LUZ ESPÍRITA
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Página 1 de 4 1, 2, 3, 4  Seguinte

Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 9:59 am

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna
James Hollis

INTRODUÇÃO À COLECÇÃO AMOR E PSIQUE
INTRODUÇÃO
PORQUE ESTAR AQUI IMPLICA EM TANTA COISA

Os serviços do mito
A questão cosmológica
A questão metafísica
A questão sociológica
A questão psicológica
Diferentes abordagens do mito
1. A visão do antiquário
2. A visão sociológica
3. A visão histórica
4. A visão protocientífica
5. A visão antropológica
6. A visão linguística
7. A visão psicológica
8. A visão arquetípica
9. A visão fenomenológica
10. A visão simbólica

1 O BRECHÓ DO CORAÇÃO
O mythos do modernismo
A moderna sensibilidade
Como Fausto tornou-se "faustiano"
O homem marginal
No cerne das trevas
Depois da queda

2 O ETERNO RETORNO E A BUSCA HEROICA
Eterno retorno: sacrifício, morte e renascimento
A jornada do herói
A jornada heroica
O significado psicológico da jornada

3 COMER O SOL
A produção espontânea de mitos
A borboleta de ferro
Na mata escura
Comendo o sol
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 9:59 am

4 RASTREANDO OS DEUSES
O mistério que chamamos Deus
A deriva no oceano cósmico
1. Caos
2. Criação
3. Separação
4. Volta ao lar
Infantilismo
Regressão química
Dependência ideológica

5 OS DEUSES SE AGITAM: UM INTERLÚDIO MÍTICO
Variações de Liebestod (morte por amor)
Admeto e Alceste
Filemon e Báucis
Dido e Enéias
Glauco
Idumeneu
Mársias

6 BORDÕES MÍSTICOS DA MEMÓRIA
Os melhores anjos de nossa natureza Individuação e relacionamento

Posfácio
CORAÇÃO COM TODAS AS IMAGENS

Contracapa

O mito nos leva até o fundo das reservas psíquicas da humanidade.
Sejam quais forem nossas raízes culturais e religiosas, ou nossa psicologia pessoal, a familiaridade com os mitos proporciona um elo vital de ligação com o significado, cuja ausência está, frequentemente, por trás das neuroses individuais e colectivas do nosso tempo.
Em resumo, ao estudar mitos estamos em busca daquilo que nos vincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar no cosmo. Este livro mostra de que maneira os mitos reflectem as raízes arquetípicas de nossa psicologia pessoal, e explica como pulsões ancestrais influem em nossa conduta e a dominam.
JAMES HOLLIS, Ph.D., formou-se no C. G. Jung Institute de Zurique.
De sua autoria já foram publicados nesta colecção A passagem do meio e Sob a sombra de Saturno. Tem consultório na Filadélfia e em Linwood, Nova Jersey, onde reside.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:00 am

AMOR E PSIQUE
• Uma busca interior em psicologia e religião, J. Hillman • A sombra e o mal nos contos de fada, Marie-Louise von Franz • A individuação nos contos de fada, Marie-Louise von Franz • A psique como sacramento — C. G. Jung e P. Tillicti, J. P. Dourley • Do inconsciente a Deus, Erna van de Winckel • Contos de fada vividos, H. Dieckmann • Caminho para a iniciação feminina, S. B. Perera • Os mistérios da mulher antiga e contemporânea, M. E. Harding • Os parceiros invisíveis, J. A. Sanford • Menopausa, tempo de renascimento, A. Mankowitz • A doença que somos nós, J. P. Dourley • Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford • meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô, Anônimo • Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford • Bíblia e psique — Simbolismo da individuação no AT, E. F. Edinger • A prostituta sagrada, N. Q.-Corbett • A interpretação dos contos de fada, Marie-Louise von Franz • As deusas e a mulher — Nova psicologia das mulheres, J. S. Bolen • Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann • Meia-idade e vida, A. Brennan e J. Brewi • Puer Aeternus —A luta do adulto contra o paraíso da infância, Marie-Louise von Franz • O que conta o conto?, Jette Bonaventure • Falo, a sagrada imagem do masculino, E. Monick • Castração e fúria masculina, E. Monick • Eros e pathos — Amor e sofrimento, A. Carotenuto • Sonhos de um paciente com Aids, Robert Bosnak • A busca fálica — Príapo e a inflação masculina, J. Wyly • A tradição secreta da jardinagem — Padrões de relacionamentos masculinos, G. Jackson • Conhecendo a si mesmo — O avesso do relacionamento, D. Sharp • Breve curso sobre sonhos, Robert Bosnak • Sonhos e gravidez, Marion R. Gallbach • A passagem do meio, James Hollis • Os mistérios da sala de estar, G. Jackson • O velho sábio — Cura através de imagens internas, P. Middelkoop • A solidão, A. Storr • Deus, sonhos e revelação, Morton T. Kelsey 'A velha sábia — Estudo sobre a imaginação activa, Rix Weaver • Sob a sombra de Saturno — A ferida e a cura dos homens, J. Hollis • Amar trair — Quase uma apologia da traição, A. Carotenuto • Curando a alma masculina, Dwight H. Judy • Ansiedade cultural, Rafael López-Pedraza • Não sou mais a mulher com quem você se casou, Ago Bürki-Fillenz • Envelhecer — Os anos de declínio..., Jane R. Prétat • A jornada da alma — Um analista junguiano examina a reencarnação, John A. Sanford • Rastreando os deuses, J. Hollis • Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz • Consciência solar, consciência lunar, Murray Stein
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:00 am

INTRODUÇÃO
À COLECÇÃO AMOR E PSIQUE
Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações psicológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia. Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria originalidade de. Ela nasceu de reflexões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma em todas as actividades humanas.
A finalidade da presente colecção é precisamente restituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung o desejava.
Léon Bonaventure

Para Jill, cujo amor por mim e cuja segurança de si mesma encoraja-me e permitem-me fazer as coisas que são necessárias.
Para Taryn e Tim, Jonah e Seah, crianças sempre presentes.
E para "Terry", que tentou comer o sol...


INTRODUÇÃO
PORQUE ESTAR AQUI IMPLICA EM TANTA COISA

Por que... ansiar pelo destino? ... porque estar aqui implica em tanta coisa, porque todo esse Aqui e Agora, tão fugaz, parece cobrar-nos e estranhamente nos diz respeito.
Nós, os mais fugazes de todos...
Depois de se ter estado na terra uma vez — pode-se jamais cancelá-lo?
Rainer Maria Rilke,
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:00 am

"The Ninth Duino Elegy"
Desde quando se juntaram pela primeira vez, quer nas rodopiantes areias do deserto como na tundra recoberta de um glacé de gelo, quer nos grandes mares ou nas florestas primevas, estavam entre eles as mesmas indagações: quem somos? Como foi que chegamos aqui? Para onde vamos?
Repetidas em todas as línguas, entalhadas nas paredes das cavernas e nas peles dos animais, representadas nos padrões recorrentes que marcam a passagem das estações do ano, nos ritos solenes da morte e do nascimento, da guerra e do amor. As indagações sempre estiveram presentes.
Ainda hoje elas nos acossam. Se existe algo que definitivamente nos distingue, enquanto espécie humana das demais espécies, é a permanência de tais questões, nosso poder de formulá-las, e nossa necessidade de nos localizar dentro dos grandes ritmos do eixo mudança-continuidade.
De vez em quando os escritores junguianos espantam o leitor comum, para não mencionar seus colegas de outras escolas de psicologia, com suas referências aos mitos. Costumam citar frequentemente as lendas e, embora essas histórias de fato contenham certo apelo estético, sua possível utilidade psicológica para nós talvez não fique clara. Na melhor das hipóteses, os junguianos com seu interesse pelos mitos são tolerados; na pior, são considerados malucos e, pasmem, cripto-místicos. Este livro é uma tentativa de explicar por que os junguianos tanto se alimentam dos mitos na formulação de sua psicologia e, o que é até mais importante, por que o estudo do mito é de valor crítico para nós enquanto indivíduos e cidadãos desta época. O mito nos leva até o fundo das reservas psíquicas da humanidade.
Sejam quais forem nossas raízes culturais e religiosas, ou nossa psicologia pessoal, a familiaridade com os mitos proporciona um elo vital de ligação com o significado, cuja ausência está, tão amiúde, por trás das neuroses individuais e colectivas de nosso tempo. Em resumo, ao estudar mitos estamos em busca daquilo que nos vincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar no cosmo.
Nossa cultura perdeu as coordenadas de longitude e latitude de nossa alma, e é por isso que, como um bando de alucinados, ora corremos para esta ideologia, ora nos penduramos naquela. Até mesmo o conceito de mito passa pela degradação de ser reputado algo falso. “Ora, é só um mito”, costumam dizer. No entanto, aqueles de nós que tentam compreender, aprofundar, sentem-se compelidos a resgatar a abertura para os mitos, o que então permite que o mito se abra para nós.
O termo grego mythos significa palavra, enredo, fala e tem relação com o conceito de expressão. Mas expressão do quê? O que o mito expressa é, em última análise, a percepção que o humano tem das coisas, ou seja, a imposição de estruturas dramáticas ao fluxo e ao caos da natureza. É muito possível que a natureza não tenha significado intrínseco; que simplesmente seja. Mas os humanos contêm um processo psíquico de natureza estruturante, como parte de sua constituição essencial, e aplicam-no ao caos. Ao colocá-lo em ordem, estabelece-se um relacionamento significativo com o mundo. Com sua substância simbólica, rítmica e metafórica, o mito cria uma ponte entre o desconhecido e o conhecedor, e ajuda o ser humano a colocar-se em alguma espécie de relação de significado com o mistério. O mito desempenha uma função mediadora, como está implícito na própria etimologia dos termos “símbolo” e “metáfora” (syn + ballein = projectar na direcção do mesmo, e meta +pherein = transportar além, ou através de).
Por definição, não podemos conhecer os mistérios, mas, por nossa natureza, somos compelidos a nos colocar numa relação significativa com eles. (A primeira sentença da Metafísica de Aristóteles é “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer.”) As imagens dos mitos, quando extraídas de camadas profundas, nos tocam e mobilizam, mesmo quando não sabemos por quê, pois insinuam e até mesmo activam as misteriosas dimensões de profundidade que tão bem incorporamos. Dessa maneira, o mito ecoa em nós porque apresenta em nosso íntimo aquilo que já contemos em nossa natureza, embora só vagamente possamos identificá-lo pela cognição.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:01 am

