grande mistério nelas encarnado, encontram significado, por mais que sua vida externa possa ser empobrecida.


Comendo o sol
O segundo paciente, um garoto, também tinha 17 anos. Tinha nascido numa família onde o pai era da marinha, e passara sua infância inteira morando em diferentes bases navais, por todo canto do mundo. Enquanto sua família estava instalada na Europa, começou a ter alucinações que o aterrorizavam. Por exemplo, podia ver seu pai morrendo de modo horrível num acidente de motocicleta, ou sua mãe sofrendo um ataque sexual. Perto da base onde morava era fácil comprar haxixe, e, como Susan, ele usou um pouco dessa droga para se proteger desses assaltos terríveis de sua imaginação. Por algum tempo, pensou-se que seu comportamento cada vez mais bizarro fosse decorrente do uso da droga.
Quando foi levado para um hospital militar em Frankfurt, uma voz lhe disse que voasse. Ele subiu até o segunda andar de uma escada e aterrissou incólume no chão do saguão principal. Depois de ter sido hospitalizado, ficou estabelecido que as experiências com as drogas eram um problema secundário e não a causa primária de seu pensamento desorganizado.
Terry, como iremos chamá-lo, era o filho de um oficial que tinha se alistado na marinha quando jovem, às escondidas, para fugir de casa. Sua namorada engravidara quando estava com 18 anos, e viviam uma vida itinerante em função da marinha. A raiva que o pai de Terry trazia desde a sua própria infância tumultuada degringolou em uso excessivo de álcool e xingamentos, além de eventuais abusos de ordem corporal contra o menino.
Sua mãe era doce, co-dependente e passivamente sedutora. Muitas vezes o garoto sentia-se repartido entre os dois. Embora amasse e idealizasse o pai, também sentia que ele era opressor e tinha ódio de si mesmo. As alucinações de que padecia com respeito à morte do pai expressavam o que ele não aguentava conscientizar. Da mesma forma, o porto seguro e doce na família era a mãe, que não só servia de refúgio para o adolescente que estava despontando, como também era seu amor secreto. As implicações deste possível drama edipiano eram excessivas para uma assimilação consciente e, por isso, cindiram-se e voltaram então como material fantasioso.
Terry também logo concordou em desenhar. O nível de sua desorganização era muito maior que o de Susan, de modo que seus desenhos eram mais fantásticos e, em geral, ele não demonstrava a capacidade de falar sobre eles com alguma coerência. Sua fala costumava assumir a forma de uma “salada de palavras”, e suas visões eram de teor cósmico. Ele visitava outros planetas e ouvia os deuses; suas fantasias tinham uma qualidade de “Guerra nas Estrelas”. Dos muitos desenhos que realizou, o que reproduzimos na página anterior chamou-me a atenção por sua capacidade de ilustrar o dilema que vivia, seus processos psíquicos e a natureza arquetípica de suas vivências. O original, colorido, impressiona por sua dramaticidade e capacidade de mobilizar quem o vê.
Quando examinamos esse desenho devemos ter em mente que nosso interesse não é estético em si. Quanto mais simples e espontâneo é o desenho, mais temos condição de observar o processo inconsciente em toda a sua imediaticidade. Joseph Campbell lembrava-nos em que consiste esse tipo de obra mítica:
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:55 am

Deve-se compreender que os sinais e signos fragmentários significam que (o) paciente, totalmente fora de contacto com maneiras racionalmente estruturadas de pensar e comunicar-se, está tentando estabelecer algum tipo de contacto. Interpretado por esse prisma, o colapso esquizofrénico é a jornada para trás e para dentro, com o intuito de recuperar algo que ficou perdido ou esquecido, e com isso resgatar um equilíbrio vital. Então que o viajante possa ir. Ele embarcou e está afundando, talvez afogando-se; no entanto, tal como na antiga lenda de Gilgamesh e seu longo e profundo mergulho até o fundo do oceano cósmico onde colher o agrião da imortalidade, existe um ímpar elemento verde valioso de sua vida, lá no fundo. Não o afastem dele.
Ajudem-no a colhê-lo.{134}
Ao ser solicitado simplesmente que desenhasse como estava se sentindo, “onde estava agora”, Terry desenhou depressa, aparentemente sem pensar. Deu um passo atrás e ficou satisfeito com seu desenho. Com uma coerência maior que a costumeira, descreveu a figura animal à esquerda (em laranja no original) como “lagarto-iguana-dragão”, que estava “viajando através do tempo e do espaço.” Ele disse que “o dragão golpeado pela luz do sol” irá viajar pelo espaço e “comer o sol”, que ele identificou com a massa púrpura rodopiante, no canto inferior direito. Depois irá morrer e “voltará vivo de novo, brilhante e cor de laranja.”
O sol, disse ele, está entrando em eclipse e tem manchas rodopiantes.
Imediatamente acima do sol encontra-se uma aranha invertida observando os acontecimentos. A configuração (amarela) à direita do dragão representa “outono, amarelo, inverno, folhas golpeadas pela luz do sol.” A figura alongada ao alto à direita (verde) é uma “cobra com uma boca prematuramente aberta.” A forma à esquerda desta é “um abacaxi com crosta ou veia aberta ou marcas de bolhas”. (Estas citações são seus comentários directos, embora não sejam a maneira habitual de um adolescente se comunicar.) Então parou de repente, pôs a mão sobre a boca, e disse que tinha esquecido algo importante. Tinha esquecido de desenhar uma meia-lua directamente atrás do dragão (que então acrescentou a lápis), e dela é que o dragão saía. Alua, ele disse, “se importa e não se importa merda nenhuma.
Fica só por ali.”
Não é possível repassar todos os motivos neste desenho. Mas quando lembramos que aquele rapaz estava suspenso entre um pai irado e agressivo, constantemente desafiando-o a “crescer e virar homem”, e uma mãe passiva e sedutora de quem era emocionalmente dependente, percebemos que esse desenho sem dúvida retrata o drama familiar e o dilema que ele vivia.
Terry identificou-se com o dragão. Historicamente, o sol vem sendo associado com o Deus Céu, o Pater Famílias, representando a consciência solar, o princípio logóico. Observe, porém, que as palavras “golpeado pela luz do sul” são repetidas. A força do sol — a exacerbação do pai cuja raiva estava projectada no filho — era grande demais. A pressão para ser um homem era um encargo saturnino que havia comprometido profundamente aquela criança.
Sem anciãos na tribo que iniciem a criança com amor e sabedoria, o jovem não tem aonde recorrer ou ir nesse estranho mundo chamado masculino, nenhum lugar que ele deseja visitar. Ao mesmo tempo, ele não pode permanecer no regaço da mãe, pois ali demorar-se é perecer, é abandonar a jornada do herói.{135} O sol representa a energia poderosa que pode frutificar, fazer brotar a vida, a consciência e o divino, mas em excesso causa o fenecimento e a destruição do que é tenro e precisa de apoio.
A lua é a encarnação do inconsciente, do maternal, crescendo e minguando em ciclos de 28 dias, fonte de tudo, porto de adiamentos, chamado da sereia para o fundo da regressão. Como pudemos ver no mito do eterno retorno, o mar de eros pode dar à luz mas também causar afogamento na nostalgia (etimologicamente, dor pelo lar). A argêntea sensibilidade da lua representa a consciência intuitiva, enquanto os raios do sol representam o racionalismo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:56 am

A figura do dragão com a qual Terry identificou-se é uma criatura de força elemental. Suas origens estão claramente vinculadas à mãe, e no entanto Terry está preso ao pai. Para sobreviver, ele é obrigado a escapar à atracção gravitacional do complexo materno e, de alguma forma, destruir a negatividade experimentada no complexo paterno. (Mãe e pai, assim como são pessoas reais, também são figuras internalizadas como energias carregadas de afecto, como complexos, por trás dos quais estão os arquétipos da Mãe e do Pai.) O pai deve morrer — como sugerem as alucinações de Terry — sem que a pessoa sofra machucados; quer dizer, Terry precisa tornar impotente o complexo paterno sem atacar o pai biológico. Por isso, sua tarefa é “comer o sol” — assimilar a negatividade, morrer para o antigo ego com que se identifica, para renascer na qualidade da pessoa que efectivamente é. A aranha está vinculada com a mãe; aqui está invertida, o que sugere que más energias podem ser empregadas para o encontro heróico. A cobra também tem relação com a mãe, assim como o abacaxi, símbolo recorrente de hospitalidade e boas-vindas. Para o jovem é difícil constelar as energias necessárias para apoderar-se da força do sol, de modo que todos esses componentes cindidos sugerem a ubiquidade do complexo materno. Não obstante, o dragão tem um poder imenso.
O deslocamento do dragão, da esquerda para a direita, é o movimento de conteúdo do inconsciente rumo a uma consciência expandida. A espiral descendente para consumir o sol, que “voltará vivo de novo”, é outro conhecido padrão arquetípico, o do uróboro, geralmente simbolizado pela serpente-dragão que come a própria cauda. Este símbolo é repetidamente encontrado em todas as culturas antigas tanto orientais como ocidentais.
Trata-se do motivo da morte-renascimento, inspirado sem dúvida na capacidade que as serpentes têm de trocar de pele, descartando a velha e criando uma nova. É ampla e variada a literatura sobre a serpente como símbolo de morte e renascimento, como psicopompo e agente do processo arquetípico (pense-se nas serpentes entrelaçadas em torno do báculo do caduceu, emblema da medicina). Como todas as imagens arquetípicas, é ambivalente porque busca expressar os diversos lados de qualquer questão. A serpente-dragão pode circundar, consumir ou curar, conduzir e transformar.
{136}A imagem do dragão como símbolo daquela inércia arcaica que deve ser superada é encontrada nos mitos dos antigos chineses, fenícios, saxões e muitos outros povos. Apolo, Cadmo, Perseu, Siegfried, São Jorge e Miguel, são todos heróis que derrubam a tirania do dragão, associado com tudo que é poderoso, ctônico e regressivo. Da mesma maneira, a serpente-dragão faz parte do grande ciclo de morte e renascimento. Na história asteca da criação, por exemplo, o Deus-serpente emplumado fere a si mesmo e oferece seu sangue à humanidade para que esta possa viver. Diversos desenhos gnósticos ilustram a presença da serpente-dragão como agente do renascimento.
Existem muitos mitos nos quais o herói renasce de dentro das entranhas do monstro — o grego Jasão, Vishnu na mitologia hindu e o Jonas dos hebreus.
Cada um destes mitos emprega o mitologema do renascimento a partir daquilo que primeiro destrói.
Um resumo de teor amplificativo como este apenas começa a esboçar as ricas ressonâncias do motivo arquetípico do dragão como símbolo recorrente. Mas o que sugere essa amplificação, e como é útil para quem precisa tratar um jovem acometido pela doença?
Antes de mais nada, a ubiquidade desses símbolos atesta que existe uma rica vida inconsciente que ecoa e se expressa por meio de imagens, e que cada aparecimento dá continuidade ao drama atemporal da psique. Quando sabemos que o aparecimento do dragão a partir das profundezas lunares, maternais, e seu subsequente gesto de devorar o sol, ou divindade solar paternal, é um mito que se encontra na China antiga, em Java há 1500 anos, na alquimia da Europa medieval, e em muitos outros locais e épocas, então nos damos conta de que Terry, como Susan, não está criando um mito — é o mito que o está criando. Diante do colapso radical de seu ego, o centro que não consegue suportar, ele está vivendo num plano mítico.
Concebido e ferido por dois genitores específicos, Terry tem não obstante sua própria viagem de individuação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:56 am

