LUZ ESPÍRITA
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A PASSAGEM DO MEIO - James Hollis

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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:42 pm

A PASSAGEM DO MEIO
James Hollis

da miséria ao significado na meia-idade
PAULUS


PREFÁCIO
* * *
Por que tantas pessoas passam por tantos abalos na meia-idade? Por que consideramos essa fase como crise? Qual o significado dessa experiência?
A crise da meia-idade, que eu prefiro chamar de passagem do meio, apresenta-nos uma oportunidade de reexaminar a nossa vida e fazer a pergunta por vezes assustadora e sempre libertadora: “Quem sou eu além da minha história e dos papéis que interpretei?” Quando descobrimos que vivemos até agora algo que constitui um falso eu, que temos representado até o momento uma idade adulta provisória, impelidos por expectativas irrealistas, nós nos abrimos finalmente para a possibilidade de uma segunda idade adulta, nossa verdadeira individualidade.
A passagem do meio é a ocasião de redefinirmos e reorientarmos a personalidade, um rito de passagem entre a adolescência prolongada da primeira idade adulta e o nosso inevitável encontro com a velhice e a mortalidade. Aqueles que passam conscientemente pela transição trazem mais significado à sua vida. Os que não passam permanecem prisioneiros da infância, não importa o sucesso aparente que possam ter na vida.
Minha experiência psicanalítica no decorrer da última década esteve basicamente relacionada com pessoas na passagem do meio, e pude ver repetidamente o padrão. A passagem do meio representa uma oportunidade maravilhosa, se bem que por vezes dolorosa, de revermos nossa concepção do eu. Consequentemente, este livro abordará os seguintes temas:
Como adquirimos nossa concepção original do eu? Quais são as mudanças que anunciam a passagem do meio? Como redefinimos a nossa concepção do eu? Qual a relação existente entre o conceito junguiano de individuação e o nosso compromisso com as outras pessoas? Quais são as atitudes e as mudanças comportamentais que apoiam a individuação e nos conduzem, através da passagem do meio, do infortúnio ao significado?
Os psicólogos da linha da psicologia profunda sabem que a capacidade de crescimento depende da capacidade do indivíduo de interiorizar-se e de assumir responsabilidade pessoal. Se encararmos eternamente nossa vida como um problema causado pelos outros, um problema a ser “resolvido”, mudança nenhuma ocorrerá. Se não tivermos coragem suficiente não poderemos realizar nenhuma revisão. Eis o que Jung escreveu numa carta, em 1945, a respeito do trabalho do crescimento pessoal:
A obra consiste em três partes: insight, persistência e acção. A psicologia só é necessária na primeira parte, e na segunda e na terceira partes a força moral desempenha o papel predominante1.
Muitos de nós encaramos a vida como romance: passamos passivamente de página em página, na certeza de que o autor nos contará tudo na última. Hemingway disse certa vez que se o herói não morrer é porque o autor simplesmente não terminou a história. Por conseguinte, morremos na última página, tendo ou não atingido a iluminação. O convite da passagem de meio é que nos tornemos conscientes, que aceitemos a responsabilidade pelo resto das páginas e nos arrisquemos a enfrentar a grandeza da vida à qual fomos convocados.
Onde quer o leitor possa estar na sua vida, os apelos que nos são feitos são os mesmos feitos ao Ulisses de Tennyson:
O longo dia chega ao fim: a lua sobe lentamente: os Profundos lamentos dobram com muitas vozes. Vinde, Meus amigos, não e tarde para procurar um novo mundo2.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:43 pm

1 - A PERSONALIDADE PROVISÓRIA
* * *

Quando eu estava na quinta série primária, logo depois da segunda guerra mundial, nossa professora comprou alguns prismas de vidro que se destinavam a ser usados nos periscópios dos submarinos. Costumávamos nos divertir antes e depois da aula cambaleando pelo corredor entre as carteiras, chocando-nos contra a parede e uns contra os outros. Estávamos fascinados com a questão da realidade e de como saber para onde estávamos indo através desses ângulos de visão encurvados. Eu me perguntava se as crianças que precisam usar óculos o tempo todo enxergavam melhor ou apenas mundos diferentes. Quando eu parava para pensar que a lente dentro de nossos olhos também refractava a luz, eu me perguntava mais ainda se a realidade que enxergávamos não dependeria totalmente da lente através da qual a víamos.
Ainda é útil pedir emprestada essa percepção infantil, reconhecer que seja qual for a realidade, ela será até certo ponto moldada pela lente através da qual a enxergamos. Quando nascemos, recebemos múltiplas lentes: a herança genética, o sexo, uma cultura específica e as variáveis no nosso ambiente familiar, e todas elas constituem a nossa ideia da realidade. Olhando para trás, mais tarde, temos de admitir que talvez tenhamos vivido menos a partir da nossa verdadeira natureza do que da visão da realidade definida pelas lentes que usamos.
Os terapeutas montam às vezes um genograma que representa uma árvore genealógica emocional. A história da família prolongada por várias gerações revela temas que se repetem. Embora as predisposições genéticas desempenhem um papel fundamental, está claro que as famílias transmitem sua maneira de ver a vida de geração em geração. A lente passa dos pais para os filhos e, a partir dessa perspectiva refractada, as escolhas e as consequências se repetem. E do mesmo modo como vemos alguns aspectos do mundo através de qualquer lente especificada, também deixaremos escapar outros.
Talvez o primeiro passo necessário para que a passagem do meio seja significativa seja reconhecer a parcialidade da lente que recebemos da nossa família e da nossa cultura, e através da qual fizemos nossas escolhas e sofremos suas consequências. Se tivéssemos nascido em outra época e lugar, de pais diferentes que sustentassem valores diferentes, teríamos recebido uma lente completamente diferente. A que recebemos gerou uma vida condicional, que não representa quem somos, mas o modo como fomos condicionados a ver a vida e a fazer escolhas. Todas as gerações são seduzidas pelo antropocentrismo, e tendem a considerar sua visão do mundo superior às dos outros. Assim sendo, nós também sucumbimos à ideia de que a maneira como encaramos o mundo é a única forma como ele pode ser visto, a maneira correta, e raramente suspeitamos da natureza condicionada da nossa percepção.
Até mesmo na infância mais privilegiada, a vida pode ser vivenciada como traumática. Fomos ligados à pulsação do cosmos no útero da nossa mãe. De repente fomos lançados violentamente no mundo para dar início a um exílio e a uma busca de recuperar a ligação perdida. Até mesmo a religião (do latim religio, “vínculo entre o homem e os deuses”, ou religare, “ligar novamente”) pode ser vista como projecção da busca das ligações perdidas sobre o próprio cosmos. Para muitas pessoas, devido ao impacto da pobreza, da forma, dos diversos tipos de abuso, a experiência inicial do mundo é devastadora para sua concepção do eu. Quando crianças, elas sintetizam suas capacidades afectivas, cognitivas e sencientes para não serem ainda mais magoadas. Elas se transformam nos sociopatas e nas pessoas com distúrbios de carácter que enchem nossas prisões e rondam nossas ruas.
Lamentavelmente, para estes assim atingidos, o potencial de crescimento e de transformação é sombrio; tornar-se receptivo ao mundo da dor exigido pelo crescimento é por demais assustador. Quase todos nós sobrevivemos como pessoas meramente neuróticas, ou seja, divididos entre a natureza intrínseca da criança e o mundo para o qual fomos socializados. Podemos até concluir que a personalidade adulta não examinada é um agregado de atitudes, comportamentos e reflexos psíquicos ocasionados pelos traumas da infância, cujo objectivo fundamental é controlar o nível de sofrimento experimentado pela memória orgânica da infância que conduzimos dentro de nós. Podemos chamar essa memória orgânica de criança interior, e nossas várias neuroses representam estratégias inconscientemente desenvolvidas para defender essa criança. (A palavra “neurose” não é usada aqui no sentido clínico e sim como termo genérico para a divisão entre a nossa natureza e a nossa aculturação.)
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:44 pm

A natureza do sofrimento infantil pode ser generalizada de forma ampla em duas categorias básicas: 1) a experiência da negligência ou do abandono, e 2) a experiência de ser esmagado pela vida.

Aquilo que podemos chamar de personalidade provisória é uma série de estratégias escolhidas pela frágil criança para lidar com a angústia existencial. Esses comportamentos e atitudes são tipicamente agregados antes dos cinco anos de idade e são elaborados dentro de um surpreendente leque de variações estratégicas com um motivo comum — a auto-protecção.
Embora as forças externas, como a guerra, a pobreza ou uma deficiência pessoal, desempenhem um importante papel na maneira como a criança percebe o eu e o mundo, a influência fundamental sobre a nossa vida é oriunda do carácter do relacionamento entre os pais e a criança. Os antropólogos descreveram os processos cognitivos das chamadas culturas primitivas e comentaram que elas repetem as nossas formas infantis de pensamento. Essas culturas eram caracterizadas pelo pensamento animista e mágico.
Para o pensamento não-diferenciado dessas culturas, bem como para o comportamento infantil, o mundo está impregnado de elementos anímicos ou seja, as energias internas e externas são consideradas aspectos da mesma realidade. Além disso, essas culturas supunham, como as crianças, que a realidade interior exerce um efeito sobre o mundo exterior e vice-versa. Esta é a característica do pensamento mágico. À semelhança dos homens primitivos, que só eram capazes de conhecer os limites da sua caverna ou floresta, a criança tenta interpretar o ambiente a fim de aumentar seu conforto e sua futura sobrevivência. (Na famosa parábola de Platão, o limite para o entendimento humano é comparado aos prisioneiros que tiram conclusões sobre a vida baseados nos reflexos que vêem nas paredes da caverna à qual estão acorrentados.) As conclusões que as crianças tiram sobre o mundo são oriundas portanto de um estreito domínio, sendo inevitavelmente parciais e prejudiciais. A criança não é capaz de dizer: “Meu pai (ou minha mãe) tem um problema, e este exerce um efeito sobre mim”. A criança só consegue chegar à conclusão de que a vida é preocupante e o mundo um lugar inseguro.

Ao tentar decifrar o ambiente pais-filho, a criança interpreta a experiência de três maneiras básicas.

1- A criança interpreta fenologicamente o vínculo palpável e emocional, ou sua falta, como declaração sobre a vida em geral. Ela é previsível e protectora, ou incerta, dolorosa e precária? É esta percepção primordial que forma a capacidade de confiar da criança.

2- A criança interioriza comportamentos específicos dos pais como declaração a respeito do eu. Como a criança raramente consegue objectivar a experiência ou perceber a realidade interior dos pais, a depressão deles, a raiva ou a ansiedade serão interpretadas como declarações de fato a respeito da criança. “Eu sou como sou vista, ou como sou tratada”, conclui a criança. (Um homem de trinta e sete anos perguntou ao pai moribundo: “Por que nunca fomos chegados?” O pai respondeu, numa tirada: “Você se lembra de quando você tinha dez anos e deixou cair seu brinquedo no vaso sanitário e eu tive o maior trabalho para tirá-lo de lá?” A lista dos eventos triviais prosseguiu. O filho sentiu-se um homem livre ao sair do hospital. Ele sempre se considerara indigno do amor do seu pai; este libertou-o para uma nova auto-imagem ao revelar a própria loucura.)