Quase todos nós fomos acostumados à voz do mito em nossa infância, através de relatos que nos eram feitos das histórias míticas gregas ou judaico cristãs. Mas estivemos mal servidos de professores ou sacerdotes, pois construíam-nas em suas narrativas como enredos interessantes mas ténues de um passado remoto, quando não insistiam em que os aceitássemos de modo literal, o que era uma ofensa ao bom-senso. Talvez esses fornecedores de mitos nunca tivessem eles mesmos experimentado toda a profundidade do eco mítico; seja qual tenha sido o motivo, estragaram os mitos para nós.
Tanto a trivialização como o literalismo são afrontas crassas à alma. Ambas passam longe do alvo.
A alma (em grego psyché) expressa-se por meio de imagens, mas não é imagem. Como nos recorda Sõren Kierkegaard, “O deus que pode ser denominado não é Deus.”{1} A encarnação dinâmica da alma através da imagem manifesta essa energia misteriosa. Quando ecoamos junto com essa energia encarnada, sabemos que estamos em presença da alma. Quando, por alguma razão, a energia não mais insufla de vida aquela imagem para nós, então aquela estrutura morre, para nós, como fonte do divino. Resta apenas um mito ou ritual morto que não nos toca. É assim que pode morrer um deus ou toda uma instituição religiosa. A energia partiu, e resta então só uma casca seca e vazia.
Assim acontece connosco: misteriosamente, a energia vital entra em nós no momento da concepção e misteriosamente se vai, deixando apenas uma casca vazia. O que há de vivo num símbolo, num mito ou numa pessoa é a energia divina, não o recipiente. Agora percebemos como nossos instrutores e mentores religiosos estavam equivocados. Entender o mito tão-somente como uma velha história engraçada é dizer que a energia que um dia penetrou nessas imagens e tornou-as plenas de luz partiu e busca encarnar em algum outro ponto. Liberalizar um mito ou símbolo e exigir que seja cultuado, por outro lado, é o mais antigo dos pecados religiosos: a idolatria. O mistério que a imagem já conteve encontra-se então perdido e o idólatra venera uma casca vazia que não é mais digna de adoração. Quando a imagem (quer dizer, o símbolo) não sinalizar mais para além de si mesma, insinuando o véu do mistério, então está morta. Mas o mistério permanece vivo, embora em outra parte. (No último capítulo seguiremos o rastro do mistério e iremos ver para onde se dirigiu, onde é que agora a energia está encarnada.)
Depois de ter compreendido a função mediadora que o símbolo ou a imagem mítica desempenha, podemos perceber o quanto são críticas as imagens, pois ajudam-nos a nos posicionar num relacionamento humano com o mistério. Na qualidade de criaturas finitas, não podemos nos apropriar do infinito nem entendê-lo e, no entanto, vemo-nos forçados a estipular nossa posição quanto ao mistério. A imagem mediadora é a ponte entre o si-mesmo e o mundo, o si-mesmo e o outro, e até mesmo entre eu e mim mesmo/a.
Nosso respeito é pelo mistério, não pela ponte. Sendo assim, toda tradição mítica, toda instituição religiosa, para que possa servir adequadamente o mistério, deve abdicar de suas imagens, de tempos em tempos. A ansiedade que sentimos diante da mudança e da ambiguidade leva-nos a um desmensurado apego aos símbolos conhecidos, mas mantermo-nos em atitude de adoração diante deles é mostrar desrespeito pelo mistério, que já se encontra em outra parte.
O fundamentalismo é o pecado do literalismo. É uma blasfémia, porque tenta circunscrever a autonomia da energia divina ao que pode ser conhecido e contido. Dessa maneira pode-se abrandar a ansiedade, mas está-se contrariando a natureza mesma do mistério. A ansiedade da ambiguidade busca limitar a autonomia do mistério fixando a imagem; fixar imagens é praticar o literalismo; literalismo é idolatria. A postura verdadeiramente religiosa perante a vida obriga-nos a padecer de ambiguidade, a fluir com as correntezas da alma em suas mudanças e fases de desaparecimento, aguardando por seu reaparecer num local inédito. O que mais é a fé, senão iconoclastia e a força de testemunhar e servir o mistério?
É bastante fácil rastrear historicamente essa energia, pois uma imagem de que se apodera para transformar a alma de uma cultura inteira pode rapidamente coisificar-se e tornar-se estéril. A ansiedade que indivíduos ou culturas sentem nesses momentos é considerável, e rapidamente podem apoderar-se de uma nova imagem, para sentir-se novamente em segurança.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:01 am

Posto que a humanidade consegue tolerar apenas pouca angústia existencial, naturalmente emergem ideologias e modas, modismos e afectações que, momentaneamente, amenizam a ansiedade. Conheço um homem que, na última vez em que havia contado, tinha adquirido seu 88° automóvel.
Conheço uma mulher que passa de culto para culto, de uma moda ideológica para outra, como se um novo conceito, à semelhança de um novo vestido, pudesse tapar a goela do abismo.
Lembro-me de uma pessoa numa plateia, perguntando certa vez para Joseph Campbell, o grande estudioso dos mitos, “Você acredita em Deus?”
ao que ele respondeu: “Qual deles? Existem centenas de milhares, você sabe.” Imediatamente fomos transportados para outro plano. Da ânsia de quem interrogou em arrumar um deus que funcione sempre, em definir um conceito e, dessa forma, apaziguar o tormento psíquico, fomos lembrados que, não só os Imortais são mortais, como também as imagos de deus vêm e vão como as fases da lua, excepto que seus ciclos são mais para milenares que para mensais.
Num nível pessoal, todos nos dependuramos em imagens de nós mesmos, em imagens de uma outra era, em imagens transmitidas pela cultura, ou pelos pais, em imagens obsoletas, irrelevantes, constritivas. Em meu livro A passagem do meio, observei que nos empenhamos muito para construir um conceito adaptacional de si-mesmo, com uma história, um conjunto de atitudes perante si e os outros, e uma série de respostas reflexivas cujo propósito é reduzir nossa angústia existencial. Uma grande parte desse eu reunido deriva de experiências da infância e da meninice, reforçadas pelos efeitos do condicionamento cultural. O si-mesmo natural é enterrado sob esse si-mesmo adquirido, do que resulta a sensação de estranhamento íntimo e variados sintomas de mal-estar. Por volta da meia-idade, o si-mesmo natural ameaça muitas vezes destronar a vacilante hegemonia da personalidade provisória. Isso ocasiona tormentos e confusão, pois a pessoa apega-se a uma auto- imagem antiquada. Esse apego, contudo, surte um efeito paralisante sobre o impulso da individuação e, sendo assim, o tormento íntimo apenas aumenta. Na realidade, em virtude da ansiedade de afastar-se do que é conhecido, o indivíduo está agarrado a um mito morto.
Circunscrita como está dentro de uma falsa imago, a alma sofre. Talvez não saibamos por que sentimos tanta adição, mas sofremos, e frequentemente causamos sofrimento aos outros. A alma, encarnação das misteriosas energias que movem o cosmo, não se sente mais em casa com o velho sistema simbólico que pensamos ser nossa personalidade, nosso centro emocional.
Ela sofre a perda do que Jung denominou variadamente de drama divino e vida simbólica. Ele dizia que o significado advém só quando as pessoas sentem que estão vivendo a vida simbólica, que são os atores do drama divino. Isso é o que confere à vida humana seu único significado; tudo o mais é banal e você descarta. A carreira, ter filhos, tudo isso é maya (ilusão) comparado com aquela coisa ímpar: sua vida tem significado.{2}
Da mesma forma como a fé religiosa obriga a pessoa a esperar confiante no mistério, também a evolução da personalidade, a pulsão da individuação rumo à totalidade, obriga a pessoa a acompanhar, confiando nessa directriz, as energias da alma. O inimigo dessa confiança é a ansiedade gerada pela ambiguidade. Quanto mais a pessoa amadurece, mais uma tolerância ampla é essencial tanto para o crescimento como para a qualidade de medida de respeito pela autonomia do mistério.
Se estamos descrevendo como processos de carácter mítico fenómenos tão distintos quanto uma narrativa do antigo Oriente Próximo e o conceito de ego de uma pessoa, então é óbvio que estamos empregando o conceito de mito de maneira bastante ampla. O que vincula os dois exemplos é que imagens significativas foram energizadas. Da mesma forma, a energia que anima a imagem pode partir e deixar a cultura e a pessoa sem vida. Talvez uma definição de mito que abrace realidades tão díspares seja: mito é a dramatização de valores conscientes e inconscientes de um grupo ou indivíduo.
O factor crítico desta definição é que as imagens são dinâmicas, quer se situem ou façam parte de uma trama narrativa.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:01 am

Essa energia pode animar qualquer forma configurável. As imagens podem se manifestar em palavras, movimentos, artes plásticas, ciência, arquitectura, ou qualquer outra forma de expressão cultural ou pessoal. Em outras palavras, tudo que pode conter o selo das energias divinas pode servir de vaso temporário dos mistérios, ou deuses.
Nossa vivência desses eventos significativos pode ser consciente ou inconsciente; o que importa é que nos toque, mobilizando-nos a transcender nossas metas bestiais. Qualquer uma das dez mil coisas do mundo capaz de ser domada de acordo com o intento de nossa alma e sobre a qual a energia misteriosa tenha deixado sua marca pode ser considerada mítica. Nessa medida, nossa arte e religião sem dúvida, mas também nossa cultura popular, nossos panoramas urbanos — tudo isso exibe o selo de nossa alma. Os indivíduos ou grupos terem consciência desse evento mitógeno é irrelevante, como o é ainda se os valores implícitos são ou não vivenciados pelo grupo ou indivíduo. O que importa é como a pessoa está ligada ou desligada daquilo que introduz significado, movimento e profundidade à vida.
Consideremos nossa arquitectura, por exemplo, algo remoto em relação à nossa concepção geral de mito. Aço e vidro são concretos e maleáveis e exibem o selo de nossas estruturas psíquicas. Se um viajante passar por uma de nossas cidades daqui a mil anos, o que pensará de nossos valores, rituais e carácter social? Será que vai concluir que nós, distantes no passado do assim chamado século vinte, éramos um povo pragmático, orientados pelo princípio funcional das coisas, pouco se importando com a beleza, o espaço, a comunidade? Observará os espaços exíguos e entupidos, a uniformização, a despersonalização de nossas cidades, e concluirá que nos importávamos com o comércio, a velocidade e a função, dando pouca atenção à liberdade da vida orgânica? A partir de artefactos modernos como esses poderiam discernir tanto as conquistas modernistas, como a desfiguração da alma. Da mesma forma como os antropólogos contemporâneos empenham-se em reconstruir as percepções de culturas passadas, também gerações futuras quererão entender que espécie de mundo criamos para nós. Irão formular sobre nós as mesmas indagações que fazemos de nosso passado, e não podemos certamente ser menos conscientes de nossos valores do que o serão aqueles que um dia vierem a remexer em nossos ossos e mortalhas.

