LUZ ESPÍRITA
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 2 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:29 am

Nenhum trabalho produzido pelo pensamento ocidental inicia-se com palavras menos melífluas do que Notes from Underground:
Sou um homem doente... um sujeito malvado. Não há nada de atraente em mim. Penso que devo ter algum problema no fígado. Mas, a verdade é que não entendo merda nenhuma de minha doença; não tenho certeza nem de qual seja minha enfermidade... Bom, mas do que é que um sujeito decente mais gosta de falar? De si mesmo, claro. De modo que vou falar de mim.{51}
O Homem marginal gira incessantemente em torno da preocupação consigo mesmo. No contexto da literatura vitoriana, ele é efectivamente uma avis rara. Em lugar de alguém que é portador dos tradicionais valores heróicos, ele é o primeiro de um tipo que se tornou muito comum na literatura moderna: o anti-herói. Todo um género foi lançado no mercado com o aparecimento dessa personagem que se recusa a admitir uma dimensão positiva e a luta pelos antigos nobres ideais (Verdade, Beleza, Bondade, o País e Deus). Seu tipo é moderno porque a psicologia, quando não a história moderna, forçou-nos a aceitar que o id infantil e narcisista manobra furtivamente para satisfazer suas vontades bem embaixo do nariz do arrogante superego, enfraquecendo assim as iniciativas do ego para conseguir um contrato respeitável de conciliação de interesses.
O homem marginal confessa: aquilo que mais tememos talvez seja verdadeiro a nosso respeito: “Antes de mais nada sempre fui culpado, e o mais vergonhoso é que eu era culpado sem culpa, em virtude das leis da natureza.”{52} Seu narcisismo é intolerável. Chega a elevar o exótico padecimento de uma dor de dentes à categoria de nobre obra de arte: “E o lamento que expressa o prazer do sofredor, pois se ele não o degustasse não se lamentaria."{53}
Sua auto-centração inesgotável não só pressagia o leitmotif de nossa era contemporânea, como também rasga o verniz das piedades vitorianas e produz um profundo e sincero confronto com a sombra: Para você, eu não sou mais o herói que tentei parecer a princípio, mas simplesmente um homenzinho desprezível. Pois bem. Fico feliz por você ter conseguido enxergar através de mim... Afinal de contas, como é que um homem com minha lucidez de percepção pode respeitar-se?{54}
Por volta da meia-idade, certamente já teremos aprendido a verdade acerca do aforismo de Mark Twain: “O homem é o único animal que enrubesce e tem seus motivos para tanto.”{55} Aquele que não chegou a uma medida significativa de auto-reprovação não se tornou muito consciente. É assim que o homem marginal, depois de haver espionado um oficial da cavalaria montado com ostentação em seu animal brandindo seu sabre, rumina com seus botões:
Essa espécie de exibição é de tão mau gosto quanto o tilintar do sabre daquele oficial que mencionei. Mas lhe pergunto: quem, em nome de Deus, sai por aí exibindo a própria enfermidade, ou até mesmo rejubilando-se com ela? Pensando melhor, contudo, eu diria que todo mundo age assim. As pessoas efectivamente sentem orgulho pessoal de suas enfermidades e, provavelmente, eu mais que todos os outros.{56}
Que introvisão extraordinária, tão inescapavelmente verdadeira, como se destaca com clareza das (im)posturas dos políticos, do escarcéu dos generais, das futilidades das reuniões “inter” de todo tipo, das alegações escatológicas dos comerciais, de nossos próprios comportamentos de ainda ontem. Qualquer terapeuta percebe como o cliente se apega à neurose, adora seus sintomas, seu refúgio de recriminações e mesmices, em vez de correr o risco do trauma das mudanças. Como disse W. H. Auden:
Preferimos nos arruinar a mudar,
Morrer nas garras de nossos pavores
Que subir à cruz do momento
E deixar que nossas ilusões morram.{57}
O homem marginal fica especialmente irritado com aquilo que os filósofos têm chamado de falácia socrática. Através de sua persona Sócrates, Platão afirmou que os humanos não cometeriam actos vis se efectivamente os compreendessem como vis. Quando fazem o mal é porque não entendem realmente o bem, e é o bem (o Bem) que infunde a alma de vida. O que o homem marginal tem a dizer sobre esse optimismo moral e histórico?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:29 am

Ah, quanta inocência!... E esses milhões de fatos que mostram que os homens, deliberadamente e com pleno conhecimento de causa quanto aos seus reais interesses, afugentaram-nos aos pontapés e depois evadiram-se numa direcção diferente?... Isto não estaria sugerindo que a obstinação e a volubilidade foram mais fortes nessas pessoas do que seus interesses?{58}
Nietzsche, contemporâneo do Dostoyevsky, estava explorando um veio semelhante quando, em sua garantida posição de professor de linguística na universidade provincial da Basileia, depôs o mundo. Não só Deus estava morto, quer dizer, o ícone coisificado da Igreja institucional não continha mais a menor numinosidade, como o futuro tinha caído em mãos do Super homem e de sua “vontade de poder”{59}. É uma das maiores ironias da história que os nazistas tenham capturado este iconoclasta e tornado sua obra parte de sua pseudoiconografia intelectual, que tenham tomado a vontade do poder de Nietzsche para identificá-la com a Wehrmacht, que tenham se apoderado de seu amor profundo pelo indivíduo e o transformado na fonte emocional da identificação colectiva na saudação fascista do braço erguido.
A vontade de poder em Nietzsche ecoa a vontade de destruição em Dostoyesvsky, a vontade do caos. Enquanto os avatares do convencional se sacodem de tremor, essa vontade é o que define a pessoa, mesmo que ameace a sociedade. Essa patifaria pode, em última instância, ser o que salva os humanos daquelas partes de si mesmos que funcionam numa esfera autónoma, os Quislings da psique que se vendem ao secular. Ambos os profetas estavam falando inspirados por uma fonte profunda, afirmando a vontade individual, autodestrutiva sim, mas inelutável.
A visão difundida por Nietzsche e Dostoyevsky era perversa, mas não pervertida. E perversa só porque contrariava os valores colectivos vigentes. Os dois, certamente, eram celebrantes do pervertido (de per, para longe, e vertere, verter), porque “voltaram-se para longe de” e, com isso, conquistaram a condenação e o opróbrio da massa. Mas os dois estavam sendo fiéis a uma nova visão do indivíduo, a uma nova maneira de valorizá-lo. E quem virá para dizer qual é o verdadeiro caminho? O grupo? Ao identificarem a pessoa como pervertida, e não obstante como a única fonte possível de renovação, celebravam, de maneira marginal, o delicioso paradoxo constelado por tal confluência.
Em meio a um clima social activista morto e disposto a crescer cada vez mais e com isso tornar-se melhor, uma cultura baseada no primado do pensamento racional, o homem marginal ousa sugerir:
E qual seria o fruto natural, ilógico, da consciência intensificada, senão a inércia, com o que estou dizendo sentar-se conscientemente e cruzar os braços...! As pessoas espontâneas e os homens de acção podem agir precisamente porque são limitados e estúpidos.{60}
Assim no final, senhoras e senhores, é melhor não fazer absolutamente nada! A inércia consciente é o melhor!{61}
A paródia que está tecendo amplia-se até tornar-se uma redução ao absurdo:
Eu não poderia sequer conceber ser o segundo em alguma coisa; é por isso que, na vida real, resigno-me tão facilmente a ser o último... um herói não poderia ser completamente vilipendiado pela lama, então por que não espojar-se nela?{62}
São Paulo confessou que, embora conhecesse o bem, por razões que se situavam fora do controle consciente ele não fazia o bem. Da mesma maneira, por baixo da caricatura de Dostoyevsky pulsa um profundo respeito pela força não-racional da vida. Embora ele não pudesse saber dos horrores da colectivização, os expurgos e gulags stalinistas, ele leu correctamente os sinais.
E viu que o preço do Palácio de Cristal seria pago pela perda progressiva da individualidade. Seu receio do perigo representado pelo pensamento de grupo antecipa o 1984 de George Orwell e também sua “Política e a língua inglesa”.
“Admito que a razão é uma boa coisa”, afirma o homem marginal.
Nenhuma dúvida quanto a isso. Mas razão é só razão, e ela só satisfaz as exigências racionais do homem. Por outro lado, o desejo é a manifestação da vida... e abrange tudo, desde a razão até o comichão que pede para ser coçado. E embora, quando somos guiados pelos nossos desejos, a vida em geral se torne uma história muito confusa, ainda assim é vida e não uma série de extracções de raízes quadradas.{63}
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:30 am

É esse desejo irracional, essa força vital, que às vezes fica embaralhada, que carrega a semente do indivíduo.
O homem pode formular um desejo... alguma coisa lesiva, estúpida, até mesmo completamente imbecil. Ele a fará com o intuito de deixar claro seu direito de desejar as coisas mais idiotas e não ser obrigado a ter nenhum desejo sensato.{64}
O homem marginal representa aquilo que somos mais profundamente, e suas opiniões perversas representam nossa mais íntima dimensão de liberdade. Na realidade, nosso significado, ele acha, vem não de participarmos no colectivo, mas da anarquia diária do desejo. E então conclui:
A mim parece que o significado da vida humana consiste em o sujeito provar para si mesmo, a todo instante, que ele é um homem e não uma tecla de piano. A pessoa vai continuar provando quem é e pagando por isso com a própria pele; e vai virar um troglodita se for o caso... Não posso deixar de regozijar-me pôr as coisas ainda serem como são e, com o passar do tempo, por ninguém ficar sabendo absolutamente nada sobre o que é que determina os nossos desejos.{65}
Pergunte a si mesmo que antropologia mostrou-se mais profética acerca do século XX: a dos apóstolos do progresso, dos melhoristas, ou a dos videntes pervertidos, o homem marginal? Em sua apresentação de nossos narcisismo reflexivo, de nossa vontade de autodestruição, de nossas variadas perversidades e irracional afirmação de si-mesmo, o homem marginal oferece uma dramatização muito mais perturbadora, embora sem dúvida mais acurada, da sensibilidade, das percepções modernas. E inclusive celebra o sofrimento como a pré-condição necessária à consciência. A nova Era do Progresso presumivelmente irá aliviar o sofrimento, mas isso também poderia acarretar uma diminuição da capacidade de tomar consciência, inerente a cada pessoa. Perante o cálculo da colectividade, o homem marginal afirma:
A consciência... é de uma ordem muito mais elevada que dois vezes dois... Com consciência não temos muito a fazer... mas, pelo menos, podemos nos flagelar de tempos em tempos, o que decerto nos deixa um pouco mais animados. Pode ser uma contra força em relação ao progresso, mas é melhor do que nada.{66}
Dostoyevsky insiste no valor heurístico do sofrimento e nos potenciais em bruto do desejo, da perversidade e da assertividade individuais. Contra a terra devastada e desolada e os homens rasos de T. S. Eliot, a banalidade de Eichmann e dos vagabundos de Beckett, a anonimidade do pensamento-de grupo, ele corrobora o aforismo medieval de que o sofrimento é o mais veloz cavalo até a completude, e a conclusão de Jung, para quem “a neurose é o sofrimento que ainda não encontrou seu significado”.{67} Contra a sociedade gerada mecanicamente, que tem sua máxima metáfora concreta no Palácio de Cristal, ele manifesta sua rebelião: “Tenho medo desse tipo de palácio precisamente porque é indestrutível e porque nunca terei permissão para mostrar minha língua para ele.”{68}
Na metáfora radical do homem marginal, Dostoyevsky obriga o moderno a ver-se como realmente é, não como preferiria ser. Foi esse homem, actuando sub rosa (confidencialmente; em latim no original) no brechó do coração, que criou a história moderna, não os arquitectos dos palácios de aço e vidro.