Reúne-se à longa procissão de humanos em marcha, para a concretização da tarefa que cabe a cada um. O Corão nos lembra: “Você acha que entrará no Jardim das Delícias sem os padecimentos que vieram até todos aqueles que se foram antes de você”?{137}
Carregamos essa viagem em nossos ossos e somos fadados a ela independentemente de como o destino ou as escolhas conscientes nos desviem ou encaminhem. A tarefa pessoal e arquetípica de Terry é livrar-se das amarras das sedutoras profundezas do inconsciente, destruir simbolicamente o Pai-Sol saturnino, e morrer para o santuário da infância.
Essa que é a mais antepassada das imagens, encarnando o poder de destruir e renovar, vive na psique de Terry, abana sua cauda e sopra seu hálito de fogo.
Nesses desenhos vimos o logos imaginativo de almas que se encontram no que Karl Jaspers denominou de “situações limítrofes.”{138} Tanto Susan como Terry estavam se preparando para a primeira grande passagem, deixando para trás a ostensiva dependência de seus pais, para ingressar na provisória experimentação de uma personalidade própria ainda desconhecida.
Nenhum dos dois teve apoio de sua cultura, pois não ocorreram ritos significativos de passagem, nem houve anciãos sábios que os auxiliassem em suas transições. Os dois sofreram de uma desestruturação radical de sua capacidade egóico de integrar o significado de suas vivências numa concepção coerente de si mesmos. Contudo, em seus desenhos, vemos que os mais profundos processos de sua psique são dinâmicos e autónomos, tanto inspirando como conduzindo a busca da pessoa até sua totalidade.
Nos desenhos de Susan e Terry visitamos território conhecido. Vimos os dois grandes motivos míticos: o ciclo de sacrifício-morte-renascimento, e a jornada do herói, a partir dos poderes regressivos da natureza, atravessando a mata escura, rumo à diferenciação e à individuação. Como podia ser que essas crianças, em vias de se tornar adultos, ignorantes e carentes de mentores que lhes relatassem essas antigas histórias, pudessem fabricar essas imagens? A única resposta é que a mesma psique que serviu nossos antepassados continua nos servindo. Ela gera espontaneamente as imagens que activam a nossa energia, conduzem-na e lhe conferem significado. Mesmo que as tenhamos esquecido, elas apesar disso fluem em nosso íntimo. Como repara Rilke, em sua sétima “Elegia a Duino”:
Em lugar nenhum, bem-amada, pode o mundo existir senão no íntimo.
A vida em transformações.{139}
Sendo assim, as energias de transformação movem-se, quer saibamos disso, quer não. Quão mais a vida poderia ser significativa se pudéssemos conhecer todas essas histórias, as nossas histórias, e nos alinhar em vontade e energia com elas?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:56 am

4 RASTREANDO OS DEUSES
Sobre a escrivaninha, à minha frente, está um livro chamado Encyclopedia of the Gods, de Michael Jordan. Há mais de 2500 divindades descritas, desde A-a, uma deusa solar da Mesopotâmia e A'as, um deus hitita da sabedoria, passando por Ignerssuak, deus do mar para os esquimós, e Iahweh, o deus hebreu criador, chegando a Zurvan, deus persa do tempo e do destino.
Parece existir uma abundância de deuses que apareceram, tornaram-se luminosos, e depois recuaram para o fundo das eras. Como podemos nos lembrar de capítulos anteriores, a misteriosa energia que mobiliza o cosmo penetra nas brumas de um conceito ou crença, ali habita por algum tempo e depois parte. Os Imortais, parece-nos, são muito mortais na realidade. Essa ideia, que até mesmo o mais superficial conhecimento de história autoriza, é para o crente bastante inquietadora.
Não é por acaso que a porção direitista, fundamentalista, do espectro religioso institucionalizado tenha se expandido desde a segunda guerra mundial, ao mesmo tempo em que têm perdido influência sociopolítica e número de adeptos as principais denominações ocidentais. Ao discursar perante a Liga da Psicologia Pastoral, em Londres, em 1939, Jung disse que um número expressivo de pessoas tinha perdido a ligação de significado com as grandes instituições da Igreja e da Coroa. Como o ego não fica confortável diante da ambiguidade, muitas pessoas voltaram-se para as ideologias de mais destaque dos anos 30, notadamente o marxismo e o fascismo. Aqueles para os quais essas ideologias não ofereciam a sensação de lar, ele continuou, internalizaram sua angústia existencial como neurose.{140}
Após a segunda guerra mundial, quando a Igreja e o Estado decaíram ainda mais, muitas pessoas aderiram à rede das ideologias seculares — materialismo, hedonismo, narcisismo — enquanto outras entraram em instituições que poderiam resolver as tensões psicológicas declarando determinadas certezas dogmáticas. Quando um presidente americano chegou ao ponto inclusive de asseverar que a América sofria de uma moléstia espiritual foi atacado por críticos por estar injectando um excesso de dúvidas pessoais na política. Foi substituído oito anos depois por um actor de Hollywood que promulgou sentimentos do tipo “a América está hoje no alto da sela”, enquanto os outros são “o Império do Mal.” Ressurgiram os velhos valores em preto e branco.
A massa direitista tem tanto horror da ambiguidade, do exame de sua própria consciência e da diversidade cultural que defendem suas concepções com unhas e dentes, em fronts compactos, capazes de exercer um impacto político muito maior do que o garantido pelo número de seus representantes ou por alegações de popularidade. Embaixo de suas actividades escondem-se o fanatismo e o temor. Essa necessidade de insistir na correcção dos próprios valores e de forçar o semelhante a adoptar valores semelhantes só acontece quando o indivíduo se vê afligido pelo demónio da dúvida. Nos momentos de crise pessoal ou cultural, a força e a maturidade para suportar a tensão dos opostos, que é o teste mais certeiro de sanidade, ficam seriamente debilitadas.
Conseguir que centenas ou milhares de pessoas se reúnam para alardear sua ideologia não é religião, embora surta um impacto religioso. O deus chamado de confidente pessoal por um pregador de televisão não é Deus, e sim um artefacto cultural ou pessoal. Essa coisificação de imago de Deus, como já sabemos, é ou ingenuidade ou idolatria.
Naqueles que pensam que vivem sem os deuses, que afirmam as incontáveis delícias do secularismo, ou desdenham das teologias de sua infância podemos perceber a mesma ingenuidade. A esse respeito escreveu Jung:
Achamos que podemos nos congratular por havermos alcançado tal pináculo de clareza, imaginando que deixamos bem longe para trás todos aqueles deuses fantasmagóricos. O que deixamos para trás, no entanto, são só espectros verbais, não os fatos psíquicos responsáveis pelo nascimento dos deuses. Continuamos sendo tão possuídos por conteúdos psíquicos autónomos quanto se fossem olímpicos. Hoje são chamados fobias, obsessões e assim por diante; em suma, sintomas neuróticos. Os deuses acabaram se tornando doenças. Zeus não governa mais o Olimpo, mas sim o plexo solar, e produz espécimens curiosos para o consultório do médico, ou distúrbios nas mentes de políticos e jornalistas que, inadvertidamente, alastram as epidemias psíquicas pelo mundo.{141}
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:56 am

Então foi para lá que se dirigiram — o agitador de tempestades Zeus, o guerreiro enfurecido até a loucura Wotan, Afrodite e seu nascimento espumante. A energia que já esteve investida nessas figuras migrou para o inconsciente apenas para renascer com força nas neuroses e patologias do modernismo. Por isso é que Jung também dizia que uma neurose é como um deus esquecido, pois os princípios que antigamente incorporavam foram negligenciados ou reprimidos e, dessa maneira, tornam a emergir como sintomas.
Se tivermos sensibilidade espiritual e pudermos ler as cifras de nossa era, veremos a angústia escondida atrás de um culto religioso fervoroso não ao deus, mas ao invólucro. Podemos perceber a marcha anual dos 35 milhões de peregrinos que anualmente se dirigem a Atlantic City e seus cassinos, em busca do Graal perdido, numa ligação momentânea, ou transcendência fugaz, da banalidade da vida cotidiana. Podemos ver nas incontáveis formas de vício atuais, desde substâncias químicas até relacionamentos, a febril pulsão de se vincular com o Outro. Ao dizer que essas encarnações da vida psíquica são de cunho “religioso” não estamos falando em sentido metafísico ou psicológico. Como escreveu Jung em 1955, para o pastor Walter Bernet:
“Falo da imagem de Deus e não de Deus porque está muito além de mim dizer qualquer coisa sobre Deus.”{142}
Muita confusão foi gerada depois que Jung usou a expressão imagem de Deus ou imago de Deus. Marie-Louise von Franz expressa-se de modo sucinto sobre a questão:
Todo ser humano, no fundo de sua psique, tem uma centelha divina, uma parte da divindade que Jung chama de Si-mesmo. Mas então todos os teólogos pularam na garganta dele. Os críticos teológicos, sejam eles rabinos ou ministros ou padres, sempre dizem: você transformou a religião em alguma coisa que é só psicológica. Mas se, em nossa psique temos a imagem de um deus como um centro activo, então deveríamos honrar a psique como a coisa mais elevada que existe na terra.{143} Uma confusão semelhante envolve o uso do termo Si-mesmo (com S maiúsculo) para denotar o arquétipo do significado e do centro regulador da psique. Em alemão, Das Selbst é um conceito muito mais abrangente que a identificação mais próxima do si-mesmo com ego que ocorre em inglês.{144}
Seu território é o corpo, a mente e o espírito, e seu telos a mais completa realização possível do organismo. A semelhança do que Immanuel Kant observou há dois séculos, quanto a nos ser impossível conhecer a realidade absoluta, ou mergulhar na “coisa-em-si”, também só podemos experimentar o mundo através das escrituras da psique. Portanto, só nos é possível conhecer os deuses como eventos psíquicos, pois o máximo que jamais viremos a conhecer serão sempre só eventos psíquicos. Longe se desmerecer a ideia do divino, ou de elevar o humano, estamos de fato diante de um reconhecimento simples e de bom-senso dos limites da cognição humana e de sua possibilidade de verificação, por um lado, e de outro da realidade absoluta do mundo interno. O carácter psicóide da realidade foi acentuado por Jung em 1951, em carta a Heinrich Boltze:
Detfs: uma vivência interior, não discutível enquanto tal, mas impressionante. A experiência psíquica tem duas fontes: o mundo externo e o inconsciente. Toda experiência imediata é psíquica. Existe a experiência transmitida fisicamente (mundo externo) e a experiência interna (espiritual).
Uma é tão válida quanto a outra. Deus não é uma verdade estatística, portanto é tão estúpido tentar provar sua existência quanto negá-la.
As pessoas falam de crença quando perderam o conhecimento. Crença e descrença em Deus são meros substitutos. O primitivo ingénuo não crê, ele sabe, porque a experiência interior, para ele, significa justificadamente tanto quanto a causada por estímulos externos. Ele ainda não tem teologia e não se deixou ser ludibriado por concepções que funcionam como armadilhas.{145}
Observemos por um instante a humildade de Jung diante do desconhecido, seu respeito pela absoluta distância do Outro, e sua força espiritual para sustentar a ambiguidade, e façamos o contraste com as “certezas” e os trovejantes solipsismos de Thor desfechados dos púlpitos eclesiásticos. Talvez a pré-condição vital da vida religiosa deva ser o reconhecimento da primazia da vida interior, da arena em que a imagem de Deus é activada e vive.
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 3 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:57 am