Os serviços do mito
Joseph Campbell identificou quatro maneiras de o mito servir à necessidade humana. Cada um desses serviços do mito é uma especulação imaginária acerca do carácter de nosso relacionamento com as quatro ordens do mistério: o cosmo, a natureza, o outro, nós mesmos. Embora mito algum aborde todas as quatro instâncias, pelo menos uma delas é considerada por cada um.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:01 am

A questão cosmológica
Como nossos antepassados tribais, já desde crianças perguntávamos:
“Como foi que vim parar aqui? Quem, ou o quê, estava aqui antes, e estará depois? Por quê?”
Essas questões são naturais, pois saber quem somos exige alguma noção de nosso ponto de partida e destino. O serviço cosmológico prestado pelo mito aborda as questões teleológicas, o plano da génese e da escatologia, o alfa e o ómega. Diz respeito a se a pessoa entende como caos, ou um absurdo, o desenrolar de uma lei natural, ou percebe a presença de uma inteligência orientadora e a existência de um plano compreensível por trás do universo, porque essas conclusões ajudam a inserir cada indivíduo num contexto de significado. Se a pessoa acha que o universo é absurdo e desprovido de sentido, o fardo do significado então recai directamente sobre os ombros dela.
Se o significado não está implícito nas estruturas da natureza e na evolução da história, então certamente é uma incumbência das pessoas tornar suas existências prenhes de significado, através da qualidade de suas escolhas. Se alguém postula a realidade dos deuses, qual é a natureza deles?
Qual é sua relação connosco? São distantes e alheios, possuem um amoralidade? Será então que viver bem neste mundo implica em discernir a vontade dos deuses e pautarmo-nos por ela, ou existirá algum espaço para uma diferenciação entre a vontade dos deuses e as pulsões da humanidade?
(Em “Resposta a Jó”, Jung chegou inclusive a sugerir que os seres humanos têm papel vital no desenvolvimento moral e na evolução espiritual de Deus.)
{3} Ou será até mesmo possível aos mortais falarem sobre esses assuntos de um modo significativo, sem liberalizar suas projecções finitas sobre o Infinito nem escorregar para o plano dos delírios antropomórficos?
Toda entidade tribal, toda civilização, tem seu próprio relato do início de tudo, das coisas primordiais, das forças impessoais em actuação na natureza, das deidades benévolas ou malévolas e seus intentes jocosos ou prenhes de objectivo, dos insondáveis mistérios em cujo recinto não se pode adentrar. Se nos sentimos tentados a sorrir de condescendência diante de algum desses relatos, devemos ter em mente que cada um deles representa um profundo esforço de outorgar sentido ao cosmo, de posicionar-se num relacionamento com ele, de mediar seus terrores e sorver suas belezas. Esse esforço é feito no início da vida de cada criança e civilização e, se lançamos nosso olhar para trás e discernimos uma leitura equivocada das evidências, mesmo assim devemos continuar atentos ao nosso lugar e rumo, neste vasto cosmo em perpétua revolução. Se não for assim, nossa espécie permanecerá à deriva e isolada. Aqueles que, na idade adulta, tiverem cessado de considerar sua relação com o cosmo podem até buscar prazer nas distracções superficiais, mas sua angústia existencial, sua curiosidade natural e sua necessidade inerradicável de perceber o significado persistem e lhe perturbam o sono.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 10:01 am

A questão metafísica
A metafísica é o esforço de identificar a natureza da realidade,
especialmente a natureza do mundo à nossa volta, a natureza da Natureza.
Qual é a nossa relação com o que é, arquetipicamente, chamado de “a Grande Mãe”, de cujo ventre viemos e para cujo seio retornaremos? Somos levados a essas imagens antropomórficas porque, mais uma vez, estamos tentando estabelecer um relacionamento humano com o mistério.
Houve um tempo em que eu dava aulas numa floresta, na província de Pan, distante quase 10 km do refúgio de Posêidon, cujo mascote era a águia pescadora, em risco de extinção. Diariamente eu consumia o corpo partido da deusa Ceres na minha refeição matutina com cereais, sacrificava alimentos proteicos no altar do meu estômago, e terminava a noite na Terra do Sono.
Houve um tempo em que essas imagens eram prenhes de energia. Os deuses eram igualmente numinosos (do latim numen, mágico, enfeitiçante) e luminosos, espalhando seu fulgor desde todos os recantos dos fenómenos naturais. Parte dessa energia ainda resvalava pelas imagens do século XIX, como vemos em Baudelaire:
a natureza é um templo de cujas colunas vivas vozes misturadas às vezes irrompem; Ali o homem vagueia por florestas de símbolos que parecem observá-lo com olhos familiares{4},
Quem chega perto do mar sente a presença de um poder primal. A pessoa é capturada por Poseidon, quer esse deus lhe ocorra à mente, quer não.
A pessoa que vagueia sem rumo pelas florestas sem trilhas da alma sentir-se-á igualmente nas garras do deus residente Pan(ico).
Essas imagens já há muito perderam sua numinosidade; a energia que as animava encaminhou-se para outra parte, foi arrastada para o plano mundano. Somos nós que nos tornamos desprovidos. Desde o começo, esses símbolos ajudaram a estabelecer uma ponte entre a sensibilidade humana e aquelas experiências que se encontram mais além de nossos poderes cognitivos. Três eminentes nomes da ciência — Darwin, Jung e William James — experimentaram, em separado, um terremoto e, em suas reflexões, recorreram às mesmas imagens, quando anotaram em seus Diários que se sentiam como se estivessem montados no dorso de um dragão monumental que ameaçava arremessá-los longe. Novamente, a metáfora ajuda a intermediar o espantoso e o medonho. Quando está ausente, aflige-nos a falta de conexão. Os modernos podem ser capazes de manipular as forças naturais e os códigos genéticos, mas, em comparação com os antigos, tomos um contacto estéril com o mistério.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:13 pm

A questão sociológica
Enquanto nossos antepassados tacteavam às cegas em busca uns dos outros, imersos na noite primordial, iam surgindo comunidades não só para fins de colecta de alimentos, divisão do trabalho e defesa colectiva, mas também em nome de propósitos ainda mais profundos. Essas criaturas buscavam a comunhão não só movidos pela solidão e pelo medo, por mais que essas sejam emoções poderosas, mas também para partilhar, para amplificar suas vivências, para vivenciar a mutualidade. Quem a pessoa é define-se em parte por de quem ela é — a quem ou com qual propósito comunitário ela está comprometida.
A organização social serve ao atendimento das necessidades biológicas, sem dúvida, mas também atende ao espírito. O significado vem até a pessoa por meio de sua participação na experiência tribal. Um grupo que se reúne por causa de um objectivo definido, colecta de alimentos, por exemplo, é uma sociedade de vínculos frouxos e sujeita à fragmentação se submetida a pressões. Só se torna uma comunidade quando uma experiência colectiva — natural, cultural ou sobrenatural — retirar cada pessoa de seu isolamento e alçá-la a um encontro com realidades transcendentes ou transpessoais. Então essa pessoa não é só mais um membro de uma sociedade organizada em torno de uma função específica, mas também é participante de uma dimensão que a define numa relação com o plano transcendente. É evidente que a identidade da pessoa não deriva apenas de sua existência particular e de esforços de cooperação. O relacionamento com o passado (tempo de Crono) permite ao sujeito participar também do eterno (tempo de kairós). Dessa maneira, por exemplo, Jesus está morto mas o cristão acredita que Cristo vive nele a todo momento.
A vivência original do mistério era de natureza fenomenológica, ultrapassando o nível do entendimento e da expressão em palavras — por exemplo, o deus que falava por meio de um arbusto em chamas, um grande êxodo promovido pelo sonho de um líder. Desses encontros com os poderes arquetípicos emergem imagens para transpor o abismo. No entanto, os símbolos que inicialmente apontam para além de si mesmos, na direcção das experiências primordiais, com o passar do tempo coisificam-se e, com isso, deterioram e tornam-se signos ou ícones que não sinalizam mais o mistério, apenas desviam a experiência primal até que se torne um conceito ossificado.
Aliás, a dificuldade de recuperar o acesso até a experiência primeira, que servia para definir a comunidade, é um elemento assíduo da história.
Três artifícios culturais são empregados para a busca da retomada do contacto com os mistérios primais: o dogma, o rito e as práticas cúlticas. O dogma representa as reflexões posteriores de um povo em sua busca de
delimitar o mistério pelo poder do pensamento, pelos estratagemas das escrituras, pela teologia e pelo catecismo. Ritos são reencarnações simbólicas das experiências primordiais. Práticas cúlticas ajudam a definir a singularidade de um grupo em contraponto aos outros por meio de seu vestuário, interacções e maneiras de corporificar suas respostas tribais às exigências da vida quotidiana. Todas essas são bem intencionadas tentativas de contar e suportar a supremacia da experiência original, mas bem poucas resistem à erosão do tempo.
Dessa forma, o dogma pode vir a constituir-se em um grupo de asserções que não só não tocam as gerações subsequentes, como sequer se comunicam com elas. Os ritos podem perder seu poder e sua luminosidade de exemplos. As práticas cúlticas costumam deteriorar em hábitos, tradições opressivas, e até mesmo uma tirania de expectativas. Da mesma maneira, as instituições formadas para preservar e promulgar o impacto do encontro primal com o mistério, sejam elas de carácter religioso, educacional ou político, frequentemente tornam-se opressivas e terminam por nos impedir de viver pessoalmente o mistério; por fim, servem apenas para garantir sua própria preservação. A história não é cordial nem com as experiências atemporais.
Entretanto, é nesses encontros socializados com os mistérios que os humanos em geral experimentam grandes significados e encontram uma grande parte do que define aquilo que quer dizer ser uma criatura humana, em determinado tempo e lugar.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:13 pm

A lida com os elementos específicos da vida social — nosso modo de nos relacionar com os outros, os sacerdócios do amor e da guerra, os ajustes da individualidade no contexto da colectividade — consome grande parte da jornada de cada um pela existência. Temos Freud a nos lembrar que o preço inevitável da civilização é a neurose, e Thomas Mann concluindo que o destino do moderno é elaborado no fórum político. De que maneira contribuir para o bem comum e dele usufruir o que for legítimo, ao mesmo tempo que se continua sendo quem se é, tem sido e continua sendo o martelo e a bigorna do empenho humano, no transcurso do qual a alma pode ser forjada ou fraudada.
A questão psicológica Assim como a associação com os outros facilita nossa sobrevivência e promove nossa necessidade de uma vida comunitária, fazer parte de um grupo cobra um preço que eventualmente prejudica a integridade psicológica do indivíduo. O processo de virmos a nos entender como os seres que somos é a tarefa psicológica do mito. Literalmente, isso significa perguntar: “Quem sou eu? De que modo devo conduzir minha vida? Qual é meu lugar próprio no mundo, minha vocação? Como encontrar a pessoa certa para ser meu par?”
As culturas com imagens míticas vitais dão apoio ao indivíduo para que venha a constituir sua noção de si mesmo, facilitam e orientam a interacção social. A cultura que houver perdido seu cerne mítico, ou cujas mitologias sejam muito fragmentadas e diversas, cria pessoas perdidas e assustadas que pulam de culto para culto, de ideologia para ideologia. Símbolos vivos, no entanto, podem nos iniciar nos mistérios de nossa própria alma.
Não existe um mito único, capaz de abordar todos esses quatro imensos desafios, mas cada uma das estruturas míticas dá corpo a determinadas respostas para um ou mais deles. O fato de os valores míticos implícitos poderem estar tão camuflados nos artefactos da cultura pop, e na vida diária, a ponto de passarem despercebidos pela consciência não os impede de exercer uma profunda influência tanto sobre a psique individual como sobre a colectiva.
Por conseguinte, a função do mito é iniciar a pessoa e/ou a cultura nos mistérios dos deuses, do mundo, da sociedade e de si mesma.