No cerne das trevas
Num romance de 1898, com menos de 80 páginas, Joseph Conrad{69}
adiantou mais um passo a antropologia de Dostoyevsky. Em 1876, o rei Leopoldo da Bélgica reuniu as nações da Europa, em Bruxelas, para uma conferência cujo propósito era espoliar a terra de outra gente. Mas uma ideia então ignóbil deveria ser revestida de modo a ocultar sua forma sinistra, e para tanto a conferência foi convocada “para abrir à civilização a única parte de nosso globo em que o cristianismo ainda não havia penetrado, rasgando as trevas que ali envolvem toda a sua população.{70} A velha Europa, perpetrando pogrorns como ninguém, inigualáveis autos-de-fé, e logo então campos de concentração, estava disposta a partilhar dos benefícios de sua cultura com seus irmãos menores, especialmente aqueles irmãos que viviam perto do marfim e das jazidas de minérios.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:30 am

O protagonista do romance, Marlow, empreende uma viagem para o interior para se informar acerca de um tal Kurtz, um agente ferroviário que havia ido antes dele. As reflexões de Marlow durante a viagem esclarecem nossa obrigação de olhar mais além das piedades imperialistas, enxergando seu miolo podre.
A conquista da terra, que significa principalmente tomá-la dos povos com cor de pele diferente, ou narizes ligeiramente achatados, não é uma boa coisa quando você a olha tempo suficiente. O que a redime é apenas a própria ideia. Uma ideia por trás... algo que você pode estipular, perante à qual inclinar-se respeitosamente, para a qual oferecer sacrifícios.{71}
Essas “ideias” são necessárias para mobilizar milhões. Farão com que se contratem escravos, convencendo-os a investir em necessidades artificiais, e inclusive a sair em campanha bélica a serviço do que Wilfred Owen chamou de “A velha mentira: Dulce et decorum est / Pro pátria mori.” (Doce e honrado é morrer pela pátria).{72} Mas o que mobiliza as massas não são realmente as ideias e sim as ideologias, concepções instituídas como inquestionáveis, normativas para todos, que excluem ideias contrárias.
Marlow sabe o que está furtivamente embutido na ideia de cristianizar a África negra: “A palavra ‘marfim’ ecoava no ar, era sussurrada, suspirada.
Dava a impressão de que rezavam para ela.”{73}
Enfim, Marlow encontra o agente ferroviário Kurtz, que agora está completamente louco e vive como um potentado de mentira no meio da floresta. Este, que quando partira estava imbuído dos mais nobres motivos, havia sido, como previra o homem marginal, corrompido pelo que existia de mais sinistro em seu ser. Kurtz é o paradigma do moderno que não tem ideias próprias e acredita que os pensamentos de sua cultura são belos e convincentes. Conrad fala de todos nós que ingenuamente nos embrenhamos na mata:
A vida selvagem havia-o encontrado logo e praticara uma vingança terrível... tinha sussurrado em seus ouvidos coisas sobre si mesmo que ele não sabia, das quais não tinha a mais pálida noção, até que foi se aconselhar com a grande solidão... Ecoavam em seu íntimo aos brados pois ele era oco por dentro.{74}
Enquanto Kurtz é tragado pelo “horror” externo e pelo “horror” interno{75}, Marlow luta para equilibrar os opostos. Se loucura é ser possuído por um pensamento obsessivo, uma visão unilateral, então sanidade é a capacidade de equilibrar, de acomodar opostos para encontrar o terceiro elemento superior inerente a toda dialéctica. Marlow, depois de todo o intenso drama e absurdo “da incumbência do homem branco”, conclui: “O máximo que você pode esperar disso é algum conhecimento de si mesmo.”{76}
Não parece muito para se obter depois de uma jornada tão longa, mas essa conquista de Marlow é o sine qua non. Sem autoconhecimento, ou seja, a sensação de um reconhecimento de si mesmo, uma consciência moral, só pode existir o dano contra si e contra terceiros. Dispostos a sair para iluminar o continente escuro, os modernos levaram em seu bojo a própria escuridão e com ela teceram um imenso remendo. Se houvessem praticado a menor parcela possível de consciência moral, teriam feito muito melhor ficando em casa e confrontando seus próprios corações negros, e talvez assim poderiam ter prevenido o morticínio de tantos de seus jovens que saíram em marcha em seu nome, dezasseis anos depois.
Conrad, como Goethe e Dostoyevsky, obriga-nos a enxergar a humanidade através de um prisma psicológico. É insuficiente compreender nossos tempos em termos meramente políticos ou económicos. Para se compreender o que significa ser uma criatura humana é indispensável uma percepção cada vez mais consciente dos mais profundos desígnios da alma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 10:30 am

Tcheco-mate
W. H. Auden certa vez escreveu que Franz Kafka estava para a nossa época como Dante para a sua. Um grande elogio, sem dúvida. Nascido em Praga, em 1883, antes de falecer aos 41 anos, Kafka escreveu muitos contos e vários romances, num estilo aparentemente naturalista, que traía uma estrutura narrativa essencialmente parabólica. Por meio de imagens, ele objectivou magistralmente vários estados psíquicos, comuns a todos, como o poder do complexo do genitor negativo em “O julgamento”, a omnipotência da culpa em “A colónia penal” e O processo, a distância a que Deus se encontra em O castelo e “O caçador Graco”, e a radical alienação e despersonalização em “Metamorfose” e “Relatório para uma academia”.
Durante o dia, Kafka trabalhava para uma companhia de seguros e à noite elaborava suas histórias, contando trechos delas para alguns amigos mais chegados. Quando morreu, pediu que todos os seus textos fossem destruídos, mas seu testamenteiro, Max Brod, preferiu guardar os trabalhos e, com isso, levou Kafka para o resto do mundo. Suas histórias pareciam tão estranhas aos seus contemporâneos quanto às vezes ainda parecem hoje em dia. Mesmo depois do homem marginal, como encarar de frente um protagonista que é transformado numa barata no meio de sua família, ou um acampamento em que as pessoas são atadas a uma máquina que inscreve em sua carne viva as palavras “Honra os teus superiores?”
Sim, menos de vinte anos depois de sua morte, a família de Kafka foi despachada para Auschwitz pelo crime de terem nascido judeus. Eles e seus correligionários foram chamados Einzgesiefer (ralé) pela SS. Qualquer um que previsse tais coisas no início do século teria sido considerado louco. Mas Kafka, embora não tivesse sido um escritor político, delineou o carácter de seu tempo e os emaranhados processos do mundo subterrâneo.
Talvez de todas as histórias de Kafka, a que mais prescientemente descreve o dilema moderno tenha sido “O médico rural”, escrita na segunda década deste século. Um médico rural é chamado no meio de uma tempestade de neve para atender um paciente de uma aldeia. Quando chega, a população inteira está reunida em volta de um rapaz que pede ao médico que o salve. O médico examina o jovem e não encontra nenhum problema. Novamente o rapaz insiste para que o médico o salve. Desta vez ele percebe uma imensa ferida em formato de rosa emanando de um lado, nitidamente um ferimento simbólico. Quando o médico anuncia que não pode salvá-lo, os moradores saltam em cima do médico, despem-no, num ritual de desinvestidura de seu poder, e lançam-no à própria sorte numa estrada deserta, para que tente encontrar seu caminho de volta para casa. Enquanto caminha o médico reflecte:
É assim que são as pessoas deste meu distrito. Sempre esperando pelo impossível da parte do médico. Perderam suas antigas crenças; o pároco senta-se em casa e retira suas peças rituais de vestuário, uma depois da outra; mas do médico espera-se que seja omnipotente com suas misericordiosas mãos de cirurgião... Se eles me usam erradamente para fins sagrados, também deixei que isso acontecesse comigo.{77}
A mudança paradigmática que teve início logo depois de Dante se completa em Kafka. Tornou-se transparente a mudança da autoridade, do plano eclesiástico para o secular, mas a autoridade secular, os avatares do progresso e do Palácio de Cristal, também não podem salvar. Os vitorianos inflacionaram os poderes da ciência moderna e tornaram-na um cientismo, quer dizer, uma crença ingénua na eficácia científica, mas o cientismo cedeu lugar ao cepticismo e à desilusão do modernismo.
A estrada de Dante até Kafka é directa; cada qual expôs claramente uma visão de sua própria época. Para o primeiro, ainda se podia invocar uma hierarquia de valores implícitos nas instituições da mitra e do martelo; o segundo perambula por um universo de instituições falidas. Declara o Graco de Kafka:
Estou aqui, e mais do que isso eu não sei, mais adiante que aqui não posso ir. Meu navio não tem leme, e é dirigido pelo vento que sopra nas mais baixas regiões da morte.{78}
Poucos artistas apresentaram de modo mais cru e directo a condição moderna.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 7:59 pm

Depois da queda
O último autor que escolhi para representar o dilema do modernismo é Albert Camus. Esse autor francês, nascido na Algéria, agraciado com o Prémio Nobel, morreu em 1960, no auge de sua força, quando o carro em que estava derrapou e bateu contra uma árvore. Como Dostoyevsky e Kafka, antes dele, discerniu o narcisismo, o vazio e o isolamento do moderno. Em suas histórias e nos romances A praga e O estrangeiro Camus fala do vazio e do choque, do estresse pós-traumático, do rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e da Guerra Fria. Mas é em A queda que descreve com maior concisão à deriva existencial dos homens modernos.
A queda é ambientado num bar em Amsterdão, cidade cujos canais circulares lembram o protagonista dos círculos do Inferno de Dante, mas esse é um “inferno de classe média, claro, repleto de pessoas com pesadelos.”{79}
O texto inteiro é um monólogo de um dono de bar que conta uma história que existe em dois níveis. Por um lado, sua perda da inocência é vivenciada como uma recente devoção à Ideia, ao método, à eficiência, que o Marlow de Conrad viu, mas agora tornou-se perfeita por obra de nossos irmãos hitleristas... Que saneamento! 75.000 mil judeus deportados ou assassinados; que passada eficiente de aspirador de pó! Admiro essa diligência, essa paciência metódica! Quando não temos mais nenhum carácter, aplicamos um método.{80}
Por outro lado, a perda da vinculação com os deuses, com os grandes ritmos, leva Camus a concluir: “Uma única sentença será suficiente para o homem moderno: ele fornicou e leu o jornal.”{81} Camus vê o moderno como um ser emocionalmente embotado e narcisista: “Você já reparou que só a morte desperta nossos sentimentos?”{82} e "Ele não consegue amar sem sentir amor por si mesmo.{83}" Essa enfermidade penetrou na alma e devorou-a, e por isso “não temos nem a energia do mal, nem a energia do bem."{84}
O conforto da salvação proporcionada pelas culturas do passado é só uma nostálgica lembrança para as personagens de Camus, ainda que flocos de neve a cair sejam transformados em pombas celestiais:
Que invasão! Vamos esperar que nos tragam boas novas. Todos seremos salvos, certo? E não só os eleitos... E toda essa disputa de tiros, hein?
Ora, vamos, admita que você ficaria inteiramente surpreso se uma carruagem descesse do céu para me levar embora embarcado nela, ou se a neve de repente pegasse fogo. Você não acredita nisso? Eu também não.{85}
Esses indivíduos vagueiam pela terra desolada e devastada de sua existência, sem a menor conexão com o plano mítico. Não são mais atores, do drama simbólico, usando a metáfora de Jung.
Acima de tudo, o protagonista é acossado pela recordação de uma noite em que atravessou uma ponte e viu uma moça prestes a se lançar nas águas geladas. Ele pensou em parar, mas tinha que ir a determinados lugares, encontrar algumas pessoas. Agora, se pelo menos pudesse atravessar de novo aquela ponte e ver a jovem vida em perigo, então poderia dizer:
“Oh, jovem, lance-se outra vez na água para que eu possa ter uma segunda vez a chance de salvar nós dois.” Uma segunda vez, né? Mas que sugestão arriscada!... E supondo que... devêssemos ser entendidos literalmente? Teríamos de levar a coisa do começo ao fim! Brr...! A água está muito fria! Não nos preocupemos porém! Agora é tarde demais. Sempre será tarde demais. Felizmente!{86}
O “felizmente” de Camus não é bem a felix culpa da teologia medieval.
Ele sabe, mas seu conhecimento não pode salvá-lo. As instituições não podem mais salvá-lo; o médico rural não pode salvá-lo; sua própria consciência não pode salvá-lo. Sua danação eterna é ser feito prisioneiro daquela mesma dimensão consciente, que nas palavras de Gerard Manley Hopkins seria sermos nossos próprios “eus suarentos”.{87} “As personagens de Camus perderam o céu lá adiante e agora estão mergulhadas no inferno bem aqui”.
Esses cinco autores — Goethe, Dostoyevsky, Conrad, Kafka e Camus — retratam uma visão essencialmente psicológica da vida. Não usam, e em geral desconheciam, os termos e estudos de caso da psicologia contemporânea, mas certamente discerniram o movimento da alma que caracteriza a experiência moderna.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 7:59 pm