3) - A criança observa os comportamentos das lutas do adulto com a vida e interioriza não apenas esses comportamentos, mas também as atitudes que eles sugerem a respeito do eu e do mundo. Por conseguinte, a criança tira grandes conclusões a respeito de como lidar com o mundo. (Certa mulher, exposta à ansiedade omnipresente da mãe, relatou que só começou a questionar a perspectiva dura e agourenta da mãe quando saiu de casa e foi morar na universidade. No primeiro ano ela supunha que os outros alunos simplesmente não sabiam como as coisas eram ruins.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:44 pm

No segundo ano ela começou a suspeitar de que era prisioneira da ansiedade da sua mãe e que poderia começar a contemplar a si mesma e ao mundo com um coração mais leve.)
As conclusões sobre o eu e o mundo baseiam-se claramente na experiência extremamente limitada de um pai e uma mãe específicos que reagem a questões particulares. Essa experiência é excessivamente personalizada pelo pensamento mágico, que diz que “toda essa experiência é organizada para mim e diz respeito a mim”; as conclusões resultantes também são exageradamente generalizadas, uma vez que só podemos avaliar o desconhecido através daquilo que conhecemos até aqui. Com início tão tendencioso, estreito e invariavelmente prejudicial, agregamos percepções, comportamentos e reacções, marchando em direcção à vida com uma visão parcial.
O carácter individual dessa defeituosa noção do eu, bem como as estratégias que são desde cedo elaboradas e moldadas muna personalidade variam segundo a natureza da experiência infantil. A partir de cada categoria de sofrimento — de abandono ou de opressão — um complexo de comportamentos se expande como reacção inconsciente e reflexa.3
Quando a criança é oprimida, ela vivencia a imensidão do Outro jorrando através de frágeis fronteiras. Por não possuir o poder de escolher outras circunstâncias de vida, por não possuir nem a objectividade de identificar a natureza do problema como Outro, e por não possuir os elementos necessários a uma experiência comparativa, a criança reage de forma defensiva, tornando-se excessivamente sensível ao ambiente e “escolhendo” a passividade, a co-dependência ou a compulsividade para proteger o frágil território psíquico. A criança aprende variadas formas de acomodação, pois a vida é vista como inerentemente opressiva para um eu relativamente impotente. Desse modo, certo homem, respondendo à incessante exigência de sua mãe de que ele superasse o pai e fosse um “sucesso”, tornou-se um profissional altamente qualificado, ao mesmo tempo que entregou-se a hábitos de consumo que levaram sua vida à falência financeira e emocional. Sua vida adulta, aparentemente a escolha de uma pessoa livre e racional, era uma aquiescência coagida diante da pressão esmagadora daquele Outro, ligada a uma rebelião inconsciente que buscava o fracasso como protesto passivo-agressivo.
Diante do abandono — ou seja, protecção e carinho insuficientes — a criança poderá “escolher” padrões de dependência e/ou passar toda a vida na busca incessante de um Outro mais positivo. Desse modo, uma mulher que na infância sofrerá de negligência passou a procurar mais tarde um parceiro após o outro, mas sempre terminava seus relacionamentos desiludida e frustrada. Em parte sua necessidade emocional afastava os homens, e em parte ela inconscientemente escolhia homens emocionalmente distantes. Seu pai nunca estivera emocionalmente disponível para ela e sua vida formou-se reflexivamente ao redor da percepção dupla e auto-destrutiva de si mesma como “aquela a quem nada darão e que portanto merece isto" a vã esperança de que o homem seguinte pudesse compensar a ferida pai-filha interior.
Essas feridas, bem como as várias reacções inconscientes adoptadas pela criança interior, tornam-se fortes determinantes da personalidade adulta. A criança não consegue incorporar uma personalidade que se expressa livremente; em vez disso, é a experiência da infância que molda seu papel no mundo. A partir do sofrimento da infância, portanto, a personalidade adulta é mais uma reacção reflexa às primeiras experiências e traumas da vida do que uma série de escolhas.
O modelo junguiano identifica essa reacção reflexa, carregada de sentimento, com a natureza do complexo pessoal. O complexo, em si mesmo, é neutro, embora conduza uma carga emocional associada a uma imagem experiencial, interiorizada. Quanto mais intensa a experiência inicial, ou quanto maior o período de tempo pelo qual ela foi renovada, mais poder tem o complexo na vida da pessoa. É impossível evitar os complexos porque temos uma história pessoal. O problema é que não somos nós que temos complexos e sim os complexos que nos possuem. Alguns complexos são úteis pois protegem o organismo humano, mas outros interferem com a escolha e podem até mesmo dominar a vida de uma pessoa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:44 pm

Os complexos são sempre mais ou menos inconscientes; são carregados de energia e operam autonomamente. Embora geralmente activada por um evento do presente, a psique opera por analogia, afirmando na prática: “Quando já estive aqui antes?” O estímulo actual pode ser apenas remotamente semelhante a algo que aconteceu no passado, mas se a situação for emocionalmente análoga, a reacção historicamente provocada é desencadeada. Existem poucas pessoas que não tem uma reacção emocionalmente carregada diante de questões como sexo, dinheiro e autoridade porque estas estão geralmente associadas a importantes experiências do passado.
De todos os complexos, os mais poderosos são as experiências interiorizadas dos pais que chamamos de complexo materno e complexo paterno. Nosso pai e nossa mãe são geralmente as duas pessoas mais importantes que já conhecemos. Eles estiveram presentes nos bons e nos maus momentos. Fomos expostos ao tratamento que eles nos deram e às suas estratégias diante da vida. Os heróis machistas de Hemmgway, por exemplo, representavam, entre outras coisas, a super-compensação da parte da criança de Oak Park, Illinois, com relação ao medo das mulheres que ele adquiriu de uma mãe que queria que ele fosse uma menina e que continuou a ser emocionalmente sedutora e invasiva mesmo depois de ele atingir a idade adulta. Franz Kafka era tão dominado pelo seu poderoso pai que encarava o próprio universo como poderoso, remoto e indiferente. Não estou de modo nenhum sugerindo que eles e outros não tenham criado uma arte importante, porque certamente o fizeram, mas a forma e o motivo particular da sua criatividade era trabalhar, compensar e, se possível, transcender os complexos paterno e materno primordiais.
Portanto, todos nós vivemos, inconscientemente, reflexos agregados do passado. Mesmo nos primeiros anos de vida, uma crescente divisão se desenvolve entre a nossa natureza inerente e o nosso eu socializado. Wordsworth observou esse facto há dois séculos quando escreveu em “Ode on Intimations of Immortality”:
O céu nos envolve em nossa infância.
As sombras da casa-prisão começam a se fechar
Sobre o menino em crescimento, ...
Finalmente o homem o vê desaparecer aos poucos,
E sumir na luz do dia comum4.
Para Wordsworth o processo de socialização era uma reparação progressiva da ideia natural do eu com a qual nascemos. Na peça de Eugene O’Neill, A Long Day’s Journey Into Night, a mãe apresenta o caso ainda mais tragicamente:
Nenhum de nós pode fazer nada a respeito das coisas que a vida nos fez. Elas são feitas antes que o percebamos. E uma vez que são feitas, elas fazem com que façamos outras coisas até que finalmente tudo se coloca entre nós e aquilo que gostaríamos de ser, e perdemos então para sempre nosso verdadeiro eu5.
Os antigos gregos perceberam essa separação há cerca de vinte e cinco séculos atrás. Suas figuras trágicas não eram más, embora pudessem às vezes cometer actos maus; eram pessoas presas ao que não conheciam a respeito de si mesmas. A hamartia (às vezes traduzida como “a trágica falha”, mas eu prefiro “a visão ferida”) representava a lente através da qual eles faziam suas escolhas. A partir da acumulação de forças inconscientes e reacções reflexas, faziam-se escolhas e seguiam-se as consequências. A trágica concepção de vida expressa nesses sinistros dramas sugeria que todos nós protagonistas dos nossos dramas particulares, podemos levar vidas trágicas. Podemos ser movidos pelo que não compreendemos a nosso respeito. O poder libertador da tragédia grega repousava no fato de que através do sofrimento o herói alcançava a sabedoria, ou seja, um relacionamento revisto entre a verdade interior (o carácter) e a verdade exterior (os deuses ou o destino). Nossa vida só é trágica à medida que permanecemos inconscientes tanto do papel dos complexos autónomos quanto da crescente divergência entre a nossa natureza e as nossas escolhas.
Quase toda sensação de crise na meia-idade é provocada pela dor dessa separação. A disparidade entre a concepção interior do eu e a personalidade adquirida torna-se tão grande que o sofrimento não mais pode ser reprimido ou compensado. Ocorre então o que os psicólogos chamam de descompensação. A pessoa continua a actuar a partir de antigas atitudes estratégicas, mas estas já não são eficazes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:44 pm

Os sintomas de aflição da meia-idade devem na verdade ser bem recebidos, pois representam não apenas um eu instintivamente firmado debaixo da personalidade adquirida, mas também uma poderosa imposição de renovação.
O trânsito da passagem do meio ocorre no temível choque entre a personalidade adquirida e as exigências do Si mesmo. Uma pessoa que passa por essa experiência frequentemente entrará em pânico e dirá: “Não sei mais quem sou”. Com efeito, a pessoa que o indivíduo foi está para ser substituída pela pessoa que será. A primeira deve morrer. Não é de causar surpresa que exista essa enorme ansiedade. O indivíduo é intimado, psicologicamente, a morrer para o velho eu para que o novo possa nascer,
Essa morte e renascimento não é um fim em si mesmo; é uma transição. É preciso passar pela passagem do meio para nos aproximarmos mais do nosso potencial e conquistarmos a vitalidade e a sabedoria do envelhecimento maduro. Por conseguinte, a passagem do meio representa uma intimação interior para que deixemos a vida provisória e avancemos em direcção à verdadeira idade adulta, do falso eu para a autenticidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:45 pm

2 - O ADVENTO DA PASSAGEM DO MEIO
* * *

A passagem do meio é um conceito moderno. Antes da repentina extensão da duração média da vida por volta da virada do século, a vida era, nas palavras de Thomas Hobbes, “desagradável, selvagem e curta”6. O desenvolvimento da área da saúde fez com que a expectativa de vida subisse para quarenta anos no início da nossa época. Basta percorrermos os cemitérios dos primeiros anos da América para ver as lamentáveis fileiras de crianças mortas por causa das febres — a peste, a malária, a difteria, a coqueluche, a varíola e o tifo, que as crianças de hoje evitam através da imunização. (Lembro-me de quando minha cidade, de cerca de 100.000 habitantes, foi fechada a todas as transacções excepto as essenciais — os parques, os cinemas e as piscinas foram interditados — por causa de uma epidemia de poliomielite.)
Aqueles que sobreviviam até uma idade mais avançada eram talvez mais fortemente controlados pelo poder das instituições sociais — a igreja, a família, os costumes sociais — do que pelos limites da duração da vida. (Vi na minha infância pessoas divorciadas me serem apontadas no mesmo tom em que se diria: “Ali vai um assassino”.) As delimitações dos sexos eram claras e absolutas, prejudicando tanto os homens quanto as mulheres. A família e as tradições étnicas davam a sensação de raízes, e algumas vezes de comunidade, mas também eram inatas e desencorajavam a independência. Esperava-se que a menina se casasse, educasse uma família, funcionasse como o eixo do sistema que sustentava e transmitia os valores. Esperava-se que o menino amadurecesse e assumisse o papel do seu pai, fosse arrimo de família mas que também apoiasse e defendesse a continuidade dos valores.
Muitos desses valores eram e ainda são louváveis mas, devido ao peso dessas expectativas institucionais sofria-se também uma grande violência espiritual. Não deveríamos aplaudir automaticamente o casamento que durava cinquenta anos sem saber o que aconteceu às almas dos que participavam do relacionamento. Talvez elas temessem a mudança e a sinceridade, e sofressem. A criança que correspondeu às expectativas de seus pais pode ter perdido a alma ao longo do caminho. A longevidade e a reprodução de valores não são por si próprias virtudes automáticas.
A ideia de que estamos aqui para nos tornarmos nós mesmos, esse ser misterioso porém absolutamente único cujos valores podem diferir dos outros membros da família, raramente era comunicada aos que viveram em épocas anteriores. Mesmo hoje, alguns a encaram como uma noção um tanto herética. Mas o moderno Zeitgeist7 se caracteriza principalmente pelo deslocamento radical para o indivíduo do poder psicológico conferido às instituições. Mais do que qualquer outra mudança, o significado no mundo moderno deslocou-se da clava e da mitra para o indivíduo. As grandes ideologias unificadoras perderam grande parte da sua energia psíquica e deixaram as pessoas de hoje num estado de isolamento. Como Matthew Arnold observou há cento e cinquenta anos, nós divagamos “entre dois mundos, um morto, e o outro impotente para nascer”.8 Seja para o bem, seja para o mal, a gravidade psíquica deslocou-se da instituição para a escolha individual. Existe hoje uma passagem do meio não apenas porque as pessoas vivam bastante tempo, mas também porque a maior parte da sociedade ocidental aceita agora o fato de que desempenhamos o papel principal na formação da nossa vida.