Diferentes abordagens do mito
Assistimos hoje a uma renovação do interesse pelos mitos, em parte porque sentimos, como disse Blaise Pascal no século XVII, “que vagamos por tempos que não são nossos”, ou por sermos da mesma opinião de Hamlet, que comentava que “o tempo está fora dos eixos”, ou por concordarmos com Rilke, para quem “não nos sentimos muito à vontade no mundo que criamos.”{5}
Essa retomada do interesse começou no século XIX, quando a industrialização e a urbanização afastaram muitas pessoas de sua herança psíquica. Nem todas as teorias sobre mitos honram as implicações psicológicas atinentes, mas a revisão que apresentamos a seguir irá ilustrar uma gama variada de possibilidades.

1. A visão do antiquário
Esta abordagem reconhece explicitamente nossa curiosidade natural sobre outros povos, especialmente nossos antepassados. Não só somos naturalmente curiosos a respeito dos outros como também buscamos conhecer-nos melhor ao compreender como nossos predecessores lidaram com as quatro grandes indagações acima citadas. Os mitos que deixaram como pegadas representam a arquitectura de sua sensibilidade. Se entendermos o mito só como um artefacto típico para antiquários, no entanto, podemos não perceber a contribuição que o passado tem a oferecer em termos da ampliação de nossas atuais concepções sobre as possibilidades do humano. T. S. Eliot concluiu que a única superioridade que temos em relação ao passado provém de nossa capacidade de incluí-lo como parte de nosso momento presente.{6} Também corremos o risco de não ver a profundidade com que as imagens míticas ecoam nas camadas atemporais da psique, local em que passado e presente ainda são uma única presença.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:13 pm

2. A visão sociológica
Essa é uma leitura do mito que o entende como veículo de valores sociais de um dado grupo. Se efectivamente são Jorge matou o dragão, ou se os muros de Jericó caíram ao som de uma trombeta, não vem ao caso. O que importa são os valores que a sociedade deseja reafirmar, e os padrões
escolhidos para defini-los. Os valores sociais dinamicamente veiculados pelo mito dizem mais sobre as intenções de uma cultura, e até sobre sua capacidade de auto-engano, do que sobre como as pessoas realmente levam suas vidas. Quando examinamos o carácter sociológico de um mito, portanto, estamos discernindo as particularidades que distinguem uma cultura de todas as outras em termos das suas modalidades próprias de abordagem das quatro grandes indagações comuns à experiência de todos os humanos.

3. A visão histórica
O entendimento histórico do mito enxerga as narrativas dos deuses e heróis como relatos esmaecidos de pessoas e eventos reais, embora transformados pela alquimia do tempo, da transmissão oral e dos acréscimos da imaginação. Quando von Schliemann encontrou a antiga cidade de Tróia e a suposta máscara de Agamemnon, ele nada acrescentou à grandeza da visão homérica, que se sustenta em seus próprios méritos, embora ele tenha trazido certo toque de excitação para quem acredita que os mitos têm alguma fundamentação em fatos históricos. Porém, o mito ser baseado em local, indivíduo ou evento específico ou não é fundamentalmente irrelevante para seu testemunho maior das permutas geradas pelo espírito humano.

4. A visão protocientífica
Há muitas pessoas que entendem o mito como uma leitura inadequada da natureza, como aquilo que era feito pelos humanos antes do advento da ciência. Estes esquecem-se de que os motivos da ciência são igualmente mitológicos. Pensam que o mistério que baptizamos de gravidade, por exemplo, é compreensível simplesmente porque lhe demos um nome. Pensam que os quarks, quasares e buracos negros têm algum status mais objectivo do que Ares e Afrodite. Esquecem-se de que os cientistas valem-se sabidamente de ficções, de modelos de realidade facilmente suplantáveis por outros mais úteis. Esquecem-se de que grandes voos de conjecturas e a natureza subjectiva de todo conhecimento são elementos implícitos até mesmo nas asserções mais “objectivas”.
Nos mitos ontológicos de todos os povos percebemos a tentativa de humanizar os fenómenos naturais como maneira de poder colocar-se num relacionamento humano com os mistérios. Para a história suméria da criação do mundo, por exemplo, a fusão de Mumu e Tiamat pode perfeitamente lembrar o aparecimento do crescente fértil, produto da confluência dos rios Tigre e Eufrates. Considerar o mito como mera protosciência, no entanto, é errar na mira. Nada que digamos sobre os mistérios tem muito a ver com os mistérios em si, pois do contrário não seriam mistérios; essas afirmações são procedentes da dimensão imaginal, subjectiva, na qual aliás a criatura humana sempre buscou recursos que lhe tornassem inteligível o universo.

5. A visão antropológica
O antropólogo estuda as origens e o surgimento da cultura humana. No corpo cultural produzido por qualquer unidade tribal, nos ritos e práticas cúlticas de uma civilização, pode-se imediatamente identificar um caminho primordial de acesso aos mistérios. A oferenda de um animal sacrificial torna-se, com o tempo, a dilacerante voragem das tragédias. Os ritos de sangue e baptismo que correspondem ao nascimento, à iniciação, às mudanças de parentesco e à morte dão forma e propósito a um trânsito — excepto assim — absurdo de mortalidades. Ao recuperar os mitos e ritos antepassados, temos condição de rastrear os deuses, de discernir as metáforas básicas que conferem algum sentido ao modo como outros se posicionaram em sua relação com os mistérios. A eucaristia cristã, por exemplo, é uma versão posterior de uma antiga concepção, a saber, o comer os deuses. Mediante um acto de fé, até mesmo a carne é santificada, impregnada de mana, e a pessoa ingere o divino.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:13 pm

6. A visão linguística
O estudo etimológico de uma palavra, um conceito ou mitologema em geral oferece uma considerável amplitude de entendimento da raiz metafórica que emergiu para expressar a inexprimível experiência primal. A imaginação mitopoética dos hebreus, por exemplo, torna-se mais profundamente compreensível a nós quando sabemos que, etimologicamente, o nome Adão significa “da terra”, e Eva, “vivo”. Da mesma forma, nossa capacidade imaginativa acelera quando aprendemos que a palavra tragédia deriva de “canção do bode”. Aquilo que essas raízes metafóricas implicam sobre o humano em sua relação com o divino esclarece nossas próprias experiências.

7. A visão psicológica
Há dois séculos, Immanuel Kant observou que nunca podemos conhecer o mundo dos objectos em si; apenas conhecemos nossa experiência subjectiva dos mesmos. Jung foi um pouco mais adiante quando declarou que toda experiência humana é essencialmente psicóide, quer dizer, tem tanto componentes materiais como mentais. A encruzilhada de todas as linhas das experiências internas e externas encontra-se na psique humana. Além disso, estamos constantemente projectando nossa vida psíquica na tela do mundo à nossa volta. Num borrão de tinta enxergamos o perfil de uma cidadela, uma árvore, um demónio, um violinista no telhado. Nas outras pessoas vemos aspectos que admiramos ou desprezamos em nós próprios. Com nossas histórias de ficção e canções estamos retratando dimensões de nossa vida interior.
Nesse sentido é que muitos estudiosos dos mitos têm-nos entendido como um fascinante acervo de cenários que dramatizam os processos da vida psicológica. Freud e os freudianos em particular apossaram-se dos mitos de Édipo e Electra para ilustrar temas recorrentes na motivação humana. Nessa perspectiva de uso, e às vezes de abuso, do mito podemos perceber desejos instintivos e conflitos de valores de cada pessoa, e às vezes da tribo também.
Essa maneira de abordar o mito entende que ele seja uma demonstração da universalidade do funcionamento psicológico.