Esta foi uma discussão breve, e outros exemplos meritórios poderiam ter sido dados, mas os trabalhos escolhidos são essenciais a qualquer tentativa de se compreender o mito moderno implícito numa era carente de mitos explícitos. Descrevem o cenário psíquico que tentamos compreender lendo os jornais, estudando história e como malabaristas, tentando dar conta de uma miríade de dados de toda espécie. Mas o ponto do qual todos esses factos nascem é um lugar no fundo de cada um de nós.
Para podermos entender a nós e ao nosso tempo, somos obrigados a adoptar essa visão essencialmente psicológica da realidade. Isso não quer dizer a adoçam de alguma teoria específica ou de algum tratamento especial do comportamento, mas sim a necessidade de internalizarmos a nossa responsabilidade, de ver a silenciosa origem interna das escolhas, antes de podermos nos movimentar no mundo externo com algum nível de entendimento, eficácia e talvez compaixão por nós pelos demais. O facto de o mito ter-se tornado essencialmente psicológico não implica que todas as coisas sejam psicológicas; antes, sugere que nosso conhecimento de todas as coisas tem origem na psique.
A perspectiva psicológica do mito não o degrada; tampouco promove a psicologia em si. Os mitos sempre foram os portadores dos valores psicológicos. Com o declínio da percepção mítica, esses valores refluíram para o fundo do inconsciente individual e tribal, ou passaram a ser — via projecção — atributos de eventos e instituições externas. Devem ser conscientemente abordados, senão os valores inconscientes assumem o comando. Não podemos nos permitir ser governados pela inconsciência, de modo que somos obrigados a adoptar uma visão psicológica da realidade a fim de discernir a topografia de nossos tempos. As forças antes contidas pelos mitos acabaram por se tornar as patologias sociais do modernismo.
Considerar psicologicamente o mito não é psicologizar, vale dizer, tê-lo como apenas psicológico. Pelo contrário: é reconhecer que uma visão psicológica é tudo que nos resta. Essa postura está baseada no reconhecimento de que os mesmos grandes padrões que antigamente animavam as vidas de nossos antepassados continuam em curso, de alguma forma, em nossas vidas. Se antes essas energias eram mediadas por imagens vitais, por narrativas uniformes que chamamos mitos, hoje somos obrigados a apropriarmo-nos delas, como emanações de nós mesmos. Não somos, enquanto civilização, simples o bastante para aceitar o literalismo do mito, ou para sofrer a coisificação dessas energias. Da mesma forma como não podemos reavivar mitologemas que já mobilizaram gerações anteriores, não podemos tampouco nos dar ao luxo de convidar desastres potenciais se projectarmos inconscientemente essas energias. Por meio da projecção da sombra num Fürher, todo um mundo pode vir a arder em chamas.
Uma vez que não podemos recuar a uma simplicidade anterior, nem reviver imagens depois que a energia que as avivava se foi, e posto que nos é impossível uma postura inconsciente diante do viver, somos obrigados a tentar uma leitura psicológica de nosso mundo. Isso pode soar inadequado; certamente tem uma carga afectiva menor que ser arrastado no turbilhão avassalador de um arquétipo, mas a nossa responsabilidade é nos tornar conscientes do que é efectivamente verdade, quer dizer, do que realmente está em jogo dentro da pessoa e no seio da história.
Há um século, Freud e Jung descobriram que tinham de elaborar uma nova linguagem, um novo meio de se relacionar com os sofrimentos dos seus pacientes. Deram-se conta de que estavam tratando de seres que tinham despencado pelas fendas abertas na religião institucionalizada pela erosão e pelas limitações da ciência médica. A tarefa que confrontava os dois era discernir as feridas da alma que se haviam encarnado nos veículos do corpo, do comportamento e dos afectos. Para rastrear os meandros dessas energias tiveram de discernir o movimento das correntezas internas profundas.
Na era moderna, vemo-nos da mesma forma obrigados a ler psicologicamente o nosso existir, quer dizer, discernir o movimento da alma, cujos traços invisíveis vinham antigamente revestidos por mitos. É um trabalho que requer uma grande integridade e confere dignidade e liberdade para quem se torna mais consciente. E, o que também não é pouco, essa pessoa torna-se menos perigosa para si e para a sociedade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:00 pm

2 - O ETERNO RETORNO E A BUSCA HERÓICA
A grande modificação de paradigma que constitui o cerne do modernismo é a perda da ligação mítica com o cosmo. A encarnação do significado, antes contida no mito e nas instituições mantenedoras dos mitos, interiorizaram-se, recuaram, como disse Jung, do Olimpo para o plexo solar, do culto para a psicopatologia.
Junto com essa modificação paradigmática transpiram muitas outras recolocações do significado. Uma das mais assombrosas é a reavaliação do papel do indivíduo. (Um dos mitos modernos, a versão junguiana da individuação, será tratado depois.) Hoje em dia presume-se, por exemplo, que as pessoas são responsáveis pela criação do próprio significado de suas vidas.
Qualquer que se esquive a essa terrível liberdade será julgado dependente e psicologicamente imaturo. Uma importante submodificação do paradigma é o afrouxamento dos papéis baseados no género e sua redefinição. Na qualidade de um diálogo em evolução, está libertando homens e mulheres das definições históricas que circunscreviam suas energias e feriam suas almas.
Neste capítulo, iremos examinar dois importantes padrões míticos: o grande redondo, ou eterno retorno — o ciclo de sacrifício, vida - morte renascimento — e a busca ou jornada do herói, o movimento de transição da inocência para a experiência, da ingenuidade para a sabedoria, da identificação para a individuação. Na realidade, poder-se-ia inclusive argumentar que toda a mitologia é uma amplificação desses dois grandes temas, conquanto formatados em incontáveis variações.
Historicamente, o mito do eterno retorno estava associado com a Grande Deusa Mãe, e a busca com o Pai Céu, o herói solar. Os dois géneros participam do ciclo de vida-morte-renascimento e ambos estão obrigados a empreender a jornada rumo à totalidade de si mesmo. Se as imagens das próximas páginas parecem particulares a um só género, não será por obra da intenção do autor, mas em razão de pertencerem ao acervo histórico que naturalmente se constituiu a partir das experiências com a mãe pessoal enquanto fonte de vida, e com o pai pessoal no papel de portador da cultura artificialmente inventada. Essas identificações pessoais, projectadas no cosmo, levaram aos dois grandes ciclos míticos. Tanto os homens como as mulheres contêm em si esses processos cruciais e ambos devem tornar-se mais conscientes das tarefas neles implícitas.
A erosão dos grandes mitos da Mãe Terra e do Pai Céu deixou-nos a tarefa de buscar em particular imagens que possam guiar e sustentar a alma, e ainda vinculá-la ao drama cósmico. Sem esses elos de ligação, estamos fadados a uma existência na superficialidade. Para viver a profundidade da própria existência, como parte de um contexto maior, contamos com a contribuição central dos mitos que, como Jung assinala, “explicava aos humanos aturdidos o que estava se passando em seu inconsciente.”{88}
A observação de Jung é profunda: revelar por que ele e Freud e outros fundadores da psicologia profunda recorreram ao mito e aos processos míticos, por exemplo, ao trabalhar com sonhos. Essas imagens ajudam a tornar visível o mundo invisível. O mito é uma estrutura dinâmica — assim parece — que anima imagens que simbolicamente reproduzem energias e processos no interior das pessoas. Como Jung explica: Os arquétipos são os elementos estruturais, numinosos, da psique e possuem certa autonomia e uma energia específica, que lhes permite atrair, da mente consciente, aqueles conteúdos que melhor se ajustam a si. Os símbolos agem como transformadores; sua função é converter a libido, de uma forma “inferior” numa forma “superior”.{89}
Dessa forma, o mito permite à pessoa sentir a presença de um “locus{90}” espiritual, e apresenta imagens que dão sustento e direcção às energias de transformação, assim outorgando coerência ao caos aleatório da vida. Uma vez que esses dois grandes temas míticos estão se tornando cada vez mais remotos em relação à experiência vivida, somos obrigados a conscientizar-nos das questões que dramatizam em nossas vidas.
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 2 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:09 pm

Eterno retorno: sacrifício, morte e renascimento
O mito do eterno retorno é uma associação lunar: mudanças de formato, fases minguantes e crescentes que lembram Proteu{91}, desaparecimentos e reaparições. Configura a natureza cíclica da Natureza, o ritmo e o retorno da experiência humana.
Aproximadamente há 30 anos, pedi a uma classe que fizesse um poema para perceberem de modo directo que a poesia era muito mais do que belos pensamentos, uma cadência rítmica, e que era necessário grande esforço para produzir o que Picasso havia descrito como a arte que encobre a arte.
Estávamos no outono, o solo estava recoberto da vegetação que morria naquele outubro, indícios de um novembro áspero boiavam no ar. Numa classe de mais ou menos 30 alunos, não menos que 20 escolheram comparar a mudança das estações aos ciclos da vida humana. Aliás, comparar o ciclo da vida humana aos movimentos da natureza é não só óbvio, porque afinal somos parte dela, como também um cliché, precisamente porque é uma analogia que se repete à exaustão.
Praticamente todos os poetas recorreram a essa analogia, desde Dylan Thomas em “Fern Hill”, onde ele reconhece que não está mais na primavera de sua vida, até Gerard Manley Hopkins em “Spring and Fall: To a Young Child”, no qual o poeta observa a melancólica resposta de uma criança às folhas que se vão e conclui: “It is the blight man was born for, It is Margaret you mourn for”{92} (O homem nasceu para definhar, é por Margaret quevocê se lamenta).
O eterno retorno faz parte do ciclo de sacrifícios (Sacre + facere = tornar sagrado), trazendo a vida nova por meio da morte, arando a vida em seu alicerce, para que ela mesma possa brotar com força de novo. Esse grande ciclo é diariamente observado, quando nos sentamos para uma refeição, depois de aniquilar uma planta ou animal cujo consumo promove a nossa própria existência. Nós também seremos, eventualmente, devolvidos à terra, em algum momento do eterno redondo. Tão assombrosa é a nossa participação no grande ciclo, que nossos antepassados ofereciam preces de súplica e depois agradecimentos antes e após a caçada, e, mais recentemente, graças à mesa de refeições. A matança necessária para a manutenção da vida é, dessa forma, sacralizada porque não é aleatória e nem gratuita, mas faz parte de um padrão maior. O reconhecimento de que esse mesmo padrão irá nos consumir também deveria fazer parte indispensável de cada momento em que nos alimentamos.
O mito do eterno retorno está associado com a cultura da Deusa do Grande Círculo. Ela, por sua vez, está associada com a procriação e o provimento das necessidades, com a transformação através das muitas passagens na vida, mas também era conhecida como a tecelã do destino.
Traços do culto à deusa datam de pelo menos de 25.000 anos atrás e claramente antecipam-se ao culto dedicado às deidades masculinas o mito gema central da deusa natureza cíclica da Natureza, as estações, as marés, a sístole e diástole da corrente sanguínea. No mundo antigo as deusas floresciam como manifestações do arquétipo da Grande Mãe, como numina locais da terra e da água.
Acima de tudo, o mitologema corporifica o mistério da força vital.
Como sugeriu Jung a respeito da Grande Mãe, ela é “a raiz misteriosa de todo crescimento e toda mudança; o amor que significa volta ao lar, abrigo, e o longo silêncio em que tudo tem seu início e no qual tudo encontra seu fim.”{93} Implícito nessa última frase, porém, está o fato de que a Grande Mãe também devora sua progénie. Ela é berço e túmulo, lascívia e câncer, todos os aspectos de uma só coisa direccionada para uma única meta.
Cada vez mais o culto à Grande Mãe foi sendo substituído nas almas dos povos nómadas pelas imagens da busca, deixando progressivamente de lado o círculo com centro, e favorecendo os deuses celestes mais móveis, as divindades solares. Desse modo, por volta do terceiro milénio, as imagens da Grande Mãe, provedoras de organização, estavam já em larga medida suplantadas pelo Pai Céu, e o patriarcado ocupou o lugar do matriarcado.
Pode-se sentir um eco dessa em geral violenta troca de paradigmas no mito judaico-cristão da expulsão do Paraíso sofrida pelo casal primordial em razão de terem encontrado a fatídica serpente. Esta, em virtude de seu contacto primal com a Grande Mãe telúrica e de sua capacidade de se renovar anualmente trocando de pele, recebeu a projecção do eterno retorno, e por sua familiaridade com a velha dimensão consciente foi execrada como a vilã da Queda e perda do Éden.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:09 pm

Na verdade, a Expulsão é uma queda em relação ao estado de graça, pois o que se perde não é a inocência, mas a vinculação. É extirpado o senso de uma localização psíquica no seio da Grande Mãe. É o amargo vir à luz da consciência, cônscia da separação e pressentimento de sua mortalidade. O movimento, da consciência do matriarcado para a do patriarcado é igualmente traumática e necessária como a separação da criança em relação à sua mãe. E o pré-requisito indispensável à consciência e ao desenvolvimento. Eis o momento em que a pessoa é jogada no mundo, para sempre sem lar a partir de então.
A experiência da deusa é tríplice — virgem, mãe e anciã. Cada uma delas representa um estágio da consciência e do desenvolvimento natural.
Ecos da deusa tríplice Car, por exemplo, bóiam logo abaixo da camada da superfície. Ouvimos suas pegadas de Cartago a Cartum e nos Cárpatos, e intuímos suas encarnações em termos como carnal, carmesin, cardinal, cardíaco, carma. Vivenciamos suas permutas antepassadas em Innin, Inanna, Nana, Nut, Anat, Anahita, Istar, Isis, Ishara, Asherah, Ashrart, Astarte, Attoret, Attar e Hathor. Observamos o desmembramento matinal de Ceres, a deusa dos grãos, em nosso prato diário matutino de cereais. Somos mobilizados pelo estrógeno de Istar em ciclos mensais, e a Páscoa é celebrada através das Marias reunidas ao pé da cruz, lembrando o filho para a Mãe.
O significado central da vivência da Grande Mãe é o ciclo do sacrifício.
A verdade que a deusa corporifica é que o ciclo de vida-morte é alimentado por sacrifícios, que todas as formas de vida se alimentam de outras vidas e então servem de alimento para outras. Podemos aceitar essa dinâmica intelectualmente, mas as implicações emocionais são muito mais próximas de nossas próprias portas. (Há apenas algumas horas minha gata trouxe um camundongo vivo, mas mutilado, para dentro de casa como seu troféu. Meu cão, Shadrach, late diante dessas invasões e eu espanto todos para fora, pois não quero que me lembrem de como a natureza se provê de alimentos.) Como a deusa abarca toda a vida, ela deve sacrificar todos os filhos para que a vida possa renovar-se. O sacrifício da criança divina é um motivo recorrente nos mitos ocidentais: Afrodite sacrifica Átis; Cibele sacrifica Adónis; Isis sacrifica Hórus, e Maria se coloca ao pé da árvore da vida e da morte no Gólgota, o lugar do crânio. Da mesma forma como Cristo pendeu dessa árvore, também Wotan antes dele pendeu de Yggdrasil, eixo rodopiante do mundo, e antes deste ainda Átis e Mársias, na antiguidade. M. Esther Harding relembra-nos que:
Nesses mitos, a mãe não é una mas dual. Tem dois aspectos: em seu aspecto de luz é compassiva, repleta de amor maternal e piedade; em seu lado escuro é feroz, terrível, e não tolera a dependência infantil.{94}
A deusa Kali dos hindus, cujo nome significa "tempo negro" e cujo pescoço é adornado por crânios, encarna essa dualidade também. Assim, quando a deusa sacrifica sua prole, ela está dizendo hoc est corpus meum:
“Eis o meu corpo, comei! Eis o meu sangue, bebei!”
Talvez não haja imagem mais horrível para a imaginação que o sacrifício dos próprios filhos. Podemos admitir que às vezes as culturas antigas sacrificavam suas crianças como forma de “magia por simpatia”, numa tentativa de acordo tácito com os deuses: “Oferecemos o que temos de mais importante, de melhor, em troca de seu sacrifício de abundância e alimentos”. Observamos aquele momento na evolução da consciência humana quando Abraão, dilacerado na alma e no coração, ofereceu o filho Isaac em sacrifício a Iahweh. Este deteve a mão daquele homem, mas permanece o fato de que, para recebermos alguma coisa, devemos sacrificar algo. E, neste século de materialismo e sanha de aquisições, somos acossados pelo imperativo de Jesus: “Quem procurar ganhar sua vida vai perdê-la, e quem a perder vai conservá-la.”{95}
Portanto, o drama do ciclo de sacrifícios, o quiproquó{96} dos deuses, reverbera ao longo de toda a história. Do épico Edda{97} dos antepassados nórdicos chega até nós o lamento de Wotan: Suponho que estou pendurado na árvore varrida pelo vento, pendurado lá durante completas nove noites.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:09 pm

Com a lança fui ferido, e oferecido a Wotan eu a mim mesmo, Naquela árvore que talvez ninguém jamais saiba qual é a raiz que profunda por baixo dela corre.{98}
Não podemos deixar de ver os paralelos com a sagrada Totentanz (dança da morte) no Gólgota. A “árvore varrida pelo vento” é a cruz do carpinteiro nazareno. As “nove noites” é a árvore triplicada, num número que simboliza a transformação e reproduz os três dias do sacrifício da Páscoa. A lança desfechada contra a lateral do corpo é a ferida que o colectivo impõe, e que os filhos das duas mães devem sofrer. No retorno do Wotan a si mesmo ouvimos os ecos da primeira sentença do evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.”{99} Quando, no Pesach, os judeus dizem: “Ano que vem em Jerusalém”, essa pessoa está afirmando o eixo mítico cujo centro está em nossos corações e almas. O profeta hebreu Jesus sugeriu que o reino de Deus é interior; seu discípulo Paulo disse: “Não Cristo, mas Cristo em mim.”{100} O xamã Sioux Alce Negro observou que o Pico Harney, sua montanha central, está na Dakota do Sul e em toda parte.{101}
A demanda inelutável dos deuses chama-nos de volta ao sacrifício, do algo por alguma coisa. Wotan (Odin) é uma figura de salvador que sofre em sentido vicário. Na árvore sagrada ele sacrifica um olho e, em troca, recebe de presente as runas, o alfabeto da Europa nórdica. No mito grego, Prometeu, cujo nome sugere o conhecimento do futuro, rouba o fogo, a centelha criativa, tornando possível a cultura e a indústria do homo faber. Em troca, ele é condenado a permanecer acorrentado a um penedo do Cáucaso, e é atacado no flanco pelas bicadas de um abutre. Tal como Jesus e Wotan, é ferido. Wotan sacrifica um olho, como Édipo fez com os seus; para que possamos transcender as trevas, poder enxergar longe e fundo. Para conseguir algo é preciso sacrificar alguma coisa vital.
Em 1777 o capitão Cook relatou que, numa ilha paradisíaca do Taiti, viu um olho ser arrancado de um celebrante vivo e apresentado ao chefe da tribo, para que o comesse. “Eis meu corpo, comei!”{102} No texto egípcio do Livro dos mortos lemos: “Toma para ti o olho de Hórus que provaste.{103}” De modo que parece que os deuses ordenaram que os escolhidos sacrifiquem simbolicamente alguma coisa vital para que o restante de nós possa ter alimento e se transforme. Perceber como o olho de Wotan, o olho de Hórus, apoia-se no topo da pirâmide da nota americana de dólar é perceber como rebaixamos a visão dos deuses pelo valor da troca.
O arquétipo do eterno retorno move-se repetidamente, não só ao longo dos compridos corredores da história, mas nos sonhos modernos. No tempo em que actuei como analista junguiano ouvi determinados sonhos que permanecem inesquecíveis. Uma mulher de 51 anos, embora profundamente religiosa, no íntimo não participava de nenhum credo institucionalizado. Na semana da Paixão e da Páscoa, ela sonhou que tinha ido a um teólogo para lhe perguntar qual era o significado da Páscoa. Ele a definiu o conceito e o dogma, e então a sonhadora respondeu: “Eu só poderia compreender o significado da Páscoa se me fosse possível me relacionar com o bebê Jesus, de meu próprio útero, que está na cruz.”
Este é um sonho deveras notável. A mulher estava sentindo uma necessidade que aparece, de maneira típica, na segunda metade da vida: a necessidade de se redefinir, de se relocalizar no contexto de uma jornada maior. Se o propósito da primeira metade da vida é organizar suficiente força de ego para sair de casa e mergulhar no mundo, o da segunda é alinhar o ego com as energias cósmicas maiores. Então o ego dialoga não com a sociedade, mas com o Si-mesmo e com os deuses.
No sonho essa mulher ouve o raciocínio do teólogo, mas isso não tem ligação com sua alma. É um dogma, não a experiência vivida. Então, espontaneamente, ela diz que o entendimento só vem pela experiência pessoal. Ela mesma precisa ter a criança, o que significa que esta deve nascer de dentro de si. No entanto, quando nasce já está na cruz, um estranho anacronismo. Pensa-se que essa criança nasceria para ser sacrificada. “No meu começo está meu fim”, como disse T. S. Eliot.{104}
O arquétipo do deus moribundo é uma contradição, um oximoro{105}.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:10 pm

Como é que um deus pode morrer? O deus morre quando o princípio que dramatiza foi esquecido ou superado. Um deus morre quando o princípio dinâmico que incorpora perdeu sua energia. Um deus morre quando essa energia desaparece do seu continente conceitual ou imagético, e então assume nova forma ou escoa para o plano subterrâneo.
Intuitivamente, a sonhadora havia apreendido o sentido da Páscoa, ou seja, o deus veio para morrer, para ser arrancado e de novo semeado para que nova vida possa emergir, a fim de que possa ser comido “para que tenham vida e a tenham em abundância.”{106} A criança, representando toda a humanidade, nasceu para um destino elevado.
Na mesma semana em que ouvi o relato do sonho daquela mulher li no International Herald Tribune que alguns matutos americanos haviam sido presos por terem destruído um coelho da Páscoa num shopping center, dizendo que "nenhum símbolo pagão" teria permissão para contaminar seu feriado religioso. Devemos porém lembrar que a Páscoa está ligada com Istar e estrógeno e que, na fecundidade do coelho, como no falo do mastro enfeitado nos festejos de 1- de maio, resgatamos o significado arquetípico deste feriado da vida, do nascimento, do sacrifício, da morte e da transfiguração. Esses fanáticos religiosos aparentemente não estavam cientes de que seu salvador tinha chegado um pouco atrasado para o cortejo sagrado dos filhos dizimados vicariamente para reciclar a criança pelo bem da Grande Mãe.
Em lugar de contemplar a Páscoa, os símbolos pagãos acentuam seu significado arquetípico, do qual a cristandade é uma dentre várias expressões.
A sonhadora intuiu o significado mais profundo do feriado — o arquétipo da criança divina, nascida para sofrer e morrer, depois de ser ressuscitada, para viver de novo nas alma dos crentes. Na imagem simbólica espontânea de seu sonho, talvez ela tenha experimentado uma vivência mais do que religiosa, vale dizer, um profundo encontro com os mistérios, de muito maior alcance que o alegado pelas hordas que se dirigem às casas de cultos ou queimam coelhos feitos de papier-mâché.
De onde procedem esses mistérios, essas imagens? São tão misteriosas quanto nossos sonhos. Mas são reais, como os sonhos são reais. Será que vêm todos dos deuses, da psique? Seremos todos criadores inconscientes dessas imagens, ou apenas meros recebedores de enigmas herméticos? Não sei ao certo, mas suspeito que somos veículos de verdades que podem ser difíceis de entender, mas que somos obrigados a assimilar harmoniosamente, para que possamos viver de maneira significativa. Os mitos nos dizem o que realmente está acontecendo tanto dentro de nós como no cosmo. Nas palavras de um manuscrito alquímico do século XVII, “Tal como acima, abaixo.”{107}
O arquétipo do eterno retorno, o grande círculo, dramatiza uma revelação do mais elevado mistério, a saber, que sob o disfarce da morte encontramos uma secreta unidade de vida. Essa noção foi instilada em muitas representações simbólicas. O rito do bode expiatório e o sacrifício vicário do protagonista trágico são ilustrativos dessa dinâmica. O herói trágico contém a patologia acumulada da família e da cidade-Estado, e seu próprio sparagmos, a oferenda e degustação do carneiro sacrifical no rito antigo, que serve para alimentar a alma e libertá-la da morte. Mais tarde, no cristianismo, o Cristo (que significa o escolhido, o ungido), serve como cordeiro de Deus, Agnus Dei, que se incumbe do fardo colectivo da culpa e do pecado, redimindo-os pelo sacrifício (Agnus Dei qui tollis peccata mundi.)
O desenrolar desse drama confere profundidade à vida, que é o propósito do ritual. O teólogo Paul Tillich certa vez observou que o maior pecado do modernismo não era o mal, embora o mal fosse abundante o suficiente, e sim a estéril trivialidade que nos preocupa.{108} Lembremos com que clareza Jung falou sobre esse dilema, assinalando que as pessoas só estão vinculadas ao significado da vida quando “sentem que estão vivendo a vida simbólica, que são atores do drama divino.”{109}
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:10 pm

No árido panorama do modernismo, cujos únicos monumentos, como observou T. S. Eliot, são “autopistas asfaltadas e milhares de bolas de golfe extraviadas”{110} a recuperação daquele princípio da profundidade ajuda na cura da ferida do mundo e redirecciona a alma.
Há vários anos, enquanto visitava meu filho em São Petersburgo, na Flórida, fui ver o Museu Salvador Dali. Suas pinturas surrealistas já haviam sido chocantes um dia, mas há muito faziam parte da corrente oficial da cultura moderna. Na parede do museu está sua observação: “A diferença entre eu e um louco é que eu não sou louco.”
Criado na cultura da Espanha, Dali estava imbuído do dogma de sua tribo, ou seja, o catolicismo romano, mas sua visão muitas vezes engloba omythos mediterrâneo mais amplo. Enquanto caminhava pelo museu, ocorreu-me um pensamento como o que Jung poderia ter tido na primeira vez que percorria as alas dos esquizofrénicos na clínica do Burghõzli, em Zurique: “Já estive aqui antes; já vi isso antes.” O que eu via, em diversas pinturas, era a intuição de Dali de que, por baixo do carácter patriarcal da Igreja espanhola escorre o drama mais profundo da Grande Mãe.
Num quadro da Santa Ceia, Dali retrata dois níveis do sparagmos ritual, o desmembramento do corpo e sua transformação nas almas de seus discípulos.
Os dois planos são evidentes: o Jesus terrestre e a criança divina, nascida para ser dilacerada e transfigurada. Numa cena da crucificação. Dali pinta o drama antepassado de Maria aos pés do Cristo, tanto como Grande Mãe quanto no papel de aldeã terrena. A abordagem de Dali dramatiza o movimento mítico mais profundo, o grande círculo. Numa pintura da descoberta do novo mundo por Colombo, emerge o mesmo tema: a criança desce do Céu Pai, atravessa a Terra Mãe, entra no mundo da acção e é transfigurada pelo sofrimento, retornando através do grande círculo.
Numa pintura intitulada The Hallucinogeníc Toreador, vemos a Mãe (que nas obras de Dali costuma ser representada por sua esposa Gala) no canto superior esquerdo, supervisionando o ritual do sparagmos mais uma vez. Para nós que não fomos criados na Espanha, as touradas podem parecer de uma violência gratuita, mas, como Hemingway demonstrou em Death in the Afternoon, a tourada é uma forma de arte baseada na história mítica, o sacrifício ritual do touro, símbolo recorrente da cultura mediterrânea da Grande Mãe. Nesse sentido, o assassínio do touro é análogo à Eucaristia e ao Agnus Dei. O touro oferece seu corpo e sangue em sacrifício, como o toureador que realiza uma Totentanz estilizada. Cada um deles é um filho da Grande Mãe, cada qual faz parte do inexorável trânsito do grande círculo, no ofertar recorrente e no eterno retorno.
O que Dali faz nessas e em outras inúmeras pinturas é mergulhar nas profundezas das imagens acumuladas e resgatar suas conotações arquetípicas.
É essencial entender o que seja tal dimensão arquetípica. Dizendo simplesmente, o propósito do ciclo de sangue e sacrifício, morte e renascimento, é permitir-nos participar do sofrimento do eleito e, por meio desse sofrimento, sermos elevados para mais além do plano dos horrores da vida, atingindo o plano mitologicamente apropriado do mistério e do significado.
Não existe significado na vida a menos que a pessoa esteja em contacto com suas raízes arquetípicas. Nas pinturas de Dali, eventos aparentemente mundanos e seculares, como uma viagem colonial e uma tourada, revelam seus mais profundos estratos. São mediados o horror da morte, a dissolução, a aleatoriedade do existir. A alma individual alienada é reinserida num contexto maior. A morte é um assassínio e a pessoa é convocada a participar do drama sagrado, o sempre inconstante mas eterno retorno.
Em sua autobiografia, Jung escreve:
Tenho visto as pessoas tornarem-se frequentemente neuróticas quando se contentam com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vida.
Elas buscam posição, casamento, reputação, sucesso externo ou dinheiro, e continuam infelizes e neuróticas mesmo depois de terem alcançado aquilo que tinham buscado. Essas pessoas encontram-se em geral confinadas a horizontes espirituais muito limitados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:10 pm

Sua vida não tem conteúdo ou significado suficientes. Se têm condições para ampliar e desenvolver personalidades mais abrangentes sua neurose costuma desaparecer.{111}
É indispensável que analisemos esse comentário de Jung. Na tradição xamanista de cura, o que chamamos de neurose era entendido como a alienação resultante de a pessoa ter perdido a ligação com suas raízes míticas.
(Os psicólogos no século passado eram chamados “alienistas”.) Portanto, o xamã frequentemente entoava os cantos da história da criação e dos mitos de fundação da tribo, para assim religar a alma perdida com suas raízes, com seus ritmos arquetípicos. Se vivemos nos atendo aos limites por demais estreitos de um mito, quer dizer, um conjunto de imagens proporcionadas pela cultura ou família de origem, que cingem a saúde da alma, sofremos daquela auto-alienação que denominamos neurose.
A raiz indo-germânica etimológica angh, da qual temos os vocábulos ansiedade, angústia, angina, significa “constrição”; a constrição do organismo por um mito tacanho deforma e derrota a alma. Devemos considerar nosso próprio lugar no grande círculo. Jung afirma que a neurose é “o sofrimento de uma alma que não descobriu seu significado.”{112} Nesse sentido, somos obrigados a encontrar significado, caso contrário a vida será estéril e absurda. Para confirmar nossa participação na profundidade e amplitude do trânsito mortal, devemos corroborar não só o apelo estético dos estridentes gansos que vão guinchando a caminho do sul no outono, mas também nossa participação nesse grande círculo. Eterno não é o ganso, é o ciclo. Eterna não é a testemunha individual, é o ciclo. A apreensão que sentimos quanto à nossa participação no grande círculo retira-nos do horror aleatório da natureza carnívora, e eleva-nos ao plano mítico da significação.
A percepção conscientizada de que existe uma dimensão profunda em tudo que experimentamos amplia nossa visão e nos recoloca numa zona de atemporalidade. A participação no grande círculo conserva tanto o mistério que este representa como a dignidade dos que morrem. Essa percepção conscientizada de um ritmo tão intrincado era mais imediatamente disponível aos nossos antepassados e hoje ajudaria a compensar a esterilidade das ideologias modernistas. Essas representações míticas activam a energia psíquica e redireccionam a alma no rumo da cura. Não podemos nos curar por meio de um ato de vontade, do intelecto ou de um comportamento irrepreensível, mas podemos sentir a cura quando estamos em harmonia com algum grande ritmo. Então estamos vivendo a vida simbólica e encontramos a consonância com o universo, não o vácuo.
O príncipe indiano exilado Gautama empreendeu sua viagem e, no final, à sombra de outra árvore sagrada, começou a ver. Quando isso se deu, tornou-se Buda (em sânscrito, Buddh é ver.) O que ele viu foi que a vida é sofrimento e que a causa do sofrimento é o desejo que o ego tem de controlar a vida, e principalmente a própria mortalidade. O segredo de viver bem, de acordo com os grandes sistemas míticos, é viver de acordo com a vontade dos deuses, em harmonia com o Tao. Dessa forma, nos alinhamos com uma sabedoria maior do que a nossa inteligência, e com ritmos maiores que nossas movimentações passageiras.
Nós, modernos, impusemo-nos ver o propósito da vida como um adquirir, sofrendo mais profundamente a inevitabilidade da perda. Se vivermos o bastante, todos os que nos são importantes irão nos deixar. Se não vivermos bastante, iremos deixá-los. Transformar a perda em “deixar que se vá”, identificarmo-nos com “o grande ir e vir”, substituir as aquisições pela capacidade de abrir mão, é participar da secreta sabedoria da Grande Mãe.
Dela é a mais antiga de todas as verdades, um mistério de que nos inteiramos no sagrado OM da mãe, do mito e do mistério. Em sua autobiografia Jung oferece a decisiva questão de se perguntar do paciente e de si mesmo:
está em relação com algo infinito ou não? Eis a questão crucial de sua vida... Se entendemos e sentimos que, aqui nesta vida, já temos uma ligação com o infinito, os desejos e as atitudes mudam. Numa análise final, temos algum mérito só por causa do elemento essencial que incorporamos e, se não o incorporamos, a vida foi um desperdício.{113}
A capacidade de permanecer num relacionamento com algo mais profundo do que a nossa consciência, com algo mais duradouro do que nosso período de vida, é sentir o mérito e o peso da alma. Foi assim que Jung definiu a vida como “um breve episódio entre dois grandes mistérios que, não obstante, são um só.”{114}
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 2 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Out 23, 2023 8:11 pm

Tornar esse episódio tão luminoso quanto possível é redescobrir nos movimentos da alma, nas provações de nosso corpo, nas presenças espectrais em nossos sonhos, rastros dos deuses. Nós os levamos em nós e eles nos levam. O ciclo do sacrifício, que aterroriza o ego, sustenta e cura a alma.

A jornada do herói
Estas sentenças estão sendo escritas apenas algumas horas depois das acusações, da fuga e da prisão de O. J. Simpson, transmitidas pela TV. Não é em absoluto uma questão menor para o trabalho da alma que toda uma nação tenha ficado tão atenta, tão cativada pelos apuros de uma só pessoa. Essa energia sempre vem da alma, quer dizer, de alguma camada mais profunda que aquela de que a pessoa tem consciência. Por que essa energia? Por que tais projecções? O. J. é um herói de algum tipo?
A ideia do herói, como a do mito, acabou se tornando muito fragmentada, e precisa de uma renovação consciente. Da mesma forma como o mito se tornou, na cultura moderna, sinónimo de falsidade, o herói deteriorou e acabou virando uma noção de algo “grande, audaz e célebre”.
Para o propósito que temos em vista, O. J. não é um herói, e sim uma celebridade que finalmente teve seus quinze minutos de glória, e cuja tentativa de fuga pelas vias expressas de Los Angeles pode acabar realmente se tornando parte do universo das lendas de que já são figuras cativas Bonnie e Clyde, Dillinger e Jesse James e outros marginais que excitaram a imaginação popular, imaginação que hoje é excitada e alimentada por informações instantâneas, livros publicados uma semana depois do acontecimento, filmes para televisão poucos meses após. As celebridades recebem as projecções das massas e são portadoras de suas pulsões inconscientes e de suas vidas não-vividas.
As pessoas ficam chocadas com a ideia de que um sujeito com uma persona tão maravilhosamente afectiva, notáveis feitos atléticos, personagem efectiva dos meios de comunicação de massa, possa também matar a esposa.
Os que têm conhecimento do conceito junguiano de sombra podem ficar chocados, mas surpresos não, pois sabem que um assassino está à espreita no íntimo de cada um de nós. Os que conhecem a Bíblia já terão passado pela leitura do lado sombrio do rei Davi. Os que leram o “Resposta a Jó” de Jung terão deparado com o lado escuro de Deus. Quem já leu Hawthorne e Melville terá observado o trabalho do diabo nas comunidades religiosas da Nova Inglaterra e no mar acossado pelas tempestades. Os sicofantas dos evangelizadores de televisão ficam chocados e depois deliciados pelos pecadilhos de seus líderes.
Em toda parte, das bancas de jornal à televisão, nossas vidas não vividas são projectadas nos elevados e poderosos. Essas figuras costumam ser adoptadas e depois facilmente descartadas quando suas fraquezas são reveladas. Certo O. J. parecia levar a vida mágica da celebridade e do sul da Califórnia. A acusação de que havia espancado e ameaçado sua esposa e enfim a havia matado foi chocante, porque não se espera de uma criatura que carrega a projecção de herói solar também ser portador do trabalho das trevas.
É dessa maneira que um O. J. deixa de ser um ser humano comum, capaz de acordar num determinado momento com morte em seu coração, e se torna um portador unilateral, de plástico, das projecções daqueles que estão profundamente desligados da universalidade da sombra.
Não obstante, O. J. é muito também o herói quando o examinamos do modo como Homero e os autores de tragédias gregas o teriam considerado.
Ele foi um homem enaltecido, portador das esperanças e valores de sua tribo, realizador de grandes feitos, mas acossado por uma mácula trágica que contesta todos os seus actos de bravura. Quando examinamos as tragédias gregas, vemos que o Coro, que representa a sabedoria e o ponto de vista do autor, nos diz o quanto o herói está nas mãos do destino. O destino é uma força implacável no universo, uma força a que ninguém, rei ou vassalo, pode escapar. O destino recompensa com dotes especiais algumas criaturas, e elas têm os tendões e a massa muscular para correr 40 jardas em 4.3 segundos, por exemplo, ou a capacidade de apanhar com um só olhar em geral um campo inteiro e ver por onde fazer a jornada certeira. Mas, da mesma maneira como a energia flui rumo ao talento, ou a adaptação para a vida, também outras partes da psique são negligenciadas e escoam para o inconsciente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:10 pm

Essas partes cindidas encontram-se ali, aguardando pelas circunstâncias certas, para então reafirmar sua autonomia diante do plano consciente.
Reapoderam-se da consciência, em geral de modo exacerbado, porque foram sujeitas à repressão. “Empregado dos Correios frustrado atira em nove e mata todos; os colegas dizem que era um bom sujeito, sossegado, retraído.”
A pessoa que se desliga de aspectos indesejáveis de sua psique estará correspondentemente à mercê da vingança desses conteúdos.
Inconscientemente, fará escolha instigada por esse eixo impalpável de referência e depois terá de se haver com as consequências. É assim que as tragédias gregas em suas trilogias abordavam a história de uma casa, ou seja, uma família através de três gerações. As feridas da primeira geração abatem-se sobre a segunda que, por sua vez, prejudica a terceira, até que alguém sofre o suficiente para atingir a conscientização desses processos e romper a cadeia. O destino proporciona o ferimento inicial, assim como a criação comprometida dos filhos daí em diante, e no entanto todos são responsáveis pela vida que cada qual escolheu, da mesma maneira como todos somos responsáveis por nossas escolhas e suas consequências. Só em retrospecto é que em geral torna-se claro que alguma escolha foi feita a partir de uma visão equivocada, ferida, e quem enxerga todo o mal é a consciência que esse sofrimento pôde mobilizar. A visão ferida era chamada hamartia pelos gregos, e explica por que os melhores e mais notáveis são seus próprios piores inimigos, tanto quanto o são aqueles que o destino pouco gratificou. O Édipo de Sófocles é um exemplo supremo do homem a quem o destino afligiu e, no entanto, diante do que havia de inconsciente em seu carácter, fez
escolhas que o condenaram. Essa personagem expressa esse paradoxo da “liberdade fatídica” quando proclama: Foi Apolo, meus amigos, Apolo que provocou essa amarga amargura, meus padecimentos ao máximo. Mas a mão que me abateu não foi outra senão a minha.{115}
O Coro deixa claro que Édipo é o paradigma da pessoa dotada, escolhendo como agir a partir de seu prisma deturpado e parcial de consciência:
Que homem, que homem na terra obtém mais
da felicidade do que este
e depois lhe dá as costas?
Édipo, você é meu padrão para isso,
Édipo, você e seu destino!"{116}
Outro exemplo recente do herói trágico foi representado no palco mundial pelo ex-presidente Nixon. Marcado por perdas em sua juventude, entregou-se ao complexo do poder e alcançou o mais poderoso escritório do mundo. No entanto, aquela hamartia, aquela visão ferida permaneceu insegura e incapaz de abalar o assédio da história, e então ele tomou decisões, escolheu assessores e desencadeou acontecimentos que levaram em última análise à sua desgraça. Enquanto ocupava na sala oval da Casa Branca o último espaço antes de renunciar, teceu comentários sobre a infância de privações que tivera e sua mãe que lhe dera apoio. O. J., supostamente violentador e assassino, foi até sua cidade natal para ver a mãe. O poder fatídico desses relacionamentos encaminhou tais homens aos pináculos da glória e feriou-os de tal modo que enfim foram por si mesmos levados à ruína.{117}
A história do herói trágico nos toca porque essa pessoa exemplifica o dilema que atinge cada um de nós. O destino fere e cerca, e dessa intersecção envolvendo destino e carácter é produzida a história. Essa história é tanto pessoal como colectiva, pois em geral essa figura encarna as esperanças e aspirações, bem como a sombra, de todo um povo. Uma máxima costumeiramente repetida em minha juventude era “com a expulsão de Adão pecadores todos são”. Na qualidade de homem primordial, Adão serviu de paradigma para a condição humana. Por causa de sua hybris, ele ilustra a propensão tipicamente humana de inflacionar a consciência, dizendo-lhe o que ela quer ouvir. Em seu The Poetics, Aristóteles sugeriu que somos levados como que por um imã a presenciar esses dramas trágicos, sejam eles vividos no campo da história ou nos palcos, porque precisamos da catarse de emoções muito profundas, a saber, a piedade e o medo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:11 pm

Nossa piedade é despertada e liberada quando nos identificamos com o trágico sofrimento do protagonista, e o medo quando nos damos conta de que corremos risco também.
Depois de ter visto a decadência de seu melhor e mais brilhante indivíduo, o Coro grego resume o trágico dilema de todos os heróis, de todos os humanos: “Não conte nenhum mortal feliz enquanto ele não tiver passado o limite final de sua vida a salvo da dor.”{118} Ou pensemos no rei mítico de Shakespeare, Ricardo II. Depois de ter tudo buscado e tudo perdido, ele nos lembra que dentro da coroa oca
Que rodeia os templos mortais de um rei Mantém a Morte sua corte e lá senta-se travessa Zombando de seus bens e rindo de sua pompa, permitindo-lhe um sopro, uma pequena cena, para exibir o quanto é monarca...
Infunde-o de vaidade e falso desdém... submetido dessa maneira, como é que você pode me dizer, eu sou rei?{119}
Figuras como Richard Nixon e O. J., maiores que a vida, encenam em última instância o dilema psíquico de todos os humanos. Quando a consciência faz por ignorar as partes sombrias e infla com sua própria suposição de importância, os deuses ficam mais interessados, aproximam-se, e provocam a recuperação do equilíbrio.
Talvez o herói que mais tem utilidade para nós seja aquele que nos lembra de nossas limitações, da distância entre os humanos e os deuses. Seria útil então definir o herói como aquele que amplia nosso senso do possível e ao mesmo tempo nos recorda os limites necessários da condição humana. Um exemplo muito facilmente observado seria, certamente a pessoa capaz de transcender os limites físicos, o explorador ou astronauta. Mas, igualmente, as explorações do espírito, do intelecto e da criatividade manifestam empreitadas heróicas. Charles Lindbergh, “a Águia Solitária”, obteve a atenção do mundo inteiro porque era a capacidade humana de sonhar e aventurar-se que estava sendo testada naquele minúsculo cockpit.
Mais de 40 aviadores tinham voado sobre o Atlântico, mas Lindbergh era o primeiro a fazê-lo sozinho. Foi essa dramatização da aventura solitária do espírito, essa coragem, resistência emocional, audácia imaginativa que uniram num só todos os continentes. Num veio semelhante, Beethoven não só deu corpo a várias ideias musicais, como, à semelhança de todos os criadores, expandiu a natureza da própria música. Em cada caso, o espírito heróico superou na garra os limites do possível. Cada esforço heróico, então, é um exercício de reimaginação do possível, de reconfiguração dos limites.
Para compreendermos o herói como aquele que amplia nosso senso do possível devemos também distinguir entre heróis positivos e negativos. Os açougueiros da história que conduziram as nações para eras de trevas lembram-nos nossa sombra. Às vezes, o psicótico amplia o âmbito dos recursos de imaginação de nossa mente. Uma mulher que hoje ouvisse vozes a lhe dizer que marchasse contra as forças da Situação provavelmente seria tratada como paciente psiquiátrica. Joana D’Arc, a virgem de Orleães, confrontou esse limite e foi santificada. George Fox perambulava como um louco pela aldeia de Lichfield e criou a Sociedade dos Amigos.
Até Hitler serviu para nos lembrar de como as forças do inconsciente poderiam ser projectadas numa figura carismática, capaz de conduzir cidadãos comuns a uma loucura colectiva. Devemos ponderar sobre esses exemplos, reconhecendo como é frágil a noção individual de ética e responsabilidade pessoal. Conforme os modernos vão sentindo a erosão da hierarquia de valores míticos de sustentação no correr dos últimos séculos, anti-heróis têm começado a despontar por toda parte, e sua presença literária se faz sentir de Dostoyevsky a Melville, passando pelo J. Alfred Prufrock de Eliot, até os trabalhos de Saul Bellow, Philip Roth e outros, além dos dois vagabundos à margem do caminho criados por Beckett.
Muitas figuras históricas que sofreram de calúnia e martírio foram os perpetradores de um “crime sagrado”, de uma ofensa contra valores colectivos que, não obstante, constitui-se igualmente numa oportuna crítica daqueles valores e ganha depois ulterior aceitação dos cidadãos de uma era posterior.
Sócrates, por exemplo, foi condenado à morte por seus colegas por falta de piedade. A época em que anuiu com a sentença, Sócrates observou que a pessoa justa não poderia ser transformada em injusta pelo mero veredicto de outras pessoas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:11 pm

Justiça não é passível de ser dada nem removida — só pode ser um estado da alma. Nesse sentido, os criminosos sagrados de Sócrates, Jesus, Martin Luther King Jr. e outros que transgrediram as normas do tempo e do espaço locais são figuras heróicas porque agiram a partir de uma visão moral ampliada que, subsequentemente, expande a visão de toda a tribo.
As pessoas comuns costumam ser convocadas em algum momento decisivo a cometer um ato por meio do qual possam situar-se num relacionamento com as possibilidades humanas de mais amplo alcance. Nessa fronteira é possível que se encontrem bastante sozinhas, mal compreendidas, carentes de recompensas, mas fazem o que têm de fazer para que possam vir a ser completamente fiéis a si mesmas. Nesses instantes, quando o indivíduo se coloca no limite de seu medo, ele representa algo universal e, por meio do impulso heróico, pode alçar o espírito humano a novas altitudes.
Agora precisamos considerar duas questões: o que constitui a jornada heróica típica? Qual é seu significado psicológico?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:11 pm

A jornada heróica
Nenhuma lenda isolada poderá conter todos os motivos da jornada acima descrita, mas todas irão ilustrar pelo menos um aspecto. Por exemplo, o herói sempre é “chamado”, embora no início possa não entender que foi chamado, ou sequer desejar ter sido convocado. Odisseu, por exemplo, fingiu ser louco para evitar manter a expedição contra Tróia. Lançou sal em sua terra ao ará-la, mas quando seus filhos lhe foram colocados à frente do arado e ele teve de se valer de seu juízo racional para salvá-los, foi então arrastado para cumprir seu destino.
O chamado ou convocação representa a necessidade de que um valor mais antigo, pessoal ou tribal, seja superado. Raramente o caminho é nítido, e certamente nunca é fácil. O herói tem de persistir diante do maior obstáculo que é sua própria letargia, seu medo e seu desejo de voltar para casa.
Às vezes, o herói recebe uma ajuda crítica de outra pessoa, uma velha bruxa, um gnomo na floresta, um animal de ajuda, um conselho lembrado nas palavras de um parente mais velho, recursos aos quais recorrer do lastro da memória tribal. O caminho é pontuado com diversas tentações: os demónios da dúvida, da esperança de um caminho mais fácil, as seduções da riqueza, do poder e do hedonismo. Em sua longa viagem de volta para Ítaca, Odisseu teve de arrancar seus homens da Ilha dos Comedores de Lótus, cujos doces bagos diminuíam as dores, e dos encantamentos de Circe, que os transformava em porcos sensuais. Todas essas tentações faziam com que a tripulação esquecesse a viagem.
O herói dessas histórias costuma partir para uma aventura no mundo; às vezes a jornada é interna, quando o herói desce até as profundezas do inconsciente. Se ele sobreviver a esse mergulho — e, de maneira típica, muitos dos que o precederam não o conseguiram — e à batalha com o monstro que estiver aguardando por ele no fundo, então será capaz de empreender a subida e ser transformado. Essa transformação constitui uma experiência de morte e renascimento. Quem a pessoa foi, como era seu mundo consciente, não existe mais. Tudo foi transformado.
Essas lutas frequentemente deixam marcas de dor na pessoa. Lembremo-nos dos ferimentos de Cristo, Wotan e Odisseu, por exemplo, feridas por meio das quais foram posteriormente reconhecidos como heróis.
As dores aceleram a consciência e, como podemos lembrar do mito do eterno retorno, são o conflito necessário para a ampliação do campo consciente.
Costumam existir signos desse novo estado — um pote de ouro, a mão da bem-amada, um novo lugar para se viver — mas estes são apenas os vestígios externos de um relacionamento modificado da alma com o cosmo. O herói alcança um novo plano de consciência do possível e um novo tipo de relacionamento com a tribo e os deuses. Como os signos dessa mudança são irrelevantes para o valor da transformação da consciência, são troféus que precisam ser vistos por uma ângulo metafórico. Uma busca pelo troféu em si seria mero materialismo, seria ir atrás de um ícone em vez do deus, seria perder de vista o que realmente importa. Embora a jornada do herói possa assumir a forma de aventuras externas, o objectivo é a transformação interna. Embora as aventuras heróicas de nossa memória tribal possam tomar alguma forma exterior, os mesmos motivos da convocação, da descida, da luta, do ferimento e do retorno fazem parte da vida cotidiana de cada pessoa. Discernir que cada um de nós faz parte de um rico padrão, e reconhecê-lo no dia a dia, é resgatar o princípio da profundidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:12 pm

O significado psicológico da jornada
Tom Stoppard escreveu um texto interessante para teatro, há alguns anos, e intitulou-o Rosencrantz and Guildenstern Are Dead. Conhecemos os nomes Rosencrantz e Guildenstern do Hamlet, onde se referem a papéis de mínima importância. Na versão de Shakespeare, Hamlet é sem dúvida o herói trágico que é chamado e depara com imensa resistência interior contra cumprir o dever de vingar seu pai. Por fim, ao término da peça mais longa escrita por Shakespeare, Hamlet supera sua letargia e age. No ínterim, as rápidas passagens de Rosencrantz e Guildenstern são concluídas com a simples menção de que estão mortos — o que não tem importância se a peça se chama Hamlet, mas é muito importante se a pessoa está num espectáculo que se chama Rosencrantz ou Guildenstern.
Stoppard trabalha na ideia de que cada um de nós é lançado na trama de um grande drama, no qual talvez estejamos seguindo um roteiro incerto mas em que, de certo, somos chamados a ser os protagonistas. O término do texto é certo: morremos. Mas o significado da peça de Stoppard deriva de como, de que maneira o protagonista pode tornar-se consciente e fazer escolhas heróicas. Certamente as figuras gémeas de Stoppard pertenceram ao molde anti-heróico enquanto vagueiam pelo incerto enredo de suas existências, sem clareza a respeito de quem são ou do que está acontecendo, de vez em quando interrompidos por um sujeito chamado Hamlet, que cruza o palco onde os dois estão imbuídos de sua própria importância.
Rosencrantz e Guildenstern são protótipos dos indivíduos modernos, os quais, carentes de qualquer sentimento de sua estatura heróica, de um mythos que os sustente, vagueiam de ideia em ideia, de impulso em impulso, mudando morosamente de canal na esperança de encontrar alguma coisa melhor para assistir.
Em cada um de nós há um Hamlet, à deriva entre as correntes de ambivalência que se cruzam, e um Rosencrantz ou Guildenstern. Em cada um de nós há o arquétipo do herói, a capacidade de fazer frente ao desafio da vida. Se contamos com um herói externo, é só para nos lembrar de nosso imperativo particular. Nos actos de outrem — daquele que escala a geradora de transformações, que traz beleza ao mundo — somos encosta insuportável, que descobre uma nova vacina, que dá voz a uma ideia relembrados de nosso próprio chamamento, de nossa vocação heróica. Certamente a única medida pela qual poderemos ser julgados no final, pelos outros como por nós mesmos, é o grau em que acolhemos o imperativo e a ele respondemos, o imperativo de nos tornarmos quem somos diante de todas as forças que nos poderiam deter. As histórias dos heróis podem nos inspirar e guiar, mas cabe a cada um responder ao seu próprio chamado, individuar-se. Como diz a antiga parábola Zen, “estou procurando o rosto que eu tinha antes de o mundo ser criado.” Por todos os cantos encontram-se aqueles que, em silêncio, a cada dia, respondem a esse chamamento, cuidando de seus filhos, indo trabalhar em empregos desgastantes mas necessários, lutando com as próprias dúvidas e o medo. Essas pessoas, cada qual no anonimato de suas trajectórias, são mais dignas de admiração que as celebridades; as outras pessoas heróicas não deveriam nos fazer desviar de nosso rumo próprio, antes deveriam nos fazer lembrar dele.
O motivo essencial e recorrente da busca do herói implica em uma viagem, da inconsciência até a conscientização, das tenebrosas profundezas até as altitudes luminosas, da dependência à auto-suficiência. Essa força, essa energia configuradora (que é o que constitui o arquétipo), busca destronar a dominação imposta pelo caos, as doces seduções da inconsciência, e atingir uma diferenciação ainda mais elevada.
Toda manhã dois gremlins{120} de sorrisse escarninho sentam-se ao pé da cama. Um se chama Letargia e o outro, Medo. Cada um deles teria a maior satisfação em nos comer vivos. Praticamente não importa nada o que foi feito ontem para combatê-los, pois retornam diariamente com renovado interesse em se apossar de nossa alma. A energia disponível para lutar com eles é uma parte essencial do arquétipo do herói. É assim que podemos ver então como universal o drama do herói, pois cada um de nós enfim reconhece a subtil sedução dos confortos, e os medos que paralisam, como o olhar da Medusa.
A nossa jornada de vida é uma série de derrotas nas mãos desses demónios, uma convocação diariamente refeita para combatê-los e desempenhar o papel do protagonista no drama de nossa vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:12 pm

O clássico de Joseph Campbell, O herói de mil faces, documenta a ubiquidade do que ele considera o monomito do herói. Esse mito central parece ter três estágios: partida, iniciação e retorno. O estágio da partida aparece quando a pessoa é expulsa de sua comunidade ou desligou-se do antigo regime. Nesse momento, é obrigada a peregrinar por terras desconhecidas. Descidas, subidas, ferimentos, iniciam o neófito nos mistérios da natureza e do relacionamento. O retorno raramente é para a antiga terra, e nunca mais para a velha psicologia. Se fosse seria então o retorno que tornaria toda a jornada algo apenas óbvio, aniquilando a ampliação da consciência. Em vez disso, o retorno implica em refazer o círculo novamente, mas em nível superior. Nesse sentido, a imagem informativa do motivo da busca não é um movimento linear de avanço perene, só para a frente, mas sim um movimento evolucionário em espiral. Essa viagem diferencia necessariamente uma pessoa, desenvolve um novo ser que pode não ser mais reconhecido pela antiga tribo ou pelos velhos valores. O herói deve suportar o fardo da solidão e da culpa e, como Jung observa, deve dar algo em troca:
A individuação alija o indivíduo da conformidade pessoal e, com isso, da colectividade. Essa é a culpa que o individuando deixa em seu rastro para o mundo, e essa é a culpa que deve empenhar-se em redimir. Ele deve oferecer um resgate em lugar de si mesmo — quer dizer, deve contribuir com valores que sejam um substituto equivalente para sua ausência da esfera pessoal colectiva.{121}
Dessa maneira, vemos como o imperativo heróico convoca-nos a todos pois não é só o indivíduo que assim é criado, como tal pessoa se torna um tesouro para a tribo. Há muitos que consideram que a individuação é uma forma de preocupação narcisista. Em lugar disso, a pessoa ampliada, que empreende a busca e dela regressa, serve a tribo por meio do desafio, da redenção e do revigoramento.
O arquétipo da jornada é a formalização da força vital, ou seja, a activação e a canalização da libido rumo a maior desenvolvimento. O maior risco que uma pessoa irá jamais encontrar é a subtil sedução do inconsciente, o anseio de permanecer no âmbito do que é conhecido e confortável. Jung descreve da seguinte maneira essa pessoa:
Ele sempre imagina seu pior inimigo à sua frente e, no entanto, o inimigo que carrega está dentro de si mesmo — no anseio letal pelo abismo, na ânsia de afogar-se em sua própria fonte... A tendência regressiva tem sofrido a consistente oposição, desde os tempos mais primitivos, da parte dos maiores sistemas psicoterapêuticos que conhecemos como as religiões. Estas buscam criar uma dimensão consciente autónoma, levando a humanidade a desmamar e afastar-se do sono de sua puerilidade.{122}
Se for verdade que os grandes mitos e as instituições geradoras de mitos buscaram activar e canalizar a libido da pessoa, então a erosão dessas poderosas imagens de direccionamento atua como um abandono psicológico.
De modo que somos obrigados a ser ainda mais conscientes de nosso desenvolvimento como uma tarefa que, no mais das vezes, deveremos executar em silêncio e solitariamente.
O “anseio letal pelo abismo” de que fala Jung é o gremlin escarninho chamado Letargia. O outro, chamado Medo, é natural ao humano frágil que trabalha tão arduamente para conquistar sua parcelinha de segurança e no fim só encontra uma armadilha em que a força vital se torna estultificada. Crescer e individuar-se obriga o sujeito a rejeitar essa medida de segurança e a se lançar no desconhecido. Jung se expressa dramaticamente a esse respeito:
O espírito do mal é o medo, a negação... ele é o espírito da regressão, que nos ameaça manter cativos da mãe, dissolvendo-nos e extinguindo-nos no inconsciente... Para o herói, o medo é um desafio e uma incumbência, porque só a audácia pode libertar do medo. E, se o risco não for enfrentado, o significado da vida será de alguma maneira violado, e todo o futuro estará condenado a um imobilismo sem esperanças, a uma cinza estéril cuja única fonte de luz serão os fogos-fátuos.114
São estas, portanto, as duas grandes ideias que os ocidentais contemporâneos devem ter em mente — o eterno retorno e a jornada do herói. Devemos ser conscientes delas ao máximo, cada qual com seu lugar em nossa vida, porque não nos encontramos sustentados por um tradição mitológica que ative esses imperativos, canalize a libido e faça a mediação do horror e da maravilha nelas contidas. As pessoas que pertencem a tradições que lhes oferecem imagens da Grande Mãe estão sendo apoiadas pelos “grandes ventos que cruzam os céus.” Nós não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:12 pm

Talvez a respeito de nenhuma outra questão sejamos mais neuróticos, ou seja, internamente cindidos, do que quanto à dimensão de nossa mortalidade. A cultura que desenvolvemos é dedicada à aquisição, é movida pelo complexo do poder como combustível e sustentada pela força da negação. A mortalidade é a quintessência da perda pessoal, fato perante o qual estamos totalmente impotentes, e que, no final, não será negado. Nesse sentido, a mortalidade serve como a afronta máxima à cultura ocidental e, por isso, chamamos as intervenções médicas atuais de “medidas heróicas”, como se a morte fosse o inimigo.
A tradição tibetana considera há muito tempo as transições entre vida, morte, período pós-vida, período de renascimento, como um bardo, ou seja, época de revelações, transformações da consciência. Nessa tradição, a meditação diária sobre a própria mortalidade é entendida não como morbidez, mas como trabalho da alma. Quanto mais a alma trabalha, maior será a capacidade de transformação da consciência. Quão distante essa mortalidade conscientizada parece diante da abundância de preocupações neuróticas do modernismo. Entretanto, perceber nossa vida individual como um pedacinho do mosaico, uma centelha do grande fogo, uma gota do oceano cósmico, não é negar o indivíduo, e sim relocalizá-lo em seu contexto divino.
Para uma era de peregrinadores, essa relocalização é a volta definitiva ao lar. O secretário de guerra Edwin Stanton deve ter sentido algo parecido com isso no momento em que Lincoln falecia, pois disse: “Agora ele pertence às eras.”{123} A memória da Grande Mãe, seu ciclo de sacrifício, o grande círculo, o eterno retorno, servem tanto de destino como sina, para todos os humanos. Os que conseguirem assimilar essa imagem em seus ossos terão transcendido uma boa parte da alienação que caracteriza a nossa cultura.
A outra grande ideia, a da jornada do herói, lembra-nos a contraverdade, quer dizer, que a pessoa serve melhor o mistério final da natureza tornando-se individuada. O paradoxo é que a pessoa deve ser englobada pelo grande círculo e ao mesmo tempo encarnar-se aqui, com a finalidade de diferenciar-se e desenvolver-se. Nesse processo, a tribo é servida e, de maneiras que podemos tão somente hipotetizar, o divino também é servido.
É uma insensatez identificar cada uma dessas grandes verdades com papéis relativos aos géneros, pois tanto os homens como as mulheres fazem parte do mesmo ciclo universal e têm o mesmo imperativo de individuar-se.
Tanto eles como elas, é óbvio, têm sido limitados por ideologias de papéis exclusivos de cada género, o que tem tido como resultado magoá-los no corpo e na alma. Pode ser inquietante sentir os ventos da liberdade existencial, da solidão, do terror, mas é nesse clima que as escolhas são feitas. A condição moderna é a do desenraizamento, da pendulação entre ideologias da adoçam de modas e modismos, compondo um arco que abre do tédio até a depressão, mas o significado desses dois eternos padrões mitológicos está ali para ser acolhido de forma individual.
Cada um de nós está obrigado a sofrer, a meditar sobre — e encarnar — nossa experiência ímpar do ciclo de sacrifício-morte-renascimento e, igualmente, a desembaraçar-se dos gremlins da letargia e do medo, para assim tornar-se aquilo que a natureza tão misteriosamente ofereceu. Depois de termos assumido essa incumbência singular e também absoluta de nos tornarmos protagonistas do nosso próprio drama existencial, então estamos vivendo numa dimensão heróica. Embora possamos até admirar outro herói, não precisamos dele para viver nossa satisfação vicária. No Galileo de Bertold Brecht há duas personagens que expressam essa percepção:
Infeliz é a terra que não tem heróis.
Não, infeliz é a terra que precisa de heróis.{124}
O poeta Rilke resumiu de modo eloquente tanto o nosso perigo como a nossa promessa em seu quarto “Soneto a Orfeu”:
Você foi escolhido, você que é são e íntegro...
Não tenha medo de sofrer, de dar o seu peso de volta ao peso da terra; as montanhas são pesadas, os mares são pesados.
Até mesmo as árvores que vocês plantaram na infância tornaram-se muito pesadas há muito tempo — hoje você não poderia carregá-las.
Mas pode carregar os ventos... e os espaços abertos.{125}
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Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis - Página 2 Empty Re: Rastreando os deuses: o lugar do mito na vida moderna - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:13 pm

3 - COMER O SOL
A produção espontânea de mitos
Jung notou que a psicologia era a última criação das ciências sociais modernas a ter aparecido porque sua tarefa e introvisões tinham sido antes prerrogativas dos mitos.
Os fundadores da psicologia profunda moderna, entre eles Freud e Jung, foram psicodinâmicos em seus pressupostos e métodos. No entanto, pesquisas recentes indicam que só 10% dos terapeutas dos Estados Unidos identificam-se como fundamentalmente orientados pela psicodinâmica.
Diante da ânsia moderna de quantificar praticamente tudo, a maioria dos terapeutas preferiu adoptar a modificação de comportamentos, a reestruturação cognitiva, ou a intervenção farmacológica. Embora todos estes métodos tenham seus méritos, atraem esse grande contingente porque podem produzir resultados quantificáveis e focalizar sua atenção terapêutica na solução de problemas a curto prazo, na resolução de crises, e na adaptação. Não lidam com a questão da transformação, que é um trabalho a longo prazo, intenso, não quantificável, perigoso de iniciar.
Muitos críticos desmascaram os alicerces científicos das terapias psicodinâmicas e há quem as chame de pseudo-religiões. Nenhuma dessas acusações deveria ser negada, embora precisem ser reformuladas. A psique funciona na linguagem simbólica, e até mesmo conceitos científicos arriscam-se à antiga heresia da literalização. Precisam ser entendidos como símbolos que são, ou seja, imagens que sinalizam para mais além de si mesmas na direcção de movimentos da alma. Esses termos são metáforas, pontes para o desconhecido, e só aqueles que nunca experimentaram o diálogo com seu próprio inconsciente seriam capazes de falar o contrário.
As terapias psicodinâmicas apareceram porque houve a erosão dos grandes mitos e das instituições mantenedoras dos mesmos. Embora exista uma miríade de patologias e manifestações sintomáticas, como se pode verificar nas listagens da bíblia DSM-IV{126}, que não reagem ao trabalho de profundidade, a ferida básica do indivíduo moderno é geralmente uma ferida em sua alma. Depois de despencar do tecto da catedral medieval, ele afundou num abismo. A psicologia profunda é um processo por meio do qual a psique fracturada pode curar-se, por meio do qual podemos conseguir um mito pessoal para suplantar a falência das ideologias culturais. Não é um dogma, mas sim uma metodologia que busca facilitar o encontro de cada um com seus poderes internos de transformação. Não é uma Nova Era, é a Antiga, tão antiga quanto os arquétipos.
A abordagem profunda da psique obriga a testemunha séria a registrar assombro e trepidação perante o poder dinâmico do inconsciente. Os gregos expressavam seu respeito ao dramatizar uma Medeia{127} tão possuída pelo deus que era capaz de matar os próprios filhos, ou como um homem tão inteligente quanto Édipo poderia não saber a mais simples das coisas, sua identidade pessoal, ou ainda como Clitemnestra{128} conseguia ser, ao mesmo tempo, mãe enlutada, articuladora política, adúltera e vingadora, quando lançou uma rede sobre o marido Agamemnon e o esquartejou.
O profissional de psicologia profunda vê-se obrigado a questionar incansavelmente o funcionamento da psique, indagando como um sonho pode entrelaçar fragmentos tão díspares e tecer uma crítica tão contundente da vida consciente, como o ego se deixa tão facilmente seduzir e ouve só aquilo que quer ouvir. E igualmente o analista pondera sobre o poder da psique para curar-se e sobre o movimento inerente rumo à totalidade que é capaz de sobreviver aos traumas mais horrendos. Essa reverência assombrada diante do mistério é a experiência diária do analista, ou de qualquer pessoa que acompanhe seriamente o trabalho da alma.
Dizem que, em média, gastamos seis anos de nossa vida sonhando.
Essa façanha prodigiosa faz parte do intento teleológico da psique. Os sonhos são a rota íntima de saída da alma e constituem o processo gerador de mitos em cada pessoa. A rica tessitura de detalhes, a “transgressão” da lei de tempo e espaço vigente na vigília, o poder de síntese de novas combinações, as abundantes alusões a experiências anteriores, são todos aspectos conhecidos do estudioso de sonhos. Sempre misterioso e ineditamente surpreendente, em geral enigmático, trabalhar com sonhos vincula-nos de modo irremediável com o mistério.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:13 pm

Se temos condições de acompanhar os sonhos durante certo período, eles efectivamente indicam movimentos, mostram sem sombra de dúvida como a pessoa está trabalhando com suas questões pessoais e resolvendo-as. A soma desses sonhos constitui um épico heróico no mínimo tão formidável quanto os produzidos por Homero ou Dante. A descida até o mundo inferior está aí, os monstros temíveis, o imenso cartel de personagens, as batalhas titânicas — ou seja, o próprio conteúdo dos mitos.
Outras formas de descida ao mundo inferior produzem material mítico similar. Freud trabalhou principalmente com histéricos (“distúrbios somatofórmicos”, no linguajar actual), e Jung primeiro tratou de esquizofrénicos. Ambos descobriram que aqueles que a medicina tinha segregado em depósitos especiais eram pessoas com histórias para contar.
Mereciam respeito e esforço para serem entendidos. O terceiro volume das Obras Completas de Jung, A psicogénese da doença mental, é um registro de seu empenho para interpretar o significado que ainda poderia ser encontrado na mente desorganizada. Jung discerniu, na primeira década deste século, o que Silvano Arietti descreveu várias décadas depois:
Quando a dor é tão intensa que não tem mais acesso ao nível da consciência, quando os pensamentos são tão dispersos que não são mais compreendidos pelos outros, quando os contactos mais vitais com o mundo são desligados, mesmo assim o espírito do homem não sucumbe e a ânsia de criar pode persistir. A busca, o apelo, a angústia, a revolta, o desejo, podem estar todos lá e ser reconhecidos nas brumas da tempestade emocional do paciente esquizofrénico e no destroçar de suas estruturas cognitivas."{129}
Até mesmo o termo esquizofrenia, como mito, trágico e herói, foi trivializado, como quando alguém diz “sinto-me esquizofrénico”, para informar que está ambivalente. Numa dimensão colectiva, a perda do centro de uma civilização gera nela um estado de anarquia, a derrocada da ordem central por facções rebeldes. (Lembramos Yeats: “As coisas se fragmentam, o centro não permanece mais, a anarquia está à solta no mundo”.){130}
Individualmente, a perda do centro, ou seja, do ego com sua capacidade de processar informações, junto com a perda da energia afectiva, constitui — quando vivida em sua forma extrema — a doença chamada esquizofrenia.
(Na primeira década deste século, o director de Jung, dr. Eugen Bleuler, cunhou o termo para substituir a expressão dementia praecox, “loucura precoce”, assim chamada por causa do surgimento tipicamente precoce da doença, por oposição da dementia senilis.)
A etiologia da esquizofrenia ainda é um mistério, mas existe um consenso em torno da presença de um factor etiológico de natureza bioquímica. Embora existam medicamentos que reduzem a severidade dos sintomas, não existe cura conhecida. Episódios graves podem ser cíclicos, ou ocorrer apenas uma única vez em toda uma vida, ou ainda esse distúrbio pode tornar-se crónico. De qualquer modo, a pessoa sofre de uma desorientação semelhante à experimentada pelos modernos que perderam sua ligação com o mito. As lentes estilhaçadas, então, tornam o mundo um local tão bizarro e ideocêntrico que resulta em extremo isolamento ou o repúdio público. A noção de que os produtos de uma mente tão desregrada pudessem ter significado, servir a alguma função teleológica, originou-se em Jung e foi adoptada por outros espíritos audaciosos, como R. D. Laing e John Weir Perru.
Talvez o esboço mais proveitoso da esquizofrenia para os nossos propósitos seja descrevê-la como uma família de distúrbios caracterizados por perturbações profundas do pensamento, do sentimento, da percepção e da identidade. As perturbações do pensamento são evidenciadas nas deduções impróprias, a partir da experiência, e/ou sistemas delirantes. As perturbações afectivas resultam em profunda ambivalência, em excessiva oscilação do humor, em recuos depressivos para dentro de si mesmo, e numa sensação generalizada de alienação. As perturbações da percepção se manifestam em visões ou alucinações. As percepções da identidade, talvez o factor mais grave de todos, indicam um centro que não se sustenta, um ego que não consegue mais interpretar e integrar os conteúdos das experiências interna e externa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Out 24, 2023 8:13 pm

Uma boa analogia da experiência esquizofrénica pode ser encontrada numa comparação com a vida onírica. Todos nós sonhamos, e depois de acordar vamos para o trabalho, ou fazer alguma outra coisa. Podemos comentar que tivemos certo sonho, ou podemos ignorá-lo. A vida segue mais ou menos igual. Mas o esquizofrénico acorda num mundo em que o sonho ainda continua se sonhando: o ego não é forte o suficiente para diferenciar entre as realidades interna e externa.
A psique costuma trabalhar rumo a metas que são misteriosas à luz da consciência do ego, embora significativas à compreensão da alma. Às vezes, sentimos isso em sonho, às vezes no afecto de um complexo activado que se apodera do ego. Mas, em todos os casos, inclusive na experiência da esquizofrenia, a psique está trabalhando. Como afirma H. G. Baynes:
É simplesmente um fato (que pode ser verificado por qualquer um que estude os desenhos de esquizofrénicos) que esses pacientes tendem a produzir alguns desenhos-chave, nos quais símbolos diagramáticos têm papel de destaque; subsequentemente, estes são usados com eficácia no desenvolvimento do drama simbólico.{131}
Os produtos da alma em turbilhão podem não ser arte no sentido tradicional, mas o que há de comum entre o artista e o esquizofrénico é que ambos aproximam-se das camadas profundas da psique, de abismos essencialmente inacessíveis à razão ou à linguagem discursiva, visíveis somente em imagens simbólicas que apontam para mais além de si mesmas, na direcção do mistério.
O artista, cujo protótipo mítico foi Orfeu, tem a necessidade e a coragem de descer até o mundo inferior, de comungar com as forças que ali existem, e então retornar ao mundo superior com canções, histórias ou imagens, que são frágeis recordações da perigosa jornada. Já o esquizofrénico permanece nesses estratos profundos, seduzido, hipnotizado pelo conteúdo dinâmico das profundezas, e os resíduos dessas vivências que chegam até nós parecem não canções, mas sintomas, não o trabalho integrado da arte, mas peças de conteúdo fracturado. (Lembro a observação de Dali de que a diferença entre ele e um louco é que ele não é louco.)
Acompanhar a viagem alucinogénia do esquizofrénico é chegar perto dos misteriosos meandros da psique e observar directamente poderes formadores de símbolos. Nesses encontros, aproximamo-nos do cerne da vida psíquica o mais perto que o intelecto ou o conceito pode nos levar. Com suas demonstrações de respeito pelos sonhos e visões, os antigos sabiam disso. O que observamos no mito, no sonho e nas produções em imagem dos esquizofrénicos levam-nos mais perto dos processos fundamentais de nosso universo interior.
Antes de examinar os desenhos que brotam das vivências esquizofrénicas, façamos uma revisão do carácter do que chamaríamos de trabalho mítico. Para o artista, o trabalho mítico expressa simbolicamente uma verdade emocional; para o esquizofrénico, a imagem é a verdade emocional, ou seja, contém um literalismo que não é verdade para o artista.
Este manipula as imagens, cores, formas, palavras ou sons; o esquizofrénico é manipulado pelos materiais com os quais trabalha. O artista pode diferenciar entre os níveis da verdade simbólica. Dante, por exemplo, empregava conscientemente a metáfora do arquétipo da descida-subida em quatro níveis diferentes de significado. O esquizofrénico vive todos os níveis simultaneamente. Por exemplo, um homem pode se considerar o imperador de Roma e explicar sua precária circunstância actual de vida como um lapso momentâneo da sorte, ou um equívoco no entendimento dos lacaios. Que ele ser rei é uma compensação para as circunstâncias miseráveis em que vive não é algo que compreenda; ele vive essa dimensão inconscientemente, uma vez que é possuído por esses conteúdos. Um Dante ou Dali pode empregar consciente ou inconscientemente um motivo arquetípico, mas a experiência do esquizofrénico é imediata e idiossincrásica.
As descobertas de Freud apresentadas em seu Interpretação dos sonhos são úteis quando se considera a natureza do trabalho mítico. Nos sonhos, o inconsciente condensa eventos aparentemente aleatórios numa epifania concisa e de sentido íntimo. O inconsciente subverte a orientação do ego para pessoas, lugares e tempos; fala por meio de imagens afectivamente carregadas e não através de conteúdos cognitivos. Essas imagens corporificam o significado nas metáforas e nos símbolos.
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