Quando os deuses não são experimentados no íntimo das pessoas, suas imagos serão forçosamente projectadas em objectos externos. Jung escreve que essas imagens têm elevado teor de autonomia, que não desaparece quando as imagens manifestadas mudam... Nossa dimensão consciente só imagina que perdeu seus deuses; na realidade, eles continuam aí e só se precisa de certo contexto geral para que sejam trazidos de volta com toda sua força.{146}
Quando esses conteúdos psíquicos são reprimidos ou retrocedem para o inconsciente, concentram energia e reemergem na forma de acontecimentos, estados afectivos ou em projecções sobre figura ou instituições carismáticas. O ensaio de 1936 de Jung, intitulado "Wotan", ilustra como um racionalismo unilateral acoplado ao génio tecnológico, desvinculado das raízes instintivas do espírito alemão, irrompeu na forma colectiva de doença chamada de fascismo.{147}
Se lembramos da mulher que mencionamos antes que sonhou com o Cristo sendo gerado em seu próprio útero{148}, iremos perceber que essa realidade psíquica está presente em todas as coisas, porém mal percebida. Os que tentam defender a superioridade de suas metáforas, denegrindo as dos outros, estão na realidade cortando a ligação de sua teologia com as raízes misteriosas que foram sua verdadeira origem. Em sua carta de 1952 a Dorothee Hoch, Jung expressou-se de maneira contundente a esse respeito:
A insistência na supremacia do cristianismo que... nem sequer lhe confere um status mitológico condicionado pela história, (torna) os evangelhos... irreais; todos os pontos possíveis de contacto com o entendimento humano são abolidos, e essa teologia é transformada em algo inteiramente não plausível e indigno de crença... e esvazia... as igrejas... é muito conveniente então porque os clérigos não têm de se importar com a congregação estar ou não entendendo os evangelhos, e podem enfim continuar confortavelmente fazendo suas pregações, como antes. As pessoas instruídas... seriam muito mais rapidamente convencidas do significado do evangelho se ele lhes fosse mostrado como um mito que sempre esteve presente, em maior ou menor grau, e que principalmente está presente em forma arquetípica em todas as pessoas. Então compreenderiam por que, apesar de todas as filtragens perpetradas pelos teólogos, o evangelho realmente lhes diz alguma coisa, e entenderiam o que é. Sem essa ligação, a lenda de Jesus continua sendo apenas uma história extraordinária, e é entendida um pouco mais que os contos de fada, que servem tão somente para entreter.{149}
Uma tradição religiosa cujas raízes arquetípicas lhe foram amputadas, que perdeu o contacto com seus alicerces mitológicos, torna-se um conjunto de conceitos ou rituais sem profundidade. Essa religião corre grande risco pois lhe falta o poder de mobilizar a alma. Em vez de colocar tudo na supremacia de uma dada religião, seria melhor demonstrar de que maneira peculiar cada uma delas apreende os mesmos processos míticos que servem de fonte e sustentáculo a todas as demais religiões. Garantir que cada pessoa tem todo o direito à sua própria metáfora ou mito popular é o melhor antídoto contra o fanatismo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 9:57 am

O mistério que chamamos Deus
Numa das cartas que escreveu num campo de concentração, o pastor Dietrich Bonhoeffer sugeriu que o termo Deus não deveria mais ser usado durante um século, pois acabou ficando tão incrustado com as associações anteriores que terminou perdendo seu poder de evocar uma vivência religiosa.{150} Vários teólogos, recentemente, têm apontado o distanciamento entre mente e corpo na teologia de Paulo, o preço da auto-alienação pago pelos crentes durante séculos, a depreciação de mulheres e homossexuais, e a perda do contacto com os mistérios telúricos da terra e da alma. Como afirma Naomi Goldenberg:
Todas as deidades — deusas e deuses — têm que ser entendidas como forças em actuação no seio da natureza e de cada pessoa, como o próprio estofo da vida. Uma figura masculina que tenha a pretensão de transcender as mulheres, o sexo e os prazeres da terra não pode oferecer vida ao mundo, mas só pode representar a morte.{151}
De maneira semelhante, tentar atribuir todos os aspectos positivos a um único deus, excluindo aqueles atributos contraditórios ou embaraçosos, vem criando uma sombra considerável na maioria das teologias. Pelo menos as religiões politeístas não tinham que se preocupar com as contradições; havia um deus para representar cada força e cada valor. Não tinham um problema de sombra, pois os deuses eram intuitivamente compreendidos como expressões amplificadas de todas as coisas humanas. Na antiguidade, quando as comunidades migravam, os deuses em geral deixavam de lado seus trajes antigos, adoptavam um novo vestuário, e até mudavam de nome, assumindo epítetos locais. Mas os princípios que representavam não mudavam; fosse qual fosse a nomenclatura, os mesmos princípios divinos e míticos estavam sendo reverenciados: quer se chame Hera, Juno, Isis, Sofia ou Maria, a Grande Mãe está presente. Em carta ao pastor Fritz Pfafflin, em 1935, Jung escreve:
O que o inconsciente está tentando lhe proporcionar não é algo absolutamente diferente do cristianismo, mas sim um aprofundamento do simbolismo cristão e um reavivamento dos fundamentos sobre os quais o cristianismo assim como outras grandes religiões se assenta.{152}
Mas, ignorar ou negar as assim-chamadas origens pagãs é o que faz as religiões modernas perderem sua ligação com o solo arquetípico.
Talvez seja útil então definir um deus a partir de uma perspectiva mítica como alguma coisa que é introduzida por uma imagem carregada de afecto, e que está nela presente, e que emerge de uma experiência de profundidade, de um encontro arquetípico.
A imagem, propriamente dita, não é o deus, mas tem uma carga afectiva tal que nos reconecta com a experiência profunda. Não podemos evidentemente saber o que, em última instância, os mistérios são. Mas quando os experimentamos, eles activam a imago de Deus em nossa própria psique. Da mesma maneira como o genitor pessoal, por bem ou por mal, activa a imagem parental em cada um de nós, também os encontros arquetípicos activam a imago de Deus. De modo análogo, um evento exterior pode activar uma resposta consonante em nosso inconsciente na forma de um sonho com alto teor de mobilização. Não confundimos o sonho com o evento externo.
Sem dúvida, entendemos que o sonho que teve foi uma pessoa. Mas as imagens do sonho têm tanto elementos de fora como algo que é muito íntimo em nós — e também algo ainda mais misterioso.
Da mesma forma como a imagem do sonho apresenta a experiência e está presente nela, mas não é o evento em si, também o deus é experimentado internamente como imagem que paira em algum nível entre o interno e o externo, mas que só pode ser vivenciado no plano interior. Considerar o sonho como evento psíquico não é denegri-lo; pelo contrário, é dizer que tem uma verdadeira realidade fenomenológica. Dizer que a experiência de Deus, ou dos deuses, é um evento psicológico, também é dizer que tem uma verdadeira realidade fenomenológica. Essa realidade pode não se parecer com a do teólogo ou a do pregador, mas é a experiência fenomenológica da pessoa. Sem essa imediaticidade, não se tem uma experiência religiosa, por mais que a pessoa afirme crer ou participe de um ritual social.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:22 pm

Como Jung explicou em carta para Valentine Brooke, em 1959:
Quando digo que não preciso acreditar em Deus porque “sei”, quero dizer que sei da existência das imagens de Deus em geral e em particular. Sei que é uma questão de experiência universal e, na medida que não sou nenhuma excepção, sei que também tenho essa experiência que chamo "Deus”.{153}
Em outras palavras, Jung usa o termo Deus para fazer a ponte entre os mundos interno e externo. Na qualidade de uma vivência, é real para ele.
Como é real para ele, a ideia de Deus está além da teologia, do credo ou do ritual e, certamente, além do plano do entendimento.
Quem quer que trabalhe com a realidade da psique, com a realidade da alma, encontra tais presenças e se assombra com elas. Quando de sua palestra sobre “A vida simbólica”, Jung lembrou sua plateia de que nossos antepassados primatas conheciam bem a presença dessa espécie de imago de Deus. Seus deuses eram interiores, tinham como lugar de descanso a interioridade de suas psiques, e o mundo ao redor era ricamente adornado pelo divino. Ao ser-lhe indagado sobre se nosso esforço para entender racionalmente estava fadado ao insucesso, ou se não seria efectivamente prejudicial, Jung retrucou:
Só quando o intelecto corta sua ligação com essa postura simbólica.
Quando o intelecto não serve à vida simbólica é o demónio; torna a pessoa neurótica.{154}
Portanto, quando a mente destrói a carga afectiva da imagem, ou denigre o poder do elemento não-racional inerente à experiência fenomenológica, a imago de Deus morre. Certamente é isso o que Nietzsche quis dizer há uma centena de anos quando declarou em “Assim falou Zaratustra” que Deus está morto e que nós o matamos. Nietzsche, professor de Basileia, sabia tão bem quanto o mais simples dos lavradores que quando o intelecto interrompe a ligação entre a imagem simbólica e a carga afectiva, ou quando a instituição esmaga a espontaneidade da imago, então o deus morre. Dessa forma, a mais reverente das atitudes é aquela que periodicamente esmaga as imagens que se tornaram ídolos, e humildemente confessa sua ignorância, aprontando-se para receber o arquétipo outra vez.
Como Blaise Pascal já havia observado no século XVII: “Toda religião que não afirma que Deus está oculto não é verdadeira.”{155} Só o deus oculto é o verdadeiro deus, pois o que pode ser conhecido já se tornou um artefacto da cultura consciente e está em vias de desaparecer. Nas palavras de Rilke:
Deuses — nós os projectamos primeiro em imagens audaciosas que o destino delimitador destrói novamente para nós Mas eles são os Imortais que no final nos ouvirão.{156}
Acompanhar o rastro dos deuses é vê-los em acção em meio aos nossos pânicos repentinos, às nossas súbitas projecções, às nossas cóleras e a todos os complexos que se apossam de nós, exactamente como os antigos os descreviam: Medeia trucidando seus filhos, Édipo arrancando os olhos, a mão pesada das divindades abatendo-se sobre uma família por gerações a fio.
Ocorre-me a lembrança de um analisando, Hans-Peter, cujo pai era lavrador analfabeto que havia imigrado para uma parte nova do país. Sua falta de instrução, seu dialecto e sua pobreza serviram para deixá-lo afastado dos demais. Esse pai só era capaz de se expressar através da linguagem da violência indiscriminada e sem sentido. Tinha uma arma e era temido pelos vizinhos. Colocava-se frequentemente em altercações e algumas delas chegavam às vias de fato. Hans-Peter havia sido muitas vezes espancado, assim como seus dois irmãos mais velhos. Somente o quarto filho, que tinha contraído a “doença divina”, epilepsia, era poupado dos maus-tratos e ingressou na vida adulta sem problemas significativos de ajustamento ou uma raiva surda e crónica contra a vida em geral. Os dois irmãos mais velhos permaneceram no círculo da violência e também se entregavam a ela.
Hans-Peter estava preso entre dois mundos. Assim dividido e em suspenso, internalizara a maior parte dessa violência e sofria de acessos recorrentes de depressão. Mesmo assim, tivera sua cota de brigas. Enquanto servira o exército, revoltara-se contra a autoridade e fora confinado no batalhão correccional. Não respondia às cartas de seus credores e nem pagava as multas de trânsito, mas conseguiu formar-se engenheiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:22 pm

No decurso de sua análise, chegou a perceber como estava inconscientemente reproduzindo em sua vida o percurso dos deuses. Seu pai, e todos os seus antepassados, tinham sido governados por Ares-Marte. Quando ele verdadeiramente percebeu que estava se comportando sob o comando desse deus, também pôde dar-se contas de que tinha suas escolhas. Seu pai tinha sido dominado por um deus desconhecido, então ele o possuía de maneira demoníaca. Mas Hans-Peter tinha outros deuses que podiam também agir. Com o intuito de tornar-se quem efectivamente era, ele enfim compreendeu que a tarefa que o destino lhe reservara era a de quebrar o feitiço que aquele deus enlouquecido tinha lançado para manter prisioneira toda a sua família.
Ao usar uma metáfora como essa, a da possessão de uma família por Ares-Marte, estávamos reconhecendo expressamente como uma parte da psique pode desagregar-se do todo e ser projectada nos outros, ou ganhar autonomia suficiente para erguer-se e tomar conta de toda a pessoa. É importante não confundir o Si-mesmo com a ideia de Deus. Identificar-se com uma energia cindida pode ocasionar uma inflação perigosa, a ponto de constelar o complexo de um Fuehrer, por exemplo. A psique é a matriz em que o deus pode encarnar, quer de modo consciente, quer não, mas identificar-se com essa encarnação é uma loucura. A incumbência do ego é dialogar com o deus, ou seja, com a energia que a imago de Deus está corporificando. Em carta para o pastor Damour em 1932, Jung explica:
A psique humana e o contexto psíquico são vastamente subestimados, como se Deus falasse ao homem exclusivamente através do rádio, dos jornais ou nos sermões. Deus nunca falou ao homem, excepto na psique e por meio dela. E a psique o entende, e nós o experimentamos como alguma coisa psíquica. Quem quer que diga que isso é psicologismo está negando o olho que vê o sol.{157}
Seguir o rastro dos deuses significa prestar atenção sensível à encarnação das imagens arquetípicas, quer elas ocorram como sonho, quer como queixa somática ou evento político. As imagens que brotam só da cabeça, como certa progénie de Zeus, são deformadas; são meras ideologias, fadadas à parcialidade e a uma rápida decadência, por mais que, no início, capturem os entusiasmos do ego.
Quando entendemos que a psique humana é a matriz da experiência dos deuses, a forja e a ferraria da divindade, aprendemos, como escreveu santo Agostinho, que "aquilo que buscas está perto e já vindo ao teu encontro".{158}
E Jung acrescentou:
Todas as eras antes de nós acreditaram nos deuses de uma forma ou outra. Só um empobrecimento sem paralelos do simbolismo poderia levar-nos a redescobrir os deuses como factores psíquicos, ou seja, como arquétipos do inconsciente... Tudo isso seria altamente supérfluo numa era, ou cultura, que possuísse símbolos.{159}
Antigamente percebidos como seres ambulantes, os deuses hoje são entendidos como dramatizações de princípios cósmicos, princípios que também encarnamos, pois não somos desconhecidos a eles. Esse encontro com os deuses não pode ser um ato da vontade; é uma ilusão acreditar que o ego pode convocar a dimensão profunda quando bem o entender.
O retorno à fonte, quer dizer, à realidade da psique, obriga frequentemente a pessoa a abandonar os confortos e certezas do pensamento grupal. Esse indivíduo deve deixar para trás os valores colectivos de sua tribo.
Ainda mais, aproximar-se das origens pode exigir a morte das imagens de Deus que funcionaram no passado. (Lembro da mulher que me disse: "Minha individuação começou no dia em que meu deus morreu.") Frequentemente com a perda da velha certeza acontece uma grande solidão, que faz com que muitas pessoas se agrupem para sentir protecção contra a realidade dos deuses vivos. Na realidade, pode-se observar, sem qualquer cinismo, que a tarefa de muitas instituições religiosas tem sido proteger seu rebanho das experiências religiosas! Se a pessoa quer evitar entregar-se às fáceis pacificações do rebanho, então, como disse Jung, “ela tem de ir adiante com a Busca e descobrir o que a sua alma diz; depois, tem de atravessar a solidão de uma terra que não foi ainda criada.”!{160}
Que imensa abertura é essa: descobrir o que sua própria alma tem a dizer! Nesse compromisso com a realidade da jornada da divindade, a vida pessoal é inundada de dignidade e propósito, por mais árdua que seja a estrada. O indivíduo descobre que existe, afinal de contas, uma fundamental generosidade do cosmo. Jung sugere:
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:23 pm

Quando você está nas trevas, apodera-se da primeira coisa e ela é um sonho. E você pode ter certeza de que o sonho é seu amigo mais íntimo; é o amigo daqueles que não são mais guiados pela verdade tradicional e, como consequência, encontram-se isolados.{161}
Se a crise desta época é religiosa, e a da pessoa é a neurose, então a tarefa é não jogar o bebê junto com a água suja da bacia. Erich Fromm acautela-nos com razão quando diz:
A questão não é religião sim ou não, mas que tipo de religião, seja o aprofundamento do desenvolvimento humano, o desabrochar de poderes especificamente humanos, ou uma força que os paralisa... Podemos interpretar a neurose como forma particular de religião, mais especificamente, como regressão a formas primitivas de religião que entram em conflito com padrões oficialmente reconhecidos de pensamento religioso.{162}
Ignorar essa questão dos deuses ou relativizá-los é emporcalhar-se ainda mais com o miasma do modernismo. Ignorar os deuses é garantir que desfecharão algum tipo de vingança no recesso de nossa neurose, ou no horrível teatro da história. O imperativo da alma convoca o indivíduo, goste ele ou não. Por um lado, existem as várias formas de pensamento totalitário, teológicas e políticas, e, por outro, o fácil relativismo de uma cultura que perdeu seus atracadouros. O encargo do significado, como vimos no primeiro capítulo, foi quase que inteiramente entregue às instituições seculares. Se pudermos dizer que mesmo numa neurose é possível rastrear vestígios dos deuses feridos, violados ou negligenciados, então também podemos dizer que o divino está em toda parte, que os traços dos deuses estão evidentes, por mais que tenham sido secularizados e profanados.
Em meio a essa confusão algumas coisas tornam-se claras. Primeira, o encontro com o profundo, seja qual for a configuração que esse encontro assumir, gera uma imagem mediatória. Essa imagem, conquanto não divina em si, por algum tempo contém a energia divina. Segunda, não podemos fixar essa energia numa imagem que institucionalizemos e veremos. Essa energia tem vida própria e irá embora, aparecendo em outra parte ou afundando para dimensões inferiores. Terceira, o encargo do significado recaiu de maneira inescapável sobre os ombros de cada pessoa. Ninguém pode fazer essa jornada pelo outro. Os que consignam a jornada, movidos por medo e solidão compreensíveis até, simplesmente consignaram suas próprias existências. O que se exige é a aceitação da solidão e do sofrimento, a consolidação da paciência e da coragem, e o fiel e atento acompanhamento dos movimentos da psique.
Por mais difícil essa jornada possa ser, ela leva a pessoa de volta aos deuses. No mesmo instante em que pensávamos que eles tivessem partido, ao rastrear o movimento da alma dentro de nós e no bojo da história, percebemo-los em movimento entre nós, outra vez. Não podemos conhecer esse mistério, e não obstante podemos segui-lo. Como observou Jung no final de suas palestras de 1937 na Universidade de Yale:
Ninguém pode saber o que as coisas são em última análise. Portanto, devemos aceitá-las como as experimentamos. E, se essa experiência ajuda a tornar a vida mais saudável, bela, completa e satisfatória para si e para aqueles a quem ama, você pode com toda segurança dizer: “Pela graça de Deus.”{163}

A deriva no oceano cósmico
No último capítulo de The Middle Passage{164} sugeri que frequentemente a pessoa se percebe como se estivesse a bordo de um navio acossado pela tempestade em alternar. Olhamos para trás e não vemos porto algum a que regressar; adiante existe só o horizonte interminável. Não há tripulação e não há capitão; sozinhos, devemos decidir se vamos para a cabine e caímos no sono, na esperança de que o navio enfim alcance alguma praia agradável, ou agarramos o timão e tocamos a nave para frente. Essa metáfora também ocorreu a John Berryman:
Se o atracadouro é invisível ou sumiu, dissemos que não podíamos saber.
Mas a razão tinha uma coisa por certa
Que ninguém ali, naquela noite, pôde engolir muito bem:
O navio está preso na névoa, nenhum homem a bordo
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:23 pm

Consegue ver na direcção do que está indo, O alimento é escasso,
menos amor ainda, sono nenhum,
O mar é escuro e dizem que é fundo ali.
Onde está um oficial que saiba algo desta costa?...
Quem sabe como
Com que fidelidade sua voz agora nítida
Poderia gritar ordens, vindas do chão do mar?
Personagens tradicionais não mais
Seus simples papéis aprendidos ensaiam
E enfim da maldição do tempo se protegem como na cama.{165}
As antigas autoridades perderam seu poder e os mapas não são achados.
O tempo está amaldiçoado e os que se encontram à deriva no oceano cósmico estão em perigo. Apesar de tudo, devem singrar para frente.
Os mitos que foram se construindo nos povos do mundo, abordando as mais variadas questões, constituem um tesouro imenso. Podemos dispender uma vida inteira lendo e reflectindo sobre toda essa produção. No entanto, quanto mais se lê mais se começa a perceber a repetição de velhos percursos, a reincidência das mesmas questões. As circunstâncias de tempo, local e região podem variar, mas os padrões são os mesmos e aguardam pelo nosso reconhecimento.
Um esquema metafórico que nos permite perceber os padrões em meio à infinita variedade de materiais míticos é aquele que chamei de "o drama cósmico". Se alguém reunisse todos os mitos de todos os povos, em todas as épocas, e os combinasse, na realidade obteria a história humana em todas as suas permutações. Além disso, essa história seria altamente dramática, por não ser estática mas sim um processo, um movimento dialéctico, um ritmo universal e atemporal. Nunca veríamos a história completa num único mito, nem todos os padrões, mas cada uma delas dramatiza pelo menos um motivo do drama cósmico. A compreensão dessa narrativa geral iria nos permitir identificar onde cada motivo mítico, incluindo aqueles que pertencem às nossas próprias tradições, se encaixa no esquema mais amplo das coisas; principalmente, seríamos também capazes de ver em que pontos as nossas vidas individuais entram nesse drama atemporal. Em particular por causa da esterilidade espiritual de nossa época, é de um imenso poder de cura saber que efectivamente participamos de um ritmo mais amplo. O significado de nossas vidas deriva da jornada da individuação, que está intimamente entrelaçada com o drama cósmico.
O conceito de drama cósmico serve-nos para identificar os padrões recorrentes, o motivo e o movimento que informa cada mito, e como esses padrões supra históricos também são reproduzidos na vida de cada um. As origens e finalidades do grande drama estão revestidas de mistério, não há dúvida, mas cada pessoa é individualmente convocada a servir esse mistério.
Ao tornar-se si mesmo/a tão completamente quanto possível (o que Jung chama de individuação), a pessoa está atendendo igualmente aos propósitos maiores da história. Não se trata de uma forma de narcisismo, pois frequentemente nos empurra para um caminho muito diverso daquele que o ego teria escolhido. Em geral a experiência serve enfim para nos tornar humildes. É porém dessa maneira que o indivíduo serve ao mistério, ao desincumbir-se de sua parte na tarefa cósmica.
A mensagem do drama cósmico é-nos conhecida na seguinte frase: “a ontogénese recapitula a filogénese.” O ser individual carrega o código genético e as estruturas arquetípicas. Portanto, quando contemplamos o drama cósmico, devemos vê-lo em pelo menos dois níveis simultaneamente:
como a história da espécie e como a história da pessoa. E, como qualquer drama, tem um estrutura. Na minha maneira de concebê-lo, existem quatro actos: caos, criação, separação e volta ao lar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:23 pm

1. Caos
O que há antes do ser, antes do princípio? O que causou a Causa Primeira? Nossa inteligência finita fraqueja, emaranha o fio de Ariadne de volta pelo labirinto do tempo imaginal em caos, na sopa primal, no oceano cósmico, na lama e no lodo ctônicos, nos vagalhões tumultuados da matéria primordial. Cada um de nós tem sua metáfora para esse estado anterior, anterior à consciência e à memória, de tal sorte que não pode ser descrito.
Essa metáfora fala de um tempo em que a terra não tinha forma e os humanos não existiam. Na vida individual esse ato corresponde ao estado fetal, em que flutuamos sem noção de tempo naquele mar inconsciente, ao sabor das grandes marés de sangue e proteína.