8. A visão arquetípica
Essa perspectiva dos mitos decorre do trabalho de C. G. Jung. Em seu primeiro emprego clínico, na instituição Burghõlzli, em Zurique, ele trabalhou com inúmeros esquizofrénicos. Em vez de menosprezar a produção daquelas mentes como meros desatinos, Jung realizou um esforço amplo com o intuito de compreender o sentido psicológico daquelas imagens. Descobriu que, frequentemente, por mais distorcidas que fossem, existia naquela imagética um cerne mítico de grande significação para o contexto de vida daquele paciente.
Para entendermos melhor essas imagens, Jung dedicou-se a uma pesquisa maciça, que durou sua vida inteira, e levou-o a acervos riquíssimos de imagens que se haviam acumulado ao longo de toda a história, num percurso que atravessou o misticismo oriental, a alquimia medieval, o cristianismo, crenças aborígenes. E assim descobriu que certos motivos recorriam em diversas culturas mundiais, e também nos sonhos e em outros fenómenos psíquicos experimentados pelos indivíduos.
Afora a possibilidade de transmissão intercultural de imagens, que em frequentes casos pôde-se provar não ter havido, ele concluiu que todos os seres humanos possuem um mesmo processo psíquico estruturante. Esse processo enraíza-se na natureza e é tão instintivo quanto comer e dormir. Sua finalidade aparente é oferecer um maior significado por meio de padrões impostos ao caos. Denominou esses motivos recorrentes de arquétipos, termo cuja etimologia sugere “impressão” ou “padrão” primal, mas que também pode, com grande proveito, ser pensado mais como verbo que como substantivo. Os arquétipos da psique estruturam os acontecimentos da vida diária em motivos que conferem forma e significado à vida. A consciência não inventa esses padrões; ela os experimenta como se procedessem de outra dimensão, cuja familiaridade estranhamente nos mobiliza.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:14 pm

Jung conjecturou, ainda mais, que todos os seres humanos exercitam esse processo estruturante e que a actividade autónoma da alma emprega motivos tais como número, objecto, processo e outros, sejam quais forem as idiossincrasias de uma pessoa ou cultura em particular. O conteúdo do arquétipo certamente está repleto de elementos pessoais, mas o padrão formativo é impessoal e universal. Abaixo do nível da dimensão consciente está o inconsciente pessoal, composto por tudo aquilo que cada pessoa já experimentou. Mas, abaixo desse nível psíquico está o inconsciente colectivo, em que todos nós partilhamos das experiências universais que chamamos de humanas. Jung chegou a decifrar uma boa parte do conteúdo das vivências psicóticas pois, nesses motivos, podemos encontrar não só elementos universais mas também aquilo que parece ser o processo psíquico sem o revestimento provisório da cultura local ou da personalidade. Ao examinar os sonhos de uma pessoa moderna, por exemplo, podemos localizar imagens da cultura do século XX, mas as formas, os movimentos e os motivos podem ser igualmente localizados em culturas mais antigas.
Há alguns anos, dei um curso com um ano de duração sobre mitos, usando o estudo em quatro volumes de Joseph Campbell intitulado The Masks of God. Estávamos na décima-primeira aula de um conjunto de dezasseis, quando alcançamos o surgimento do judaísmo, e na décima terceira, nos situávamos antes do início do cristianismo. Nessa altura os alunos manifestaram duas reacções. Sentiam-se esmagados e insignificantes à luz do que havia transpirado antes de se poder dizer que estava começando o que se chama de cultura ocidental. Mas percebiam também que já haviam encontrado em culturas anteriores praticamente todos os motivos que, ingenuamente, haviam considerado peculiares à nossa. Ter enxergado a movimentação arquetípica ao largo da história serviu para lembrá-los da necessária humildade, mas também lhes comunicou a atemporal universalidade das vivências humanas.
O arquétipo do herói, por exemplo, pode ser encarnado de várias maneiras. Os que se tornam manchetes de notícias, como Odisseu, Copérnico, Beethoven ou Lindbergh, são portadores formais das aspirações de todo um povo, mas os feitos heróicos dos incontáveis Marias e Josés, às voltas com o processo de entender quem são, têm bases igualmente arquetípicas. O arquétipo do herói manifestando-se tanto em nível colectivo como em nível individual está confirmando a necessidade humana universal de expandir os limites do possível.

9. A visão fenomenológica
O mito é uma forma de apreensão radical (do latim radix, raiz).
Podemos pensar de maneira racional, mas o pensamento é derivado, é um processo secundário. Nossas experiências são de cunho fenomenológico, um movimento que percebemos no corpo e na alma. Todos os encontros primordiais são apreendidos como mitológicos, como aconteceu quando os cientistas, como dissemos antes, sentiram o terremoto como um animal gigantesco. Os que passam por momentos primordiais, como o apaixonar-se ou presenciar o nascimento de seu filho, sabem que conceitos comuns são inadequados à tarefa da compreensão. Nessas ocasiões, “pensamos com os ossos”, “sentimos na boca do estômago”.
Os mitos são quadros vivenciados no plano dramático, seja qual for sua forma ou veículo; transitam num plano aquém do da dimensão consciente, que não obstante empenha-se em definir e controlar uma experiência que supera o poder da cognição.

10. A visão simbólica
Como talvez já esteja claro agora, o mito representa a cristalização das experiências básicas da vida, constituídas através de várias formas de imagens. Tais imagens situam-se além da compreensão intelectual, mas são vivenciadas como significativas. As imagens míticas ajudam-nos a nos aproximar dos mistérios. O mito nos arrasta para mais perto das profundezas abissais do amor e do ódio, da vida e da morte, recintos dos deuses, dos mistérios, onde fraquejam as categorias do pensamento, que enfim silenciam num espanto mudo e aturdido. O mito é uma maneira de se falar do inefável.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:14 pm

Pascal certa vez escreveu: “O silêncio desses espaços vazios me apavora.”{7} O mito é um meio de manter a conversa, quando o silêncio assombroso se instala. Nas teorias e nos sistemas, estamos com a linguagem da mente; nos mitos, encarna-se a linguagem da alma.
Ler mitos, por conseguinte, é uma forma de psicoterapia pessoal e cultural (do grego psyche, alma e thera-peuein, ouvir ou atentar a). É assim que psicoterapia, quer transcorra no consultório de um analista, ou no plano de dedicada atenção à própria vida interior, é sempre “ouvir a alma”. Os motivos recorrentes do mito constituem o movimento da alma através das eras e através da existência de cada um.1
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:14 pm

O BRECHÓ DO CORAÇÃO
O mythos do modernismo
Perto do final de sua vida, W. B. Yeats, o grande poeta do modernismo, resumiu sua carreira e o desmantelamento de sua época na seguinte conclusão:
Agora que minha escada acabou,
Devo deitar-me lá onde começam todas as escadas,
No empoeirado brechó do coração.{8}
Aqui, “escada” é uma metáfora para os valores hierárquicos que o artista podia historicamente pressupor. Quando Sófocles ou Shakespeare dramatizavam um conflito de valores, podiam presumir um conjunto relativamente estável de valores hierarquizados naquela cultura, em contraste com os quais os atores e a plateia podiam perceber sua marca mítica. A erosão desses valores normativos implícitos, às vezes explícitos, deixa o artista desprovido de pontos externos de referência. Diante da remoção das coordenadas míticas, a alma fica à deriva e o artista vê-se forçado a forjar novamente a consciência da raça, na ferraria de sua alma, como disse James Joyce{9}, ou no centro afectivo, no brechó do coração. Há várias décadas, Matthew Arnold já comentava que o moderno está “perambulando entre dois mundos, um morto e outro impotente para nascer.”{10} Essa posição intermediante é a que mais caracteriza o modernismo. Como se expressou Martin Heidegger, vivemos no tempo “entre os deuses que partiram, e os deuses que ainda não estão.”{11}Poder-se-ia dizer que a última vez em que o mundo ocidental tinha um sentido colectivo, ou seja, quando reis e plebeus conseguiam todos concordar — “Sim, isso é o que o mundo significa, eis aqui os valores consensuais, e esta é nossa génese e nossa escatologia comuns” — foi algo por volta de 1320. Na época em que apareceu a Divina Comédia de Dante, com sua visão de um cosmo em três camadas, a escada hierárquica da causa e consequência moral, o consenso moral que representava, já estava começando a desmoronar. Em razão da peste negra de 1348-49, que dizimou perto de 40% da população da Europa — e com ela, boa parte das alegações salvacionistas da Igreja — com o subsequente surgimento da cultura mercantil burguesa, baseada no capital, e do humanismo secular que hoje chamamos Renascença, o consenso lentamente desemaranhou-se, obedecendo a um ímpeto inexorável que se mantém até os dias de hoje.
Onde antes o camponês podia contemplar as torres da catedral medieval, encarnando uma autoridade sagrada, ou o castelo a expressar a autoridade secular, hoje os poderes da mitra e do ceptro estão esgotados e foram substituídos pela autoridade do Estado e das ideologias populistas, por seus modismos e novidades, perseguidos sem trégua como são por um avassalador vácuo mitológico. A visão beatífica é convertida em uma aposentadoria antecipada na Costa do Sol, a Madonna de Chartres é substituída pela Madonna da MTV, e a salvação é encontrada em Alcion, no pó de anjo, e na forma de cocaína e crack chamada Ecstasy.
Se a finalidade do mito é nos vincular com as quatro ordens do mistério, e se o que encontramos disponível na cultura é só uma ou outra forma de ideologia — a saber, materialismo, hedonismo ou narcisismo — então nossa experiência do modernismo é a angústia de ansiar, imersos em nossos distanciamentos. Se essas ideologias servissem para nós, veríamos as pessoas vivendo o drama simbólico do qual Jung falou. Em vez disso, porém, constatamos as variedades de patologias de uma sociedade que perdeu sua comunidade mítica, e as neuroses particulares de pessoas compromissadas com ideologias que não correspondem mais aos desejos e à natureza de sua alma.
Algumas grandes mudanças ocorreram desde o consenso dramatizado por Dante, mudanças que hoje definem o carácter do modernismo. A primeira e mais ostensiva alteração é o movimento do campo para a cidade, do trabalho manual para a tecnologia, da participação nos grandes ritmos da natureza para os artifícios da cultura. Conseguimos com essa barganha uma imensa capacidade de manipulação da matéria, de moldagem do meio ambiente, e há muito poucos saudosos o suficiente para desejar um retorno à vida garantida pela terra. Com isso, porém, efectivamos a interrupção do vínculo com nossas próprias raízes míticas. Em nossos ambientes controlados, tornamo-nos distantes da Grande Mãe, e “tampouco podem os pés sentir, calçados como estão”, de acordo com o que disse Gerard Manley Hopkins.{12}
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:14 pm

