LUZ ESPÍRITA
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:41 pm

Nesse instante, pude escutar o médico amigo da família, que velava à sua cabeceira, proclamar:
— Ela partiu!...
O ambiente era de profunda paz e ninguém se entregara ao desespero, facilitando o desprendimento de nossa irmã, que enfrentara com resignação a prova que lhe houvera sido reservada.
Repousando ela nos braços do esposo desencarnado, permanecemos no recinto durante mais algumas horas e, quando o féretro se dispôs a partir, tomamos, os quatro, outra direcção.
— Será, Manoel - perguntei ao companheiro -, que eu tinha esse direito?
— Que direito, Doutor?...
— Atender assim ao chamado de alguém... Quem sou eu para deliberar sobre a hora da desencarnação de quem quer que seja? Pelas minhas mãos, já nasceu muita gente, mas é a primeira vez que participo da morte de uma pessoa... Estou me sentindo estranho!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:41 pm

Capítulo 11
— Estou me sentindo estranho, Manoel! E o pior é que gostei da experiência...
— Como assim, Doutor?
— Cooperar para que alguém, quando chega a hora, se liberte do fardo que nos impõe tantas lutas na Terra...
Sem dúvida, o corpo físico se nos constitui em bendita oportunidade. Todavia a quantos perigos, de espírito invigilante, nos expomos no mundo!
— Deste Outro Lado, continuamos a ter corpo, Doutor - lembrou-me o amigo, como se fora a voz articulada de minha própria consciência - componente que, em muitas ocasiões, voluntariamente olvidamos.
— Você tem razão - concordei - e, para nós, o corpo que envergamos na actualidade não difere tanto daquele que nos revestia... É que nos habituamos a culpar a matéria pelas mazelas do espírito!
Chegando ao Hospital, acomodamos Maria Helena num quarto em semipenumbra e solicitei ao serviço de enfermagem que providenciasse uma música suave em surdina que lhe facilitasse o sono reparador. Com certeza, ela deveria dormir por alguns dias, refazendo as energias exauridas. Raros são os espíritos que, ao deixarem o corpo, se mostram em condições de agir; quase todos necessitamos de um período de readaptação mais ou menos longo às nossas novas condições. O desenlace, para a maioria, assemelha-se à experiência de alguém que efectue, por vários dias, uma viagem de navio e que, quando chega ao porto, por vezes ainda guarda a impressão de estar em alto-mar...
Saindo dos aposentos de nossa irmã, que se desapegara de tudo com tanta facilidade - eis um dos benefícios da doença que confere ao homem a possibilidade de reflectir, antes da chegada da morte -, um dos nossos auxiliares veio me pedir a atenção para um dos internos que, havia tempo, esperava para falar comigo.
— Pelo jeito, o senhor anda muito ocupado, não, Doutor? - disse-me em tom provocador. — Os médicos continuam tão desatenciosos aqui quanto o eram na Terra... Nada mudou! Tenho ouvido muito falar em mudança... Balela! A morte não faz a justiça que precisava fazer... O senhor me perdoe o desabafo.
— Não tem de quê, meu irmão, pode continuar respondi.
Eu conhecia tipos como Desidério: sempre reivindicando, sempre colocando nos outros a culpa pela própria situação...
— O senhor precisa ter tempo para me ouvir; em 5, 10 minutos eu não lhe contarei a minha história... Parece-me que o senhor só tem tempo para os outros! Estou certo ou estou errado? Já lhe mandei recados, escrevi bilhetes...
— Desidério, nós já conversamos n vezes...
— O senhor me escuta, mas não me ouve! Eu preciso solucionar o meu problema... Quando eu estava encarnado, todos me evitavam, e aqui está sendo a mesma coisa; até os enfermeiros fogem de mim... O que é que está havendo? Eu não tenho nenhuma doença contagiosa...
Ou tenho?...
— Fale, Desidério, fale! - redargui, percebendo que, para mim, aquela era a dose diária do medicamento que a Vida me prescrevia à enfermidade da impaciência. — Sou todo ouvidos. Pode falar...
— Então, vamos nos sentar, mas, se o senhor ficar consultando o relógio...
— Meu filho, nesta casa de loucos, assim como eu e você, temos centenas de pacientes... Eu não posso ficar escutando-o o dia todo. Fale com o Manoel Roberto, é a mesma coisa...
— Não, não é; o Manoel Roberto não manda nada aqui e, depois, eu converso com ele e ele me pede para conversar com o senhor... Eu sei que aqui tem muita gente, mas ninguém com um problema igual ao meu... Aqui, não há quem sofra como eu sofro!
— Então, vamos directo ao assunto, Desidério; pode falar...
— Calma, Doutor; só porque eu não estou pagando a consulta... Eu não sei quem paga, mas alguém está pagando por mim; de graça, eu sei que não vai ficar... O senhor é um homem muito bom, porém precisa deixar de ser orgulhoso; hoje sou eu, amanhã será o senhor...
— Você está certo, Desidério...
— Não, eu não quero que o senhor concorde comigo; aliás, eu quero que o senhor me conteste... Eu não gosto de quem me passe a mão na cabeça... Está vendo? O senhor está me tolerando, mas não está nem aí... Quando eu estiver falando, quero que o senhor me olhe nos olhos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:41 pm

— Estou olhando, Desidério - disse, fazendo o possível para não explodir. — Pode falar... Eu estou com conjuntivite; cheguei ainda há pouco da Terra e, como sempre, havia muita fumaça lá embaixo...
— O senhor deve estar me gozando, não é?
Conjuntivite?! Fale sério comigo, Doutor... O meu problema é sério e, como deve saber, envolve muita gente.
— Você precisa de nos ajudar, meu filho, fazer alguma coisa para se sentir útil...
— Um homem como eu, sem nenhuma saúde?... O senhor, aqui, só está vendo a casca!... Ninguém acredita em mim, nem mesmo o senhor... Não vai adiantar falar; estou perdendo o meu tempo... Mal abro a boca e todo o mundo me manda trabalhar. Ora, veja os calos nas minhas mãos!...
— Acalme-se, Desidério! Eu não estou duvidando de você...
— Com o perdão da má palavra, Doutor, vocês, os espíritas, não são tão bons quanto parecem...
— Nisso você está certo: concordo em género, número e grau... Você está se tornando um sábio, Desidério!
— Eu bem que podia ser espírita, mas ninguém me dá atenção... Eu sou médium, Doutor! Não é obsessão, não: o que eu tenho é mediunidade mesmo...
— Mas qual é o seu problema?... Não faça tantos rodeios, Desidério. Vá directo ao assunto...
— É tanta coisa, que nem sei por onde começar; quando vou criando coragem, o senhor me interrompe...
Não fale nada, Doutor, só me ouça... Se houver alguma coisa para falar, fale depois.
— Está bem - respondi, no limite mas eu ainda tenho que cuidar de um punhado de coisas hoje...
— O senhor considera muito perder um único dia comigo? Não, eu não vou falar... Muito obrigado pela sua atenção. Fica para outra hora, quando o senhor tiver mais tempo...
— Desidério, nós estamos aqui conversando há quase meia hora...
— Cronometrou, não é? Não estou dizendo?... Aqui ninguém gosta de mim; não sei por que ainda não me mandaram embora... O senhor, Doutor - me desculpe a franqueza -, é um homem vaidoso...
— Orgulhoso, vaidoso... Mais o quê, Desidério?
— E irónico também. Pronto!
— Completou a lista?... Era o que você queria me dizer?
— Não, não era, mas fica sendo. Quando o senhor se dispuser a me ouvir com atenção, quem sabe, amanhã, conversaremos.
— Amanhã, eu não posso, Desidério...
— Como não podia hoje e como não poderá depois de amanhã, não é?
— Mas, você não desembucha, meu filho! - respondi num impulso.
— Alto lá, Doutor! Também não precisa de me desrespeitar assim...
— Desculpe-me. Eu não tive a intenção...
— Pode não ter tido, mas me magoou. Olhe, Doutor, esta palavra que o senhor me disse está me doendo muito... Toda a vida eu fui pobre, mas se tem uma coisa que eu não aceito é ser humilhado.
— Perdoe-me, Desidério!...
— Está bem, eu vou perdoar, mas fiquei muito ressentido... Procurei o senhor para falar e, uma vez mais, o senhor não me deixou. Vai me ficar devendo...
— Deve ser alto o montante da minha dívida...
— Como?!...
— O que devo a você, Desidério, e a todo o mundo aqui...
— Bem, como já é a segunda vez que o senhor olha para o relógio, eu vou embora; no entanto, retiro-me frustrado... Não pense que se livrará de mim com facilidade. Enquanto eu não conversar com o senhor, eu não lhe darei trégua; afinal de contas, é para isso que foi designado no cargo que ocupa...
E, estendendo-me a mão, disse com toda a diplomacia:
— Até logo, Doutor. Passe muito bem!...
— Até logo, Desidério!
Assim que ele se retirou, fazendo um esforço imenso para me controlar, pedi ao jovem enfermeiro que me chamasse, às pressas, o Manoel Roberto ao consultório.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:42 pm

Capítulo 12
Antes, porém, que, prevalecendo-me de nossa intimidade, eu lhe passasse uma repreensão, Manoel Roberto foi logo se explicando:
— Eu não tenho culpa, Doutor; a maioria dos nossos internos não quer tratar nada comigo... De há muito, com a sua anuência, havíamos agendado uma entrevista com o Desidério.
— A enésima entrevista, você quer dizer... O nosso amigo é portador de um desequilíbrio crónico e creio que somente a medida terapêutica de um novo esquecimento no corpo poderá beneficiá-lo.
— O Cláudio também está aí fora...
— O Cláudio! - exclamei, como fazia numa daquelas segundas-feiras no Sanatório, quando os internos em melhores condições ficavam, ansiosos, aguardando a minha chegada. — E o que ele deseja?
— O mesmo de sempre: encontra-se depressivo e tem se mostrado refractário ao tratamento...
— Faça-o entrar, Manoel.
— Como é que tem passado, Cláudio? - cumprimentei-o, analisando-o em seu visível abatimento.
— Mais ou menos - respondeu-me, com a voz embargada.
— Anime-se, homem!
— Eu quero morrer, Doutor...
— Mas você já morreu, Cláudio!...
— Eu não aguento mais...
— Não aguenta mais o quê, meu filho? - indaguei, sinceramente compadecido.
— Esta vida que, para mim, não tem sentido... Eu já não conseguia enxergar nenhum sentido nela quando estava na Terra, e, agora, muito menos ainda.
— Como assim, Cláudio?
— O senhor veja, Doutor: a luta pela Evolução...
Eu não quero evoluir e não pretendo ser coisa alguma. Desde que eu me entendo por gente, é só problema... Eu gostaria de não existir!
— Não fale assim - argumentei, na tentativa de melhorar-lhe a auto-estima-; todos somos filhos de Deus e fomos criados para a felicidade...
— Felicidade, Doutor! O senhor me desculpe, mas eu não sei o que é e, a rigor, nunca me deparei com alguém inteiramente feliz; para continuar vivendo, o homem mente para si mesmo...
— Estamos crescendo, Cláudio... Pela imperfeição que nos caracteriza, quase todos somos espíritos mais ou menos insanos. Você está assim porque se sente limitado. Acredite! Interesse-se pela alegria e a alegria haverá de se interessar por você.
— Crescendo para o quê? Qual a finalidade de tanto esforço?...
— Alcançar a nossa integração com o Criador, nos realizarmos...
— E o que acontecerá depois? Admitindo como verdadeira a hipótese a que o senhor se refere, o que haverá além? O descanso eterno?! Ora, Doutor, isso seria, antes, a eterna depressão...
— Passaremos a cooperar com Deus na sua Obra, na condição de co-criadores, à semelhança de Jesus Cristo...
— Para morrer numa cruz?!... Não, Doutor; o senhor me perdoe, mas esse destino não me interessa; eu não tenho a menor vocação para o sacrifício... Queria ser única e tão-somente um homem comum, sem qualquer obrigação de nada. Por que criou Deus o Bem e o Mal?
Por que Ele não criou só o Bem?...
— Cláudio, meu filho, se você direccionasse a sua inteligência no sentido de encontrar respostas para as questões que transcendem!... No entanto, você só conversa mediante pontos de interrogação, acrescentando angústia às suas próprias angústias.
Pausando por momentos, para abrir uma janela e deixar correr no ambiente a brisa perfumada e fresca daquela manhã, continuei:
— Eu não tenho as respostas que você deseja...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:43 pm

— E o senhor é um homem sábio... Quem, então, as terá, Doutor? Ninguém, não é mesmo? O problema é que a Vida não consegue explicar-se... Por esse motivo, eu aspiro ao não-ser! Deus, ou seja lá quem for, não deveria ter me tirado da inconsciência em que jazia...
Tomar consciência das coisas em torno, significa tão-somente sofrer! Nada me interessa do que eu possa ver ou do que eu possa saber... Por isso, eu queria morrer!
— Você tem vivido muito ocioso... Ao que estamos informados, desculpe-me a franqueza, mas consta de sua ficha em nossos arquivos, você desde sempre não tem se interessado por nenhuma ocupação em que se sinta útil...
— Trabalhar para quê! Não é que eu seja ocioso:
simplesmente não vejo motivo para empreender o que o tempo, inexoravelmente, haverá de destruir...
— Cláudio, mas você está constatando que a morte é uma utopia; em verdade, nada desaparece, a não ser para ressurgir numa forma mais aperfeiçoada... A nossa condição de seres imortais é irreversível!
— O que é uma lástima! O senhor me entende, Doutor: eu jamais cometeria o suicídio!... Ao que me lembre, nunca atentei contra a minha ou a vida de quem quer que seja... Não, eu jamais faria uma coisa dessa, mesmo porque as consequências para mim haveriam de ser mais danosas...
— Você está doente, meu filho; todos somos vítimas de muitas patologias que nos acometem a mente... Admita sua condição de espírito enfermo e aceite o tratamento que a Misericórdia Divina está lhe oportunizando nesta casa.
— Eu não tenho qualquer ânimo para me entregar à oração... Admito, sim, a existência de um Criador, pois, afinal de contas, o Universo não poderia ter-se feito por si mesmo, mas somos criaturas relegadas à própria sorte...
Ninguém se interessa efectivamente por nós!
— Agora, Cláudio, você está faltando com a verdade... Como é que pode dizer que ninguém se interessa por você? Quem o trouxe a este Hospital e quem é responsável pelas suas despesas? Porque, talvez, não exista amor no seu coração, não duvide da existência do amor no coração de outras pessoas. Não se tome, meu filho, como medida dos seus semelhantes...
Aproveitando que o paciente abaixara a cabeça, continuei a falar:
— Por que razão você acha que as coisas devem ser como supõe? Não negue aos demais, entre os quais eu me incluo, o direito de pensar de um modo diferente...
O seu estado depressivo encerra um certo conteúdo de egoísmo, que, no fundo, é auto-suficiência. Você não quer simplesmente ser mais um: você quer que o Criador o cumule de privilégios, sem que, para tanto, se tenha disposto a derramar uma única gota de suor... No fundo, é como se dissesse assim: "O Senhor me criou; que agora supra todas as minhas necessidades..." Ora, meu filho, todas as coisas e todos os seres, desde o verme que se arrasta no sub-solo, concorrem para a grandeza da Criação! Não seja você uma nota dissonante na magnífica sintonia da Vida! Abrace a humildade e aceite os Desígnios que, em nosso actual estágio evolutivo, não podemos perscrutar. Se nada ainda sabemos do corpo que habitamos milenarmente, o que podemos saber do Universo? Você tem se conservado de braços excessivamente cruzados, recusando-se ao serviço, porque sabe que servir significa doar-se, e você não quer se entregar a ninguém. Desista dessa ideia de morrer e não prossiga com chantagens emocionais, com evidentes prejuízos para si mesmo... A sua ascensão, Cláudio, pode começar através de uma simples vassoura, desde, é claro, que se decida a empunhá-la!
— Mas eu vivo, Dr. Inácio, no mundo das ideias...
— A Vida é uma ideia que Deus tirou do papel, meu filho! Se os filósofos não tivessem apenas especulado a respeito da Verdade, o mundo em que vivemos e nele tornaremos a viver seria bem melhor... Os que agem mais e questionam menos são sempre mais felizes do que aqueles que simplesmente indagam. As respostas que almejamos, sem excepção de nenhuma, se encontram dentro de nós. Os grandes luminares da Espiritualidade tão-somente nos ensinaram o caminho que nos cabe percorrer.
O paciente, que eu conhecia de velho, transitoriamente silenciara em seus argumentos; é possível que, daí a mais uns 15, 20 dias, ele solicitasse uma nova audiência comigo e, outra vez, me obrigasse a me superar em meus argumentos, para não me deixar afectar pelos seus sofismas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 30, 2022 8:43 pm

Ao se preparar para se retirar, como de hábito, ele repetiu o que sempre me dizia:
— Eu vou pensar!
— Pense, meu filho, mas, enquanto pensa, dê ocupação às suas mãos. A metade de nossas dúvidas concernentes aos enigmas da Vida são respondidas pelo trabalho.
— E a outra metade, Doutor?
— A outra metade será respondida quando deixarmos de simplesmente cumprir o dever de cada dia, para passarmos a amar aquilo que fazemos.
Interrompendo-nos sob a minha orientação, Manoel Roberto anunciou a presença de Clementino, que, igualmente, esperava para falar comigo.
Com certeza, não de todo satisfeito com o diálogo que entabuláramos, Cláudio se retirou e Clementino, que fora médium no mundo, adentrou o gabinete.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:11 am

Capítulo 13
Antes que retractemos o curioso e elucidativo caso de Clementino, faz-se mister uma explicação. Por mais de duas décadas, ele havia sido médium psicofónico, tendo passado por diversos grupos espíritas em São Paulo.
Invigilante e lutando com várias dificuldades de ordem material para sobreviver, Clementino chegava a se prevalecer de seus dotes mediúnicos para sensibilizar as pessoas em proveito próprio. Ora incorporava os espíritos que por ele se manifestavam, com maior frequência o Irmão Afonso, entidade que com ele se compromissara desde vidas anteriores, ora detectava-lhes a presença através da vidência.
Emocionalmente afectado, nosso irmão, em sua condição de medianeiro, vivia de maneira oscilante, raramente se dando ao trabalho de ler alguma obra que pudesse esclarecê-lo. Embora sem recursos financeiros, gostava de se apresentar bem cuidado e ostentava um grande anel de ouro e rubi no dedo anular da mão esquerda. Tomava aos amigos empréstimos que nunca conseguia saldar e emitia vários cheques sem fundos.
A verdade é que não se podia contar com ele, o que os companheiros não podiam deixar de lamentar, visto a espontaneidade com que caía em transe e transmitia orientações do espírito que se identificava como Irmão Afonso.
— Meus cumprimentos, Doutor - disse-me, acomodando-se na poltrona à guisa de divã. — Fui recolhido a este hospital, mas creio que não seja aqui o meu lugar... É facto que aderi ao Espiritismo, frequentei diversos templos, no entanto está havendo um equívoco, um grande equívoco.
— Pode falar, meu amigo, sou todo ouvidos.
— Sinto-me até envergonhado, mas o senhor é médico e é na condição de médico que o procuro. O senhor vai me entender. Olhe, Doutor, a vida lá embaixo é duríssima; a gente se vira como pode... Eu não tinha índole para assaltar ou me entregar de vez à marginalidade.
O senhor sabe, as pessoas acreditavam e eu, para sobreviver, porque não tinha de onde tirar recursos, dava-lhes o que queriam; as pessoas, conforme o senhor não ignora, são muito crédulas... Sinceramente, eu não via nada de mal no que fazia. A minha intenção nunca foi a de ficar rico, pois, se quisesse enriquecer, ao invés de aderir ao Espiritismo, eu teria fundado uma igreja evangélica... O conhecido meu, que ainda deve estar por lá, está muito bem de situação. Eu não pretendia tanto; queria tão-somente viver e conseguir arcar com as minhas despesas, sem que tivesse de me matar no trabalho...
— Continue, não tenha escrúpulos...
— Olhe, Doutor, escrúpulos eu acho que nunca tive mesmo. Para resumir, tudo começou assim: compareci, certa vez, a uma casa espírita e, na hora da sessão, o dirigente se aproximou de mim e me mandou incorporar; disse que estava vendo ao meu lado um espírito que pretendia desenvolver um trabalho comigo... Jovem e falante, as pessoas simples daquele grupo criaram uma expectativa e o certo é que, sem sentir coisíssima alguma, eu incorporei. Para dizer a verdade ao senhor, eu não me lembro mais do que disse. Sei apenas que, quando saí daquele suposto transe, as pessoas estavam abismadas e teve início uma certa idolatria de que gostei.
— A sua história, Clementino, se parece com muitas outras que conheço...
— Deste Outro Lado da Vida ou na Terra?...
— Digamos que dos Dois Lados... Mas, não se interrompa.
— Um actor em cena! — Eis, Doutor, o que aprendi a ser. Além de palavras elogiosas, a minha condição de suposto médium me rendia economicamente, não muito, é verdade, porém o suficiente para escapar à indigência e não ter que me submeter a salário irrisório ao final de cada mês. A entidade espiritual, fruto da minha imaginação, tida como um espírito de elevada hierarquia, transmitia conselhos, tecia considerações em torno de certas passagens do Evangelho e, com o tempo, começou a receitar... A carência das pessoas não tem tamanho. Por meu intermédio, o Irmão Afonso insinuava que eu, o médium, necessitava de ajuda e, em várias ocasiões, chegaram a fazer listas de doações e rifas para me auxiliar a pagar o aluguer, a conta da farmácia, coisas assim...
— Entendo.
— De maneira sucinta, é este, Doutor, o meu drama. Eu nunca fui médium: nunca vi e nunca ouvi espírito algum...
— E o Irmão Afonso?
— Foi um nome tomado ao acaso... Quando alguém suspeitava de que eu estivesse mistificando, mudava de centro espírita. São Paulo é uma cidade grande e, ainda que tivesse vivido um século ou mais, eu não esgotaria todos os seus recursos e, depois, participava também de muitos grupos particulares, com pessoas de melhor poder aquisitivo, porém não mais generosas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:11 am

Quando estava quase chegando aos 60 de idade, acometido de um câncer no pâncreas, como vocês costumam dizer, desencarnei rapidamente. Todavia, ao sair do corpo, ninguém me esperava e, a sós com a minha consciência, vaguei por tempo indeterminado, até que me trouxeram para cá.
— É uma pena - disse-lhe - que você tivesse enganado a si mesmo por tanto tempo...
— A mim, não, Doutor, aos outros. Em muitas ocasiões, quando me recolhia aos meus aposentos, eu não conseguia conter o riso, pensando na ingenuidade daqueles que aceitavam o fato de eu ser um médium...
Muitos tiveram o que mereciam, pois eram pessoas de posses e, somente assim, enfiavam a mão no bolso; o senhor sabe, eu precisava viver e, sem nenhuma qualificação para ganhar honestamente o pão de cada dia, teria que trabalhar pesado em troca de alguns vinténs...
— Quer dizer que você não se arrepende?
— Em parte, pois, afinal de contas, a causa do Espiritismo é nobre; pude testemunhar o esforço sincero de muita gente boa no sentido de minorar o padecimento alheio - eu mesmo, algumas poucas vezes, de tanto instarem comigo, os acompanhava nas visitas periódicas que efectuavam aos doentes. Quis, sim, Doutor, retroceder em meu intento, mas eu já havia ido longe demais...
— Nunca lhe passou pela cabeça que o Irmão Afonso pudesse ser real? - perguntei, fitando-o compadecido.
— Impossível; escolhi este nome aleatoriamente e, conforme esclareci, nunca divisei a presença de nenhuma entidade espiritual ao meu lado... A minha intenção era a de obter prestígio e dinheiro; em troca, tinha apenas que pronunciar algumas palavras confortadoras, sem, inclusive, me preocupar com português correto...
Silenciando, pus-me a pensar nos inúmeros casos que, talvez, se assemelhassem ao de Clementino e, como eu estivesse demorando a manifestar-me, ajeitando-se na poltrona, aquele que praticamente atravessara a existência imaginando ser o que, em verdade, havia sido sem que sequer o suspeitasse, instou comigo:
— Diga-me algo, Doutor... O seu silêncio prolongado pesa-me na consciência qual se eu fora culpado. A rigor, nunca fiz mal a ninguém; eu simplesmente me dispunha a dar o de que as pessoas se revelavam carentes... Para lhe dizer a verdade, em todo esse tempo de convivência com os espíritas, jamais cruzei com um médium que me tivesse convencido da autenticidade de suas faculdades; tenho para comigo que quase todos lançavam mão do mesmo expediente...
Fazendo soar discreta campainha, chamei Manoel Roberto ao gabinete e solicitei ao diligente companheiro de minha maior estima e consideração:
— Manoel, faça entrar o novo amigo.
Sem nada entender, Clementino prosseguia na expectativa de uma solução para o seu caso, pleiteando a sua remoção do nosso nosocómio para uma outra instituição em que não se sentisse na condição de um paciente psiquiátrico.
— Clementino - tomei a iniciativa de lhe dizer, sem evasivas -, tenho o prazer de lhe apresentar o nosso Irmão Afonso. O Benfeitor que você "criou" sempre existiu!...
— Como?! - redarguiu, boquiaberto. — Não pode ser! Vocês estão tentando me enganar... Isto aqui, é, de facto, uma casa de loucos!
Estendendo-lhe a destra com visível desapontamento estampado na face, a referida entidade espiritual lhe inquiriu:
—Nem me tendo, agora, diante de seus olhos, você não me crê real? Sou eu mesmo, Clementino, que me cansei de, por seu próprio intermédio, tentar alertá-lo inúmeras vezes; sou eu que, de todas as formas, procurei despertá-lo, para que você não continuasse sendo a maior vítima de si; sou eu o personagem que você mistificava e a quem, concentrando-se apenas em seus interesses mesquinhos, se mostrava completamente insensível...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:12 am

Capítulo 14
— Chega, chega! - bradou Clementino, tentando tapar os ouvidos com as mãos. — É uma armação; vocês estão armando contra mim!... Com certeza, querem me enlouquecer, para que a minha presença continue a se justificar neste hospital. Não, não é verdade! Eu não sou médium coisa nenhuma. Nunca o fui e nunca pretendo sê-lo... Irmão Afonso é coisa de minha cabeça!...
Após tê-lo deixado desabafar-se, assim que, caindo extenuado na poltrona, ele se acalmou, considerei:
— Clementino, você sabe que nós não faríamos o de que nos acusa... Lidando directamente com a Verdade, você a ignorou o tempo todo. Não fuja, agora, ao indispensável confronto consigo mesmo... Ninguém está aqui para condená-lo e, sequer, repreendê-lo. Como você mesmo observou, casos semelhantes ao seu existem às centenas... Quantos, efectivamente, não estão à altura da confiança que lhes é depositada pelo Alto? Quantos fazem de conta ser o que são?
— Acreditei em sua boa vontade inicial - aparteou a entidade, emocionada - e, como você não me opôs maior resistência em termos de sintonia, fiz de tudo para trabalharmos em regime de parceria; eu não sou nenhum Benfeitor, Clementino! - reconheço-me, sim, na condição de espírito extremamente necessitado de servir... Você era a minha oportunidade de conviver com os pobres que, em vidas anteriores, marginalizei. Instruído, por minha vez, por espíritos de elevada hierarquia, eu, por seu intermédio, tentava reproduzir os ensinamentos que recebia; mas era sempre para você mesmo que eu falava em primeiro lugar... Ter-nos-ia, meu amigo, bastado um pouco de confiança para que, juntos, realizássemos verdadeiros prodígios! No entanto, você sempre estava de atenção voltada para as suas carências; então, os nossos planos se frustraram e, com eles, a nossa possibilidade de melhor aproveitamento.
Desconcertado, Clementino ainda tentava dialogar:
— Vivendo no mundo e passando privações, você não teria feito o mesmo?
— Nada lhe teria faltado, meu irmão - respondi, endossando os argumentos de Afonso. — O Senhor não abandona nenhum de seus servos fiéis. Não há quem necessite recorrer à desonestidade, para que o pão de cada dia não lhe falte à mesa! O problema do homem é que ele quase nunca se contenta com o necessário... Em sã consciência, diga-me, você chegou a passar fome alguma vez? Nas raras vezes em que esteve doente, faltou-lhe o medicamento preciso? Porventura, lembra-se de ter se confundido com os mendigos que dormem ao relento? Ora, Clementino, se você, meu irmão, sequer assumiu compromissos de ordem familiar que, pelo menos, num ato de desespero, o justificassem...
— Eu ainda não estou acreditando... Enganei ou fui enganado? Por que, então, em termos de mediunidade, a Espiritualidade não me consentiu maior parcela de convicção pessoal? Se, por exemplo, eu tivesse visto o Irmão Afonso apenas uma vez...
— Não se dê, meu amigo, excessivo valor - adverti-o -; não se superestime!... Acaso você, sem o respaldo do espírito que o tutelava, se julgaria capaz de manter-se na activa durante tanto tempo, orientando quem o procurava com semelhante propósito? Onde é que encontrava tanta inspiração e tantas ideias para falar de público? Fora do transe, você não saberia indicar a alguém o endereço da própria casa... Quantos livros espíritas leu? Ao menos, teria corrido os olhos alguma vez pelas páginas do "Novo Testamento"?
— Perdoe-me, Clementino - emendou Afonso, sem disfarçar o constrangimento -, mas, às vezes, do ponto de vista psíquico, eu me impunha excessivamente a você; conhecendo as suas limitações, quando o ensejo me favorecia, eu me aprofundava no transe... Os nossos irmãos não tinham culpa, se não conseguíamos formar a parceria ideal, você não acha? Seria justo fazer com que os necessitados que recorriam a nós pagassem pela nossa leviandade e insensatez?
— Por que você diz "nossa"? - indagou Clementino, franzindo o cenho.
— Porque a consciência não me permite isentar-me inteiramente de culpa; conforme lhe disse, eu não me considero um Benfeitor...
— Quem é você, afinal?
— Em passado recente, creio - que seja este o momento de o dizer -, eu e você fomos pai e filho e, infelizmente, eu o abandonei, a você e à sua mãe. Talvez seja este um dos motivos de sua rejeição...
Não havia muito mais para ser dito. Afonso abraçou-se a Clementino que, mantendo-se impassível, consentiu que aquele que lhe fora genitor no pretérito chorasse sobre o seu ombro.
— Perdoe-me, meu filho, perdoe-me! Eu tentei de todas as formas... Abandonei-o sim, mas porque sua mãe me trocou por um homem muito rico que, por sua vez, nada lhes deixou por herança.
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:12 am

— O que haverá de ser doravante? - balbuciou, por fim, o medianeiro desencarnado que criara uma aversão contra o pai, que tentara se redimir junto ao seu afecto.
— Quem sabe - respondeu Afonso -, possamos vivenciar uma nova experiência no corpo... Você me aceitaria, de novo, na condição de pai?
Com o olhar perdido no horizonte, Clementino disse com certa frieza:
— Eu vou pensar, mas não lhe prometo nada!...
Depois de ter conduzido Clementino e Afonso para fora, encaminhando-os a seus respectivos pavilhões, Manoel Roberto retornou e, encerrados os atendimentos programados para aquele período do dia, entramos a conversar.
— Dr. Inácio - comentou comigo o prestimoso companheiro de tantas lides -, fiquei impressionado com a revelação de Afonso...
— Em que aspecto? - interroguei, brincando com um pequeno calidoscópio sobre a mesa que, de acordo com a incidência de luz, projectava a imagem de um arco-íris.
— Quando ele se referia à aversão do médium, ou seja, à indiferença de Clementino para com a sua presença espiritual...
— Manoel, essas reacções são mais frequentes do que supomos. Os desencarnados arrependidos de seus equívocos tentam se aproximar daqueles dos quais, por um motivo ou por outro, se afastaram nas experiências que vivenciavam em comum sobre a Terra. Na condição de espíritos libertos das injunções do corpo material, conscientes dos erros perpetrados, envidam esforços no sentido de recuperar o tempo perdido, mas, quando a parte que se considera prejudicada não se mostra disposta a perdoar, nada feito... A rejeição de um espírito em relação a outro, ao extrapolar, dificulta, inclusive, que se reaproximem, de livre e espontânea vontade, através dos laços regenerativos da reencarnação. Por esta razão, os abortos não provocados para os quais a ciência médica não encontra nenhuma explicação.
— Se os homens compreendessem o valor do perdão...
— ...muitos problemas seriam solucionados no nascedouro e, então, não se prolongariam no tempo, arrastando-se, indefinidamente, de uma existência a outra. O perdão, no entanto, é uma atitude que simplesmente se adia, pois, sem se libertar dos pesados grilhões do ressentimento, não há quem consiga avançar. Quem necessita de maior claridade em torno dos próprios passos, há de trabalhar para diminuir a extensão da sombra em redor. Quando nos convencemos de tal realidade, decidimos pela iniciativa de perdoar...
— Ou de pedir perdão...
— Exactamente, como no caso em pauta... Afonso está empenhado em obter o perdão de Clementino...
— ...que, por sua vez, não se mostra muito disposto, principalmente, após ter se complicado ainda mais...
— ...e que precisa entender que, sem a prática da indulgência, ainda mais se complicará. Fora da tolerância fraternal, não existe caminho para a paz.
— Na opinião do senhor, o que mais colaboraria no sentido de que não nos mostrássemos tão resistentes ao perdão?
— Sem dúvida, Manoel, é a auto-análise. Convém que, periodicamente, façamos uma avaliação sincera do que somos, pois quem se dispõe, sem subterfúgios, a uma investigação de natureza íntima, concluirá, sem dificuldade, que, nas mesmas circunstâncias que compeliram alguém a agir conforme repreende, ele não teria se saído melhor. Quem, de quando em quando, não se exercita, colocando-se no lugar do outro...
— ...sequer o próprio lugar, dentro da Vida, ocupa com consciência, não é, Doutor?
— Correcto! O caminho é o da humildade, sempre; a não ser assim, preparemo-nos para recapitular a lição...
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:12 am

Capítulo 15
No outro dia, pela manhã, a rotina abençoada do trabalho me esperava. Sinceramente, eu não sei por que os homens se queixam tanto da rotina em suas actividades no mundo! Não fosse pelo dever que somos chamados a cumprir, o que haveríamos de fazer? Além da morte do corpo, nos defrontamos com a mesma necessidade de continuar trabalhando e, tanto na Terra quanto no Mundo Espiritual, quem não busca se ocupar positivamente, termina por ceder às sugestões das Trevas.
As tarefas do Hospital me absorvem completamente, pois eu não me limito a dar ordens àqueles que permanecem sob a minha orientação. Interesso-me por cada caso em particular e sinto-me responsável pelos internos de todas as procedências. Apenas quando me encontro em actividade na Crosta é que eu me permito eximir de lidar directamente com os nossos pacientes; não que me considere indispensável - graças à Deus, contamos com uma equipe, unida e organizada, que sempre trabalha com a mesma intenção de ser útil! Se faço questão de me envolver directamente, é porque, de igual modo, me vejo na condição de espírito doente, sem nenhuma previsão de alta hospitalar...
— Dr. Inácio - falou-me Manoel Roberto, que, incansável na paciência, se dispunha a me assessorar -, o António está aí fora e deseja falar com o senhor.
Imaginando do que se tratava, respirei profundamente, procurando me munir da necessária calma, e pedi que o referido paciente entrasse.
— Doutor - foi me dizendo logo, mal tendo colocado os pés em meu gabinete -, estou aqui para fazer uma reclamação...
— Primeiro, António, reagi, tentando conter-lhe o ímpeto -, nos cumprimentemos como dois bons amigos que somos... Como é que você tem passado?
— Bem, até ontem, e muito mal, de ontem para cá!...
— Relaxe e se sente, para que possamos conversar com calma. Ao contrário do que, às vezes, digamos no mundo, até para a morte existe solução; a Eternidade está aí, à nossa espera...
— Estou convencido, no entanto, de que existem problemas piores, quase insolúveis, principalmente quando querem nos obrigar a aceitar determinada situação...
— Quem está querendo? - perguntei, com o propósito de convidá-lo ao exercício da reflexão.
— Eles...
— Eles, quem, António? Seja mais claro...
— Aqueles, Doutor, que de Mais Alto determinam; o senhor sabe a que estou me referindo...
— Os que determinam de Mais Alto possuem maior sabedoria...
— Não é o que vim aqui discutir com o senhor... O problema é que eu não aceito - não estou preparado, não quero e não aceito. Se temos a Eternidade, vamos deixar para depois...
— Deixar para depois, quando?
— Se depender da minha vontade, nunca!
— Por favor, António, detalhe. Quem sabe, conversando, poderemos equacionar o problema, não é?
— Desse jeito, não! Se eu nem sequer quero vê-lo, quanto mais renascer na condição de filho dele...
— O renascimento no mundo, em qualquer circunstância que se dê, é sempre uma bênção! Não estamos em condições de fazer exigências... São as nossas acções, António, que têm força reivindicatória, não as nossas palavras...
— Doutor, sem meias palavras como o senhor gosta: eu tenho nojo daquele homem!... Só de pensar nele, eu sinto asco. Prefiro nascer sem pai... Eu não sei como puderam se juntar, assim, duas pessoas tão diferentes:
eu tenho verdadeira veneração por Eulália, mas uma tremenda rejeição por Ambrósio... Ser filho de Eulália é tudo o que eu mais queria, no entanto de Ambrósio eu só quero distância. A nossa aproximação, como pai e filho, só fará aumentar o ódio que sinto por ele...
— A reencarnação não nos é facultada para que possamos atender aos nossos caprichos! A Terra é um educandário...
— Desculpe-me, mas o senhor está batendo na mesma tecla. Agora, eu não me sinto preparado; necessito, Doutor, de maior tempo, para esquecer o que ele me fez... As feridas que ele me abriu no espírito ainda não cicatrizaram.
— Não ignore as circunstâncias que estão se juntando para a sua vitória; amanhã ou depois, a nossa Eulália pode não lhe estar mais disponível... O que, em você, é maior: o amor que sente por ela ou o ódio que sente por ele?
— Eu não tenho resposta para esta pergunta...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:13 am

Aquele sujeito, que pretende ser meu pai, é asqueroso; eu não sei como Eulália se submeterá a deixá-lo tocar-lhe a mão...
— Todos pertencemos a Deus! Com toda a consideração que você fez por conquistar aqui, digo-lhe que não somos muito diferentes uns dos outros... Você pode até não concordar, mas é a verdade.
— Herdar alguma coisa daquele homem, nunca!
Ainda se fosse tão-somente o dinheiro que ele me furtou, eu aceitaria de bom grado; mas, não, querem me constranger a renascer daquele corpo que abomino... O senhor já imaginou, Dr. Inácio?! Ponha-se no meu lugar... Nós éramos sócios e ele me traiu; furtou-me tudo: dinheiro, família, felicidade... Fui eu que, praticamente, o tirei da sarjeta, para ele ficar com tudo que era meu!
— São outros agora os sentimentos de nosso Ambrósio! Ele está arrependido e disposto a lhe devolver tudo: dinheiro, família, felicidade...
— Eu não acredito nele: é um mentiroso! Tenho certeza de que trairá a confiança de Eulália e nos abandonará na primeira oportunidade...
— Vamos dar-lhe um crédito; depois, o mundo hoje é diferente do que o era no passado; as leis que protegem a família são muito mais rígidas e severas...
— Ele está habituado a corromper consciências...
Vê-se que, por aqui, ninguém o conhece como eu; falsificou-me assinaturas e comprou, inclusive, o meu advogado... Tornei-me um alcoólatra por causa dele e fui, mais cedo, ao encontro da morte. O que estão pretendendo de mim é um absurdo. Ambrósio deveria estar nas trevas e não, pelo que estou sabendo, prestes a se casar com Eulália.
— António, às vezes nós nos tornamos piores do que aqueles que nos prejudicam; de certa forma, quem não perdoa a agressão não difere muito do agressor...
Quem não perdoa age de caso pensado, ao passo que o ofensor pode ter agido levado por um impulso momentâneo, concorda?
— Não, no nosso caso, não; ele planeou tudo meticulosamente... Imagine-se voltando à Terra, indefeso no berço, à mercê de uma víbora... Receber nas minhas faces de criança os beijos paternos daquele homem!
Nunca!... Eu prefiro nascer como uma excrescência da Natureza! Herdar da carne dele, daquele ser ignóbil?!
Sentir na minha boca o hálito que pertence a ele?! Ser acompanhado, em meu próprio corpo, pelo cheiro dele o resto da vida?!... Não, Doutor, o senhor vai ter que me ajudar...
Sinceramente, eu jamais me vira às voltas com tais argumentos. De pé, próximo à porta, Manoel Roberto permanecia em silêncio, na expectativa de que eu pudesse convencer o António a aceitar a paternidade de Ambrósio, pois, afinal de contas, Eulália reencarnara confiante na intervenção do Mundo Espiritual, para que aquele drama se solucionasse.
Observando que eu emudecera, António foi se sentindo incomodado e, aos poucos, igualmente parou de falar.
Levantei-me, aproximei-me da janela e pus-me a observar a movimentação lá fora: dezenas de espíritos quase em completa demência vagueavam no pátio da instituição, articulando inaudíveis palavras e gesticulando a esmo.
— Como é, Doutor - voltou o paciente a interpelar-me, incomodado pelo mutismo a que eu me entregara -, o que é que o senhor me diz?
— Meu filho - respondi, com grande sensação de impotência no espírito -, eu não tenho nada mais a lhe dizer. Se você prefere assim... Os que se situam acima de nós têm melhor visão do futuro; eles não se arriscariam a que ainda mais nos comprometêssemos, perante a Lei de Causa e Efeito. Se os nossos Benfeitores endossam o seu retorno à Terra, nas condições que você não quer admitir, é porque demonstram ter maior confiança em você do que você mesmo! Lamento que, diante dos seus argumentos, eu nada mais tenha a acrescentar. Seja como for, a sua situação actual não se compara à daqueles nossos irmãos que estão se arrastando lá fora; muitos deles tudo dariam a fim de receber no mundo um corpo qual o que lhe está sendo oferecido: infelizmente, reencarnarão em condições de grande precariedade física!...
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:13 am

Capítulo 16
Percebi que as minhas palavras haviam sensibilizado António e, embora decidido a encerrar a entrevista, ainda acrescentei:
— A maioria daqueles que podemos avistar da janela regressará ao mundo, só Deus sabe como!
Dementes como muitos deles se encontram, talvez sequer possam contar com o apoio da família, que se sentirá tentada a interná-los e a esquecê-los nas instituições que se dispuserem a acolhê-los; desde crianças, sofrerão marginalização de toda espécie e, vítimas do preconceito social, terão, com certeza, aumentado o peso de suas provas... Raros, António - e dentre eles nós nos encontramos - os que estão em condições de reclamar direitos a que não fizeram jus; por enquanto, você está sendo convidado a participar do planeamento das lutas que o esperam em um novo e necessário renascimento, mas, reflicta: pode ser que, amanhã, premido pelas circunstâncias, que tanto se alteram na Terra quanto no Mundo Espiritual, você não tenha mais qualquer opção...
Sinceramente, caso estivesse em seu lugar, principalmente tendo acesso ao próprio currículo espiritual, eu não hesitaria: aceitaria o oferecimento dos nossos Benfeitores e me esforçaria para me apassivar a tal ponto, que o esquecimento do passado em mim sequer existisse em forma de reminiscência.
Quando terminei de falar, a entidade me olhou de maneira significativa e, tocado pelas minhas ponderações, perguntou-me:
— O senhor acha que não há perigo? Eu tenho receio de odiar Ambrósio e de agravar ainda mais o nosso relacionamento. Eu não sei como reagirei ao senti-lo me tocar... Se, quando eu podia me defender, ele me enganou, o que não fará comigo se, porventura, me identificar a presença...
— Ambrósio é apaixonado por Eulália e jamais seria capaz de algo fazer contra o filho que lhe resumirá todos os sonhos de ventura! Você será filho único e, portanto, centralizará todas as atenções de sua futura mãezinha e... de seu futuro genitor. É possível que, no começo, ele se sinta um tanto enciumado; inconscientemente, é possível que chegue a cogitar de antiga presença do adversário de outras eras junto ao coração da amada, todavia ele também estará sob o abençoado véu do esquecimento... Entregue-se, confiante, António, e não deixe escapar a oportunidade de crescimento que a Vida lhe oferece. Tudo está pronto para recebê-lo, mas, se você se negar a renascer agora, a imprevisibilidade é que haverá de nortear-lhe os passos daqui para a frente. Daqui a mais 10, 20 anos, quem estará disposto a acolhê-lo no mundo na condição de filho? Inclusive, correria o risco de se comprometer com outro grupo de espíritos, agravando, assim, as suas provas. E não diga que não reencarnará, porque, todos, mais dia, menos dia, nos veremos impelidos pela Lei e, à maneira dos retrógrados que se sentem incomodados pelo progresso no castelo de suas arcaicas concepções, nos defrontaremos com a necessidade de mudar...
António silenciara completamente. Quando, por fim, ousou levantar os olhos na minha direcção, questionou-me:
— O senhor tem certeza do que está me dizendo?
Posso confiar?...
— Não é preciso, meu irmão, que eu lhe responda a tais indagações, pois, na condição de espírito liberto das injunções da matéria densa, você está constatando a verdade por si mesmo e, portanto, sabe que será conforme estou lhe dizendo - não pela força das minhas palavras, é evidente, mas pelo impositivo da Lei a que estamos submetidos. O espírito mais recalcitrante acabará por se render aos irrefutáveis argumentos do Tempo e dobrará a cerviz diante dos Sábios Desígnios do Criador!
Aproximando-se, Manoel Roberto, sem nada dizer, fez com que António compreendesse que carecíamos de dar sequência ao atendimento dos casos agendados para aquela manhã.
— Desculpe-me, Doutor, a exaltação inicial - disse-me o paciente, preparando-se para se retirar.
— Não se preocupe - redargui, abraçando-o e acompanhando-o até à porta -; ante a proximidade de uma nova experiência no corpo, quase todos nos sentimos assim... É natural. A expectativa da reencarnação é mais dolorosa do que aquela que nos acomete quando estamos prestes a desencarnar! Se os nossos irmãos do mundo soubessem o estado depressivo de que muitos nos sentimos possuídos, quando verificamos que não dá mais para adiar a hora decisiva do renascimento, haveriam de se preparar melhor para receber-nos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:13 am

Antes que o devotado assessor fizesse entrar o próximo paciente, efectuando diminuta pausa para respirar e tomar um copo d'água - ou será que vocês, os encarnados, entenderão por absurda até mesmo a necessidade de nós, os considerados mortos, de quando em quando molharmos a boca ressequida? -, comentou rapidamente:
— Doutor - observou Manoel -, o que o senhor disse por último me impressionou... De facto, os nossos irmãos encarnados deveriam ter maior consciência das angústias e das aflições que nos assaltam, quando nos é chegado o instante de vestir o escafandro para um novo mergulho no mar da vida material...
— Infelizmente, poucos são os que pensam assim; a maioria se preocupa apenas em adaptar o quarto do futuro recém-nascido, comprar o berço e organizar o seu enxoval... Raros os que compreendem o que significa para o espírito o seu regresso ao corpo e a insegurança que, de hábito, experimenta quem parte rumo ao desconhecido, seguindo por estradas em que o perigo o espreita a cada passo.
— A situação é quase idêntica àquela que envolve o processo desencarnatório, não é?
— Na minha opinião, Manoel, reencarnar é pior que desencarnar.
— Por que, se deste Outro Lado temos a consciência de que a morte não existe e que, suceda o que nos suceder no corpo, ressurgiremos redivivos?
— Porque, na maioria das vezes, deste Outro Lado, reaparecemos, após a morte, na condição de adultos, ao passo que, no cenário terrestre, nos reapresentamos caracterizados pela fragilidade infantil.
— Eu não havia pensado sob este prisma...
— O espírito, na condição de criança, por mais elevada seja a sua hierarquia, sempre estará relativamente exposto às circunstâncias de um mundo de provas e expiações e, se não contar com a imprescindível retaguarda espiritual e a zelosa protecção dos seus familiares, notadamente de pai e mãe, poderá ser vítima do mal que ainda impera no Planeta.
— Como assim, Doutor?
— Se se trata de um espírito de mediana evolução, ainda sem os benefícios do mérito que lhe advogam a causa, ele poderá, inclusive, comprometer a existência, do ponto de vista moral, cedendo, por exemplo, à tentação para o uso de drogas e, indo mais longe, se transforma em traficante.
— É apavorante!...
— Concordo, mas pode, sim, ocorrer, se o espírito, em contacto com o vício, não tiver se fortalecido contra ele ou mesmo recebido orientações que tenha assimilado no sentido de evitá-lo.
— Como é importante o papel da educação!...
— Essencial, Manoel, essencial. As noções que a criança recebe, desde os seus primeiros meses de vida, são tão imprescindíveis à sua saúde espiritual, quanto as vacinas que lhe defendem o organismo contra a poliomielite, a rubéola, o sarampo...
— O exemplo que o senhor citou com as drogas...
— Pode se estender a todas as outras áreas capazes de lhe corromper o carácter. Quantas crianças não sofrem abuso sexual? Como haverá de ficar a cabeça de uma delas, vítima de pedofilia ou de seguidos espancamentos dentro de casa?
— Dr. Inácio - perdoe-me a insistência -, mas como situamos dentro do contexto a problemática das provas?
— As nossas provas, Manoel, não se referem apenas e tão-somente às consequências do passado. Procuremos ampliar a respeito o horizonte do nosso entendimento.
Nos trechos mais perigosos de uma rodovia, onde há maior índice de acidentes, existem múltiplos sinais de advertência, o que não quer dizer que não possamos nos deparar com imprevisível buraco na pista ou mesmo com um descuido de nossa parte ao volante do veículo que conduzimos.
Preocupado com quem estava me aguardando lá fora, concluiu:
— O espírito, que já fixou em si determinados valores éticos, não cai, mas aquele que moralmente ainda não se firmou pode cair. De que valem os conselhos de um pai aos ouvidos do filho que com eles não se coloca em sintonia? Por acaso, estaríamos sempre atentos à voz da consciência, que nos adverte e que, só por si, bastaria para evitar-nos a queda? O homem não cai porque esteja à mercê do que é capaz de provocar-lhe a queda, mas, sim, porque, no uso de seu livre-arbítrio, delibera expor-se aos perigos do abismo que se lhe escancara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:13 am

Capítulo 17
Assim que Orlando adentrou o gabinete, foi logo dizendo:
— Dr. Inácio, eu estou com medo de voltar à Terra...
Sei que estou recuperado; o tratamento que recebo tem sido eficiente, mas temo um novo fracasso... Aqui tudo é mais simples do que no mundo: as afeições são mais sinceras e somos, uns com outros, naturalmente solidários...
A minha última experiência na condição de médium foi muito dolorosa; enfrentei inveja e ciúme dos companheiros, que me olhavam como se eu fosse um ser estranho; questionavam a minha vida pessoal e levantavam suspeitas descaridosas contra mim... Quantas humilhações padeci, meu Deus!... O médium é alguém que vive cercado de pessoas, mas, no fundo, amarga a solidão. O senhor conhece de perto o nosso drama. Está se aproximando a hora da minha volta, porém... Outra vez, o casamento não estará em minhas cogitações e antevejo as mesmas lutas. Como poderei vencer, se já me sinto derrotado por antecipação? Compreenda, eu não estou me queixando; a mediunidade é uma bênção, todavia...
Ouvindo-o sem interrupção, assim que o referido irmão efectuou uma pausa em sua argumentação inicial, começamos a dialogar:
— Orlando, se você recuasse agora, seria provável que a sua situação viesse a se complicar: você não está preparado para fazer outra coisa... Não se trata de imposição, mas de lógica e conveniência. O estágio realizado por você em nosso Hospital ser-lhe-á muito útil; sabe, por exemplo, se se desviar do caminho, o que o espera... A Doutrina avançou muito e, relativamente, as dificuldades diminuíram. A tarefa missionária que nosso irmão Chico Xavier cumpriu entre os homens facilitou as coisas para os médiuns; hoje, desfruta-se de uma maior liberdade de pensamento e o fanatismo religioso vem perdendo força gradativamente...
— No entanto, doutor, ambos não desconhecemos o fato de que a intolerância maior para com os médiuns parte dos próprios espíritas; ao invés de palavras de incentivo, críticas e acusações... De que forma evitar a tristeza e o desânimo? Em verdade, o Espiritismo progrediu, mas, em termos de vivência do Evangelho, nós, os espíritas, ainda deixamos muito a desejar...
Sinceramente, eu estou com medo da discriminação; o senhor talvez não saiba o que é ser vítima da maledicência...
— Quem foi que lhe disse que eu não sei? Embora não tenha sido médium, na acepção da palavra, senti na pele as calúnias que os adversários da Doutrina urdiam contra mim...
— Mas, pelo menos, era respeitado pelos irmãos de crença...
— Respeitavam-me mais, Orlando, pelo meu título de doutor e pela minha posição social, do que propriamente por ser espírita; faziam-me, sim, muitos deles, oposição velada e, aos meus ouvidos, de quando em quando, chegavam as coisas horrorosas que diziam a meu respeito... Eu os mandava às favas e prosseguia trabalhando; alguns, mais tarde, tive a oportunidade de "hospedar" nas dependências do Sanatório... O espírita, sem humildade, padece de uma espécie de delírio de grandeza espiritual; considera-se infalível e mais do que os outros, mormente quando ocupa uma posição de liderança... Quanto iludimos a nós mesmos! Porém, ao nos sobrevir a desencarnação, quanto nos pesa o confronto com a realidade!...
— Serei só eu e a minha mãe, que, logo após me conceber, enviuvará; crescerei ao lado dela, recebendo-lhe a protecção e protegendo-a, por minha vez... Dividirei o meu tempo, trabalhando pelo nosso sustento e cuidando dos afazeres domésticos, já que muito cedo aquela que me acolherá na condição de mãe sofrerá com a prova da cegueira... No conhecimento espírita é que encontraremos consolação. Doutor, eu não me envergonho de mostrar ao senhor como sou. Poupe-me, no entanto, de maiores detalhes; desde muitas vidas, eu venho enfrentando problemas na esfera sexual e, sempre que reencarno, o meio em que o meu carma me determina viver facilita a minha reincidência...
— Meu filho, sobre a Terra, não há espírito algum que não esteja lutando contra certas tendências; todos trazemos mazelas que se nos ocultam na personalidade, e os que não o admitem talvez sejam os mais prejudicados...
Caso nos sentíssemos dispensados de lutar contra inclinações de natureza infeliz, o trabalho de evolução já teria se completado em nós. Ninguém logra vencer-se de improviso. Não raro, transformamo-nos, através dos nossos equívocos de ordem moral, em instrumentos de reflexão para os outros. A gravidade do mal está mais em nos comprazermos nele, do que em praticá-lo; a ele, por vezes, nos sentimos compelidos pelas circunstâncias, oriundas do carma e da obsessão. Quantos os que sorvem, chorando, o copo de aguardente e quantos os que, abominando a si mesmos, se fazem toxicómanos?
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:13 am

— Temo pelo suicídio...
— De tudo, seria o pior! Afaste, Orlando, desde já, de sua cabeça a ideia de autodestruição... Rasteje, chore, conspurque-se, mas não atente contra Deus em si mesmo!
Beba, à última gota, o cálice transbordante de suas amarguras!...
— Ensine-me, Dr. Inácio, a suavizar o peso da cruz... Eu sei que o prazer é a mais fugaz de todas as sensações! A felicidade não é um estado de satisfação física...
— Tão-somente na prática sistemática da caridade, você encontrará seguro abrigo contra o assédio da tentação, que prolifera através da nossa invigilância; apegue-se, Orlando, às suas actividades espirituais e não se contente em ser simplesmente médium dos desencarnados...
Esforce-se no bem de todos com sinceridade e descubra a alegria de servir! Não responda às agressões e às injúrias que, com certeza, se lhe constituirão em repetidos testes de paciência.
— Não há, por aqui, nenhum tratamento específico ao qual eu possa me submeter?...
— A aquisição de novos hábitos demanda tempo...
A não ser pelo seu empenho, o espírito só se transforma pela Graça Divina, da qual necessitamos nos fazer merecedores. Enquanto não recebemos do Alto o que escapa à possibilidade dos homens, continuemos no processo de nossa reeducação, vertendo suor e lágrimas na construção das boas obras.
— Uma regressão não poderia me ser útil?
— Identificar o problema, não significa solucioná-lo e voltar no tempo não apaga as marcas deixadas no caminho... Sem dúvida, o diagnóstico feito com precisão orienta o médico no seu plano de tratamento, no entanto é necessário que o paciente se mostre disposto a colaborar. E, depois, Orlando, efectuar uma regressão de memória para descobrir o que já sabemos? Na verdade, o que desejamos é uma renovação que não nos imponha a necessidade de abrir mão do que somos, e isto não existe! A Terapia de Vidas Passadas, conduzida por investigadores conscientes, autentica a Reencarnação e, sem dúvida, corrobora os postulados espíritas, mas não exime o espírito de corrigenda, ou seja, não o isenta de retomar a jornada empreendida no ponto em que deliberou enveredar por escusos caminhos. Observemos, ainda, que a lucidez concernente aos nossos erros no nascedouro, contrariando a sábia Lei do esquecimento, pode transformar-nos, ao ponto de agravá-los.
— E se eu não encontrar centro espírita que me abrigue? Como farei?...
— Eu já lhe disse: trabalhe como puder e construa o seu próprio lugar, prestando obediência exclusiva à consciência. Esforce-se ao máximo para não cair, mas se, porventura, acontecer, não se acomode no chão; levante-se quantas vezes preciso for e continue servindo...
Um dia, você se reconhecerá mais forte que o vício e dele se desligará para sempre.
Percebendo que Orlando entrara em pranto convulsivo, no propósito de encorajá-lo e descontraí-lo, voltei a afirmar:
— Meu filho, mande os espíritas moralistas às favas; ninguém tem nada a ver com a sua vida e nem com a minha... Jesus Cristo não recriminou Maria de Magdala e nem condenou Saulo de Tarso: os dois dos maiores vultos do Evangelho nascente foram, respectivamente, uma mulher adúltera e um homem criminoso!
Não se considere um doente sem cura. Quase sempre, aqueles que estimam rotular os outros jazem rotulados pela Lei. Que ninguém interprete estas minhas palavras a você como incentivo para que continue sendo o que é: eu não seria capaz de agir de forma tão leviana e irresponsável, mas se existe algo que eu nunca tolerei e prossigo não tolerando é a hipocrisia!... A hipocrisia dos espíritas moralistas ainda há de custar muito caro a eles mesmos! Você não é pior do que ninguém e, por sua condição sexual, você não está impedido de ser médium, pois, se assim fosse... Bem, deixemos isso para lá! Eu quero que você se alegre e enfrente a reencarnação com coragem. Vá à luta! Seja útil aos semelhantes; o resto é detalhe que não nos deve embaraçar...
— Uma pessoa como o senhor faz falta sobre a Terra, Doutor!...
— Ora, Orlando, por lá existe muita gente melhor do que eu!
— Mas que não dá a cara para bater, como o senhor sempre fez!...
— Continuo apanhando, meu filho, mas agora, pelo menos, estou dividindo a surra!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:14 am

Capítulo 18
Terminando os atendimentos que haviam sido agendados para aquele período do dia, fui ver como estava a nossa simpática hóspede recém-desencarnada.
Impressionei-me ao vê-la quase completamente refeita, embora ainda não estivesse apta para deixar o leito.
— Então - perguntei, sentindo-me à vontade -, como é que a nossa Maria Helena está passando?
— Melhor, Doutor, muito melhor... Estou me
sentindo tão leve, que tenho receio de flutuar no quarto; a impressão é a de que me livrei de um fardo extremamente pesado...
— Logo você se acostumará; nos primeiros dias, é assim mesmo...
— Por mais que eu tivesse lido sobre a desencarnação, a sensação extrapola as informações que possuímos... Como nos identificamos com o corpo e, ao mesmo tempo, nada temos a ver com ele...
— Não imagine, no entanto, que o fenómeno seja o mesmo com todos: tudo é uma questão de vida mental, de conscientização; a grande maioria, pela densidade do seu corpo espiritual, demora a se emancipar... A enfermidade prolongada, minha filha, tem as suas vantagens, tanto quanto a idade avançada, como aconteceu comigo: a gente vai desencarnando aos poucos...
— Eu não senti me destacar do corpo físico; imaginei que, quando tal se desse, eu me visse repleta de filamentos remanescentes...
— Estamos imantados ao corpo, não amarrados; quando a corrente eléctrica que nos atrai para ele cessa de agir, os circuitos naturalmente se interrompem e, então, o nosso duplo se desacopla; os filamentos perispirituais aos quais você se refere assemelham-se a laços energéticos que se desfazem e, em parte, são reassimilados...
— Reassimilados?...
— Sim, reabsorvidos pelo nosso organismo perispiritual e como que se cauterizam, instantaneamente, nos pontos de mais estreita ligação com o corpo somático... Isso, porém, se dá com os que desencarnam pelo esgotamento do tónus vital; a operação é variável, de acordo com as circunstâncias que cercam o desenlace do indivíduo... Por exemplo, com os que cometem o suicídio, os laços perispirituais que mencionamos se dilaceram, ocasionando um desperdício da energia vital acumulada.
Constatando que as explicações eram demasiadamente técnicas e que, no momento, poderiam cansar a nossa paciente, mudei de assunto:
— O que você está achando do nosso mundo?
— A pergunta do senhor é interessante, Doutor, pois, embora ainda esteja acamada, eu começo a senti-lo através de todos os meus poros... Eu ainda não vi o que existe lá fora, mas as minhas percepções, que se dilataram, como que me identificam com a nova realidade.
— Sempre nova, no entanto, tão velha realidade! A Vida, minha filha, procede daqui para a Terra, porém, quando encarnados, a impressão que temos é outra. Por que será que o mundo nos parece mais nosso do que as regiões espirituais que habitamos além da morte?
— É verdade, Doutor! Será porque a nossa realidade ainda está alhures? Terei vindo para o que realmente sou
ou terei me esquecido na retaguarda? Creio que, por instantes, apenas avançamos no tempo, não?...
A lucidez da Maria Helena me impressionava e eu estava começando a gostar de conversar com ela.
— A desencarnação - acentuei - nos coloca fora do nosso tempo mental; por esse motivo, nos referimos ao Mundo Espiritual como sendo novidade...
— Eu percebia isso, Doutor, quando, através da mediunidade, os espíritos se colocavam em contacto connosco: referiam-se à existência além da morte, como se se desse o inverso, ou seja, a Vida se originando da Terra para as Dimensões Espirituais...
— Por essa razão, a existência no corpo nos parece a definitiva forma de ser e nos apegamos a ela. Não nos passa pela cabeça a ideia de que a Vida é exportada das regiões do Além para a Terra e não, repito, vice-versa.
Ao contrário, para aqui nos despojarmos das reminiscências terrestres, requisitamos um tempo mais ou menos longo de readaptação.
— Dr. Inácio, e as árvores, os animais?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:14 am

— A Natureza, nesta Outra Dimensão, é muito mais exuberante! As sementes que florescem no mundo são desenvolvidas nos laboratórios do Espaço e, para se aclimarem no Planeta, sofrem mutações genéticas; o mesmo podemos dizer com relação aos animais - os nossos pássaros, por exemplo, voam daqui para lá e não de lá para cá... Muitos têm estranhado o facto de afirmarmos em nossas obras que, deste Outro Lado, as sementes germinam, os pássaros procriam... Ora, então, teríamos rios e florestas artificiais? Os nossos rios e as nossas florestas estão repletas de espécies animais que os homens desconhecem... Sinceramente, eu não sei o motivo de tamanho espanto! Os nossos irmãos concebem o Mundo Espiritual como uma extensa região deserta, onde nós, os sobreviventes da morte, certamente fôssemos condenados a morrer de tédio, pouco a pouco.
Neste momento, enquanto falávamos, Manoel Roberto abriu a porta do quarto e, antes dele, um pequeno gato angorá adentrou o recinto, começando a se enroscar em minhas pernas.
— Dr. Inácio - exclamou Maria a Helena, maravilhada e surpresa -, um gato! Que lindo!...
— Para onde é que os nossos irmãos encarnados quereriam que fossem as almas dos animais, após a morte?
— Eu ouvia dizer que o princípio espiritual neles existente permanecia numa espécie de erraticidade e que logo reencarnavam...
— Não é assim com todos; alguns retomam o corpo de imediato, mas... que corpo? O princípio espiritual evolui de espécie em espécie. Como será, Maria Helena, que os "sabem tudo" do mundo (estou me referindo aos espíritas) explicariam o fato de um papagaio, por exemplo, reencarnar como um gato ou um gato reencarnar como um macaco? Allan Kardec tratou do assunto com clareza e, negá-lo, equivaleria a negar toda a Doutrina. Homens eruditos como Pitágoras, o grande matemático, acreditava na palingenesia às avessas... Certa vez, impediu que alguém continuasse a espancar um cão, afirmando que nele se encontrava reencarnado um velho amigo seu! Sabemos que o espírito não retrocede e que, portanto, a chamada metempsicose é um equívoco de interpretação.
— Quanta coisa desconhecemos, Doutor!...
— Não sabemos sequer, minha filha, o que contém o universo de uma simples gota d'água! Bastaria uma única célula, em qualquer orbe deserto, para que a vida humana se reeditasse com as mesmas características!...
— Quando eu poderei me levantar e dar uma volta por aí? Quero respirar, Doutor! Agora que me vi livre dos tumores que me atacaram os pulmões, quero respirar!...
— Um espírito respirar?! Isto é uma heresia... Fique sabendo que, por estar morta, você está terminantemente proibida de respirar... O corpo espiritual é oco por dentro!
Maria Helena sorriu gostosamente e me estendeu as mãos com carinho, sob o percuciente olhar do esposo que, até então, se conservara em silêncio.
— Não tenha ciúmes, meu amigo! - disse-lhe em tom de brincadeira, igualmente fazendo-o sorrir. — Eu já sou um espírito comprometido, e tão comprometido, que não sei o que vou fazer... Feio como a Necessidade, eu não sei como desperto tanto interesse assim!
— Dr. Inácio, eu não concordo... O senhor é uma simpatia!
— Você é muito gentil, mas, com certeza, bonito você não me acha, pois, caso contrário não me agradaria dizendo que sou apenas simpático...
Deixando-os alegres, despedi-me e, na companhia de Manoel Roberto, caminhando pelo corredor fui abordado por um vigilante aflito.
— Doutor! Doutor!...
— O que houve?! Acalme-se!...
— Aquele padre, Doutor...
— Qual deles? Temos tantos por aqui...
— Aquele que se diz Arcebispo...
— O A.?!...
— Sim.
— Está aprontando novamente?
— Não, muito pior, Doutor: ele fugiu!...
— Fugiu? Como?!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:14 am

— Começou a conversar com o enfermeiro, que é novato, e o hipnotizou...
— Francamente! Manoel, estamos desmoralizados...
— O senhor sabe quanto ele é ardiloso - respondeu-me o companheiro, igualmente se sentindo culpado. — Deveríamos tê-lo isolado...
— Ele sempre combateu o Espiritismo, mas vivia estudando e praticando hipnose... Parece que com a intenção de atribuir a mediunidade ao hipnotismo.
Chegou até a dar espectáculo na televisão... Vamos procurá-lo; ele não pode ter ido longe. A nossa responsabilidade é grande - comentei, procurando me conter (Ah, se os tempos agora fossem outros!). — A sua mãe confiou-o à nossa protecção; ele está doente... Mas como isso pode ser possível? É inacreditável!
— Ele nos enganou, Doutor - tentou justificar-se o vigilante -; para mim, o tempo todo ele estava tramando...
Ninguém o viu sair.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:14 am

Capítulo 19
Procuramos nos arredores, e nada; o arcebispo emérito havia, de fato, desaparecido... Todavia, com as pernas frágeis, ele não poderia ter ido longe.
— É no que dá: tentamos ser mais civilizados resmunguei, após infrutíferas buscas -; se o hospital possuísse muros como o Sanatório, dificultaríamos as coisas...
Chamando às falas o enfermeiro que estava de plantão, no momento da fuga, ele me explicou:
— O senhor me perdoe, Doutor... Não sei o que me aconteceu. Aquele homem é terrível!...
— Isso eu sei - respondi, concordando -, e melhor que qualquer um de vocês... Certa vez, ele andou dizendo que iria me hipnotizar à distância. A falange que o acompanhava...
— Quando entrei no quarto, ele estava de pé, próximo à cama, e começou a dizer algumas palavras confusas, creio que em latim; depois, sorriu para mim de modo até simpático, com o que me prendi a ele, olhou-me fixamente nos olhos e... fiquei entorpecido.
— Para onde ele poderia ter ido? - perguntou-me Manoel Roberto. — O perigo é o de que venha a cair nas garras das entidades que perambulam nos arredores...
— É o que já deve ter acontecido - retruquei. — O A., ao contrário do que supõe, tem muitos inimigos fora do corpo. Se um deles o identificar, eu não gostaria de estar na sua pele; verá que, para ele, a vida aqui dentro, apesar de tratar-se de um hospital de dementados, é muito melhor do que lá fora... Quanta tolice, meu Deus! O que não provoca a rebeldia e o que não faz o preconceito religioso! O orgulho é um mal terrível... Digo-lhes que, de minha parte, por maior a birra que tenha de padres - e tenho mesmo! eu não hesitaria em ser acolhido por eles, em caso de extremíssima necessidade...
Falávamos assim, quando, providencialmente, Odilon apareceu na companhia de Sebastião Carmelita, um dos poucos sacerdotes que eu aprendera a respeitar.
— Dr. Inácio, meu amigo! Há quanto tempo! Estava com saudades...
— Eu também, Carmelita; você, Odilon e mais alguns poucos eram dos amigos que eu mais gostava de receber em casa...
— Ficamos sabendo, Inácio - disse-me Odilon -, a respeito da fuga empreendida pelo nosso A. e viemos nos oferecer para ajudá-lo.
— Agradeço muitíssimo, pois estou, deveras, preocupado; em minha opinião, ele está completamente perturbado e creio que influenciado por pensamentos que não lhe concedem trégua...
— Vampirização à distância? - interrogou Carmelita.
— Sim - respondeu o companheiro que respeitávamos na condição de Instrutor na Vida Espiritual -; vocês sabem que os obsessores de mente poderosa não necessitam de estar próximos a suas vítimas, principalmente quando se tem a sintonia facilitada...
— Vocês desconfiam com quem ele possa estar?
Terá ido ao encontro de antigos colegas?...
— Não, é mais fácil que ele tenha caído em poder de entidades de outra natureza...
— Evangélicos?...
— Não, eles não o molestariam a tal ponto...
— Sobram, então, os espíritas, Odilon; ele perseguiu a muitos dos nossos. Até tivemos oportunidade de socorrer, financeiramente, a muitos pais de família aos quais ele fez perder o emprego, lembra-se?...
— Esses nossos confrades igualmente não levariam tão longe o seu ressentimento.
— E os exus? Com o auxílio da polícia, ele mandou fechar terreiros e prender muitos pais-de-santo...
— Inácio - redarguiu-me Odilon com raras excepções, os pais-de-santo são criaturas evangelizadas e as entidades que com eles cooperam não se preocupariam com a mesquinharia do antigo prelado, que, no momento, tem contas mais imediatas a ajustar...
— Com quem?...
— Segundo soubemos - disse Carmelita -, um grupo de freiras desencarnadas, com as quais foi excessivamente severo, impondo-lhes punições e sobrecarregando-as, ao se verem fora do corpo e não tendo se deparado com o que ele lhes prometia, de há muito esperavam lhe colocar as mãos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 11:15 am

— Eu escutava mesmo certas conversas a respeito; tratava-se, porventura, de algum abuso sexual...
— Não, nesse aspecto, ele era um homem respeitador.
No entanto, do ponto de vista intelectual e emocional, ele as manipulava a seu bel-prazer; todas o temiam e lhe eram subservientes...
— É possível que as referidas irmãs de caridade tenham se organizado com o propósito de puni-lo? questionei, um tanto céptico.
— Frustrando-se com a desencarnação - respondeu-me Odilon -, por não encontrar, além da morte, o que a Igreja lhes prometera, muitas delas, em não conseguindo se esquivar da mágoa e do ressentimento, formam extensos grupos que reivindicam às autoridades eclesiásticas as promessas não cumpridas... As que lograram se espiritualizar, prevalecendo-se de sua verdadeira vocação religiosa, não se prendem ao passado e, inclusive, são gratas às rígidas disciplinas que lhes possibilitaram a ascensão, mas o mesmo não se pode afirmar daquelas outras que se refugiavam nos mosteiros e nos conventos com o único propósito de sufocarem as paixões que as atormentavam...
— Coitadas de nossas irmãs! - exclamou Carmelita.
— Periodicamente, eu me lembro, o antístite jubilado em questão as visitava e as ameaçava com o fogo do Inferno, tutelando-as com severidade e não com a ternura paternal que lhe cabia; várias vezes, pude ouvi-las em confissão e, subtilmente, tentava desfazer a negativa impressão que A. lhes deixara nas almas; ele as explorava, colocando-as para esmolar de porta em porta e encaminhar os donativos ao palácio episcopal. Eu mesmo, conforme vocês não desconhecem, tinha os meus passos vigiados de perto pelos seus espias...
— É por este motivo, Carmelita, que você sempre me visitava à noite, não é? - indaguei do companheiro. — Sim, porque, diversas vezes eu fora advertido por ele, que, quando acontecia uma denúncia, me convocava às pressas à sede do arcebispado e me ameaçava de destituir de minhas funções clericais, que, a bem da verdade, estive para deixar espontaneamente, em várias ocasiões, só não o fazendo por aconselhamento de amigos, inclusive do senhor mesmo e do nosso Chico Xavier.
— Você lá nos era mais útil à Causa...
— Compreendo, sim, a minha função de Gamaliel perante o Sinédrio, quando tomava a defesa dos cristãos, embora, dentro da Igreja, a minha palavra não tivesse peso em favor dos amigos espíritas...
— A sua palavra, Carmelita, talvez não, mas a sua conduta, sim - observou Odilon -; você sempre foi amado pela comunidade e poucos faziam o trabalho ao qual se dedicava com tanta abnegação: visitar os moribundos em seus leitos de morte e orar com os agonizantes, impondo-lhes as mãos sobre a fronte para que partissem em paz...
— Eu não poderia negar, em mim mesmo, as evidências dos fatos, posto que, desde rapazola, registava a presença das entidades espirituais à minha volta; vocês sabem que descendo de uma família espírita e até hoje não compreendo como quis ser padre...
Aproveitando a deixa, sentenciei:
— Carmelita, foi carma mesmo. Quem foi que mandou você atear fogo às obras de Allan Kardec, em Barcelona?!...
Desconversando, Odilon, que assumira naturalmente a liderança do nosso pequeno grupo, convidou-nos a partir no propósito de resgatar A., que, aqui entre nós, não estava sofrendo sem justa razão; eu ouvia dizer que ele punia as freiras recalcitrantes, mandando trancafiá-las em suas celas a pão e água... As coitadas viviam apreensivas e, quando ele anunciava a sua visita a determinado mosteiro ou convento, era um corre-corre sem fim, para deixar tudo em ordem a fim de agradar ao Sr. Arcebispo; enquanto, em sua residência oficial, se dava ao luxo de lautos banquetes, regados a vinhos importados, as pobrezinhas comiam um parco arroz com feijão...
— Você tem noção - perguntei ao Mentor -, de onde A. pode se encontrar? Estamos situados numa região fronteiriça às regiões mais densas do Mundo Espiritual e tudo aqui é muito vasto; estamos cercados por aldeias e cavernas, povoados e abismos, que eu nem saberia por onde começar a procurá-lo...
— De acordo, Inácio, com as informações que me chegaram, o ex-Arcebispo foi visto caminhando na direcção do Vale das Religiosas e, por esse motivo, creio que ele tenha caído em poder delas. Necessitamos nos apressar, antes que elas o torturem e lhe arranquem os olhos...
— Arrancar os olhos?!... - questionou Manoel Roberto ao meu lado.
— Sim, elas poderão induzi-lo à cegueira e, neste caso, nada poderemos fazer.
— Ele ficará cego?...
— Com os órgãos visuais irreversivelmente lesados, comprometendo o seu futuro estágio no corpo de carne...
— Isso é possível? - tornou Manoel a perguntar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 7:53 pm

Capítulo 20
— É claro que sim - respondeu Odilon -; por mais absurdo nos possa parecer, é claro que sim!... O corpo espiritual é susceptível de ser lesionado tanto quanto o corpo somático. Deste Outro Lado da Vida, a Medicina não se restringe a cuidar de mentes enfermas; não nos esqueçamos de que o perispírito não é totalmente destituído de órgãos internos... Se a vidência praticada contra o corpo físico pode repercutir no corpo espiritual, a agressão sofrida por este pode reflectir-se no primeiro.
Muitos irmãos encarnados, durante o sono, quando naturalmente se desprendem do seu veículo grosseiro de manifestação, podem, nas Dimensões Espirituais, sofrer determinadas lesões perispirituais que lhes comprometem seriamente a saúde, inclusive podendo levá-los à desencarnação em consequência.
— Posso escrever isso, Odilon? - indaguei.
— Pode.
— É uma provocação... A turma vai chiar!
— Que chie, Inácio, mas pense - respondeu o Instrutor com segurança.
— Quer dizer - atalhou Manoel - que morrer dormindo...
— ...nem sempre é uma boa morte, meu amigo!
Muitos dos que, por exemplo, sofrem uma parada cardíaca durante o sono, não foram simplesmente vítimas de um problema arterial... Em determinadas circunstâncias, de acordo com a Vontade Divina, que se nos manifesta através da Lei do Carma, se o homem vaguear a descoberto nos caminhos de além-túmulo e se deparar com adversários que lhe são ferrenhos...
— Poderão matá-lo?...
— Indirectamente, sim; poderão submetê-lo a espancamento e desencadear um problema de natureza irreversível...
— Raciocinando sob o mesmo prisma - insistiu o companheiro -, poderão contaminá-lo?
— Poderão... As emoções exacerbadas fazem cair a resistência do organismo, facilitando a proliferação dos agentes patogénicos.
— Apenas a proliferação?...
— A proliferação e o contágio.
— Então, não convém que nos ausentemos do corpo, enquanto dormimos - comentou Carmelita, como se ainda se sentisse um homem inteiro.
Odilon sorriu e esclareceu:
— A longas distâncias dele, não! Estando por perto, na iminência de qualquer perigo, o retomamos com facilidade e nos protegemos. O sistema imunológico do corpo, neste aspecto, nos é mais eficiente que o do perispírito. Se assim não fosse, os nossos inimigos invisíveis nos fariam desencarnar com extrema facilidade...
— A minha cabeça está rodopiando - disse Manoel, amparando-se em mim.
— A sua cabeça oca rodopia por pouca coisa:
rodopiava na Terra, continua rodopiando no Além e só Deus sabe por quanto tempo há de rodopiar ainda!... caçoei sorrindo.
— Doutor, o senhor não vai escrever isto, vai?
— É lógico que vou...
— O pessoal vai chiar...
— Manoel, eu não sou Jesus Cristo, mas faço minhas as palavras Dele, anotadas por Lucas: "Eu vim trazer fogo à Terra, e o que quero eu senão que ele se acenda?"
— Inácio, apressemo-nos; o tempo urge - chamou-me Odilon, acenando para que o acompanhássemos.
Deixando Manoel Roberto e outros auxiliares tomando conta do Hospital, eu, Carmelita e Odilon começamos a caminhar na direcção do Vale das Religiosas, assim chamado por se tratar de uma comunidade estritamente feminina, dirigida por uma entidade que se auto-intitula "Papisa".
— Vamos caminhando - sugeriu o Mentor - não nos convém que adentremos o Vale de outra maneira, pois, assim, as nossas irmãs saberão que não temos nada a esconder e que estamos indo em missão de paz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 7:53 pm

Não me é possível dar-lhes uma ideia de distância, no entanto, apenas a título de orientação espacial, digo-lhes que seguimos a pé, deslizando, por uns trinta quilómetros, até que propriamente começamos a pisar em terreno controlado pelas religiosas católicas de várias nacionalidades mas, em sua maioria, brasileiras, italianas e portuguesas.
A fim de não comprometer o conteúdo doutrinário desta obra, omitirei vários detalhes que, com certeza, muitos haveriam de interpretar por excesso de imaginação minha, do médium ou de nós dois, ao mesmo tempo.
Assim que ultrapassamos o perímetro espiritual de acesso ao Vale, fomos abordados por cinco amazonas, em trajes exíguos, montando fogosos corcéis; apontando-nos lanças afiladas, uma delas nos interpelou:
— O que fazem por aqui? Estão perdidos? Não sabem que estão pisando em território proibido?
Adiantando-se, Odilon respondeu:
— Somos do Hospital dos Médiuns e estamos à procura de um dos nossos pacientes.
— E o que os leva a crer que ele tenha vindo para cá?
— Amigos que o viram caminhando com dificuldade...
— Trata-se - aparteei - de um homem já velho e cansado...
— Velhos e cansados, vocês três igualmente nos parecem - ironizou a amazona.
— Mas, além de velho e cansado, ele está doente...
Fugiu do hospital e...
— Velho, cansado e doente e conseguiu fugir?!
Daqui, que talvez vocês considerem região das trevas, ninguém foge e quem entra não sai - disse, olhando-nos de forma lasciva e maledicente.
— Gostaríamos, minha irmã - redarguiu Carmelita -, de nos entender com a sua líder...
— A "Papisa"?!... Ela é muito ocupada e não perde tempo com homens. "Minha irmã"?! Quem é você, para me tratar assim?...
— Sou seu irmão, filho de Deus como você, nada mais, nada menos...
— Viemos francamente e a nossa intenção não é a de desafiá-las - argumentei -; em nossa instituição, já abrimos as portas para várias de vocês...
— Desertoras!... Espíritos frágeis e sem determinação; arrepender-se-ão de confiarem novamente nos homens... Vocês sempre nos enganaram e nos privaram de nossos direitos. Elas são umas tolas!
— Por favor - solicitou Odilon com humildade -, levem-nos à sua líder; o que ela nos disser acataremos...
— Mesmo porque - ironizou outra vez a amazona que, enquanto falava, cavalgava ao nosso derredor - não lhes sobra alternativa... Vocês estão arriscando o pescoço!
A "Papisa" detesta padres: quanto mais hierarquizados, mais ela os odeia, e a sua preferência é por Bispos e Cardeais...
— Eu fui padre, minha irmã - identificou-se Sebastião Carmelita -, mas estes dois amigos não o foram...
— Você "foi" padre? Está com medo de dizer que continua a sê-lo?...
— Não, não se trata disso; é que, com a morte, finalmente, eu pude me libertar... Contudo, devo dizer-lhe que continuo com o meu respeito à Igreja, que nós, os homens, desvirtuamos.
— Pelo menos, você está sendo honesto: sim, foram vocês, os homens, que a corromperam... Malditos! Vocês nos prostituíram a fé!... Dominaram-nos por séculos e séculos!
— Acalme-se, minha irmã - falou Odilon, percebendo que as guerreiras começavam a se exaltar -; o Carmelita sempre foi um benfeitor de vocês...
— Você é o...
— Sebastião Bernardes Carmelita, seu criado!
— O Padre Carmelita, de Uberaba?!...
— Ele mesmo, minha irmã, para servi-la.
Os olhos da amazona, de repente, encheram-se de lágrimas e, sem mais uma palavra, ordenou-nos:
— Sigam-nos!
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 7:54 pm

Depois de termos caminhado, da mesma maneira, ao que suponho, por mais uns quinze quilómetros, em completo silêncio, fomos conduzidos a uma cidade que se espalhava do centro do Vale das Religiosas, estendendo-se até às encostas dos montes íngremes que a cercavam. As construções mais imponentes, em estilo gótico, inspiravam-se em motivos religiosos, à feição de pequenos mosteiros medievais e igrejas de paredes escurecidas e lúgubres; centenas e centenas de casas abrigavam em seu interior tão-somente mulheres, valendo ressaltar que, dentre elas, não observamos uma criança sequer ou sequer um homem, exceptuando-se alguns de aparência andrógina, que igualmente envergavam os hábitos característicos de diversas ordens...
Eu, Odilon e Carmelita éramos os únicos, com traços fisionómicos acentuadamente masculinizados e, por esse motivo, nos fazíamos alvo da atenção de todas.
As cinco amazonas que nos ladeavam mantinham a multidão a considerável distância de nós, mas, aos nossos ouvidos, registávamos palavras obscenas, luxuriosas, e, diante dos nossos olhos, muitas se desnudavam...
Ali, o sexo e a religião pareciam coexistir em estranho conúbio, na depravação de todos os costumes permitidos pelo lesbianismo.
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Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Infinitas Moradas - Inácio Ferreira/Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 31, 2022 7:54 pm

Capítulo 21
Ressalte-se que, enquanto éramos conduzidos à presença da líder daquela comunidade de freiras que, após a morte, haviam se rebelado, notávamos que muitas nos pareciam ali ser mantidas por coerção ou mesmo porque não lhes restava outra alternativa; nem todas nos agrediam com palavras que não ouso reproduzir e se conservavam retraídas, com os seus semblantes de cera parcialmente ocultos sob o véu que lhes cobria o rosto...
Depois de termos atravessado extensa praça ovalada, alcançamos um prédio que, por seus traços arquitectónicos, me fez lembrar um mosteiro, com algumas torres negras que se elevavam à semelhança de mirantes ou minaretes.
As amazonas se fizeram anunciar e, assim que as pesadas portas se abriram, fomos encaminhados, sob guarda reforçada, para o interior da construção parcamente iluminada. Tínhamos a impressão que, de fato, voltáramos no tempo, sendo que, pelo poder da mente, é que aquelas irmãs haviam plasmado as condições de vida no Vale das Religiosas, ou das Sacerdotisas, conforme a grande maioria delas gostava de se referir ao próprio habitat, que distava vários quilómetros do Hospital.
Das paredes esverdeadas e escurecidas, pendiam crucifixos e figuras de mulheres que haviam sido martirizadas; curiosamente, nos crucifixos nus, não observávamos sobreposta a imagem do Cristo, como se, inclusive Ele, aquelas nossas irmãs houvessem banido do objecto de suas crenças, demonstrando indisfarçável ressentimento.
Caminhando por estreito corredor, chegamos a amplo salão, onde, sentada em uma espécie de trono e cercada por jovens diaconisas em trajes diáfanos, a líder, que nos esperava, ordenou que não nos aproximássemos tanto; pude ainda notar, a dois ou três passos atrás das "sacerdotisas" que lhe constituíam a guarda particular, eunucos, que, armados de espada e lança, se colocavam de prontidão para qualquer emergência...
Em rápidas palavras, a amazona que nos conduzira fez-lhe profunda reverência e explicou-se:
— "Papisa", encontramo-los à entrada do Vale e, interrogados, disseram que precisavam vê-la. Estão à procura de um paciente do hospital que, segundo dizem, teria fugido e...
— Deixe-os falar - ordenou a líder, revelando impaciência na voz. — Quem são vocês? Identifiquem-se. Vocês estão em território proibido.
Tomando a frente, Carmelita se apresentou:
— Chamo-me Sebastião Bernardes Carmelita e estes são dois amigos, Odilon Fernandes e Inácio Ferreira.
Estamos atrás de um doente...
— Você é padre? - interrompeu a religiosa, indo directo à identificação.
— Fui, minha irmã; actuei na cidade de Uberaba e oficiava no Asilo Santo António, além de prestar a minha humilde colaboração à Santa Casa de Misericórdia e a várias outras paróquias...
— Foi e não é mais? Ou está com medo do que possamos fazer a você? Aqui, temos verdadeira aversão por qualquer homem de saia; os únicos que admitimos são os eunucos, cuja maioria foi forçada a tal situação pelos abusos que sofreram e a que se habituaram, ainda quando adolescentes, nos seminários...
— Minha irmã, é possível que você tenha informações a meu respeito...
Levantando a mão direita, "Papisa" concedeu permissão para que uma das vestais se aproximasse e lhe sussurrasse algumas palavras aos ouvidos.
— Pelo menos, você não é mentiroso - disse, crispando as mãos e se contendo. — O que é que desejam? Recomendo-lhes que sejam breves, antes que eu mude de ideia e os mande trancar nos calabouços.
— O nosso irmão Inácio poderá explicar melhor respondeu Carmelita, fazendo sinal para que eu me adiantasse.
— Estamos, minha irmã, à procura de um arcebispo jubilado muito conhecido nas imediações... Trata-se de A. G. A.!...
— Aqui nós o conhecemos de velho, e muitas acreditem - dariam tudo para arrancar-lhe os olhos...
Aquele aproveitador! O que o faz acreditar que o devolveremos a vocês? Não acham que deve pagar pelo que fez? Vocês não sabem como ele manipulava o poder...
— Eu fui um de seus alvos preferenciais - repliquei.
— Na condição de espírita e maçon, padeci diversas perseguições engendradas por ele... Até o nosso jornal ele conseguiu fechar!
— Espírita e maçon? E conseguiu sobreviver?!
— Só não consegui que ele deixasse a carcaça antes de mim; também, ao que sei, nunca trabalhou e vivia às expensas da Igreja...
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