Pressões tectónicas e intimações sísmicas
* * *

Como foi indicado anteriormente, a passagem do meio começa como uma espécie de pressão tectónica que vem de baixo para cima. Como as placas da terra que se deslocam, roçam umas nas outras e acumulam a pressão que é expelida sob a forma de terremotos, assim colidem os planos da personalidade. A noção adquirida do eu, com suas percepções e complexos agregados, sua defesa da criança interior, começa a ranger e ringir contra o Si mesmo, que busca a própria realização.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:45 pm

Essas ondulações sísmicas podem ser dissolvidas através da consciência do ego defensiva, mas a pressão continua a crescer. Invariavelmente, muito antes de a pessoa tornar-se consciente de uma crise os indícios e os sintomas já estão presentes: a depressão reprimida, o abuso do álcool, o uso de maconha para intensificar o ato sexual, casos amorosos, constantes mudanças de emprego, e assim por diante, — esforços de, anular, desprezar ou deixar para trás as pressões interiores. A partir do ponto de vista terapêutico, os sintomas devem ser bem recebidos, pois eles não apenas servem de flechas que apontam para a ferida, como também exibem uma psique saudável auto-reguladora em funcionamento.
Jung observou que uma neurose “precisa em última análise ser compreendida como o sofrimento de uma alma que não descobriu seu significado”.9 Essa declaração não sugere que possamos consumar uma vida sem sofrimento e sim que o sofrimento já está sobre nós e somos portanto obrigados a descobrir o seu significado.
Durante a segunda guerra mundial o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer sofreu morte de mártir por opor-se a Hitler. Ele conseguiu fazer sair clandestinamente várias cartas e documentos do campo de concentração de Flensburgo. Num deles lutou com a pergunta óbvia: Deus foi de alguma maneira responsável pelo campo e suas terríveis condições? Ele compreendeu que não poderia responder a essa pergunta, mas concluiu sabiamente que sua tarefa era trabalhar com o horror e através dele para descobrir a vontade de Deus nessas circunstâncias10.
É possível, portanto, dizer que, ao sofrer as pressões tectónicas da psique, poderemos não descobrir o supremo propósito da vida, mas estamos obrigados a descobrir o significado do conflito, o choque entre os eus ocasionado pela passagem do meio. Uma vida nova emerge desse choque predeterminado, dessa morte-renascimento. Somos convidados a recobrar a própria vida, a vivê-la mais conscientemente, a extrair da desgraça um significado.
O despertar para a passagem do meio ocorre quando somos radicalmente arremessados em direcção à consciência. Já vi muitas pessoas iniciarem sua passagem do meio quando defrontadas com uma doença grave, em que há risco de vida, ou com a viuvez. Até esse momento, mesmo na casa dos cinquenta ou dos sessenta, elas tinham dado um jeito de permanecer inconscientes, a tal ponto dominadas pelos complexos ou valores colectivos que as questões personificadas pela passagem do meio haviam sido mantidas afastadas. (Serão fornecidos exemplos no próximo capítulo.).
A passagem do meio é mais uma experiência psicológica do que um evento cronológico. As duas palavras gregas para “tempo”, chronos e kairós, observam essa distinção. Chronos é um período de tempo sequencial, linear; kairós e o tempo revelado na sua dimensão profunda. Assim, para um americano, 1776 é mais do que um ano no calendário; é um evento transcendente que determina a qualidade de cada ano subsequente na história da nação. A passagem do meio ocorre quando a pessoa se vê obrigada a encarar a sua vida como algo mais do que mera sucessão linear de anos. Quanto mais ela permanece inconsciente, o que é bem fácil de acontecer em nossa cultura, mais provável é que ela encare a vida apenas como uma sucessão de momentos que conduzem a um vago objectivo, cujo propósito se tornará claro em seu devido tempo. Quando a pessoa é lançada em direcção à consciência, uma dimensão vertical, kairós, intercruza o plano horizontal da vida; o intervalo de vida da pessoa é expressado numa perspectiva profunda: “Quem sou, então, e para onde estou indo?”
A passagem do meio tem início quando o indivíduo se vê obrigado a formular novamente a pergunta sobre o significado que percorria a imaginação da criança, mas que foi apagado com o passar dos anos. A passagem do meio começa quando a pessoa precisa enfrentar questões até então evitadas. A questão da identidade volta a estar presente e o indivíduo não pode mais fugir da sua responsabilidade diante dela. Novamente, a passagem do meio começa quando perguntamos: “Quem sou eu, além da minha história e dos papéis que representei?”
Como carregamos a história da nossa vida em nossa psique como presença dinâmica e autónoma, existe forte probabilidade de sermos definidos e dominados pelo passado. Uma vez que fomos condicionados a assumir papéis institucionalizados como o de cônjuge, pai ou mãe, arrimo de família — nós projectamos nossa identidade nesses papéis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:45 pm

Assim James Agee começou seu romance autobiográfico: “Estamos falando agora sobre as noites de verão em Knoxville, no estado de Tennessee, na época em que ali vivi e fui muito bem sucedido ao me disfarçar de criança para mim mesmo”11. Todas as grandes perguntas foram feitas pela criança que fomos um dia, enquanto observávamos em silêncio os adultos, enquanto nos deitávamos à noite em nossa cama, meio temerosos, meio alegres por estarmos vivos. Mas o peso da educação escolar, a pressão da vida familiar e o processo de aculturação gradualmente substituem a sensação de admiração reverente da criança por expectativas normativas e certezas culturais. Agee encerra seu prefácio contando como era levado para a cama pelos adultos, “como um membro querido da família naquela casa: mas [eles] não me dirão, nem agora nem nunca, quem eu sou”12.
Essas grandes perguntas conferem valor e dignidade à nossa vida. Se as esquecermos, estaremos destinados ao condicionamento social, à banalidade e finalmente ao desespero. Se tivermos a sorte de sofrer bastante, somos lançados em direcção de uma consciência relutante e as perguntas voltam a nos importunar. Se formos suficientemente corajosos, nos interessarmos o bastante pela nossa vida, poderemos recuperá-la através desse sofrimento.
Embora algumas pessoas cheguem a esse encontro predestinado consigo mesmas em virtude de algum acontecimento catastrófico, todos recebemos avisos muito antes disso. O solo debaixo dos nossos pés treme tão levemente, que é fácil, no início, não dar atenção aos abalos. As intimações sísmicas, os irmãos mais velhos das pressões tectónicas, estão sempre presentes antes que nos tornemos totalmente conscientes deles.
Conheço um homem que aos vinte e oito anos já havia conseguido tudo que poderia desejar — obter o grau de doutor, constituir família, publicar um livro, conquistar excelente posição como professor. Suas primeiras intimações sísmicas, que se manifestaram anos depois, foram o tédio e a perda de energia. Ele fez então o que quase todos fazem: tornou-se mais activo dentro das mesmas áreas. Nos dez anos seguintes ele escreveu mais, teve mais filhos, ascendeu a posições ainda melhores na sua carreira de professor. Toda essa actividade podia ser racionalizada, uma vez que era exteriormente produtiva e personificava a típica ascensão profissional na qual temos a tendência de projectar a nossa identidade. Quando estava com trinta e sete anos a crescente depressão subterrânea irrompeu em sua fúria total e ele vivenciou uma fraqueza e perda de significado quase completas. Pediu demissão do emprego, abandonou a família e abriu uma casa de sorvetes em outra cidade. Estaria ele compensando em excesso sua vida anterior? Estaria ele reprimindo as perguntas benéficas e úteis que a passagem do meio estava exigindo que ele fizesse? Ou teria ele de algum modo descoberto a melhor maneira de passar a segunda metade da sua vida? Somente o tempo e ele poderão dizê-lo.
Os tremores sísmicos frequentemente ocorrem no final da casa dos vinte anos, mas é muito fácil deixarmos de dar atenção a eles nessa época. A vida está no auge; a estrada à frente acena; são fáceis as mudanças rápidas, um maior esforço e mais energia — e desprezamos os avisos. É preciso percorrer várias vezes uma pista até mesmo para saber se ela é redonda ou oval. Os padrões, com seus custos e efeitos colaterais, só podem ser distinguidos como como padrões depois de serem experimentados mais de uma vez.
Considerando retrospectivamente, somos frequentemente envergonhados, até mesmo humilhados, diante dos erros, da ingenuidade, das projecções. Mas essa é a primeira idade adulta: repleta de disparates, timidez, inibições, suposições erradas, e, sempre, da rotação silenciosa das fitas da infância. Se não tivéssemos avançado e cometido esses erros e colidido contra aquelas paredes, teríamos certamente permanecido crianças. Rever a vida a partir da posição privilegiada da segunda metade dela requer a compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsciência. Mas deixar de ficar consciente na segunda metade da vida significa cometer um crime imperdoável.
Vários sintomas ou experiências importantes que exprimem o apelo da passagem do meio são pormenorizados abaixo. Eles ocorrem de forma autónoma, fora da vontade do ego. Eles transpiram em silêncio, dia por dia, e perturbam o sono da criança interior que quer o conhecido e preza a segurança acima de tudo. Mas eles representam o inevitável movimento da vida em direcção à sua realização desconhecida, um processo teleológico que serve a natureza e seus mistérios, pouco se importando com os desejos de um ego nervoso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Set 02, 2023 7:45 pm

Um novo tipo de pensamento
* * *

Como foi explicado anteriormente, a infância se caracteriza pelo pensamento mágico. O ego da criança ainda não foi testado na prática, ainda não está claro a respeito dos limites existentes. O mundo externo e objectivo, bem como o mundo interno e do faz-de-conta são frequentemente confundidos. Os desejos parecem possibilidades, e até mesmo probabilidades. Eles representam o narcisismo da criança que quer acreditar que é o centro do cosmo. Esse tipo de pensamento é inflacionado e ilusório, mas numa criança ele é inteiramente saudável e maravilhoso. “Quando eu crescer vou usar um vestido branco e me casar com um príncipe”. “Vou ser um astronauta”. “Vou ser um cantor de rock famoso”. (Tente se lembrar de seus desejos mágicos na infância e reflicta a respeito do que a vida fez a eles.) Acima de tudo, o pensamento mágico da criança admite: “Eu sou imortal. Não vou apenas ser rico e famoso; serei protegido da morte e do definhamento” Esse tipo de pensamento prevalece mais ou menos até os dez anos de idade, embora um pouco abalado. A ilusão da superioridade e da excepcionalidade sofre alguns fortes abalos quando até as outras crianças não se deixam impressionar. (Quando eu era criança achava que talvez pudesse vir a substituir Joe Dimaggio no beisebol jogando no meio-campo para os New York Yankees. Ai de mim! Os deuses deram a Mickey Mantle a habilidade necessária.)
O pensamento mágico da criança é bastante desgastado pela dor e confusão da adolescência. Apesar de tudo, o ego não testado persiste e exibe o que poderíamos agora chamar de pensamento heróico, que se caracteriza por um maior realismo, sem dúvida, mas ainda permeado de considerável capacidade de esperança, de projecção do desconhecido através de fantasias de grandeza e realização. Podemos contemplar as tristes ruínas do casamento aos pais e afirmar: “Sou muito mais esperto do que eles e saberei escolher com mais sabedoria”. Podemos ainda esperar ser superintendente de uma grande companhia, escrever o grande romance da época ou ser mãe ou pai fantásticos.
O pensamento heróico é útil, pois, se desconfiássemos das provações e dos desapontamentos que nos esperam, quem avançaria em direcção à idade adulta? Ainda não fui convidado para fazer um discurso numa solenidade de formatura, mas, por mais abomináveis que possam ser esses pronunciamentos, mesmo assim eu talvez não tivesse coragem de dizer a verdade. Quem suportaria dizer àqueles rostos animados e esperançosos: “Daqui a alguns anos você provavelmente detestará seu emprego, seu casamento estará por um fio, seus filhos o estarão levando à loucura, você poderá estar vivenciando tanta dor e confusão a respeito da sua vida que pensará até em escrever um livro sobre ela”. Quem poderia fazer isso a esses jovens de olhar luminoso, mesmo quando eles cambaleiam pelo mesmo caminho confuso e tortuoso de seus pais?
O pensamento heróico, com suas esperanças e projecções escassamente moderadas pelos hábitos do mundo, ajuda o jovem a deixar o lar e mergulhar, como deve, na vida. O jovial Wordsworth, do outro lado do canal e presente ao início da revolução francesa, escreveu que ser jovem e estar lá era o próprio céu13. Alguns anos depois, ele iria desprezar a forma como a promessa revolucionária fora substituída pelo regime de Napoleão. E T.E. Lawrence, cansado de lutar, viu suas esperanças no deserto liquidadas pelos velhos nas conferências de paz. Ainda assim, a juventude avança, como deve, cai, recomeça e anda às cegas em direcção a um encontro com o tempo.
Podemos dizer que a pessoa se encontra na passagem do meio quando o pensamento mágico da infância e o pensamento heróico da adolescência não mais coincidem com a vida que ela vivenciou. Aqueles que passaram dos trinta e cinco anos sofreram boa dose de desapontamentos e dores de cabeça capaz de superar até mesmo as crises das paixonetas da adolescência. Qualquer pessoa na meia-idade terá testemunhado o colapso de projecções, esperanças e expectativas, e experimentado as limitações do talento, da inteligência e, frequentemente, da própria coragem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:33 am