Nosso engenho permitiu-nos fabricar coisas de grande poder e hoje servimos essas coisas. As conveniências do automóvel e do computador rapidamente são lembradas, mas cada uma delas cobra como preço a alienação da natureza, e exige fidelidade a valores artificiais. Esse é o ónus imenso, pois no fundo somos natureza, e o verniz de civilização que nos reveste é muito fino.
Nossos antepassados viviam num mundo animista em que a alma estava em todas as coisas. Ainda damos três pancadinhas na madeira para convocar o auxílio do espírito tutelar ali presente, mas consideramos esse comportamento uma afectação inócua. O movimento da cultura animista até que se tornasse teológica removeu as pessoas de seu íntimo contacto com a Grande Mãe e aos poucos foi transferindo o poder sagrado da natureza para as instituições humanas impregnadas de reivindicações divinas. Dessa forma, o movimento pós Dante de instituições sacrossantas para o Estado secular torna os modernos três vezes afastados dos ritmos do mundo natural. Embora essa involução represente maiores confortos materiais, ao mesmo tempo significa o corte de elos vitais de ligação entre as criaturas humanas e seus mistérios. Pelos confortos da civilização moderna, foi exigido e pago um resgate considerável, na moeda da alienação e da angústia existencial. Como pervertidamente considerou James Hillman,
O único Deus que sobrou verdadeiramente universal, omnipresente, omnipotente e fielmente servido em pensamento e actos, capaz de reunir toda a espécie humana em actos diários de devoção, é a Economia. É esse o Deus que alimentamos com sangue humano literal.{13}É concomitante à dessacralização da natureza e à secularização da cultura a inevitável erosão da consciência do mito. Talvez não haja testemunho mais declarado do colapso da ligação com os mitos do que a morte de Deus. Quando apresentamos essa espécie de declaração não estamos fazendo um julgamento metafísico, pois essa realidade metafísica existir ou não é algo que, por definição, se considera um mistério além do alcance da compreensão humana, situando-se portanto no território da experiência e da fé subjectivas.
Mas, na qualidade de um comentário cultural, a morte de Deus quer dizer que o centro mítico que mantinha a cultura unida perdeu sua força.
Por isso podemos falar da morte de Deus de várias maneiras. A morte cultural de Deus ocorre quando o mistério torna-se subordinado aos valores culturais, confundido por exemplo com nacionalismo ou racismo, ou quando é malversado para a ratificação dos poderes da situação. Nessas oportunidades, a força vital implícita no termo Deus já abandonou a imagem e só resta o ícone. Como comentou há mais de um século o teólogo holandês Kierkegaard, “o Deus que pode ser apontado é um ídolo, e a religiosidade que se exibe exteriormente é uma forma imperfeita de religiosidade.”{14}
A morte filosófica de Deus é experimentada na perda de uma hipótese central à qual multidões possam outorgar seu consentimento volitivo e afectivo, quer dizer, na perda de algo que sentem ser tão verdadeiro quanto essencial. A experiência psicológica da morte de Deus é revivida milhões de vezes nas vidas das pessoas que não sentem o menor contacto vital com o numinoso, por mais desesperado que seja seu anseio, e fiel sua observância dos ritos de uma instituição religiosa putativa. Apesar da ansiosa insistência da dimensão consciente da psique, o teste crítico está em se a pessoa está ou não ligada ao mistério, e se de alguma forma este a transforma. Qualquer coisa menos que isso representa a capacidade que o ego tem de se iludir.
A morte da velha imagem, a erosão da força de uma autoridade até então sagrada, foi evidentemente proclamada extra ecclesiam pelo poeta louco de Nietzsche, Zarathustra, pelo impacto de Darwin e outros cientistas, mas também por representantes internos do universo religioso. Os eruditos especialistas em Bíblia do século XIX, que produziram trabalhos clássicos — Das Leben Jesu de Strauss (1835), La vie de Jesu de Renan (1863), Inquiry Concerning the Origins of Christianity, de Hennell (1838), e Das Wesens des Christentums de Feuerbach (1855) —, demitologizaram as origens da religião ocidental. Por um lado buscavam o ser humano chamado Jesus, e por outro expunham a contaminação do mitologema do Cristo pelo antropomorfismo cultural e pelas projecções psicológicas.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:15 pm

Onde esses estudos honestos deixaram os modernos pensadores está com a máxima clareza indicado no lamentoso testemunho do crítico de arte John Ruskin: “Se pelo menos os geólogos me deixassem em paz eu conseguiria me dar bem, mas esses martelos terríveis, eu os ouço tilintando ao final de cada cadência bíblica.”{15} A romancista George Eliot, caminhando pelos jardins de Cambridge, observou que três grandes ideias têm infundido ânimo à cultura: Deus, a imortalidade e o dever. As duas primeiras ela considerava inconcebíveis, mas a terceira era uma necessidade imperativa.{16} Como viver de modo moral e responsável numa civilização que havia perdido seu eixo mítico e sua promessa escatológica?
O projecto do artista moderno decorreu do dilema de George Eliot.
Como é possível viver quando, nas conhecidas palavras de 1917 de Yeats, “as coisas se desintegram”, “o centro não se sustenta”, “a anarquia pura e simples está à solta no mundo?”{17} Com a erosão do eixo mítico e da concomitante hierarquia de valores, são impossíveis a nobreza, a redenção e até mesmo a tragédia. É nesse sentido que a face do moderno talvez tenha sido melhor epitomizada no Pequeno Vagabundo de Chaplin e nos dois vagabundos de Samuel Beckett, que esperam por Godot, à margem do caminho. Quem é o pequeno vagabundo senão o moderno, cuja vitimização é tão horrenda que devemos rir para nos livrar da tensão insuportável, e quem é Godot senão Aquele que os miseráveis sabem que jamais virá? É uma longa mas cognoscível estrada, desde a alta tragédia de Sófocles, inclusive de Shakespeare com seus camponeses dissolutos, até os dramas do absurdo criados por Beckett, Pinter, Stoppard e seus contemporâneos.
Não é um salto grande demais sugerir que o ponto focal da dor e do anseio, do mistério e da loucura, está melhor explorado em nosso tempo através dos trabalhos dos artistas, e nos sonhos e sintomas das pessoas, do que nas formas e instituições da história. Jung indagou para onde foram os deuses depois de deixarem o Olimpo, e ele mesmo respondeu que tinham ido para o plexo solar. Quando os ocidentais caíram do telhado das catedrais medievais, ele escreveu numa carta, despencaram no abismo do Si-mesmo.{18}
Em seu ensaio "Poetry, Myth and Reality" (Poesia, Mito e Realidade), Philip Weelwrigth expressa sucintamente o dilema modernista:
Nossas ideias motivacionais presentes não são mitos, e sim ideologias, carentes de uma significação transcendental. Essa perda de consciência mítica de uma significação transcendental é um elo que une os homens tanto entre si como com o Mistério não sondado, do qual brotou a humanidade, e sem referência ao qual a significação radical das coisas se perde. Hoje não se tolera mais um mundo desprovido de seu significado radical; as pessoas que nele habitam são radicalmente instáveis a tal ponto que se agarram a qualquer mito ou pseudo-mito que lhes seja oferecido.{19}
Estamos numa era miticamente instável e somos um povo instável. Se tivéssemos nascido em outro tempo e espaço, nossas vidas, como Thomas Hobbes observou, seriam “detestáveis, embrutecidas e breves”.{20} Mas a chance é que também experimentaríamos as grandes conexões, os ritos de cura tão úteis, além de normas explícitas de comportamento.
Não nascemos lá, nem então, e ser moderno não é só estar vivendo actualmente, mas também compreender o que mais caracteriza nosso Zeitgeist, ou seja, a erosão daquele plano invisível que sustenta a vida no plano visível.
As crises do mundo não são só “externas”, eventos da esfera geopolítica, mas também “internas”, como acontecimentos da alma. As questões, explanações e grandes ritmos que antigamente dirigiam a alma, através do mito vivo, ainda existem em nós, continuam orientando as nossas vidas. E somos obrigados a tornar esse processo mais consciente para não vivermos às cegas, falsos em relação a nós, falsos em relação à natureza. Parafraseando as palavras que Willian Blake usou há duzentos anos, devemos criar mais conscientemente nosso próprio mito ou bem sermos escravos do mito alheio.{21}
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Out 22, 2023 8:15 pm

A moderna sensibilidade
Existem tantas facetas da experiência moderna que jamais se conseguiria sequer começar a enumerá-las, quanto mais identificá-las todas.
Escolhi cinco autores cujas obras dramatizam o que significa viver em nossos tempos: Goethe, Dostoyevsky, Conrad, Kafka e Camus. (Cada um deles lançou luz sobre um aspecto característico da experiência de se viver nessa intermediação entre deuses. Cada um deles encarnou uma visão mito poética da vida.
Historicamente, o mito brota de modo autónomo das profundezas do inconsciente, ou a partir de um encontro fenomenológico com a experiência transcendentalmente pessoal ou tribal. Como observou Jung:
A mentalidade primitiva não inventa mitos, ela os vivencia. Os mitos são revelações originais da psique pré-consciente... Muitos desses processos inconscientes podem ser indirectamente ocasionados pela consciência, mas nunca a partir de uma escolha consciente. Outros parecem irromper espontaneamente, vale dizer, sem nenhuma causa consciente discernível ou demonstrável.{22}
Quando porém o artista necessariamente evoca o inconsciente no acto de lidar com um tema, os padrões profundos conformam e animam os materiais de maneiras que escapam ao controle consciente. Por essa razão, os artistas, da antiguidade até o momento actual, têm testemunhado momentos em que sua intencionalidade é sobrepujada pela irrupção de imagens poderosas que parecem vir de outro ponto, numa experiência que tem sido variadamente descrita como “ser possuído/a” por um daimon, uma musa, ou simplesmente pela inspiração (literalmente o hálito divino que sopra e insufla a sensibilidade do artista). É dessas experiências que os mitos são feitos.
Nesse sentido, o artista é geralmente o portador do projecto mitológico, aquele que, pela intersecção do intento consciente com as configurações inconscientes, cria o mito da sua época — a mitopoiesis. Para podermos, nas palavras de Karl Jaspers, “ler as cifras” de nosso tempo{23}, decifrar a textura mítica que se encontra logo abaixo da superfície, somos obrigados a dar atenção às vozes artísticas que nos cercam.