2. Criação
Em algum instante no antes-do-começo algo acontece, se mexe. Mas o que é esse “algo”, o grande catalisador? Não sabemos, então somos motivados a encontrar imagens, a extrair do desconhecido um símile de significado, uma metáfora que se possa trazer do desconhecido para o mundo cognoscível. As várias tribos compõem as metáforas que lhes são emocionalmente significativas. Para uma é um deus que fala. Para outra, a terra e o céu copulam. Imensas forças colidem por estarem em movimento, e o ser tem início.
Seja qual for a metáfora, algo acontece para pôr em movimento esse processo. O ovo cósmico racha, o uróboro{166} divide-se no par de opostos. O vácuo concebe e dá fruto. A partir dessas dramáticas versões do mistério do nascimento, duas grandes forças são postas em movimento na história e na vida da pessoa. Podemos denominá-las de eros e logos. Eros é a força de adesão, de busca de conexão, que recombina e sintetiza. Logos é a força que separa, diferencia, deixa para trás e desenvolve. Eros oferece o impulso para a ligação com os outros, com a natureza, com os deuses. Logos é o impulso para a diferenciação em nível celular, e depois para a instalação e o desenvolvimento da consciência.

3. Separação
Para que alguma coisa seja, ela precisa diferenciar-se. Eu sou eu porque não sou você, nem a árvore ali adiante. As polaridades são necessárias à definição. Luz e escuridão, dia e noite, masculino e feminino, terra e céu, mar e firmamento, umidade e aridez, vida e morte, e assim por diante. O bebê que flutua no oceano cósmico do útero materno não tem identidade, pois não se posiciona em frente-contra o Outro. É dolorosa a separação da mãe.
Arremessado violentamente num mundo de luzes cegantes, de sons atordoantes, com gravidade e estranhezas, o padecimento do recém-nascido é imenso. O nascimento é também uma perda da conexão, um exílio do estado de graça, descer até o inferno da mortalidade. Não obstante, sem essa separação a pessoa não existiria, pois só existimos em nossa própria separatividade.
A polaridade de opostos é indispensável ao nascimento de uma criatura humana. Temos em comum com os outros animais a nossa vida instintiva, mas a experiência dessa polaridade crítica torna possível a dimensão da consciência, o despertar do torpor instintivo para nos tornar conscientes e capazes de processar, recordar e intencionar. É a paradoxal perda da conexão umbilical com o mundo instintivo da tribo e com a mãe (no caso de cada bebê) que gera a dimensão da consciência e a capacidade de ser uma criatura humana. Da polaridade nasce a consciência; desta vem a capacidade de fazer escolhas; desta decorre a sensibilidade ou percepção moral e, desta, a maturidade.
Cada unidade tribal teve, em algum momento de sua história, de dar o grande salto evolutivo, da gratificação instintiva para a sublimação.
(Podemos perceber os primeiros elementos dessas grandes transposições, por exemplo, nos livros finais da Bíblia, em Jó em particular, e na Oresteia{167} de Eurípedes.) Nossos companheiros na criação movem-se ao sabor dos ritmos de sua instintualidade. Acumulam os alimentos antes do inverno, dormem, copulam, afastam-se das fontes de dor, mas não se denominam entre si, nem compreendem abstracções como dinheiro ou justiça, não ficam neuróticos, não amam nem trucidam o vizinho em defesa de algum slogan. Todas essas coisas exigem uma consciência capaz de refletir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:23 pm

O crescimento da consciência é um processo de movimento espiral. A cada volta do círculo a pessoa sobe um pouco mais em relação à vida instintiva. A cada anel a tribo, como a pessoa, obtém mais controle sobre seus instintos e o mundo natural, mas sofre uma perda concomitante. Essa distância entre a vida instintiva e a consciência é chamada neurose, preço necessário para a evolução acontecer. Quanto mais plenamente evoluída a consciência, maior a carga de responsabilidades. Crescer e amadurecer, como sociedade e pessoa, significa subir pela espiral na direcção de uma dimensão consciente cada vez maior, sempre voltando a experimentar directamente a própria separatividade e ciclicidade.

4. Volta ao lar
Precisamente a separação que consolida a consciência também desencadeia um grande sofrimento. Quanto mais nos afastamos da vida instintiva, mais longe estamos de casa e mais sofremos. Todas as tribos têm um mito da Idade de Ouro, das Ilhas de Felicidade, do tempo edénico anterior ao sofrimento e à consciência. Eles não estiveram lá, mas certamente seus grandes antepassados sim, os Primeiros. Se for verdade que nossos antepassados viveram numa era de ouro, suplantada pela idade de prata e de bronze, e que vivemos na do ferro, então também é verdade que os deuses caminharam pela terra nesse tempo e falaram directamente com nossos ancestrais através dos carvões incandescentes, de grandes maremotos e da própria terra. Não, nós não estamos lá agora, mas gostaríamos de estar.
Por mais desejável possa parecer de longe, ser adulto, consciente e responsável é oneroso. É tão exigente e desgastante que, de tempos em tempos, todos nós temos vontade de largar um pouco a sacola de pedras e recuperar uma forma de vida mais simples. Ao longo dos anos, pelo menos três padrões recorrentes evoluíram em todas as culturas de todas as idades e na vida da maioria das pessoas. Cada padrão representa, tenha a pessoa consciência disso ou não, uma maneira de recuar diante dos rigores da viagem, e de esquivar-se à ubíqua angústia do alto-mar.
Estou me referindo ao infantilismo, à regressão química e à dependência ideológica.

Infantilismo
Ser adulto não tem praticamente nada a ver com tamanho ou idade, e sim com o nível de consciência e de responsabilidade pessoal, até onde a pessoa tenha evoluído. Lamentar-se pelo próprio destino, por acidentes de nascimento ou vida em família, por sua fase existencial, são exemplos de infantilismo. Esperar que outra pessoa tome conta de nós, também. As duas maiores e mais difíceis ilusões que os humanos têm para descartar são a fantasia do “Outro mágico”, aquela pessoa que vai entrar na minha vida e fazê-la andar, torná-la significativa e livre de dores, e a fantasia da “imortalidade”, por meio da qual o elo mortal que nos liga todos à condição humana só se aplica aos outros. Viver uma vida de preocupações narcisistas, a busca de gratificações imediatas e a sistemática evitação da dor e das responsabilidades por si mesmo e pelos outros são ainda mais alguns padrões comuns de infantilidade. Lamentavelmente, essas características se aplicam a um contingente imenso de seres humanos, em nossa era moderna. Quantos confortos para a criatura, quantas maneiras vicárias e voyeuristas{168} de viver, quantas fugas do abismo em cima do qual caminhamos diariamente...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:24 pm

Regressão química
Várias substâncias químicas têm sido ingeridas desde o início dos tempos para garantir acesso à visão sagrada. Desde os celebrantes enlouquecidos pelo vinho que cultuavam Dioniso, até o vinho-sangue de Cristo, e os índios do Novo México consumidores de peiote{169}, as substâncias químicas têm sido empregadas no recipiente bojudo do ritual para fazer a ligação com o transcendente. Muito mais regularmente porém, alimentos, drogas, tabaco e álcool têm sido usados para anular a dor da idade adulta psicológica e para estultificar a sensação da separação. Quanto mais uma cultura perde seu eixo mítico, mais propensa se torna ao abuso de drogas. Estas oferecem uma momentânea supressão da dor espiritual, um escudo centras as asperezas da viagem, mas o preço que é pago é o nível de consciência necessário ao crescimento.
Recorrer deliberadamente às drogas puxa a pessoa de volta para o sono no regaço da Mãe. É uma forma de lidar com a ansiedade. Conforme o nível de desligamento mítico aumenta, também cresce o nível de angústia. Com o movimento regressivo, a pessoa experimenta uma fugaz reconexão e sente a presença da totalidade através do Outro. Essa sensação só pode ser mantida por breve período e, portanto, tem que ser repetida com frequência. Esse é o nascimento do comportamento viciado, que pode se valer do alimento, das substâncias químicas, ou da cálida pele de alguém. É tão grande a dor da separação que hoje se ouve que o objectivo é “não sentir dor”, “se largar”, “ficar chapado”, “desistir um pouco”. Como todos têm comportamentos viciados, quer dizer, respostas reflexas a níveis inaceitáveis de ansiedade, todos nós caímos em padrões que atenuam a espiral ascendente de evolução da consciência.

Dependência ideológica
O terceiro modo mais comum de evitar o fardo da consciência é nos entregando a um grupo ou relegando-se a Grande Líder. Já presenciamos nações inteiras abrindo mão de sua consciência individual e de seus valores morais, para seguir líderes carismáticos em campanhas santas. De Jonestown{170} ao fundamentalismo evangélico e às adulações dos comerciais, a sedução do pensamento massificado é por demais evidente. Toda ideologia se baseia em algum tipo de ideia, talvez até numa boa ideia. Mas toda ideia que seja universalizada a fim de aplicar-se a todos, que não sofre dúvidas nem críticas internas, que polariza as pessoas, torna-se demoníaca. Qualquer ideologia — religiosa, política, até mesmo psicológica — que pretenda simplificar as complexidades do mundo a fim de tornar a pessoa mais confortável é demoníaca. Os que oferecem respostas fáceis não compreendem as perguntas. Permanecer no território de uma ideologia, em lugar de crescer por meio do necessário sofrimento da vida, é outra versão da regressão.
Cada um de nós pode, de tempos em tempos, regredir através de um ou outro desses padrões, tão grande é o rigor e a duração da viagem. Mas a percepção destemida e consciente da amplitude, da diversidade e do imperativo do drama cósmico requer que nós também respondamos ao chamado mítico que ecoa ao longo dos corredores da história e no tutano de nossos ossos.
O máximo que temos a oferecer diante das grandes forças regressivas dentro de nós e ao nosso redor é nossa disposição de empreender a jornada. A consciência que temos da dualidade e do conflito é dolorosa, mas escolher o caminho da própria individuação é a única escolha adulta, o único caminho para vivermos a nossa vida ao máximo e, ao mesmo tempo, servir o mistério maior. Essa é uma escolha que não se faz só uma vez e pronto. Cada dia pede uma renovação da mesma, diante dos demónios do medo, da dúvida e da letargia.
Se dermos um passo atrás e contemplarmos a confusão caótica da história humana poderemos ver o drama cósmico em sua mais plena glória.
Há muitas perdas, muitas regressões, muitos caminhos errados, mas a ânsia inescapável da alma pode ser nitidamente constatada, através do tempo e da vida individual. Como disse Jung: “Cada pessoa é um novo experimento da vida em suas incontáveis inconstâncias de humor, e uma tentativa de uma nova solução.{171}" O mito da individuação de Jung é um mito para esta era sem mitos. A metáfora do drama cósmico é uma maneira de localizar a jornada da alma quando todas as outras bússolas desapareceram de vista.
Somos só um minúsculo fragmento da história, mas contemos a promessa dela inteira. Enquanto viajantes de um tempo que perdeu seus mitos, nossa tarefa de individuação é uma nota que se destaca na grande canção que vem sendo cantada desde os primórdios.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:24 pm

5 OS DEUSES SE AGITAM: UM INTERLÚDIO MÍTICO
Todas as histórias desta terra rodopiante emergem ciclicamente de temas recorrentes: amor e morte, poder e orgulho. Estes são motivos tão velhos quanto a civilização, e tão recentes quanto o sonho da noite passada ou a reunião de negócios desta manhã.
Como já vimos, os deuses são as energias dinâmicas que resultam de encontros arquetípicos. Deixam seu rastro em imagens luminosas, mas as imagens não são os deuses: são os recipientes temporários dessa energia divina. Como é natural para o humano ater-se à imagem para poder reter a energia, possuir o deus. Esse impulso manifesta-se como idolatria e é uma ideologia bastarda e deturpada. Nada afasta a energia divina mais depressa que nosso desejo de retê-la e desviá-la de seu fluir evanescente. E resta aos humanos lamentar-se “Oh, deus perdido! O Traço interminável!”{172}
Não temos como possuir os deuses, apesar de um expressivo contingente de sacerdotes e teólogos ter-se esforçado nesse sentido. Antes, são as energias divinas que nos contêm. Nossa linguagem rememora essa herança; podemos sentir entusiasmo (entheos, o deus interior) e êxtase (ekstasis, literalmente pôr-se fora de si, ser transportado), da mesma forma como ter uma disposição jovial ou soturna (saturnina). Essas energias possuem uma porção da psique e levam-nos a fazer coisas além do poder de nosso ego para compreender e controlar.
Embora as energias sejam divinas, a vivência dos deuses é, forçosamente, um evento intrapsíquico, uma vez que a psique é a única arena em que podemos experimentar qualquer realidade. Por isso, a despeito dos desejos despóticos do ego, a psique é multiplicidade de energias que ocupa neste locus{173} num momento e, no seguinte, outro. Alguns desses loci{174} têm carga energética suficiente para serem chamados complexos. Embaixo de cada complexo pessoal encontra-se seu componente arquetípico, aquele padrão de energia de carácter universal. Se a loucura pode ser vista como a dimensão consciente possuída por um desses fragmentos — ser possuído por um deus enfurecido, falando metaforicamente — então certamente a sanidade aumenta através de um diálogo consistente com esses componentes psíquicos.
Nossos antepassados sabiam disso de modo intuitivo. Podiam ver como um Édipo, tido por todos como o melhor e mais brilhante, era capaz de desvencilhar-se da razão e do autocontrole, e até de conhecimentos avançados, para matar um homem que se parecia consigo e que tinha idade suficiente para ser seu pai. Eles conseguiam compreender como uma mãe chamada Medeia poderia assassinar seus próprios filhos. Ou podiam saber em primeira mão o que eram os encontros de Medusa com o mal, tão apavorantes que a alma, a partir de então, ficava imobilizada. Essas histórias pareciam, na pior das hipóteses, imbecis e, na melhor, histriônicas, quando as ouvimos pela primeira vez ainda nos bancos da escola, crianças muito entediadas com tudo isso. Mas hoje já estamos um pouco mais vividos e passamos por nossos encontros com os poderes dos deuses; podemos inclusive sentir calafrios quando os confrontamos. Hoje sabemos que nossa psique é menos uma lanterna numa caverna, como o ego preferiria que fosse, e mais uma activação caleidoscópica de energias, aqui, ali e acolá.
As figuras que animavam a mitologia antepassada movem-se por nossas almas, perturbam-nos o sono e às vezes atuam de maneira inquietadora. Os cenários dos antigos roteiros hoje estão visíveis nos enredos que encenamos, por mais que as variações sejam milhares. Ler essas histórias com sensibilidade e abertura é mais uma vez nos religar com as zonas atemporais do psiquismo. Quando elas acordam algo dentro de nós, os deuses estão de volta e se movimentando no seu estilo numinoso e invisível. Nas palavras de Rilke:
Mais uma vez deixem que seja sua a manhã, deuses. Continuamos repetindo. Vocês são a única fonte. Com vocês o mundo desperta, e seu ocaso reflecte-se luminoso em cada fenda e greta de nossos fracassos.{175} Assim, amor e morte, Liebestod{176}, a velha antiga história de sempre, a mescla entre deuses e humanos, pousada nos penhascos do tempo, contempla as cavernosas profundidades da alma.

Variações de Liebestod (morte por amor)
Em qualquer mito podem-se discernir, aquém do colorido regional, as estruturas universais. Por isso é que Aristóteles sugeriu que o mito era mais revelador do que a história. As particularidades da história podem enredar o observador, mas no mito manifesta-se o padrão atemporal. Para ilustrar esse aspecto, estaremos agora examinando algumas figuras menos famosas dos mitos gregos, e saber como os padrões que personificam estão reflectidos no mundo moderno.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:24 pm

Admeto e Alceste
Como forma de serviço comunitário para purificação do sangue que havia derramado. Apolo é obrigado a servir Admeto, rei de Feres, depois de ter dizimado os Ciclopes. Admeto é um senhor generoso e Apolo, em sinal de gratidão, lhe oferece um favor. Como Admeto está destinado a morrer jovem, ele pede uma espécie de adiamento da execução. Apolo tenta convencer as Queres, embriagando-as com vinho, mas só consegue uma atenuação da sentença: Admeto pode viver mais tempo se alguém concordar em ocupar o lugar dele, na hora aprazada.
Compreensivelmente, a fila de voluntários para essa substituição não é comprida. Até quando visita seus pais é sumariamente despachado. A faculdade, aparentemente, eles até puderam pagar, mas é que agora tinham acabado de comprar um apartamento num excelente condomínio em Boca Ratón e estavam na expectativa de desfrutar dos anos de velhice, em paz. Só sua esposa, Alceste, concorda em ocupar a vaga. (Gluck encenou essa história como drama no teatro, intitulando-a Alceste, de acordo com o texto que Eurípedes redigiu em 438 a.C.) A nobreza do sacrifício de Alceste comove até as divindades que, subsequentemente, lhe devolvem a vida.
Embora a peça seja evidentemente um elogio à sua nobreza, Admeto é compelido a confrontar, em seu padecimento, a própria covardia e egoísmo.
É de se perguntar que espécie de vida seria possível a este casal, depois de acontecimentos dessa magnitude. O amor seria capaz de curar, ou a memória não cessaria de atormentar? Por um lado, o temor natural de Admeto torna-se monstruoso quando ele se mostra disposto a sacrificar outra pessoa para prolongar sua vida. Por outro lado, a disponibilidade de Alceste para desistir de sua vida e salvar o homem que ama é notável.
Lembro-me de um casal que atendi há alguns anos. O marido, William, era um executivo de uma grande empresa, homem de bom coração, mas desprovido de qualquer apreciação mais profunda de si mesmo. Na realidade, sentia muito receio da morte e, como não tinha um contacto intenso consigo mesmo, estava claramente identificado com as armadilhas do poder e da afluência. Tinha o carro mais novo e dispendioso, frequentava os “spas” mais “badalados” e cercava-se de posses. Qualquer sintoma corporal detonava um ataque de ansiedade. Tingia o cabelo e já fizera algumas plásticas. Sua protectora emocional, seu apoio indispensável, sua Alceste, era a esposa, Adele. O desenvolvimento emocional deste homem estava muitos anos atrás de sua idade cronológica, de modo que o desenvolvimento de sua anima dependia dos cuidados e da atenção que sua esposa lhe proporcionasse. Ela intermediava seus medos, amenizava suas ansiedades e incentivava continuamente o ego do marido.
A devoção que esta mulher demonstrava poderia parecer admirável em outra época, quando papéis de género bem desempenhados fossem suficientes para uma autodefinição. Mas vivemos numa época em que cada um deve cuidar do próprio desenvolvimento e de sua individuação. Como William despejava todo o seu desenvolvimento emocional em Adele-Alceste, ela vivia esse papel, não a sua vida. Quando morreu num acidente de automóvel, Willian ficou inconsolável. Alguns meses depois morreu de ataque do coração. Costuma haver em muitos casamentos esse episódio, de um cônjuge morrer logo após o outro: a vida que um não viveu volta para assombrá-lo. Adele morreu sem conhecer quem era, na qualidade de pessoa separada do marido; Willian morreu da mesma maneira vazia como havia vivido.
Como o antropólogo estruturalista nos recorda, cada versão do mito é verdadeira, pois todo mitologema é multifacetado. A nobreza do sacrifício trágico que enobrece também o processo, numa versão do mito, torna-se o pathos{177} da vida não-vivida em outra. Admeto e Alceste mantêm-se vivos em William e Adele.

Filemon e Báucis
Como é diferente a história de Filemon e Báucis, segundo o registro de Ovídio em sua Metamorfose. Parece que Zeus e Hermes decidiram certa vez disfarçar-se de humanos e viajar pelo reino dos mortais, para ver como iam vivendo. Finalmente, chegaram a uma cabana miserável na Frígia, onde foram acolhidos por um casal de idosos, Filemon e Báucis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Out 25, 2023 8:25 pm

Embora fossem muito pobres, os dois fizeram questão de repartir seu alimento e seu vinho com os deuses, num sincero gesto de acolhida e afecto.
Os deuses ficaram impressionados com essa generosidade de alma e revelaram sua natureza divina. Explicaram como haviam ficado comovidos, em particular perante a falta de generosidade de quase todos os humanos que tinham encontrado pelo caminho. Transformaram a modesta cabana num templo de mármore e pediram ao casal que lhes dissesse o que mais gostariam de receber. Filemon e Báucis responderam que gostariam de ter permissão de servir aos deuses naquele templo enquanto pudessem viver, mas que não queriam se separar um do outro, nem na vida nem na morte. Quando chegou sua hora, morreram em paz. Filemon tornou-se um carvalho e Báucis uma tília, e seus galhos entrelaçaram-se, assim mantendo-os unidos para todo o sempre.
Foi durante a faculdade, no início dos anos 60, que li pela primeira vez The Story of Philosophy, de Will Durant.
Desde então fiquei mobilizado pela epígrafe que o próprio Will escreveu e dedicou à esposa, Ariel:
Cresça forte, minha companheira... para que possa continuar Inabalável quando eu cair; para que eu possa saber
Que os fragmentos dispersos de minha canção tornar-se-ão
Por fim, uma melodia mais bela em você;
Para que eu possa dizer para o meu coração que você começa
Quando ao partir, eu saia de cena, e compreende mais.{178}
Nestas palavras, escritas no início dos anos 20, o marido enxerga claramente sua mortalidade, afirma a devoção pela esposa e pela ligação de parceria entre ambos, e expressa a crença ardente de que após sua própria morte ela seja capaz de aprofundar o trabalho que juntos empreenderam. Na realidade, Will e Ariel Durant formaram uma parceria conjugal que durou toda a vida, além de terem sido colaboradores profissionais enquanto viveram, mais notavelmente na série de onze volumes intitulada The Story of Civilization. Ariel morreu primeiro e Will apenas alguns dias após. Como Filemon e Báucis foram abençoados pelos deuses por suas almas generosas — um era o companheiro do outro e juntos produziram um corpo de trabalhos que sobrevive, como um templo, muito depois deles.
Parece que Filemon e Báucis viveram em mais do que só um casamento e que os deuses abençoam mais do que só um casal.

Dido e Enéias
A Eneida de Virgílio, épico em latim, tentou fazer pelo império romano o que Homero tinha feito pelos helenos. A maior parte do texto é devotada ao julgamento de Enéias, sobrevivente heróico de Tróia, que depois prosseguiu adiante para fundar a nova civilização da Itália (ou Lácio). Mas, mesmo com a imaginação em brasas pelo denodo de suas campanhas, o coração do leitor para quando de seu caso de amor com Dido em Cartago.
Quando Enéias e Dido apaixonaram-se perdidamente (afinal de contas este é um épico italiano), Mercúrio é enviado para lembrar Enéias do objectivo de sua viagem, e de que não pode deter-se em Cartago. Dido suplica para que Enéias permaneça com ela, mas apresentando-lhe uma séria de racionalizações, ele parte em suas embarcações rumo a seu destino imperial.
Embora o significado da Eneida tenha em geral sido interpretado como o necessário sacrifício do princípio do prazer, ou das motivações particulares, para servir ao princípio da realidade, ou o bem colectivo, não se pode senão simpatizar com a dor da abandonada Dido, cujo homem embarca rumo à guerra e que jamais regressará. Desesperada e amarga, ela se mata usando a espada dele. Bem mais tarde, durante sua jornada, Enéias faz uma incursão pelo mundo inferior. Entre as muitas sombras, lá ele encontra sua amada Dido. Mais uma vez ele apresenta-lhe explicações racionais, mas ela lhe dá as costas sem pronunciar uma só palavra. Raras vezes o silêncio falou de maneira tão ensurdecedora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Out 26, 2023 9:11 am

Há muitos anos, tive como colega uma mulher chamada Virgínia, uma intelectualmente bem-dotada professora de história. Ela amedrontava os estudantes e também a maioria dos colegas. Era percebida como pessoa rígida e mesquinha; usava seu intelecto e poder de comunicação verbal para ferir as pessoas, manobrar seus argumentos para que concordassem com os dela e depois humilhá-las. Todos respeitavam sua erudição, mas ninguém gostava dela, eu inclusive. Quando chegou à idade da aposentadoria, que na época era compulsória, todos demos um grande suspiro de alívio.
Em todos os anos nos quais convivera com ela, nunca tive uma conversa realmente pessoal com Virgínia, assim como ninguém que eu conhecia. Mas, quando chegou a época de ela se mudar para a casa onde moravam os aposentados, ofereci-me para ajudar na mudança das caixas que ela havia cuidadosamente preparado. Levei comigo minha filha de dois anos, Taryn, e depois da mudança nos sentamos esgotados no chão, brincando um com o outro. De repente Virgínia disse: “Eu teria dado qualquer coisa para que meu pai se sentasse no chão e brincasse comigo.”
Era a primeira vez que eu ouvia algo a respeito de seu mundo interior.
Começamos a conversar e, meio desajeitado, perguntei-lhe coisas sobre sua vida, sem ideia de quando ela me daria uma “cortada”. E ela falou: “Uma vez me apaixonei. Ele partiu para a guerra e nunca mais voltou.” Foi tudo que disse, mas eu pude sentir que ela se percebia traída pelos dois homens a quem entregara sua confiança. Meu coração se abriu; soube naquele momento o que deveria ter percebido o tempo todo: ela era simplesmente outra alma que fora ferida. Após essa breve aproximação desenvolvemos uma espécie de amizade, que se manteve por meio de correspondências, depois que eu me mudei.
Até agora não consigo deixar de pensar em Dido, a relegada, quando lembro de Virgínia, em pé e numa magoada dignidade, enquanto seu Enéias parte rumo à batalha. Quando ele não voltou, como Dido, Virgínia matou alguma coisa em si. Suas relações com as pessoas permaneceram distantes, frias e amargas pelas quatro décadas seguintes. Ela viveu toda a sua vida dando as costas, silenciosamente, tomada pelo desdém. Protegendo-se dessa forma de futuros sofrimentos, ela terminou sua vida emocional naquele instante da partida do jovem e desde então viveu nas brumas do mundo inferior, morta antes mesmo de falecer.

Todas as versões do mito são verdadeiras.
Glauco
Glauco era filho de Sísifo, aquele do penedo sem fim, e pai de Belerofonte. Também era dono de cavalos de corrida. Ele era tão orgulhoso de seus animais e tão ansioso para mantê-los sempre no auge de sua capacidade de desempenho, que se recusava a alimentá-los enquanto sua força não diminuísse. Também servia carne humana para os animais.
Jung comentou que uma neurose é como um deus ofendido, ou seja, um princípio arquetípico que foi ferido ou negligenciado. Ao não permitir que seus cavalos comessem, seguindo seu funcionamento natural, Glauco ofendia Afrodite. Na ocasião dos festejos fúnebres pela queda de Pélias, Afrodite decidiu punir Glauco por seu orgulho e vaidade. Durante a noite, ela conduziu os cavalos para fora de suas baias e deixou que eles bebessem de uma fonte que lhe era consagrada, em volta da qual cresciam ervas que tornariam aqueles animais incontroláveis. No dia seguinte, Glauco perde o controle de seus cavalos; fica preso entre as rédeas e é arrastado pelo estádio.
No final, ele está deitado no chão gravemente ferido e seus cavalos comem-no vivo.
Frederick era um clérigo casado com uma mulher que muitos confundiam com sua mãe. Sua vida natural em comum fora completamente substituída pelas exigências de seu ofício pastoral. Socialmente funcionavam bem juntos, como equipe, mas tinham um casamento em que não havia intimidade. Como resultado, Afrodite foi desrespeitada. A noite, Frederick vagava pelas ruas de sua cidade de tamanho médio, usando roupas de estivador, à procura de rapazes e bandidinhos para um caso rápido. Durante o dia era um orador, administrador e político cheio de verve; à noite, os cavalos dos instintos alimentavam-se daquelas ervas que acendem a loucura. Sua vida estava fora de controle.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Out 26, 2023 9:11 am

Era previsível que o mundo de Frederick desabasse um dia. Sua história saiu em todos os jornais e ele teve de sair da igreja e da cidade. No final, foi desmascarado não por suas predilecções sexuais, mas pela arrogância do trabalho que protegia sua dor e não lhe permitia qualquer introspecção, e pela vaidade que seu êxito mundano alimentava. Ao desvirtuar o curso de sua natureza, tornou-se vítima da vingança dela mesma. Os deuses não toleram displicência.

Idumeneu
Um dos muitos capitães heróicos que navegou em seu barco com as falanges que sitiaram Tróia foi Idumeneu, valente na viagem e no fronte de lutas, segundo Homero.
Na perigosa viagem de volta para casa, depois que as torres partidas do ílio tinham caído, uma galera suicida ataca a frota. Idumeneu jura que, se lhe for permitido sobreviver, irá sacrificar em honra de Poseidon a primeira coisa viva que encontrar. Isso acaba sendo seu filho, que corre antes de todos até a praia para receber o pai que está de volta ao lar. Em algumas versões, ele mata o filho e, em outras, tenta esquivar-se à promessa feita, mas em ambos os casos uma praga se espalha pela terra e ele é expulso pelo povo que se volta contra ele e o envia ao exílio.
O motivo da pessoa que por impulsividade e egoísmo faz um trato com o demónio ocorre repetidamente nos mitos e lendas. “A moça sem mãos”, um conto de fadas dos irmãos Grimm, tem o mesmo carácter. Nessa história, o pai faz uma barganha com o Maligno, sentindo-se cheio de importância e poder, e promete entregar o objecto que está atrás de sua casa e que então é sua filha.
O que o diabo representa miticamente é o encontro arquetípico com a sombra, com nossos impulsos mais escuros e deformados. Encontramos o inimigo frente a frente e ele é nós, como diria o provérbio.
Quantos pais não ofereceram os próprios filhos no altar de suas ambições não-realizadas? Quantas vezes o desejo de obter sucesso não empurra o adulto a sacrificar a criança? Ou, o que é até mais frequente, quantas vezes a arremetida ingovernável da ambição, do orgulho e da vaidade não forçam o sacrifício da criança interior no adulto, o extermínio daquilo que mantém o mundo jovem e pleno de possibilidades revigorantes? Todos nós, em algum momento, em alguma orla da vida batida pela água do mar, demos vazão ao Idumeneu em nós.


Todas as versões do mito são verdadeiras.
Mársias
Em um ponto anterior, neste livro, confessei uma fase “faustiana”, de minha vida, época em que achava possível empilhar tijolos de conhecimento até erguer uma formidável torre, por meio da qual os deuses poderiam ser vistos em todo o seu esplendor. Bom, sabemos o que aconteceu com a Torre de Babel.
Anos mais tarde, durante o treinamento de formação no Jung Institute em Zurique, passei diversas tardes passeando pelos salões da Kunsthaus, a galeria de arte municipal. Em mais de uma ocasião, encontrei-me dando a volta para ficar em frente de uma determinada estátua bastante antiga.
Lembro-me de que pensava em Freud em pé diante do Moisés da Michelangelo, e de como esse trabalho representava as pulsões e dores da própria psique de Freud, de como ele estava vivendo em toda a extensão o atemporal conflito entre id e superego. Quando comecei a sonhar com a minha estátua antiga soube que ela para mim tinha um significado especial.
Havia deixado de ser um atractivo apenas intelectual; eu fora tocado num nível mais profundo do que já conhecera.
Pesquisei um pouco sobre a estátua e o tema que expunha, e soube que aquele trabalho que tanto me atraía era uma cópia romana de uma estátua grega anterior, representando o sátiro Mársias. De acordo com Píndaro, a deusa Atena tinha inventado a flauta. Mársias ficara fascinado com o instrumento e insistira em tocá-lo, mesmo ao risco de incorrer no desprazer da deusa. Com o tempo, acabou aprendendo a tocá-la tão bem que as pessoas se reuniam ao redor de Mársias e o aplaudiam. Algumas até chegaram a sugerir que ele tocava melhor que o grande Apolo.
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 3 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Out 26, 2023 9:12 am

Mársias começou a acreditar nesses comentários públicos e não se deu ao trabalho de desmenti-los. O que foi uma estratégia profissional má de sua parte. Não há recompensa em desafiar os deuses, que representam a dramatização não só da instância última dos processos mas também das limitações inerentes aos mesmos. É o defeito humano da hybris{179}, hamartia, que nos faz esquecer das limitações diante das dimensões últimas da existência.
Foi estabelecida uma disputa, uma apresentação na arena de Delfos, e o vencedor ganharia o direito da ilimitada vingança contra o perdedor. As apostas sensatas preferiram Apolo, que venceu. Ele amarrou Mársias a uma árvore e esfolou-o vivo. A estátua em particular que tanto chamou-me a atenção no Kunsthaus mostrava Mársias pendurado e torcido de um galho de árvore, numa pose convencional que muito lembrava a de Jesus na cruz, ou a de são Sebastião atravessado por flechas.
Ao meditar sobre esse trabalho em pedra tão antigo e no motivo pelo qual me fascinara, lembrei que o termo “fascinar” vem do latim, em que significa encantar, enfeitiçar, ou seja, lançar um feitiço. Dessa maneira, a imagem externa estava movimentando alguma coisa dentro de mim, alguma coisa essencialmente inconsciente, mas também numinosa. Depois dei-me conta de que eu estava passando por alguma forma de crucificação do ego, por obra dos deuses. Foi isso o que Zurique significou para mim; isso é o que análise profunda quer dizer. Em minha juventude, eu fizera um pacto faustiano com as forças escuras: conhecimento é igual a poder. Eu empilhara muitos tijolos para a minha torre, mas ela precisava ruir.
É comum descobrirmos na meia-idade que a estrutura de ego que montamos ao longo dos anos, mesmo quando — ou talvez especialmente quando — tem sucesso no mundo externo, constitui um “falso si-mesmo”, cuja manutenção só pode ocasionar um auto-distanciamento cada vez mais agudo. Um teor maciço de energia foi investido na construção desse falso si mesmo, que agora pende em situação precária sobre o abismo. Tudo isso tem de vir abaixo para que uma vida nova possa brotar. Mas a transição é assolada pela ansiedade, pela depressão, pela incomensurável incerteza.
As Moiras, ou meu próprio inconsciente, ficavam o tempo todo me levando de volta para a frente de Mársias, da mesma forma como haviam entrado em acordo para fazer-me ir até ficar de joelhos, até Zurique, até confrontar o Si-mesmo. Eu não teria podido ser tocado pela imagem externa, pelo mito, se não fossem um reflexo do meu próprio mito. Inadvertidamente, eu havia desafiado os deuses. Eu merecia ser humilhado, rebaixado, esfolado, para ser exposto a partes de minha alma que tinham sido negligenciadas por meu ego inflacionado. Eu precisava aprender que não sabia nada. Eu precisava aprender uma humildade diária, que o mistério era infinitamente maior do que eu poderia conceber. Só um jovem poderia pensar ao contrário.
Dessa forma, o mistério que cerca aquele pedaço de pedra alcançou-me e trouxe-me para mais perto dos deuses, afinal de contas, mas de uma maneira tal que ego algum poderia jamais ter gerado.
Pudemos abordar aqui apenas alguns dos mitos menos famosos para ilustrar um ponto importante. A amplitude e a riqueza dos motivos míticos são virtualmente intermináveis. Atravessam os séculos e as culturas e, mediante uma correta leitura, podem ser detectados ainda hoje, nas entrelinhas das notícias dos jornais.
Todo mito é a dramatização daquelas energias invisíveis que fluem através do universo e, por algum tempo, habitam em nós. Enquanto grupo, contam a história humana completa e todo o drama cósmico. Cada um expressa um fragmento do conjunto, uma parte de uma capítulo. Cada um de nós vive um verso ou outro, movendo-nos de acordo com ritmos mais profundos que os que a consciência consegue atingir. Sejamos gratos por essas imagens da mesma maneira que por sonhos; esses dinamismos nos dizem, em forma visível, o que o invisível está operando, tanto na história como dentro de nós.
Quando nos acontece uma reacção emocional a uma história ou motivo milenar, podemos contar então com um ponto onde apoiar a mão para tocar o mundo invisível que nos está afectando pessoalmente. Da mesma maneira como flui mobilizado por uma imagem e pelo destino de Mársias, encarnado num bloco de pedra com mais de 2000 anos de idade, também pude discernir algo mais profundo em minha vida, no século XX. Ler os mitos com a perspectiva da imaginação, com uma receptividade imaginal, informa-nos que os deuses não se foram, na verdade. Só mudaram de forma e hoje nos movimentam de modos novos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Out 26, 2023 9:12 am

6 BORDÕES MÍSTICOS DA MEMÓRIA
Os melhores anjos de nossa natureza
A psicologia junguiana ocupa um lugar no contexto do modernismo e da perda da ligação com o plano mítico. Freud, Jung e os demais pioneiros da “cura pela fala” reagiram à erosão dos valores institucionais, por um lado, e às limitações das novas ciências, por outro. Lentamente acabaram por discernir que houve ferimentos infligidos à alma que nenhuma delas, instituições ou ciências, poderiam tratar. Seria errado, no entanto, considerar a psicologia profunda uma “ciência da alma.” O que talvez melhor as descreva seja o termo alemão Seelesorger, “aquele que cuida da alma”.
Dar atenção à alma, cuidar da profunda aflição de que padece o significado existencial de cada um, eis o assunto da psicologia profunda. A maior parte das escolas de psicologia moderna representa o fracasso do neurológico em lidar com a alma. As abordagens cognitiva, comportamental e farmacológica têm muito com que contribuir, mas permanecem sendo superficiais porque não dão conta das feridas da alma. O psicólogo analítico atenta aos sintomas, trabalha inclusive com alívio de sintomas, mas a questão é antes o que esses sintomas significam, quais são as dores de alma que estão se manifestando.
É nesse aspecto que encontramos o papel vital do mito; o mito delineia o movimento da alma. Às vezes, o analista consegue reconhecer um mitologema no sonho de uma pessoa e discernir o carácter daquela dor e o curso provável do processo de cura. “Qual é o mito”, ele indaga, “que esta pessoa está vivendo?”
Jung definiu a neurose como o viver dentro de limites muito estreitos do mito pessoal. Quando, na segunda década deste século, ele perguntou a si mesmo: “Qual é o meu mito?”, não conseguiu achar uma resposta. Começou então uma intensa auto-exploração, trabalhando com seus sonhos, desenvolvendo uma técnica denominada imaginação activa, e empreendendo a descida que tanto destrói como cura. Dialogou com as imagens que brotavam para confrontá-lo e, desses encontros, ocorreu a integração parcial das energias dissociadas, com o que se ampliou o campo de sua vida consciente.
Em última análise, esse é justamente o papel da terapia, da meditação, da imaginação activa e da interpretação de sonhos: auxiliar a pessoa em seu viver de maneira consciente, reflexiva. Quando conseguimos encaixar nossa vida externa com essas imagens espontâneas que emergem da vida interior, sentimos uma ressonância profunda e uma cura que vem desde dentro.
Segundo o evangelho gnóstico de Tomé, Jesus disse: “Se você trouxer para fora o que está dentro de si, o que tiver trazido irá salvá-lo. Se você não traz para fora o que existe em você, o que não tiver trazido irá destruí-lo.”{180}
A perda da consciência mítica e nossa busca por um novo mito chegou inclusive aos ouvidos dos políticos. Em 1994, Vaclav Havei, presidente da República Checa, veio à Filadélfia para receber a Medalha da Liberdade (dada no ano anterior a Mandela e Deklerk). Em seu discurso, ele observou que nossa era estava atravessando uma imensa transformação:
Os traços distintivos dessa transição são a mescla e a fusão de culturas, e uma pluralidade... de mundos intelectuais e espirituais. Esses são períodos em que todos os sistemas consistentes de valores entram em colapso, em que culturas distantes umas das outras em tempo e espaço são descobertas ou redescobertas... Para nós, a ordem mundial artificial das últimas décadas está desfeita e uma ordem nova e mais justa ainda não surgiu. A tarefa política central dos anos finais deste século, portanto, é a criação de um novo modelo de coexistência entre as diversas culturas, povos, raças e esferas religiosas, formando uma só civilização interconectada.{181}
Até aí, isso parece o preâmbulo de qualquer político sobre uma nova visão de ordem que deveria ser imposta de cima, numa postura típica dos ideólogos. Mas, em vez disso, Havei prosseguiu defendendo dois princípios (além do já consagrado respeito fundamental pela liberdade e pelos direitos humanos), a saber, o “princípio cosmológico antrópico” e a “hipótese Gaia”.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Out 26, 2023 9:12 am

O primeiro princípio estipula que dentre as incontáveis possibilidades de cursos de evolução, o universo preferiu o único que permitiu o aparecimento da vida. Isso ainda não prova que o objectivo do universo sempre tenha sido um dia chegar a ser visto através de nossos olhos. Mas de que outro modo essa questão pode ser explicada?
Certamente, esse princípio é muito próximo da noção de nossa necessária participação no drama cósmico, conforme discutimos no capítulo anterior. A hipótese Gaia assevera que a densa rede de interacções mútuas envolvendo as porções orgânicas e inorgânicas da superfície da Terra formam um único sistema, uma espécie de mega-organismo, um planeta vivo — Gaia — assim denominado em homenagem a uma deusa antepassada que pode ser identificada como o arquétipo da Terra-Mãe, em talvez todas as religiões. De acordo com a hipótese Gaia, somos partes de um todo maior.
Havei acredita que esses dois princípios são necessários à nova consciência mundial:
Em linguagem moderna, esses dois princípios nos lembram de algo de que há muito suspeitamos, a saber, algo que há muito tempo projectamos em nossos mitos esquecidos e que talvez permaneça em estado latente dentro de nós, como arquétipos... a consciência de que não estamos sozinhos, aqui, nem apenas em nome de meros interesses particulares, mas que somos parte integrante de entidades misteriosas superiores contra as quais não é aconselhável blasfemar. Essa consciência perdida está presente nos códigos de todas as religiões.
Será possível que um político esteja falando de deusas, arquétipos, mito codificados no íntimo de nossa espécie? Sim, mas Vaclav Havei não é um político comum. Além de poeta é dramaturgo, humanista. Havei representa o espírito reflexivo e iluminado de nossos tempos. Conclui esse discurso com sua declaração de esperança na transcendência, enquanto a necessidade profunda e jubilosamente experimentada de estar em harmonia até mesmo com aquilo que não somos, não entendemos, que nos parece distante no tempo e no espaço mas com que, não obstante, estamos misteriosamente vinculados porque, junto connosco, tudo isso constitui um mundo só. A transcendência é a única alternativa real à extinção.
Transcendência significa ser libertado do isolamento da consciência egóico e da desolação do abandono existencial que caracterizam a alma do moderno. Significa sentir a ligação com uma ordem espiritual maior do que si mesmo. Ao mesmo tempo, se nós alimentamos uma provisória esperança em líderes como Havei, também devemos fazer individualmente cada qual o próprio trabalho. Jung observou repetidamente que a melhor coisa que a pessoa poderia fazer por seu mundo era integrar sua sombra pessoal para retirar dos ombros do mundo a sua parte do fardo. Como assinalei em The Middle Passage{182}, à maneira de Rousseau, todos nascem livres, mas em toda parte estão algemados. O ser natural, a criança, é completa, mas impotente e dependente. Por isso, ela tem de adaptar a sua intenção natural ao poder do ambiente, especialmente em sua família de origem, e assim adopta uma sensação provisória de quem é e do Outro, além de um conjunto de estratégias para interacção. Essa reunião de comportamentos tem, como finalidade central, a moderação da ansiedade.
É só quando esse eu provisório repetidamente entra em choque com o si-mesmo natural, que pulsa logo embaixo, que a pessoa toma consciência da cisão que chamamos neurose. Poder-se-ia caracterizar toda a primeira metade da vida como um erro gigantesco, tão necessário quanto inevitável. A tarefa da segunda metade da vida é recuperar-se desse erro, mover-se do eu adaptado para o si-mesmo autêntico na metade em que nos for viável aproximarmo-nos dele. Deixar de lado o eu conhecido e adaptado, com todas as suas fraquezas e dores, é uma coisa monumental, pois trouxe-nos até aqui afinal de contas, e sentimos medo do grande desconhecimento que vem depois. A passagem do meio consiste em sair psicologicamente de casa, tarefa que pensávamos já haver realizado quando da primeira separação física. Sendo assim, mesmo que soframos dentro das limitações do falso eu, apegamo-nos a ele desesperadamente.
Novamente, devemos observar como a situação do indivíduo repete a situação de nossa época, como a neurose da pessoa reflecte como num espelho a angustiada cisão do Zeitgeist{183}. Da mesma maneira como em nosso tempo não existe o mythos básico, também o sujeito que chega à meia-idade, ou em outros momentos de escolha crítica, perdeu seu mito pessoal.
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