Por conseguinte, o tipo de pensamento que caracteriza a experiência da passagem do meio é um tanto prosaicamente chamado de realista. O pensamento realista nos confere senso de perspectiva. A tragédia grega demonstrava que o protagonista poderia estar mais rico no final, porém desgraçado, por não ter retomado o relacionamento adequado com os deuses. O rei Lear de Shakespeare não era um homem mau; mas era um tolo, pois não sabia o que era o amor. Sua necessidade de ser lisonjeado o iludia; ele pagou através da sua carne e da sua sanidade e ficou mais rico.
Desse modo, a vida nos leva em direcção a uma perspectiva diferente, a uma acomodação da inflação e da arrogância, e ensina a diferença entre esperança, conhecimento e sabedoria. A esperança se baseia no que poderia ser. O conhecimento é a lição valorizada da experiência. A sabedoria é sempre humilde, jamais inflacionária. A sabedoria de Sócrates, por exemplo, era a certeza de que ele não sabia nada (mas o seu “nada” era muito maior do que as certezas dos sofistas e dos supostos sábios da sua época ou da nossa).
O pensamento realista da meia-idade tem como meta obrigatória o restabelecimento do equilíbrio, a restauração de um relacionamento humilde, porém digno da pessoa com o universo. Um amigo meu me disse certa vez que sabia quando começou sua passagem do meio. Ela chegou como um pensamento, uma frase em sua cabeça, cuja verdade era evidente por si mesma. Esse pensamento foi o seguinte: “Minha vida nunca será o todo, somente as partes”. Sua psique estava anunciando para ele que as expectativas inflacionárias da juventude não seriam alcançadas. Essa compreensão poderá ser sentida por alguns como uma derrota, mas outros serão levados a fazer a seguinte pergunta:
“Que trabalho precisa então ser feito?”


Mudanças na identidade
* * *

Admitindo-se a oportunidade de um período de vida completo, passamos por uma série de diferentes identidades. Faz parte do projecto natural do ego administrar a ansiedade existencial da pessoa estabilizando o mais possível a vida. Mas a natureza da vida claramente presume e exige a mudança. Num período que varia aproximadamente de sete a dez anos ocorre uma importante transformação física, social e psicológica na pessoa. Pense em quem você era aos 14, 21, 28 e 35 anos, por exemplo. Embora todos nós estejamos estirados ao longo de um continuum, temos transições comuns a fazer. É possível generalizar esses ciclos e identificar uma programação social e psicológica para casa fase. Embora o ego arrogantemente suponha que está no comando da vida e que a sua visão se sustentará nos anos vindouros, existe claramente um processo autónomo, uma inevitável dialéctica, que provoca repetidas mortes e renascimentos. Reconhecer a inevitabilidade da mudança, e seguir seu fluxo, é uma sabedoria subtil e necessária, mas a nossa tendência natural é resistir à destruição daquilo que conseguimos realizar14.
A popularidade do livro Passages de Gail Sheehy há alguns anos confirma a importância do tema da mudança periódica. Não obstante, como sugeriram Mircea Eliade, Joseph Campbell e outros observadores do cenário social e antropológico, nossa cultura perdeu o mapa rodoviário mítico que ajuda a localizar uma pessoa num contexto mais amplo. Sem a visão tribal dos deuses, e portanto da sua rede espiritual, os indivíduos de hoje estão à deriva e sem orientação, sem modelos e sem ajuda para atravessar os diversos estágios da vida. Desse modo, a passagem do meio que exige a morte antes do renascimento, é frequentemente vivenciada de forma assustadora e separadora, pois não existem ritos de passagem e quase nenhuma ajuda dos companheiros que estão igualmente à deriva.
Além das muitas subfases, sendo cada qual uma transição que exige algum tipo de morte, existem na vida quatro fases principais, cada qual com o poder de definir a identidade da pessoa.
A primeira identidade, a infância, se caracteriza principalmente pela dependência do ego com relação ao mundo objectivo dos pais. A dependência física é óbvia, mas a dependência psíquica, na qual a criança se identifica com a família, é ainda maior.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:33 am

Nas culturas antigas a idade adulta começava com o despertar da puberdade. Não importa o quão geográfica, cultural e ideologicamente diferentes as tribos, todas desenvolviam importantes ritos de passagem da dependência da infância para a independência da idade adulta.
Apesar da disparidade existente entre as práticas de iniciação, os ritos tradicionais de passagem envolviam tipicamente seis estágios. Resumidamente, eles eram os seguintes: 1) a separação dos pais, frequentemente através de um rapto ritual; 2) a morte, na qual a dependência da infância é “morta”; 3) o renascimento, com o qual o novo ser, apesar de incipiente, é favorecido; 4) os ensinamentos, no qual ensina-se ao neófito os mitos fundamentais da tribo para fornecer-lhe a ideia de um local espiritual, dos privilégios e responsabilidades dessa tribo particular, e do conhecimento da caça, da educação dos filhos e das demais actividades necessárias ao desempenho das actividades da idade adulta; 5) a provação, que envolve mais frequentemente uma outra separação para que o iniciado possa aprender que existe uma força interior que deve ser para enfrentar a tarefa exterior; e, finalmente, 6) o retorno, através do qual a pessoa reingresse na comunidade com o conhecimento, a base mítica e a força interior necessárias ao desempenho do papel de adulto. Amiúde o iniciado até mesmo recebia um novo nome, condizente com a transformação radical.
O rito de iniciação esperava alcançar a separação dos pais, a transmissão da história sagrada da tribo que visava o fornecimento da base espiritual e a preparação para as responsabilidades da idade adulta. Não existem ritos de passagem para a idade adulta significativos em nossa cultura, de modo que muitos jovens prolongam sua dependência. Nossa cultura perdeu suas âncoras míticas e tornou-se tão heterogénea, que só podemos transmitir as crenças no materialismo, no hedonismo e no narcisismo do século vinte — misturadas com algumas técnicas de processamento de dados. Nada disso proporciona a salvação, a ligação com a terra e seus grandes ritmos, nem significado ou profundidade à nossa jornada.
A segunda identidade começa na puberdade, Mas sem os tradicionais ritos de passagem o jovem se caracteriza pela confusão espiritual e instabilidade do ego. O ego incipiente é bastante maleável e vítima da influência dos companheiros e da cultura pop, ambas adquiridas de outros adolescentes confusos. (Muitos terapeutas consideram que a adolescência se estende aproximadamente dos doze aos vinte e oito anos na América do Norte. Cheguei à conclusão, depois de leccionar durante vinte e seis anos, que o papel cultural original das universidades era o de servir de tanque de retenção enquanto os jovens procuravam solidificar suficientemente o ego, visando alcança um rompimento mais permanente com a dependência dos pais. Com efeito, grande parte do seu amor e do seu ódio pelo pai e pela mãe foi desviada para sua Alma Mater)
A segunda passagem tem como tarefa fundamental portanto, a solidificação do ego através da qual o jovem reúne força suficiente para deixar os pais, ingressar no mundo maior, e lutar pela sobrevivência e pela realizarão do desejo. Essa pessoa precisa dizer ao mundo: “Contrate-me. Case-se comigo. Confie em mim”. E depois provar que tem valor. Às vezes, na meia-idade, a pessoa ainda não deu os passos decisivos que a afastam da dependência e a conduzem ao mundo. Algumas ainda podem estar vivendo com os pais. Outras podem não ter a força e o valor pessoal necessário para arriscar se envolver num relacionamento. Outras ainda podem não ter conseguido enfrentar as tarefas profissionais com a força e decisão necessárias. No caso dessas pessoas, o corpo pode ter cronologicamente chegado à meia-idade, mas seu kairós ainda é a infância.
Chamo de primeira idade adulta o período que se estende aproximadamente dos doze aos quarenta anos. O jovem que sabe, bem no íntimo, que não possui clara noção do eu só pode tentar agir como os outros adultos. É uma ilusão compreensível achar que se nos comportarmos como nossos pais, ou nos rebelarmos contra seu exemplo, seremos desse modo um adulto. Se conseguirmos um emprego, nos casarmos, formos pais e pagarmos nossos impostos, a confirmação da idade adulta certamente se seguirá. Com efeito, o que ocorreu foi que a dependência da infância tornou-se parcialmente submersa e foi projectada sobre os papéis da idade adulta. Esses papéis assemelham-se a túneis paralelos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:33 am

Saímos da confusão da adolescência e caminhamos por esses túneis supondo que eles confirmarão nossa identidade, tornar-nos-ão realizados e paralisarão os horrores do desconhecido. A primeira idade adulta, que pode na verdade se estender por toda a vida, é uma existência provisória, destituída da profundidade e da qualidade única que torna a pessoa um verdadeiro indivíduo.
A extensão desses túneis é indeterminada. Eles resistem enquanto a identidade projectada sobre eles e a dependência deles ainda parassem funcionar. É praticamente impossível dizer a uma pessoa de trinta anos que tem um emprego produtivo, é casada e está com segundo filho a caminho que ela está numa forma de infância prolongada. Os complexos paterno e materno bem como a autoridade dos papéis oferecidos pela sociedade possuem poder suficiente para atrair as projecções de qualquer um que ainda esteja explorando a vida no mundo. Como foi indicado anteriormente, o Si mesmo, esse processo misterioso que tem lugar dentro de cada um de nós e que nos convoca para nós mesmos, frequentemente se expressa através de sintomas — mas o poder das projecções é tão grande que podemos manter afastadas as principais questões da jornada. Como é terrível; então quando as projecções se desgastam e a pessoa não mais consegue evitar a revolta do Si mesmo. Ela precisa então admitir sua impotência e perda de controlo. O ego nunca esteve no controle, mas, ao contrário, é dirigido pela energia dos complexos maternos, paterno e colectivo, sustentado pelo poder das projecções sobre os papéis oferecidos pela cultura àqueles que tencionam se tornar adultos. Enquanto os papéis tiverem poder normativo, enquanto as projecções funcionarem, o indivíduo conseguirá evitar o encontro com o Si mesmo inerente.
A terceira fase da identidade, a segunda idade adulta, tem início quando as projecções da pessoa se dissolvem. A sensação de traição, do fracasso das expectativas, o vazio e perda de significado que ocorrem com essa dissolução, criam a crise da meia-idade. E nessa crise, contudo que a pessoa tem a oportunidade de tornar-se um indivíduo — além do determinismo dos pais, dos complexos paterno e materno e do condicionamento cultural. Tragicamente, o poder regressivo da psique, com seu apoio na autoridade, frequentemente mantém a pessoa escrava desses complexos, impedindo desse modo o desenvolvimento. O trabalho com os idosos, em que cada um tem de enfrentar a perda e antever a morte, expõe claramente duas categorias. Existem aqueles para quem a parte que resta da vida ainda está repleta de desafios, ainda merece bom esforço e aqueles para quem a vida está cheia de amargura, arrependimento e medo. Os primeiros são invariavelmente aqueles que passaram por uma luta anterior, experimentaram a morte da primeira idade adulta e aceitaram maior responsabilidade pela sua vida. Eles passam seus últimos anos vivendo de modo mais consciente. Os que evitaram a primeira morte são perseguidos pela segunda, com medo de que sua vida não tenha sido significativa.
As características da segunda idade adulta serão analisadas de modo mais completo nos capítulos posteriores. Mas é importante observar aqui que só é possível alcançá-la quando as identidades provisórias são abandonadas e o falso eu é destruído. A dor dessa perda pode ser compensada pelas recompensas da nova vida que se segue, mas a pessoa envolvida na passagem do meio poderá sentir apenas a morte. A quarta identidade, a mortalidade, que envolve aprender a viver com o mistério da morte, também será discutida mais tarde, mas já na segunda idade adulta é essencial aceitar a realidade da morte.
As boas-novas que se seguem à morte da primeira idade adulta é que podemos reivindicar nossa vida. Um segundo tiro é lançado na direcção do que foi deixado para trás nos momentos prístinos da infância. As boas-novas oriundas do nosso confronto com a morte é que nossas escolhas realmente importam e que nossa dignidade e profundidade derivam precisamente do que Heidegger chamou de “o Ser-em-direção-à-morte”15. A definição de Heidegger da nossa condição ontológica não é mórbida e sim reconhecimento dos objectivos teleológicos da natureza, a dialéctica do nascimento-morte.
Outra maneira de examinar essas identidades em transformação é classificar seus diferentes eixos. Na primeira identidade, a infância, o eixo actuante é o relacionamento entre os pais e a criança. Na primeira idade adulta, o eixo se encontra entre o ego e o mundo. O ego, o ser consciente da pessoa, luta para se projectar no mundo e criar um mundo dentro do mundo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:33 am

A dependência da infância foi levada para o inconsciente e/ou projectada sobre vários papéis, e o indivíduo orienta-se basicamente para o mundo exterior. Na segunda idade adulta, durante e depois da passagem do meio, o eixo passa a ligar o ego ao Si mesmo. É natural que a consciência suponha que sabe tudo, e que está dirigindo o espectáculo. Quando sua hegemonia é derrubada, o ego humilhado começa então a dialogar com o Si mesmo. Este último pode ser definido como a finalidade teleológica do organismo. Trata-se de um mistério que está além da nossa compreensão e seu esclarecimento nos proporcionará uma magnificência maior do que o nosso curto período de vida possivelmente é capaz de encarnar.
O quarto eixo liga o Si mesmo a Deus, ou o Si mesmo ao Cosmos, como preferirem. Esse eixo é moldado pelo mistério cósmico que transcende o mistério da encarnação individual. Se não tivermos algum relacionamento com o drama cósmico, estaremos restringidos a uma vida efémera, superficial e árida. Como a cultura que quase todos nós herdamos oferece muito pouca mediação mítica para que o eu seja colocado num contexto mais amplo, é absolutamente imperativo que o indivíduo amplie sua visão.
Esses eixos em transformação delineiam os altos e baixos da alma. Quando somos arrastados de um eixo para outro independentemente da nossa vontade, podem se seguir a confusão e até mesmo o terror. Mas a natureza da nossa qualidade humana parece obrigar cada um de nós a avançar em direcção a um papel cada vez maior no grande drama.


A retirada das projecções
* * *

A projecção é um mecanismo fundamental da psique, uma estratégia originária do fato de que aquilo é inconsciente é projectado. (A palavra “projecção” vem do vocábulo latino pro+jacere, atirar a frente). Jung escreveu que “a razão psicológica genérica da projecção” é sempre um inconsciente activado que busca expressão”16. Ele declara em outra obra: “A projecção nunca é formada; ela acontece, está simplesmente presente. Na escuridão de qualquer coisa exterior a mim, eu encontro, sem reconhecê-la como tal, uma vida interior ou psíquica que me pertence”17.
Diante do terrível mundo exterior e da imensidão desconhecida do interior, nossa tendência natural é projectar a nossa ansiedade sobre nossos pais, pois os julgamos omniscientes e omnipotentes. Quando somos obrigados a deixá-los, temos a tendência de projectar o conhecimento e o poder sobre as instituições, as figuras de autoridade e os papéis socializados (os túneis mencionados acima). Admitimos que agir como os adultos significa tornarmo-nos um deles. Os jovens que ingressam na primeira idade adulta não podem saber então que os adultos são frequentemente crianças num corpo e em papéis avantajados. Alguns podem até acreditar que são os seus papéis. Os menos inflacionados têm mais consciência das suas incertezas, enquanto aqueles que se encontram na passagem do meio e além dela estão vivenciando a dissolução das suas projecções.
Entre as muitas projecções possíveis, as mais comuns ocorrem sobre as instituições do casamento, da paternidade, da maternidade, e da carreira. Falarei depois mais a respeito do papel da projecção no casamento, mas talvez nenhuma estrutura social esteja submetida a uma tão grande bagagem inconsciente. Poucos têm consciência no altar da enormidade das suas expectativas. Ninguém ousaria proclamar em voz alta as imensas esperanças: “Conto com você para conferir significado à minha vida”, “Conto com você para estar sempre ao meu lado quando eu precisar”. “Conto com você para ler minha mente e antever todas as minhas necessidades”. “Conto com você para curar minhas feridas e preencher as deficiências da minha vida”. “Conto com você para me completar, para me tornar uma pessoa completa, para curar minha alma ferida”. Do mesmo modo como a verdade não pode ser dita num discurso de formatura, também a programação oculta não pode ser proclamada no altar. Ficaríamos por demais embaraçados se tomássemos conhecimento dessas expectativas, pela sua própria impossibilidade. A maioria dos casamentos que chegam ao fim são rompidos pelo peso dessas expectativas, e aqueles que persistem são com frequência intensamente marcados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:34 am

O romance se alimenta do que é distante, imaginado, projectado; o casamento sorve o mingau comum da proximidade, da ubiquidade e da mediocridade.
Robert Johnson sugere, em seu livro He, que a maioria das pessoas modernas, pouco à vontade agora com os antigos sistemas míticos, transferiram as necessidades da alma para o amor romântico18. Com efeito, as imagens do ser amado são carregadas dentro de cada um de nós desde a infância e projectadas sobre aquele capaz de receber nosso material inconsciente. Nas palavras do poeta persa Rumi:
No momento em que ouvi minha primeira história de amor comecei a procurar por você, sem saber o quão cego eu estava. Os amantes não acabam finalmente encontrando-se em algum lugar. Eles estão um no outro o tempo todo19.
Viver diariamente com outra pessoa desgasta automaticamente as projecções. A pessoa a quem entregamos a nossa alma, a quem abrimos a nossa intimidade, acaba demonstrando ser apenas mero mortal como nós, temerosa, necessitada e que também projecta intensas expectativas. Os relacionamentos íntimos de qualquer tipo carregam grande peso porque são os que têm maior probabilidade de repetir o Outro Íntimo que outrora foi o pai ou a mãe. Não queremos pensar no nosso parceiro como pai ou mãe. Afinal de contas, gastamos muita energia para nos afastar deles. Mas o ser amado torna-se esse Outro íntimo, sobre quem são projectadas as mesmas necessidades e a mesma dinâmica, no mesmo grau em que estamos inconscientes. Não é de causar surpresa, então, que as pessoas acabem escolhendo alguém o mais parecido ou diferente possível dos seus pais, pelo simples motivo que os complexos paterno e materno participam o tempo todo da escolha. Quando os povos bíblicos declararam que o casamento exigia que se deixasse a mãe e o pai20, não imaginavam que isso fosse tão difícil. Assim, a retirada das projecções de protecção, poder e cura que lançamos sobre o Outro íntimo só pode ser parcialmente concretizada. A discrepância entre a esperança silenciosa e a realidade cotidiana provoca uma dor considerável durante a passagem do meio.
Outro papel que recebe fortes projecções de identidade é a paternidade ou a maternidade. Quase todos nós nos julgamos capazes de saber o que é adequado para nosso filho. Temos certeza de que podemos evitar os erros que nossos pais cometeram. Inevitavelmente, porém, todos somos culpados de projectar a vida que não vivemos sobre nossos filhos. Jung observou que o maior fardo que uma criança precisa carregar é a vida não vivida de seus pais. A mãe e o pai “corujas” são estereótipos, mas o ciúme que o pai ou a mãe pode sentir do sucesso do filho também é extremamente insidioso. Desse modo, um fluxo constante de mensagens, abertas e ocultas, bombardeiam a criança. Esta portará consigo a raiva e a mágoa dos pais e sofrerá a amplitude total das manipulações e coerções. O pior de tudo é que podemos inconscientemente esperar que a criança faça com que nos sintamos felizes com nós mesmos, que preencha nossa vida e nos conduza a um local mais elevado.
Quando atingimos a passagem do meio, nossos filhos já estão na adolescência e são espinhentos, carrancudos, rebeldes e geralmente tão irritantes quanto fomos com nossos pais, e resistem furiosos às nossas projecções. Se compreendermos o quão difíceis e perigosos os complexos paterno e materno são como obstáculos para a jornada do indivíduo em direcção à individualidade, saberemos que esses adolescentes estão certos ao resistir à exigência de que sejam extensões dos seus pais. Não obstante, a lacuna entre as expectativas da paternidade ou maternidade e os atritos da vida familiar causam ainda mais dor àqueles que se encontram na passagem do meio. O desapontamento só pode ser atenuado se nos lembrarmos do que desejamos que nossos pais soubessem, que a criança só passa através do nosso corpo e da nossa vida a caminho do mistério da sua vida. Quando o pai ou a mãe na meia-idade consegue aceitar este fato, a ambivalência da paternidade e da maternidade alcança sua perspectiva adequada.
Freud acreditava que o trabalho e o amor eram os requisitos fundamentais da sanidade. Nosso trabalho representa uma grande ocasião tanto para o significado quanto para sua negação. Se, como afirmou Thoreau muito tempo atrás, a maioria das pessoas leva uma vida de desespero silencioso21, certamente é porque o trabalho para muitos indivíduos é degradante e desmoralizante. Mesmo aqueles que conseguiram as posições a que aspiravam frequentemente darão consigo estranhamente tomados pelo tédio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:34 am

Conheci muitos estudantes que se formaram em administração de empresas ou se tornaram programadores de computador porque os pais, ou o substituto destes, a sociedade amorfa, parecia exigi-lo. Tanto aqueles que alcançam seu desejo quanto os que são pressionados a satisfazer a necessidade de outra pessoa, frequentemente acabam entediados com sua carreira. Para cada aspirante na escalada profissional existe um executivo exausto que anseia por uma vida diferente. Nossa carreira, como o casamento e a paternidade ou a maternidade, é um veículo fundamental para a projecção da 1) identidade, que julgamos ser confirmada através do visível domínio de um conjunto de habilidades. 2) protecção, que receberemos ao sermos produtivos; e 3) transcendência, que superará a insignificância do espírito através de sucessivas realizações, Quando essas projecções se dissolvem, e a insatisfação com a maneira como estarmos usando a energia vital não pode mais ser deslocada, encontramo-nos na passagem do meio.
Quanto mais tradicional o casamento, quanto mais rígido o papel de cada sexo, mais provável é que os parceiros se vejam arrastados para direcções opostas. Ele chegou ao topo da montanha e tudo o que consegue ver dali é o estacionamento de uma grande companhia. Ele de bom grado diminuiria o ritmo ou se aposentaria. Ela, tendo-se dedicado totalmente à vida familiar, sente-se enganada, desvalorizada e estagnada, e quer voltar à escola ou encontrar um trabalho renovador. Para os homens, a questão do trabalho na meia-idade frequentemente causa depressão, diminuição da esperança e da ambição. As mulheres que recomeçam a vida profissional ou escolar frequentemente experimentam ansiedade em relação ao seu nível de competência ou de capacidade de competir. Mais uma vez, existem más notícias e boas notícias. As más notícias estão ligadas ao fato de que cada um dos parceiros esgotou uma importante área de projecção de identidade e deseja recomeçar. As boas notícias dizem respeito ao fato de que uma genuína renovação pode surgir dessa insatisfação e outra faceta do potencial do indivíduo pode ser explorada para benefício de todos. Outra má notícia é que uma projecção só pode ser trocada por outra; mas, mesmo assim, a pessoa se aproxima mais daquele encontro com o Si mesmo. Se um dos cônjuges se sente ameaçado pela mudança, e resiste, ele pode estar certo de que passará a conviver com um parceiro zangado e deprimido. Na provação do casamento, a mudança não ocorrerá necessariamente para melhor, mas será inevitável. De outro modo, o casamento poderá não sobreviver, especialmente se impede o crescimento de qualquer um dos parceiros.
Ainda outra projecção, que precisa ser dissolvida na meia-idade, está relacionada com o papel do pai ou da mãe como o protector simbólico. Geralmente, na meia-idade, os pais da pessoa estão perdendo seus poderes ou estão doentes. Mesmo quando o relacionamento com os pais foi problemático ou distante, um dos pais, ou ambos, ainda estão simbolicamente presentes para proporcionar uma barreira psíquica invisível. Enquanto a figura do pai ou da mãe estiver viva, sobreviverá um amortecedor psíquico contra o desconhecido e perigoso universo. Quando ela é removida, a pessoa frequentemente sente o sopro da ansiedade existencial. Uma cliente minha, de quarenta e poucos anos, sofreu ataques de pânico quando seus pais, de setenta e poucos anos, resolveram se divorciar amigavelmente. Ela sabia que o casamento deles nunca dera certo, mas mesmo assim funcionava para ela como escudo invisível contra aquele grande universo. Mesmo antes da morte deles, o divórcio abalou a protecção invisível — mais uma maneira de nos sentirmos sozinhos e abandonados na meia-idade.
Embora existam muitos outros tipos de projecção que não conseguem sobreviver à primeira idade adulta, a perda de expectativas com relação ao casamento, aos filhos, à carreira e aos pais como protectores são as que mais se destacam.
Em Projection and Re-Collection in Jungian Psychogy, Marie-Louise von Franz descreve cinco estágios de projeção22. Primeiro, a pessoa se convence de que a experiência interior (ou seja, inconsciente) é verdadeiramente exterior. Segundo, ocorre um reconhecimento gradual da discrepância entre a realidade e a imagem fitada (quando se deixa de amar alguém por exemplo). Terceiro a pessoa se vê obrigada a reconhecer essa discrepância. Quarto, ela é levada a concluir que estava de algum modo errada originalmente. E, quinto, a pessoa precisa procurar dentro de si mesma a origem da energia fitada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:34 am

Este último estágio, a busca do significado da projecção, sempre envolve a busca de conhecimento de Si mesmo.
A erosão das projecções, o retraimento das esperanças e expectativas que elas personificam, é quase sempre dolorosa, mas é um pré-requisito necessário do autoconhecimento. A perda da esperança de que os elementos externos venham a nos salvar da origem à possibilidade de que tenhamos de salvar a nós mesmos. Para cada criança interior, cheia de medo e procurando abrigo no mundo adulto, existe um adulto potencialmente capaz de assumir a responsabilidade por essa criança. Ao tornarmos consciente o conteúdo das projecções estamos dando, um grande passo em direcção, à emancipação da infância.


Mudanças no corpo e na noção de tempo
* * *

A atitude geral da primeira idade adulta é projectarmos o nosso senso de inflação juvenil sobre o futuro indeterminado. Quando a energia esmorece é muito fácil descartar o fato. Talvez não tenhamos dormido o suficiente na noite anterior. Depois voltamos a ter o mesmo desempenho que antes, mas não nos recuperamos com a mesma facilidade. E as pequenas dores e incómodos persistem.
O jovem geralmente acha que pode contar incondicionalmente com o corpo. Este sempre estará presente para nos proteger e podemos recorrer profundamente a ele quando necessário, e ele sempre reabastecerá a si mesmo. Mas chega o dia em que percebemos, mais uma vez, que uma inevitável transformação está ocorrendo independentemente da nossa vontade. O corpo se torna um inimigo, um antagonista relutante no drama heróico no qual nos lançamos. As esperanças do coração persistem, mas o corpo não mais responderá como antigamente. Nas palavras do lamento de Yeats: “Consome o meu coração; doente de desejo/e preso a um animal moribundo”23. Aquele que foi o humilde servo do ego torna-se agora um rude oponente; sentimo-nos encurralados dentro do corpo. Não importa o quanto o espírito deseje voar, aquilo que Alfred North Whitehead chamou de “a testemunha do corpo”24 nos chama de volta à terra. Assim também, o tempo, que certa vez pareceu o palco de uma eterna peça, o campo distante de uma luz que sempre retorna, também se transforma numa armadilha. A mudança, a repentina peripeteia24a , nos faz reconhecer não apenas que somos mortais, que existe um fim, mas também que não há como algum dia realizarmos tudo o que o coração persegue e pelo que anseia. “Apenas as partes, nunca o todo”, concluiu meu amigo. O corpo gracioso, a capela mortuária; o interminável verão, um giro na escuridão — é essa ideia de limitação e imperfeição que faz com que a primeira idade adulta chegue ao fim. Dylan Thomas escreveu belas e profundas linhas a respeito desse trânsito:
Não me importava, nos dias brancos como a neve, que o tempo me levasse
Para o sótão apinhado de andorinhas pela sombra da minha mão, Na lua que está sempre nascendo.
Nem aquela jornada para o sono
Eu o ouviria voar com os campos elevados
E despertar para a fazenda
para sempre ida da terra sem crianças.
Oh! Enquanto eu era jovem e dócil à mercê dos recursos dele,
O tempo me tornou pálido e agonizante,
Embora eu cantasse em meus grilhões como o mar25.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:35 am

A diminuição da esperança
* * *
Quando os cordões do oração apertam de repente, e tomamos consciência de que somos mortais, as limitações da nossa vida tornam-se repentinamente inevitáveis. O pensamento mágico da infância, bem como o pensamento heróico da adolescência estendida, denominada primeira idade adulta, revelam-se inadequados para as realidades da vida. O ego imperial e expansionista desvia as inseguranças da infância, transformando-as em algo grandioso. “Fama: viverei para sempre; aprenderei a voar”. As esperanças de imortalidade e celebridade do ego incipiente são directamente proporcionais ao medo e à ignorância infantil diante do mundo. Analogamente a amargura e a depressão da meia-idade estão relacionadas com a quantidade de energia investida nos desejos fantásticos da infância.
O ego precisa estabelecer uma base segura num universo grande e desconhecido. Analogamente ao atol de coral que se forma através da incorporação de fragmentos esqueletais, o ego também reúne fragmentos de experiências, montando-os numa estrutura à qual ele possa se agarrar nas grandes mudanças ocasionais. É natural que a consciência do ego chegue à conclusão de que precisa se defender das experiências avassaladoras da vida e compensar suas inseguranças através da grandiosidade. Na nossa insegurança, a ilusão de grandeza serve para manter as trevas afastadas quando vamos dormir à noite. Mas tropeçar na mediocridade é o fermento amargo da meia-idade. E mesmo aqueles que se tornam famosos, que dão nome a hotéis, que levam os filhos à loucura, não conseguem mais do que nós escapar do encontro com a limitação, com o enfraquecimento e com a mortalidade. Se os componentes do poder e do privilégio conferissem paz ou significado, ou mesmo satisfação duradoura, os desejos infantis que projectamos conteriam alguma substância.
Outra esperança da juventude relacionada com o ego é o desejo do relacionamento perfeito. Embora tenhamos visto proliferar à nossa volta relacionamentos imperfeitos, temos a tendência de supor que somos de algum modo mais sábios, mais capazes de escolher, que estamos mais bem equipados para evitar os revezes da vida. O Alcorão adverte: “Crês que entrarás no Jardim da Bem-aventurança sem enfrentar as provas pelas quais passaram os que vieram antes de ti?”26 Imaginamos que esse conselho seja dirigido aos outros. Embora o assunto vá ser tratado com mais detalhes neste livro, a segunda maior deflação das expectativas da meia-idade é o encontro com as limitações dos relacionamentos. O Outro Intimo que satisfará nossas necessidades, que tomará conta de nós, que sempre estará presente para nos apoiar, é finalmente visto como pessoa comum, como nós mesmos, também necessitada, e que projecta sobre nós expectativas bastante semelhantes às nossas. Os casamentos frequentemente terminam na meia-idade, e uma das principais causas é a enormidade das esperanças infantis que se impõem sobre a frágil estrutura existente entre duas pessoas. Os outros não satisfarão e nem podem satisfazer as necessidades grandiosas da criança interior de modo que somos deixados, e sentindo-nos abandonados e traídos.
As projecções personificam o que não é reclamado ou é desconhecido dentro de nós. A vida tem uma maneira de dissolver as projecções e precisamos, em meio ao desapontamento e ao desconsolo, começar a assumir a responsabilidade pela nossa satisfação. Não há ninguém lá fora para nos salvar, tomar conta de nós, curar nossas feridas. Mas existe uma excelente pessoa dentro de nós, alguém que pronta e disposta a ser a nossa constante companheira. Somente quando reconhecemos a deflação das esperanças e expectativas da infância e aceitamos a responsabilidade directa de encontrar por nós mesmos o significado é que a segunda idade adulta pode começar.
Conheci um homem que reconheceu que seu problema fundamental era a inveja. Por definição, inveja é a percepção de que outra pessoa tem aquilo que ardentemente desejamos. Embora esse homem tivesse sofrido privações genuínas na infância, ele ainda se definia de maneira negativa: “Eu sou aquela ausência que vê sua plenitude em outra pessoa”. Reconhecer que não podemos reviver a infância e nem podemos reverter a sua história, que ninguém preencherá magicamente nosso vazio interior, é certamente doloroso, mas é aí que tem início o possível caminho da cura. O mais difícil é ter confiança de que a nossa psique se revelará suficiente para curar a si mesma. Mais cedo ou mais tarde, é preciso que ocorra esse salto para a confiança em nossos recursos pessoais, caso contrário continuaremos a busca infrutífera das fantasias da infância. O abandono dessas ilusões de imortalidade, perfeição e grandiosidade ajuda muito a envenenar nosso espírito e nossos relacionamentos. Na experiência de separação de nós mesmos e dos outros, contudo, repousa o potencial para o isolamento no qual podemos discernir a grandeza do ser interior.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:35 am

A experiência da neurose
* * *
Assim como o amor romântico pode ser encarado como loucura temporária, na qual as pessoas tomam decisões para a eternidade baseada nas emoções do momento, também a turbulência da passagem do meio pode assemelhar-se a uma crise psicótica na qual a pessoa age como se fosse “louca” ou se afasta dos outros. Se entendermos que as suposições nas quais a pessoa se apoiou a vida toda estão desmoronando, que as estratégias reunidas pela personalidade provisória estão se desequilibrando, que uma perspectiva de mundo está se desintegrando, então a agitação é perfeitamente compreensível. Com efeito, podemos até mesmo chegar à conclusão de que não existe um ato de loucura se compreendermos o contexto emocional. Nós não escolhemos as emoções; são elas que nos escolhem, e possuem uma lógica toda particular.
Um cliente de uma clínica psiquiátrica repetidamente atirava cadeiras pelas janelas. Acreditava-se que ele queria fugir e ele foi então encarcerado. Entretanto, depois de cuidadoso interrogatório, descobriu-se que ele acreditava que o ar estava sendo bombeado para fora do seu quarto e que ele precisava, portanto, de respirar ar puro. Sua sensação de encerramento psíquico havia se convertido simbolicamente em claustrofobia. Seu desejo de mais ar era lógico, considerando as premissas emocionais. Quando foi transferido para um aposento mais espaçoso, sentiu-se seguro. Seu comportamento não era louco. Ele estava representando logicamente a experiência psicológica de encerramento e asfixia.
Assim, durante a passagem do meio, quando a grandeza da emoção invade as fronteiras do ego, frequentemente tornamos concreto o que é simbolicamente ferido ou negligenciado. O homem que fogo com a secretária está morrendo de medo de que sua vida interior, sua dimensão feminina perdida, murche e desapareça para sempre. Como essa necessidade é amplamente inconsciente, ele projecta essa mulher interior desaparecida sobre a mulher exterior. A mulher que sofre uma depressão está voltando para dentro de si sua raiva indesejada, sobre a única pessoa que ela tem permissão de atacar. Nenhuma dessas pessoas é louca, embora possa ser assim considerada pelos outros. Ambas estão reagindo à enormidade das necessidades e emoções que as perseguem exactamente numa época em que seus mapas da realidade não mais correspondem ao terreno.
Um excelente exemplo de loucura significativa pode ser encontrado no conto de Philip Roth, “Eli, the Fanatic”.27 A história se passa logo depois da segunda guerra mundial quando o mundo estava repleto de deslocados de guerra, e Eli é um advogado estabelecido numa região suburbana dos Estados Unidos. Quando um grupo de sobreviventes de um campo de concentração é enviado para sua cidade, Eli recebe a incumbência de atenuar a identidade étnica dessas pessoas. Por sua vez, ele se vê confrontado com o vazio da própria identidade e seu vínculo superficial com sua herança racial. Por fim ele troca seu terno pelo traje surrado do velho rabino e percorre a rua principal da sua cidade entoando seu nome bíblico. A cena final da história o descreve sendo encarcerado e recebendo uma forte dose de tranquilizante. Ele é considerado louco, quando na verdade simplesmente livrou-se da sua personalidade provisória, descartou-se das armadilhas e projecções da ascensão social e reposicionou-se dentro de uma antiga tradição. Como sua nova identidade não é condizente com a matriz geralmente aceita, ele é considerado “louco” e sua nova consciência é medicada. Poderíamos fazer sobre ele o mesmo comentário de Wordsworth sobre Blake: “Algumas pessoas acham que este homem está louco, mas prefiro a loucura dele à sanidade de outros”28.
A experiência da lacuna cada vez maior entre a noção adquirida do eu, com todas as suas estratégias e projecções resultantes, e as exigências do Si mesmo que jaz enterrado debaixo da nossa história, é conhecida de todos nós, pois todos nos sentimos separados de nós mesmos. A palavra “neurose,” inventada pelo médico escocês Cullen no final do século XVIII, sugere que estamos vivenciando um processo neurológico. Mas a neurose, ou o chamado colapso nervoso, não tem nada a ver com a neurologia. Trata-se simplesmente do termo usado para descrever a divisão intrapsíquica, e o subsequente protesto da psique. Todos somos neuróticos porque experimentamos uma separação entre o que somos e o que fomos destinados a ser.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 11:35 am

O protesto sintomático da neurose, que se manifesta na depressão, no abuso de substâncias ou no comportamento destrutivo, é negado o maior tempo possível. Mas os sintomas reúnem nova energia e começam a actuar autonomamente, fora da vontade do ego. É tão inútil dizer a uma pessoa que esteja fazendo dieta para não sentir fome quanto pedir a um sintoma que se afaste. O sintoma, mesmo quando contraproducente, é significativo, pois exprime de forma simbólica aquilo que anseia por se expressar.
O que o indivíduo assustado deseja acima de tudo é o restabelecimento da noção do eu que anteriormente deu certo. O que o terapeuta sabe é que os sintomas são indícios úteis que conduzem ao local da injúria ou da negligência, apontando o caminho para a cura subsequente. O terapeuta também sabe que a experiência da neurose da meia-idade, quando pode ser enfrentada, representa uma enorme abertura à transformação. Jung afirmou: “O irromper da neurose não é apenas uma questão de probabilidade. Por via de regra ela é extremamente crítica. É geralmente o momento em que um novo ajustamento psicológico, uma nova adaptação é exigida”29. Isso implica que a nossa própria psique organizou essa crise, produziu esse sofrimento, precisamente porque houve uma injúria e a mudança precisa ocorrer.
Lembro-me frequentemente do sonho de uma mulher que começou a fazer análise aos sessenta e cinco anos, logo depois da morte do mando. Ela havia crescido com um relacionamento muito forte e positivo com o pai e tinha um poderoso complexo paterno. Seu marido era vários anos mais velho do que ela. Naturalmente, ela estava arrasada com a morte de ambos. Ela buscou consolo junto a um clérigo que sugeriu que fizesse terapia. Inicialmente ela achou que a terapia acabaria com a sua dor. Como era de se esperar, ela projectou uma considerável autoridade sobre o terapeuta.
Vários meses depois de começar a análise, ela teve um sonho no qual ela e seu falecido marido estavam juntos numa jornada. Quando chegaram a uma ponte sobre um riacho, ela percebeu que havia esquecido a bolsa. Seu marido prosseguiu viagem e ela voltou para buscar a bolsa Depois ela voltou e, ao chegar à mesma ponte, foi abordada por um desconhecido que se aproximou dela pela esquerda cruzando a ponte com ela. Ela explicou ao estranho que seu marido havia seguido na frente, mas também que ele havia morrido. “Sinto-me tão só, tão só”, queixou-se. “Eu sei”, retrucou o homem, “mas foi bom para mim”.
Tanto no sonho quanto ao relatá-lo mais tarde, a mulher estava zangada com o estranho por mostrar-se tão insensível à sua aflição. Eu fiquei entusiasmado com o sonho, pois ele demonstrava uma definida mudança psicológica. Embora seu pai e seu marido estivessem de fato mortos, continuavam a desempenhar um papel dominante na definição de si mesma. O complexo paterno, aparentemente benigno, representara uma autoridade externa, que a impedira de encontrar a própria. A ponte representava a capacidade de ela fazer a transição da autoridade exterior para a interior. E o desconhecido representava seu princípio masculino interior, o animus, que não se desenvolvera em virtude do poder do complexo paterno. Este é um bom exemplo da sabedoria maravilhosa e auto-reguladora da psique; o sofrimento do seu ego provocara o crescimento de um componente interior que não estava sob o domínio do pai. Sua passagem do meio começou, portanto, aos sessenta e seis anos de idade, quando ela partiu numa jornada para reclamar a própria identidade e a própria autoridade, ambas condições indispensáveis para a idade adulta.
Outra maneira de encarar a neurose é considerar que o sofrimento resulta de um grau considerável de dissociação. Durante o processo de responder ao processo de socialização da infância e à pressão das realidades externas, nós nos tornamos progressivamente afastados de nós mesmos. Os protestos interiores são reprimidos pelo peso do mundo exterior. Na meia-idade, porém, a injúria e a negligência da alma podem ser tão grandes que algumas partes da psique resistem tenazmente a insultos adicionais. Essa resistência se manifesta através de sintomas. Em vez de tentar medicar e afastar sua mensagem, devemos manter um diálogo com eles para provocar a “nova adaptação” a que Jung se refere acima.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 7:30 pm

É extremamente difícil para aqueles que estão sofrendo muito, na noite escura da alma, aceitar que sua dor é boa para eles, como o disse o homem misterioso do sonho acima descrito. Não existe cura, pois a vida não é uma doença, nem a morte uma punição. Mas existe um caminho que conduz a uma vida mais abundante e significativa.
Lembro-me de uma mulher com uma história de grande sofrimento, que começa com uma passagem turbulenta para a vida e um corpo deformado, períodos de negligência e abandono, e uma série de relacionamentos dependentes e humilhantes. Na meia-idade seu mundo desmoronou e ela voltou-se para dentro de si para procurar a pessoa que nunca conhecera. A palavra que ela usou para descrever a provação da passagem do meio foi “fragmentação”. Muitos sofreram essa fragmentação, e muitos, compreensivelmente, fogem para um baluarte protegido de neurose e se agacham diante do vento da mudança. Mas quando perguntei a essa mulher o que ela fez quando se sentiu fragmentada, quem ela era durante esse doloroso processo, ela respondeu com palavras que me disseram claramente que ela conseguiria vencer e alcançar uma vida mais autêntica. Eis o que me disse: “Falo com esta parte de mim, e depois escuto. Falo então com aquela outra parte, e depois escuto. E tento aprender o que a psique deseja de mim”.
Ela referiu-se à psique como uma presença viva, um conhecimento feminino que a orientaria. Algumas pessoas diriam: “Ela está ouvindo vozes; ela é esquizofrénica.” Muito pelo contrário. Todos ouvimos vozes, por assim dizer; são os complexos — partes de nós mesmos que falam connosco, e nós, quando não os ouvimos conscientemente, nos tornamos seus prisioneiros. Essa mulher estava assistindo ao diálogo entre o ego e o Si mesmo, o diálogo que pode curar a separação que a história criou. Sua capacidade de confiar nesse processo interior é tão necessária quanto rara. A natureza não está contra nós. O poeta Rilke observou encantadoramente que nossos dragões interiores podem na verdade procurar nossa ajuda:
Como poderíamos ser capazes de esquecer os antigos mitos que estão no início de todos os povos, os mitos a respeito de dragões que no último momento se transformam em princesas; talvez todos os dragões da nossa vida sejam princesas que estão apenas esperando para nos ver uma vez belos e bravos. Talvez tudo que existe de terrível seja bem no fundo algo indefeso que precisa da nossa ajuda30.
A ajuda atenciosa ajuda a transformar esses dragões em fontes de energia para a renovação.
Lembremo-nos de que Jung define a neurose como “o sofrimento que não descobriu o seu significado”31. Com efeito, o sofrimento parece ser um pré-requisito para a transformação da consciência. Em outra obra Jung-sugere que a neurose é “um sofrimento não autêntico”32. O sofrimento autêntico requer encontros com os dragões. O Sofrimento não autêntico implica fugir deles.
Se Jung e Rilke estiverem certos, e eu acho que estão, nossos dragões representam tudo o que tememos e que ameaça nos engolir: mas eles também são partes negligenciadas de nós mesmos que podem demonstrar imenso valor. Quando levados a sério, e até mesmo amados por nós, eles responderão fornecendo enorme energia e grande significado para a jornada da segunda metade da vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 7:30 pm

3 - VOLTANDO-SE PARA O INTERIOR
* * *
O projecto central da primeira metade da vida gira em torno da formação da identidade do ego. Todos nós conhecemos alguém que realmente nunca saiu de casa. Às vezes a pessoa vive literalmente com a mãe e o pai e toma conta deles; outras vezes ela pode viver do outro lado da rua, na mesma comunidade, ou mesmo a mil quilómetros de distância e ainda estar sob a influência deles. A pessoa que não se separou psicologicamente dos pais ainda está presa a eles. O projecto da primeira metade da vida está incompleto.
A identidade do ego, quando insuficientemente formada, abceca e impede o desenvolvimento na segunda metade da vida. O preparo para a segunda idade adulta exige mais do que a mera separação geográfica dos pais. É preciso que tenhamos encontrado uma maneira de empregarmos produtivamente a nossa energia. Isso não significa apenas ter um emprego; significa que sentimos um desafio diante de uma tarefa e nos consideramos produtivos ao realizá-la.
É preciso também que haja um compromisso maduro com o relacionamento. A incapacidade de fazer concessões, de nos mantermos firmes nos inevitáveis atritos dos relacionamentos, representa um fracasso básico na tentativa de obtermos um sentimento da nossa realidade psíquica. Além disso, devemos estar de algum modo envolvidos como cidadãos no mundo exterior. Todos nós já tivemos momentos em que tivemos vontade de nos afastar da loucura do mundo, e um recolhimento ocasional certamente pode renovar a alma. Mas fugir para sempre significa evitar o posterior desenvolvimento da identidade pessoal. Mais uma vez, Jung expressou com eloquência essa tarefa:
O curso natural da vida requer que o jovem sacrifique sua infância e sua dependência infantil dos pais físicos, para que não permaneça preso em corpo e alma nos laços do incesto inconsciente33.
O medo é um desafio e uma tarefa, porque somente a coragem pode livrar-nos do medo. E se não corrermos o risco, o significado da vida será de algum modo violado, e todo o futuro condenado a uma deterioração sem esperança, a um cinzento opaco iluminado apenas por quimeras e ilusões34.
Como já vimos, até mesmo a identidade do ego satisfatoriamente concluída pode ser abalada na meia-idade. A dor decorrente de um relacionamento fracassado, a indiferença por parte daqueles que deveriam nos apoiar e nos salvar, a perda do entusiasmo pela ascensão profissional — todos representam a erosão das projecções do ego e do sentimento de identidade até então por eles sustentados. Por mais êxito que tenhamos tido na consolidação do estado do ego, na construção de um mundo pessoal, as deflações da passagem do meio são vivenciadas como confusão, frustração e perda de identidade.
Frequentemente, quando estamos passando pela passagem do meio, as questões não concluídas da primeira metade da vida tornam-se dolorosamente visíveis. Ao presenciarmos o fracasso do nosso casamento, por exemplo, podemos nos ver diante da dependência tácita que ele encobria. Podemos vir a perceber que havíamos projectado o complexo paterno ou materno sobre o cônjuge, ou ainda que não temos nenhuma aptidão ou confiança profissional. É aí que os problemas da primeira metade da vida voltam a nos atormentar, gerando ressentimento e desejo de culparmos alguém.
Um dos choques mais violentos da passagem do meio, é o colapso do nosso contrato tácito com o universo — a suposição de que, se agirmos correctamente, se nossas intenções forem boas e sinceras, as coisas darão certo. Supomos uma reciprocidade com o universo. Se fizermos a nossa parte, o universo aquiescerá. Muitas histórias da antiguidade, inclusive o livro de Jó, dolorosamente revelam o fato de que não existe tal contrato, e todos os que passam pela passagem do meio tomam consciência disso. Ninguém se casa, por exemplo, sem grandes esperanças e boas intenções, não importa o quão incertas e variáveis as circunstâncias. Quando nos erguemos entre os fragmentos de um relacionamento, perdemos não apenas o parceiro como também toda uma perspectiva de mundo.
Talvez o choque mais violento seja a erosão da ilusão de supremacia do ego. Por mais bem sucedido que tenha sido o projecto de ego, ele não mais pode exercer o controlo. O colapso do ego significa que não estamos mais realmente no controle da vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 7:30 pm

Nietzsche observou certa vez o quão consternados ficam os seres humanos quando descobrem que não são Deus. Para isso basta percebemos que não somos nem mesmo capazes de administrar adequadamente a nossa vida. Jung enfatizou o tremor que ocorre quando descobrimos que não somos senhores em nossa própria casa. Assim, salvo o choque, a confusão, e até mesmo o pânico, o resultado fundamental da passagem do meio é sermos humilhados. Sentamos com Jó sobre o monte de esterco, despojados da ilusão, e nos perguntamos onde foi que tudo saiu errado. Não obstante, a partir dessa experiência uma nova vida pode surgir. A força adquirida na luta da primeira metade da vida pode ser agora convocada para o encontro com a segunda. Se o nosso ego não for forte, seremos incapazes de efectuar a mudança do eixo ego-mundo para o ego-Si mesmo. O que foi deixado por fazer durante a separação e a solidificação do ego permanece um obstáculo ao crescimento do futuro indivíduo.
A vida é impiedosa quando nos pede para crescermos e assumirmos a responsabilidade pela nossa vida. Por mais simplista que isso possa parecer, o crescimento é realmente a inevitável exigência da passagem do meio. Ele envolve finalmente enfrentarmos nossas dependências complexos e temores sem a mediação de terceiros. Requer que deixemos de culpar os outros pelo nosso destino e assumamos total responsabilidade pelo nosso bem-estar físico, emocional e espiritual. Meu analista me disse certa vez: “Você deve fazer dos seus temores sua ordem do dia”. Tratava-se de uma tremenda perspectiva, mas eu conhecia a verdade de sua afirmação. Essa ordem do dia estava exigindo uma explicação e esta iria necessitar de toda a força que eu pudesse reunir.
Durante a passagem do meio, frequentemente ainda temos obrigações para com os filhos, com a realidade económica e as exigências do dever. Não obstante, mesmo enquanto o mundo exterior continua a reclamar nossos esforços, precisamos nos voltar para dentro de nós para crescer, para mudar, para encontrar a pessoa que é objectivo da jornada.


O diálogo entre a persona e a sombra
* * *
O desmoronar do domínio do ego, da ilusão de que sabemos quem somos e que estamos no controle, conduz invariavelmente a um embate entre a persona e a sombra. Esse diálogo, que ocorre na meia-idade, representa um equilíbrio necessário da personalidade entre a Realpolitik da sociedade e a verdade do indivíduo.
A persona (“máscara,” em latim) é uma adaptação mais ou menos consciente do ego às condições da vida social. Desenvolvemos muitas personas, papéis que são ficções necessárias. Comportamo-nos de uma maneira com nossos pais, de outra com nosso patrão e de outra ainda com o nosso cônjuge ou namorado. Embora a persona seja uma superfície comum de contacto necessária com o mundo exterior, temos a tendência não apenas de confundir a persona das outras pessoas com a verdade interior delas, mas também de achar que nós também somos os nossos papéis. Como foi indicado anteriormente, quando nossos papéis mudam vivenciamos uma perda do eu. A persona imita a individualidade, mas fundamentalmente, como observa Jung, ela “não é real: é um acordo entre o indivíduo e a sociedade”35. No mesmo grau em que nos identificarmos com a persona, nosso eu socializado, ficaremos ansiosos ao sermos arrancados da adaptação exterior para nos voltarmos para a realidade interior. Um dos aspectos da passagem do meio, portanto, é uma alteração radical no nosso relacionamento com a nossa persona.
Como grande parte da primeira metade da vida envolve a formação e a manutenção da persona, frequentemente negligenciamos a nossa realidade interior. Examinemos a sombra, que representa tudo o que foi reprimido ou que passou desapercebido36. A sombra contém tudo o que é vital, porém problemático — a raiva e a sexualidade, com certeza, mas também a alegria, a espontaneidade e a chama criativa não aproveitada. Freud comentou sucintamente que o preço da civilização é a neurose. As exigências da sociedade, começando com a nossa família de origem, divide os conteúdos psíquicos e a sombra se estende. Esta última representa a mortificação da natureza da pessoa em favor dos valores sociais colectivos. Consequentemente, a confrontação com a sombra e sua integração favorecem a cura da divisão neurótica e uma programação de crescimento. Jung concluiu que
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A PASSAGEM DO MEIO - James Hollis Empty Re: A PASSAGEM DO MEIO - James Hollis

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 7:31 pm

Embora até aqui se tenha acreditado que a sombra humana era a origem de todo o mal, podemos afirmar agora, com base numa investigação mais profunda, que ela não consiste apenas de tendências moralmente repreensíveis, mas que também exibe muitas qualidades boas, como instintos normais, reacções apropriadas, insights realistas, impulsos criativos etc37.
Quando atingimos a meia-idade já conseguimos reprimir uma grande parte da nossa personalidade. A raiva, por exemplo, frequentemente explode durante a passagem do meio porque fomos encorajados a reprimi-la. A raiz indo-germânica angh, da qual se originam as palavras anger, ansiedade, angústia e angina, significa “contrair”. Praticamente toda socialização representa uma constrição dos impulsos naturais, e portanto deve-se esperar uma crescente acumulação de raiva. Mas para onde foi a energia associada a esses impulsos naturais? Frequentemente ela alimenta nossas ambições cegas e nos conduz aos narcóticos para amortecer a sua intensidade, ou faz com que maltratemos a nós mesmos e aos outros. Quando ensinam a alguém que a raiva é um pecado ou uma falha moral, a pessoa se separa da sua verdadeira experiência de constrição. Quando reconhecida e canalizada, a raiva pode ser um enorme estímulo para a mudança. O indivíduo simplesmente se recusa a viver de forma não-autêntica a partir daí. Considerando-se um investimento para a vida toda na persona, o encontro da sombra com a raiva é sem dúvida problemático, mas alcançar a liberdade de sentir a própria realidade é um passo necessário em direcção à cura da divisão interior.
Outros encontros com a sombra também são dolorosos quando somos obrigados a reconhecer um contínuo catálogo de emoções que geralmente não são aceitáveis para o mundo da persona, como o egoísmo, a dependência, a luxúria e o ciúme. Antes, podíamos negar essas qualidades e projectá-las sobre outras pessoas — ele é vaidoso, ela é excessivamente ambiciosa, e assim por diante. Na meia-idade, porém, a capacidade de enganarmos a nós mesmos é esgotada. Olhamos de manhã no espelho e vemos o nosso inimigo — nós mesmos. Embora o encontro com as nossas qualidades inferiores possa ser doloroso, o fato de as reconhecermos faz com que a sua projecção sobre os outros comece a se retrair. É preciso muita coragem para dizermos que o que está errado no mundo está errado em nós, que o que está errado no casamento está errado em nós, e assim por diante. Mas, nesses momentos de humildade, começamos a melhorar o mundo que habitamos, e damos origem às condições que favorecem a cura de nossos relacionamentos e de nós mesmos.
O compromisso com nós mesmos também significa recuarmos e recolhermos o que foi deixado para trás: a joie de vivre, o talento não aproveitado, as esperanças da criança. Se pudéssemos ver a nossa psique como um mosaico, não seríamos capazes de contar, e muito menos de viver, todas as peças, mas cada uma que é confirmada cura e gratifica a alma ferida. Desse modo, o homem que queria aprender a tocar piano, a mulher que ansiava por ir para a faculdade ou passear de barco no lago numa tarde de verão — cada um deles pode realizar o sonho que por razão foi deixado para trás. Não escolhemos nosso equipamento psíquico, mas podemos escolher amar ou negligenciar seu conteúdo. Ainda assim, muitos de nós não nos sentimos livres para reconhecer a nossa própria realidade. Não tivemos apoio suficiente dos nossos pais, ou a aceitação deles diante da vida; interiorizamos essa negligência e a interdição implícita contra vivermos o nosso potencial. Conseguir permissão para viver a própria realidade é essencial na meia-idade. O fato de sermos mortais, de o tempo ser limitado, e de que ninguém nos libertará do fardo da responsabilidade pela nossa vida, serve de poderoso incentivo para que sejamos mais completamente nós mesmos.
Durante a passagem do meio à revolta da sombra faz parte de um esforço neutralizante realizado pelo Si mesmo para devolver o equilíbrio à personalidade. A chave para a integração da sombra, a vida não vivida, é compreender que as exigências dela provêm do Si mesmo, que não deseja mais repressão ou uma representação não autorizada. A integração da sombra exige que vivámos com responsabilidade na sociedade, mas também que sejamos mais sinceros com nós mesmos. Aprendemos através da deflação do mundo da persona que temos vivido uma vida provisória; a integração das verdades interiores, alegres ou desagradáveis, é necessária para o surgimento de nova vida e para a restauração da finalidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Set 03, 2023 7:31 pm

Problemas de relacionamento

* * *Como foi demonstrado anteriormente, nada contém um potencial maior para a dor e o desapontamento na meia-idade do que uma longa intimidade como a do casamento. Esses relacionamentos carregam o fardo da criança interior. Levamos para o relacionamento muita esperança, grande necessidade e enorme capacidade de desapontamento. Qualquer um que olhe para trás na meia-idade deve estremecer diante da enormidade das escolhas como o casamento e a carreira, feitas frequentemente décadas antes, e da inconsciência a partir da qual elas foram feitas. Os jovens sempre se apaixonaram, juraram compromisso para toda a vida e geraram bebés. Eles continuarão a fazê-lo. Mas, durante a passagem do meio, muitos confrontarão a si mesmos e aos seus parceiros, colocando enorme tensão no relacionamento. Com efeito, existem poucos casamentos na meia-idade, quando sobrevivem, que não estejam sob grande tensão. Ou o divórcio é o evento extraordinário que desencadeia a passagem do meio, ou o casamento torna-se ponto central para as pressões tectónicas.
Precisamos reflectir mais profundamente sobre a natureza da intimidade para aprendermos mais a respeito do papel e da importância do relacionamento durante a passagem do meio. Claramente a pessoa a quem entregamos a nossa alma carrega um grande peso. Além disso, a cultura moderna frequentemente supõe que casamento e amor romântico são sinónimos. Na maior parte da história o casamento serviu como um veículo para a conservação e transmissão dos valores, da etnia, da tradição religiosa e do poder. Os casamentos de conveniência têm uma ficha melhor do que os que se baseiam na continuação do amor, o mais impalpável dos sentimentos. Analogamente, os casamentos fundamentados na dependência mútua podem dar certo enquanto a morte ou o destino não intervém. (Um antigo colega meu, arrasado pela experiência do Holocausto, casou-se com uma mulher que tinha a metade da sua idade e que passou a cuidar da vida dele, o que trouxe imensa satisfação para ambos.) Na verdade, considerando os relatos sobre casamentos, tudo indica que as uniões baseadas em necessidades práticas têm probabilidade maior de durar do que as fundamentadas em expectativas românticas e projecções mutuas. Como comentou George Bernard Shaw,
Quando duas pessoas estão sob a influência da mais violenta, da mais insana, da mais ilusória e da mais efémera das paixões, é-lhes exigido jurar que permanecerão continuamente nessa condição perturbada, anormal e exaustiva, até que a morte as separe

O diagrama abaixo mostra as transacções que ocorrem tipicamente nos relacionamentos heterossexuais.

No nível consciente temos relações do ego com outras pessoas, mas não estabeleceríamos uma união romântica com base nesse relacionamento do ego. Essa honra cabe à anima e ao animus, que são os elementos contra-sexuais mais ou menos conscientes da psique.
Resumindo, a anima representa a experiência interiorizada do aspecto feminino no homem, que inicialmente é influenciada pela mãe e outras mulheres, além de colorida por algo desconhecido e único para ele. Essa experiência da anima representa o relacionamento do homem com o próprio corpo, com seus instintos, com seus sentimentos e sua capacidade de relacionamento com os outros. O animus da mulher é a sua experiência do princípio masculino, influenciado pelo pai e pela cultura, mas também misteriosamente único para ela. Ele personifica seu senso prático, suas aptidões e capacidade de concentrar suas energias e alcançar seus desejos no mundo. Apesar disso, a verdade fundamental do relacionamento é que projectamos no Outro tudo o que não experimentamos conscientemente de nós mesmos. As setas na diagonal mostram essa projecção de anima/animus para o ego, e vice-versa39. Dentre as inúmeras pessoas de sexo oposto, só nos sentiremos atraídos por algumas, aquelas que são boas iscas para a projecção e que podem, pelo menos temporariamente, sustentá-la. Essa dinâmica diagonal está por trás do que chamamos de amor romântico.
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