Como Fausto tornou-se "faustiano"
O Fausto histórico nasceu por volta de 1480. Era palestrista, alquimista e uma ameaça às crenças e autoridades cristãs convencionais. Quando um monge franciscano lhe impôs que abjurasse de seus procedimentos, Fausto teria respondido que sua alma tinha sido prometida ao demónio, em troca do conhecimento dos poderes obscuros. Sua resolução de desafiar a Igreja despertou o interesse de muitos, mesmo que apenas para condenar sua heresia.
O primeiro texto sobre Fausto foi redigido em 1587, por um ministro luterano chamado Johann Spies. Naturalmente, Fausto foi condenado por sua blasfémia e serviu de exemplo da alma condenada. Muitos outros textos apresentaram variações dessa história, todas porém com o julgamento moral em grande destaque. Um contemporâneo de Shakespeare, Christopher Marlowe, retractou-o como figura heróica em The Tragical History of Dr. Faustus, mas condenou-o igualmente. O pronunciamento final do Coro é inequívoco:
Fausto se foi; contemplem sua queda infernal,
Cuja demoníaca tortura pode exortar o sábio
A apenas duvidar das coisas ilegais,
Cuja profundidade de certo instiga astúcias tão audazes
De realizar mais do que o poder celestial consente.{24}
A maneira de Marlowe lidar com o que rapidamente se tornara uma lenda sobre Fausto, e um encontro arquetípico entre o bem e o mal e a alma humana em perigo, tinha cunho mais grego que cristão. Marlowe estava menos interessado no facto de Fausto haver transgredido os limites teológicos cristãos do que no de haver cometido o pecado da hybris. Hybris é o não reconhecer a distinção entre o que é humano e o que é divino, entre o que é permitido ao plano humano da consciência e o que permanece como território exclusivo dos deuses.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:28 am

Hybris pode decorrer ou de um julgamento equivocado, ou de uma vaidade inflacionada que se arroga capacidades que não possui; em ambos os casos, as consequências são deletérias. A leitura do mitologema de Fausto feita por Marlowe antecipa Goethe mais que as várias diatribes contra Fausto produzidas por fontes evangélicas.
Fausto foi uma preocupação permanente do homem que muitos chamam de o Shakespeare alemão, Johann Wolfgang von Goethe. Ele começou a trabalhar no Fausto em 1773, publicou a Primeira Parte em 1808,e ainda estava fazendo a revisão da Parte Dois alguns meses antes de sua morte em 1832. Há quem argumente que o espírito modernista começa com algumas ideias gregas clássicas, como a tentativa dos pré-socráticos de encontrar uma metafísica não-teológica, com a articulação do método científico pôr Bacon, com a cisão mente-corpo difundida por Descartes no século XVII, ou o reconhecimento explicitado por Kant de categorias a priori do pensamento como a natureza constitutiva da Natureza, no final do século XVIII. Para mim, porém, a característica essencial do modernismo materializou-se pela primeira vez na abordagem dada por Goethe à lenda de Fausto.
O Fausto de Goethe é menos possuído pela hybris, menos condenado, e mais um paradigma do anseio humano de tudo saber, de viver nas chamas de uma paixão desvairada pela verdade, de invadir o espaço vazio do tempo entre os deuses. Tem-se, ao ler Fausto, uma clara sensação de que Deus e Satã são mais engrenagens celestiais que movimentam a jornada espiritual de Fausto, do que os poderes normativos e metafísicos da tradição cristã.
Se pudéssemos dizer sobre a sensibilidade grega clássica, como a representava Sófocles, por exemplo, que o bem mais elevado era a recuperação do equilíbrio adequado entre os humanos tomados pela hybris e os deuses volúveis, e que para o mythos cristão medieval, como em Dante por exemplo, o valor mais excelso era a salvação, então poderíamos dizer que o mais elevado objectivo para Goethe, e a era modernista, era a realização pessoal.
No prólogo, Mefistófeles descreve Fausto para o Senhor, dizendo que, embora “o espírito de Fausto tenha um fermento que o lança longe”, e que ele “quase sabe como é tola sua busca”, não obstante:
Do céu ele cobra a mais distante estrela,
E da terra todos os prazeres que melhor lhe sabem; e tudo o que há perto e tudo o que há longe não consegue apaziguar o tumulto de seu peito.{25}
Mais adiante Fausto conclui: “Dasein ist Pflicht, und wars einAugenblick”, que pode ser traduzido como “a realização total é um imperativo, mesmo que dure um instante”, ou “a existência é um dever, mesmo que temporária.”{26}
Fausto dá corpo ao endosso que Goethe dá ao famoso aforismo do seu contemporâneo Lessing, segundo o qual se Deus tivesse duas mãos, uma representando a verdade e a outra a busca da verdade, a pessoa deveria escolher a segunda.{27} Antecipa-se ao Hans Castorpo de Thomas Mann que diz: “É mais moral perder-se e até mesmo abandonar-se à perdição do que se preservar”.{28} Pode-se também lembrar o ensaio que I. S. Eliot fez sobre Charles Baudelaire, no qual escreve que a pessoa pode rezar pela redenção do infiel Baudelaire, mas pelo menos ele teve a profundidade espiritual de conquistar sua danação, ao invés do que o mártir antinazista Dietrich Bonhoeffer mais tarde descreveria como “uma graça barata”.{29}
A personalidade de Fausto parece-nos familiar porque representa uma inquietação profunda em nosso íntimo. Na abertura da peça ele está sofrendo de uma depressão suicida. Depois de ter aprendido tudo o que pode em termos das disciplinas de sua época medieval — filosofia, jurisprudência, medicina e teologia — ele chegou no fim daqueles quatro grandes pilares contra os quais o imenso oceano ruge, se arremessa e então se aquieta e pára.
E nesse instante se lamenta: “apesar de toda a nossa ciência e arte/não sabemos nada.”{30}
Ele se aproxima do precipício do suicídio, em parte movido pelo desespero, em parte pelo anseio do abissal. Sua sensibilidade é tipicamente moderna, uma paixão pela totalidade, pela completude, que o consome. Há quem queira experimentá-la no amor, nas drogas, em alguma religião, mas em todos nós ecoa o mesmo dilema faustiano: “Embora eu saiba muito, gostaria de saber tudo”.{31} Como nós, ele sabe que “duas almas, ai, habitam em meu peito{32}, uma que se apega à terra num abraço apaixonado e outra ansiando, como nas palavras de Gustave Flaubert, “por uma música que possa derreter as estrelas.”{33}
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:28 am

O Mefistófeles que oferece a Fausto a oportunidade de transcender não é o demónio dos antigos, vestido de malha vermelha com chifres e tridente. Essa personagem aparece, para Goethe, revestida do carácter mais capaz de seduzir Fausto: o erudito itinerante. No início, Fausto também está propenso a associá-lo com seus atributos tradicionais, como o Senhor das Moscas, o Grande Ladino, mas Mefistófeles prontamente o corrige. Ele não é o simples oposto do bem, mas antes “parte da força que é capaz de fazer ainda mais mal e no entanto é quem cria o bem.”{34} Ele faz “parte das trevas que dão nascimento à luz”.{35} É assim que Mefistófeles encarna aquilo que Jung chamaria de o arquétipo da sombra.
A sombra representa aquilo que está excluído do campo da consciência por ser ameaçador, doloroso, embaraçoso ou desestabilizador. Pode ser experimentada no nível individual ou colectivo; representa um âmbito mais amplo e rico de energia do que em geral de maneira autónoma e invade a vida consciente de modo perturbador; é, porém, essencialmente necessária para a expansão e a complementação da dimensão consciente. Muitas vezes a sombra foi excluída do pensamento ocidental e sabemos, psicologicamente, que tudo aquilo que passa por essa cisão volta a insinuar-se na forma de irrupções de comportamento ou de projecções em outras pessoas ou objectos.
Jung investigou as consequências psicológicas dessa cisão em “Resposta a Jó”, e a recente lição do Holocausto é um lembrete inescapável do que as próprias trevas de cada um podem efectuar quando projectadas em terceiros.
Assim, Mefistófeles para Goethe é uma parte inerente da totalidade que, sendo negada, mesmo que por um erudito de alta percepção cognitiva, leva-o a destruir uma alma simples, a virgem Gretchen, em razão de sua inconsciência.
Quando Mefistófeles conduz Fausto até a Cozinha da Bruxa, a Bruxa chefe também entende de modo equivocado a riqueza mais intrincada dessa
moderna versão e saúda-o como “Fidalgo Satã”. Ao que Mefistófeles responde “Esse nome não serve, bruxa!” Por quê?
É obsoleto, lembra fábulas; os homens são astutos, mas continuam sendo tão malvados quanto sempre foram: o Maligno se foi, permaneceram os malvados.36
É com essa derradeira sentença que começa o mythos modernista. O Maligno, com maiúscula, representa a hierarquia tradicional de valores, o mythos operativo comum até a época de Dante, mas com cada vez menos autoridade desde então. O Maligno como hipótese necessária coloca-se lado a lado, sem dúvida, com o Bondoso. Se o nome e a autoridade concomitante do primeiro não se sustentam mais, o que resta então do segundo? A insistência de Mefistófeles de que a antiga autoridade por trás desses nomes está encerrada instaura o contexto para uma existência modernista a desenrolar-se numa terra devastada, desolada, num espaço entre deuses, e consagra a angústia de se esperar por Godot.
Por outro lado, e aqui é onde a coisa incomoda, restam os malvados.
Quando Hannah Arendt foi a Jerusalém fazer a reportagem do julgamento e subsequente execução de Adolf Eichmann, ela quase pensava que veria um rabo saltando da roupa daquele homem que tinha dito que iria rindo para a morte porque sabia que seis milhões de judeus o haviam precedido. O que enxergou foi um joão-ninguém careca, de óculos, que durante décadas havia passado incógnito em Buenos Aires. Eichmann foi o epítome da desmitologização do modernismo. Por mais que desejássemos demonizar Hitler, culpar o diabo, a verdade é que milhões de cidadãos comuns projectaram sua própria sombra nele. Por sua vez, ele havia activado nessa multidão as energias pagãs que se encontram à espreita numa camada logo abaixo do verniz de milhares de anos de civilização.
Para descrever Eichmann e a indispensável conivência de milhões, Arendt cunhou a frase “a banalidade do mal”.{36} Nenhum diabinho em roupa vermelha; só cidadãos sisudos, determinados a viver em sua inconsciência. E nenhum instrumento cultural que tenhamos inventado — teologia, ciência, humanismo — foi suficiente para resistir à sedução da sombra. Como George Steiner assinalou, “sabemos que alguns dos homens que projectaram e administraram Auschwitz tinham sido instruídos a ler Shakespeare e Goethe, e que continuaram a fazê-lo.”{37}
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:28 am

Arendt, ao confirmar que os malvados permaneceram, que eles são nós, que a sombra é a nossa própria, foi antecipada no Mefistófeles de Goethe com a mesma incisividade com que hoje em dia essa ideia continua sendo negada pela maioria. Não cabe mais a imagem de um sujeito de chifres espreitando nas frestas pela chance de criar as trevas; ele está em nós o tempo todo. Por mais que seus anseios tenham um timbre de nobreza, Fausto é uma pessoa que também deixará um rastro de tristeza e destruição. Os notáveis efeitos obtidos pelo modernismo são conquistas temperadas por sua sombra concomitante. Como Jung certa vez observou, quanto maior a luz, maior a sombra. E Goethe, o sábio de Weimar, que ajudou a dramatizar a sombra, teria supostamente pronunciado, ao morrer, como suas palavras finais: “mais luz!”{38}
Além da dramatização do Fausto em Goethe, como protótipo da aspiração humana, do anseio pela eternidade, e como o novo ser em busca da luz que no entanto depara com as trevas de um tempo entre deuses, existe um terceiro elemento na imago do Fausto que tipifica a experiência moderna:
Fausto claramente se incumbe da tarefa de sua própria salvação.
Se os velhos poderes metafísicos estão mortos, e se vamos por nosso caminho carregando tanto a escuridão como a luz, então somos agora obrigados a nos posicionar do modo mais consciente e responsável perante o universo. Em termos junguianos, cada um de nós tornou-se responsável por sua própria individuação. A individuação não é só o impulso natural e inerente em nosso íntimo para que nos tornemos quem somos destinados a ser, mas o imperativo moral da dimensão consciente para cooperar e promover os misteriosos desígnios da natureza por meio das particularidades de cada pessoa.
Toda a natureza depende do desenvolvimento da criatura individual, dos mosquitos às girafas, das toupeiras nos mamíferos. Essa é uma convocação sagrada, mas com ou sem um lastro metafísico de certezas, somos obrigados a assumir a responsabilidade pelo significado de nossas vidas. Somos obrigados, como Jung fez, a perguntar se somos ou não nós em relação com algo infinito.{39} Seja qual for a nossa resposta, recai sobre nós a incumbência e o dever de criar significado em nossas vidas. Estamos condenados à liberdade, embora o bafejo da angústia existencial seja suficiente para arrastar para fora de seu curso natural muitas e muitas pessoas que recuam até algum refúgio ideológico seguro.
O Fausto de Goethe investiu com audácia naquele lugar vazio que ficou entre os deuses. “Do além não tenho qualquer ideia... minhas alegrias vêm desta terra”, diz ele a Mefistófeles, que pretendia impressioná-lo com insinuações da imortalidade.”{40} Fausto oferece sua alma como aposta. Aliás, desafia Mefistófeles ao declarar que a profundidade e intensidade do anseio da alma humana são tão grandes que nenhuma viagem mágica de recreio, nenhum templo das delícias, nenhuma das mais variadas formas de prazer da carne, serão suficientes para apascentá-las.
“Se algum dia enfim recostar-me, sossegado num leito de preguiça, você pode destruir-me imediatamente.”{41}
Pois, se “cada vez me torno mais estagnado serei escravo, quer por culpa de mais alguém, quer não.”{42} Eis aí o heróico desafio, talvez o debate, entre ambos.
Fausto aposta o valor e a profundidade de sua alma, assume a responsabilidade por sua própria salvação, e comenta claramente que é a jornada da alma, não seu lugar de repouso, que constitui o significado. Sua salvação não está em algum Valhalla, nem sua condenação em algum tenebroso Dia, mas no existir diário da grande aventura, entre mundos, entre estrelas, entre deuses.
Em suma, a versão mito poética da imago do Fausto em Goethe dá início à era moderna em virtude desses três aspectos que são tão indiscutivelmente traços de nossa psicologia: a urgente necessidade de explorar todas as avenidas, por mais arriscadas que possam ser; a troca de lugar da incumbência moral que antes incidia numa hierarquia externa de valores e de referências institucionais; e assumir o dever pessoal da salvação, ou individuação.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:29 am

Não podemos mais adoptar o fácil optimismo do século passado, quando nossa ânsia faustiana de saber tudo daria margem a uma era de ouro. A mesma árvore à sombra da qual o sábio de Weimar um dia se sentou para redigir o Fausto foi posteriormente protegida e serviu de ponto central para o K-Z Lager Buchenwald. Karl Shapiro, em “The Progress of Faust”, usa as ambiguidades do termo progresso, tanto em sua acepção como procissão quanto no sentido de avanço. Refaz a história da imago do Fausto e cita sua mais recente manifestação:
—Por cinco anos desconhecido de seus inimigos e amigos
Escondido, apareceu no sexto para uma pose
Num deserto americano no final da guerra
Onde, às suas costas, uma cúpula de átomos apareceu.{43}
Está ao nosso alcance explorar todas as avenidas, desde as complexidades atómicas e genéticas, até as vastidões do espaço estelar, mas não podemos mais alegar ingenuamente ser possuidores dos poderes que um dia pertenceram aos deuses, sem com isso nos incumbir de seus devores.
Como Faetonte do antigo mito grego, disparamos a bordo da carruagem do sol, mas sem uma referência metafísica com a qual compreender e mapear nosso rumo. Nas palavras de Wallace Stevens, não temos “patrocinadores, somos livres... inseparáveis.”{44}
É assim que no isolamento nos alcança a grande aventura. Como afirmaria Fausto a Mefistófeles, se minha alma facilmente se distrai da grande aventura é porque estou morto e você então pode ter-me. Depois Fausto coloca-se no paradoxo que Nietzsche descreveu quando disse que somos tanto o abismo quanto a corda-bamba estendida sobre ele.{45} Somos o vazio escancarado a ser preenchido de coragem e escolhas, e o frágil fio sobre o qual realizar a travessia por sobre terrores abissais.
Por tudo isso Fausto é o primeiro moderno, pleno de desejos, a tornar-se, por seus excessos, “faustiano”. Ao libertar-se das escoras metafísicas, ou de suas algemas, torna-se responsável pelo significado de sua própria alma.
Seu exemplo, sua dignidade e padecimentos, e seu dilema, são nossos e a cada qual compete encontrar sua própria resposta. Intuitivamente, Goethe apreendeu e descreveu artisticamente a derrocada do velho mythos e a obrigação do homem moderno de viver com mais consciência, nesse imenso entremeio.

O homem marginal
Em 1851, nos arredores de Londres, foi inaugurada a primeira feira verdadeiramente internacional de comércio e cultura, dentro de uma estrutura de aço e vidro denominada Palácio de Cristal. As nações do mundo inteiro reuniram suas novas máquinas, produtos e orgulho para exibir de que maneira haviam feito a natureza curvar-se a seus desejos e servi-las.
De forma explícita, suas proclamações alardeavam o culto ao progresso e a doutrina optimista do melhorismo, numa visão segundo a qual, com os poderes prometeicos da educação, da tecnologia e da riqueza material, uma nova era estava se inaugurando e dela os velhos males da doença, da pobreza, da exploração e da guerra seriam erradicados. No plano implícito, representavam a invasão egóico juvenil do complexo de Fausto.
Sessenta e cinco anos mais tarde, 60.000 jovens britânicos seriam trucidados nas primeiras vinte e quatro horas da Batalha do Somme{46}.
Noventa e nove anos depois, a Luftwaffe usaria a cúpula do Palácio de Cristal como referência de navegação para suas aeronaves quando começaram seus bombardeios sobre Londres na Batalha da Inglaterra.
Noventa e quatro anos passados, e os poderes ocidentais entrariam em Babi Yar, Bergen-Belsen, Mauthausen, Oranienburg, Dachau, Sobibor, Sacusenhauseun, Treblinka, Terezienstadt, Revensbrück e Auschwitz. Tudo pelo melhorismo.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:29 am

Embora poucos sejam hoje os que contestam de modo capcioso as grandes conquistas da civilização moderna, o leviano optimismo de nossos bisavós desfaz-se como cinzas diante de uma litania de cruzes e pontos turísticos localizados já nos limites dos aglomerados urbanos e à margem mesmo da Autobahn{47}.
Um homem, que certamente deve ter parecido louco a seus contemporâneos por ter previsto esse tipo de futuro, tinha enxergado mais no fundo da alma humana do que os outros. E ao que assistiu foi perturbador demais para que eles o admitissem. Os eventos históricos, contudo, forçaram-nos a ver e concordar. Estamos falando de Fyodor Dostoyevsky.
Em Notes form Underground{48}, escrito em 1864, Dostoyevsky examinou o Palácio de Cristal que tanto havia encantado sua cultura concluiu:
Os homens amam a tal ponto o raciocínio abstracto e a sistematização límpida que nem pensam em estar distorcendo a verdade, fechando os olhos e os ouvidos às evidências em contrário, para preservar suas construções lógicas... O que em nós é amadurecido pela civilização?
Digo que o máximo que consegue é desenvolver no homem uma capacidade de sentir maior variedade de sensações. E nada, absolutamente nada mais. E, através desse desenvolvimento, o homem ainda acaba por aprender como apreciar derramamentos de sangue.{49}
O auto-retrato de Dostoyevsky foi talvez a primeira perspectiva verdadeiramente psicológica da humanidade. Não que estejamos com isso dizendo que não se poderiam encontrar profundas percepções psicológicas esparsas pela literatura tanto religiosa quanto ficcional, mas talvez nenhuma outra obra permita um exame psicológico mais minucioso do que Notes from Underground. Devemos ter em mente que Dostoyevsky estava escrevendo antes de Freud e suas descobertas da psicologia profunda. O primeiro livro significativo de Freud foi Studies in Hysteria, de 1895, e o seu Interpretation of Dreams só foi publicado no início deste século.
Na realidade, uma das consequências dessa erosão do mito tradicional por nós observada foi um grande deslocamento do paradigma. Desde Fausto tem-se tornado cada vez mais necessário definir e descrever os seres humanos em seu contexto social mais que no teológico. A era de Sófocles e a Era de Dante eram compreendidas sub espécie eternitatis, mas a Era da Angústia Existencial, como a revista Time uma vez caracterizou-a em sua matéria de capa, é mais comumente definida em termos de classes, nações, género, status económico e neurose. Aliás, todas as disciplinas que chamamos de ciências sociais-economia, ciência política, sociologia, estudos urbanos, antropologia e psicologia — tiveram origem no século XIX e derivam dessa maciça mudança de paradigma. Certa feita, Jung observou que a psicologia era a mais recente das assim-chamadas ciências porque os esclarecimentos que continha tinham sido antes o conteúdo dos grandes mitos e religiões.{50}
Freud notou que a humanidade passou por três grandes recolocações no cosmo, por três momentos de derrocada das inflações do ego: o trabalho de Copérnico ensinando-nos que não éramos o centro do universo como Ptolomeu havia descrito; Darwin ensinando-nos que afinal de contas éramos animais e, não necessariamente, o ápice da evolução; e a psicologia profunda com sua inquietadora contribuição de que a maior parte do tempo somos, por mais defensores da consciência que nos mostremos, controlados por pulsões inconscientes.
O homem marginal de Dostoyevsky é uma metáfora para aludir à vida que prospera aquém do limiar da consciência, uma vida que ferve e, ao irromper, termina por desorganizar os nossos gerados planos de auto-congratulações e melhorismos generalizados. A imagem que tece (Ia humanidade é geralmente repugnante à dimensão consciente, à auto-estima e às inflações do ego, mas inquestionavelmente honesta, exacta e mobilizadora. Parece-me que, era Notes from Underground, há quatro percepções de cunho psicológico cujo cerne é essencialmente moderno: nosso narcisismo inerente, nossa propensão consentida ao caos e à destruição, nossas perversões e nossa compulsão a uma auto-afirmação radical.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122421
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Conteúdo patrocinado


Conteúdo patrocinado


Ir para o topo Ir para baixo

Página 1 de 4 1, 2, 3, 4  Seguinte

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos