LUZ ESPÍRITA
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Série André Luiz - E A VIDA CONTINUA...

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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jul 02, 2012 8:56 pm

Não aspiramos a dizer com as nossas afirmativas que o renascimento no campo físico seja sempre cadinho de reparação aos delitos que praticamos, pois milhares de companheiros, depois de longo e honesto esforço pela própria corrigenda, entre nós, com larga quota de tempo em nossa colónia de trabalho e reforma, volvem ao corpo carnal, honrados com tarefas de abnegação e heroísmo obscuro, junto de alguém ou ao lado de grupos afins, granjeando, em louvável anonimato, concessões e vitórias dignas de apreço que, apesar de permanecerem quase sempre ignoradas pelos homens, se lhes erigem, aqui, em passaportes de libertação e acrisolamento para as Esferas Superiores!...

Ante a pausa que surgiu espontânea nos lábios do orador que se aureolava de intensa luz, Evelina e Ernesto se entreolharam e, em seguida, através de ligeira mirada sobre os circunstantes, notaram que dezenas de rostos se banhavam de lágrimas.

— Irmãos — continuou o ministro —, não vos sintais num tribunal de justiça, quando nos achamos numa casa de fé!...

Mãe amorosa dos nossos impulsos de melhoria e sublimação, diz-nos a fé, neste recanto operoso e tranquilo, que não obstante desencarnados é preciso reconhecermos que as nossas ocasiões de trabalho e progresso, rectificação e aprendizagem não chegaram a termo!...

Aceitemo-nos quais somos, reconheçamos o montante de nossas dívidas e coloquemos mãos fiéis no arado do serviço ao próximo, sem olhar para trás...

A cidade que nos reúne está repleta de instituições beneméritas com as portas descerradas ao voluntariado de quantos queiram colaborar no socorro aos que chegam até nós, em posição de angústia ou necessidade, todos os dias...

Na Crosta Planetária, onde as criaturas irmãs da retaguarda travam dura batalha de evolução, entes queridos, ainda encarnados, exigem-nos os mais entranhados testemunhos de ternura humana, através do concurso espiritual que lhes possamos administrar, nos domínios da compreensão e do amor, a fim de que continuem a viver na experiência terrestre que lhes é necessária, tranquilos e felizes, sem nós...

Todo um apostolado de renúncia construtiva, abnegação, carinho e entendimento se descortina para a maioria de vós outros, no lar terrestre, onde quase todos estais ainda vinculados de pensamento e coração!...

Além disso, estamos cercados, através de quase todos os flancos, por multidões de companheiros dementados, a nos pedirem amor e paciência para que se refaçam!...

Na arena física, multiplicávamos apelos a que se pusessem mesas dedicadas aos famintos e se acumulassem agasalhos para o socorro à nudez...

Aqui, somos desafiados à formação e sustentação do devotamento e da tolerância, para que a harmonia e a compreensão se estabeleçam na alma sofrida e conturbada dos nossos irmãos tresmalhados nas sombras de espírito.

Caridade, meus irmãos!... Amor para com o próximo!...
Muitas vezes, o serviço de alguns dias pode endossar-nos valioso empréstimo de energias e meios para as empresas de recuperação e elevação que nos requisitam o esforço de muitos anos.

Oremos, suplicando ao Senhor nos inspire, a fim de que venhamos a escolher decididamente a estrada de purificação em novos e benditos avatares na estância física, ou a vereda ascendente para a Vida Maior!...

Calou-se o sacerdote em prece muda.
Do teto pendiam estrias de safirina luz, quais pétalas minúsculas que se desfaziam ao tocar a cabeça dos presentes, ou desapareciam, de leve, atingindo o chão.

Dir-se-ia que no peito do ministro, em profunda concentração mental, se inflamara uma estrela de prata translúcida, de cujo centro se irradiava, docemente, toda uma chuva de raios liriais, inundando o salão.

Fantini estava comovido, mas Evelina, qual sucedia a muitos dos companheiros ali congregados, não conseguia jugular o pranto que lhe vinha em onda crescente do coração aos olhos.

A senhora Serpa não saberia explicar a razão da emotividade que lhe assaltara os recessos do espírito, extremamente sensibilizada como se achava, ignorando se devia aquelas abençoadas lágrimas às aspirações para o Céu ou às saudades da Terra...

Não mais ouviu as derradeiras palavras do ministro, ao encerrar o ofício da noite.

Sabia apenas que se amparava agora de maneira total no braço do amigo, junto de quem se retirou do recinto, soluçando...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:09 pm

13 - Tarefas novas

Fundamente sensibilizados com as apreciações ouvidas no templo, Evelina e Ernesto solicitaram admissão à caravana socorrista que o Irmão Cláudio presidia, em visita semanal à região dos companheiros perturbados e sofredores.

Aquele mesmo amigo do Instituto de Ciências do Espírito atendeu-lhes o pedido com simpatia e benevolência e, mais alguns dias passados, vamos encontrar os dois amigos integrando operoso conjunto de serviço, que passava, então, ao número de oito pessoas, cinco homens e três mulheres, entre as quais se achava a irmã Celusa Tamburini.

Na peregrinação de fraternidade, a equipe descia na direcção de vale extensíssimo, destinando-se especialmente naquele dia ao culto do Evangelho no lar de Ambrósio e Priscila, casal que desempenhava o encargo de guardiães, dentre os muitos sediados na fronteira que assinala os pontos iniciais da zona conflagrada pelas projecções mentais dos irmãos em desequilíbrio.

Tão logo se lhes descortinou mais ampla faixa da paisagem, Ernesto e Evelina não conseguiam sopitar as expressões de assombro.

Densa névoa, a patentear-se por diversas tonalidades de cinza, barrava a província em toda a linha divisória.

Pela primeira vez, enxergaram nos céus máquinas voadoras que se dirigiam da cidade para o território sombrio, semelhantes a grandes borboletas silenciosas reflectindo o sol que lhes punha à mostra as asas, como que estruturadas em pedaços de arco-íris.

Fantini desfechou para logo uma indagação, a que Cláudio respondeu, satisfeito:
— São aparelhos volantes, em que viajam comissões de trabalho, em tarefas de identificação e assistência.

— A região é tão grande assim?
— Imagine um deserto planetário, com muitas sesmarias de área, marginadas por cidades ordeiras e prósperas, e terá a exacta noção do que nos ocorre aqui.

— E esses viajantes, através do ar, desencarnados como estão, acaso não lograriam seguir adiante, sem esses engenhos, usando o poder de volitação que lhes é próprio?

O chefe sorriu e ponderou:
— Tudo na vida se rege por leis.
Um pássaro terrestre possui asas e foge do campo incendiado, por não suportar-lhe a cortina de fumo. Um bombeiro, a fim de penetrar numa casa invadida de fogo, veste roupa defensiva.

E aditou:
— Achamo-nos à frente de perigosa extensão de espaço, habitada por milhares de criaturas rebeldes que constroem, à custa dos próprios pensamentos em desvario, o ambiente desolado que se nos impõe à vista.

Aí, nesse mundo diferente, somos defrontados pelas mais estranhas edificações, todas elas caricaturas dos abrigos domésticos de que os donos abusaram na experiência física, uma verdadeira floresta de fluidos condensados, retratando as ideias e manias, ambições e caprichos, remorsos e penitências dos moradores.

Temos aí, nessa faixa umbralina, todo um estado anárquico, em que o individualismo se desborda na hipertrofia da liberdade, sem os constrangimentos benéficos da disciplina, que nos faz realmente livres pela voluntária sujeição de nossa parte aos dispositivos das Leis de Deus.

— E porque Deus permite a formação desses quistos gigantescos de perturbação e desordem? — inquiriu Ernesto, num rasgo de lógica humana.

— Ah! meu amigo — obtemperou o Irmão Cláudio —, sempre que indagamos de nossos Maiores porque não interfere a Divina Providência no campo da inteligência corrompida no mal, a resposta invariável é que o Criador exige sejam as criaturas deixadas livres para escolherem o caminho de evolução que melhor lhes pareça, seja uma avenida de estrelas ou uma vereda de lama. Deus quer que todos os seus filhos tenham a própria individualidade, creiam nele como possam, conservem as inclinações e gostos mais consentâneos com o seu modo de ser, trabalhem como e quanto desejem e habitem onde quiserem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:10 pm

Somente exige — e exige com rigor — que a justiça seja cumprida e respeitada.

«A cada um será dado segundo as suas obras.»
Todos receberemos, nas Leis da Vida, o que fizermos, pelo que fizermos, quanto fizermos e como fizermos.

De conformidade com os Preceitos Divinos, podemos viver e conviver uns com os outros, consoante os padrões de escolha e afectividade que elejamos;
entretanto, em qualquer plano de consciência, do mais inferior ao mais sublime, o prejuízo ao próximo, a ofensa aos outros, a criminalidade e a ingratidão colhem dolorosos e inevitáveis reajustes, na pauta dos princípios de causa e efeito que impõem amargas penas aos infractores.

Somos livres para desenvolver as nossas tendências, cultivá-las e aperfeiçoá-las, mas devemos concordar com os Estatutos do Bem Eterno, cujos artigos e parágrafos estabelecem sejam feitas e mantidas, no bem de todos e no amparo desinteressado aos outros, as garantias de nosso próprio bem.

Atingindo a orla escura da esquisita povoação, que começava, aqui e além surgiam criaturas andrajosas e alheadas.

Não se podia afirmar fossem criaturas análogas aos mendigos, de alguma praça terrena, em penúria.
Esse ou aquele habitante do imenso arrabalde davam a ideia de pessoas que o orgulho ou a indiferença tornavam espiritualmente distantes.

De par com esse género de transeuntes, outros apareciam entremostrando ironia e desprezo na mímica escarnecedora com que apontavam os viajantes ou a estes se dirigiam. Quase todos exibiam roupas estranhas, cada qual obedecendo às condições e dignidades a que supunham pertencer.

A uma pergunta desfechada por Fantini — pois Evelina e ele eram os únicos adventícios na equipe socorrista — Cláudio observou:
— De modo geral, os milhares de irmãos que se abrigam nestas paragens não se aceitam como são.

Habituaram-se de tal maneira às simulações — aliás, muitas vezes, necessárias — da experiência física, que se declaram ofendidos pela verdade.

Viveram, anos e anos, na esfera carnal, desfrutando essa ou aquela consideração pelos valores de superfície que exibiam, enfatuados, e não se conformam com a supressão dos enganos e privilégios imaginários de que se alimentavam...

Narcisos fixados à própria imagem na retaguarda...

Muitos se transferiram directamente da vida física para a região nebulosa sob nossa vista, e outros muitos habitaram, logo após a desencarnação, cidades de recuperação e adestramento, semelhantes à nossa;
entretanto, à medida que se evidenciavam, tais quais ainda são na realidade, absolutamente sem quaisquer simulacros dos muitos de que se valiam na estância terrestre para encobrirem o “eu” verdadeiro, rebelaram-se contra a luz do Mundo Espiritual que nos expõe à mostra a natureza autêntica, uns diante dos outros, e fugiram de nossas colectividades, asilando-se no vale de sombras geradas por eles mesmos.

Aí, na penumbra criada pela força mental que lhes é própria, com o objectivo de se esconderem, dão pasto, em maior ou menor grau, às manifestações da paranóia a que todos se afeiçoam, entregando-se igualmente, em muitos casos, a lastimáveis paixões que procuram debalde saciar, até as raias da loucura.

— Irmão Cláudio — lembrou Evelina —, o senhor já penetrou nesses sítios, atingindo algum ponto distanciado da orla?
— Já acompanhei diversas caravanas de fraternidade e socorro, utilizando veículos diversos, alcançando praças estabelecidas muito longe de nós...

— E que viu?
— Cidades, vilarejos, povoações e aldeamentos vários, em cujo seio Espíritos de inteligência cultivada e vigorosa, mas profundamente pervertidos, dominam enormes comunidades de Espíritos menos hábeis no comando das situações;
contudo, tão pervertidos, via de regra, quanto eles mesmos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:10 pm

Cláudio sorriu e ressalvou:
— Quando digo a palavra «pervertidos», não me proponho a julgar os nossos irmãos transitoriamente encastelados na sombra. Desejo apenas qualificar, para a compreensão de quem chegou recentemente da vida física, a posição desses amigos doentes.

Aliás, consideramo-los tão enfermos quanto os nossos irmãos alienados mentais de qualquer hospício da Crosta Planetária, credores de nosso melhor carinho.

E saibamos, com entranhado respeito, que numerosos pais e mães, esposos e esposas, filhos e pessoas amadas de muitos dos companheiros transviados nessas regiões sombrias aí residem, por mero devotamento, na situação de heróis obscuros, em admiráveis apostolados de amor e renúncia, a benefício dos que se enrijecem no erro, de modo a reconduzi-los ao reequilíbrio necessário, preparando-se para as novas reencarnações que os esperam.

Esses paladinos da bondade e da paciência parecem escravizados aos infelizes que amam;
no entanto, pela cátedra do sacrifício da humildade que esposam, acabam conseguindo prodígios pela força irresistível do exemplo.

A casa singela de Ambrósio já se debuxava a distância, quando Fantini, como quem não desejava perder o fio dos raciocínios em andamento, inquiriu ainda:
— Irmão Cláudio, são geralmente muitos os que são resgatados pela dedicação afectiva daqueles que os tutelam nestes lugares?

— Sem dúvida.
Todos os dias, chegam às nossas casas de reajuste pequenos ou grandes magotes dos que aspiram a renovar-se.

— E permanecem na cidade, indefinidamente?
— Isso não.
Com poucas variantes, demoram-se connosco apenas o tempo preciso ao exame da nova reencarnação, em que regressam aos disfarces da carne, sem os quais, segundo acreditam, não conseguem seguir à frente, nas veredas da regeneração.

Entre o cansaço da erraticidade nas sombras da mente e o terror da luz espiritual que confessam não suportar sem longa preparação, suplicam o socorro da Providência Divina e a Divina Providência lhes permite a nova internação na armadura física, na qual se reocultam, lutando pela própria corrigenda e pelo burilamento próprio, encobertos transitoriamente no engenho carnal, que, pouco a pouco, se desgasta, pondo de novo, à mostra, o bem ou o mal que fizeram a si mesmos, no período da encarnação.

Obtido o empréstimo do novo corpo, via de regra junto daqueles que se lhes fizeram cúmplices nos desvarios do pretérito ou que se lhes afinam com o tipo de débitos e resgates consequentes, esses candidatos à recapitulação expiatória do passado imploram medidas contra eles mesmos, seja na escolha de ambiente doméstico em desacordo com os seus ideais ou na formação do futuro corpo de que farão uso, corpo esse que, muitas vezes, desejam seja bloqueado em determinadas funções, prevenindo-se prudentemente contra as tendências inferiores que, em outro tempo, lhes facilitaram a queda.

— Isso quer dizer que pedem certas cassações em desfavor deles mesmos? — interpôs Fantini com a sua habitual agudeza de raciocínio.

— Sim, cassações.
Em vista disso, encontramos na Terra, a cada passo, grandes talentos frustrados para a direcção que anelariam imprimir aos próprios destinos...

Inteligências vigorosas, desde cedo, barradas na obtenção de quaisquer louros académicos e, por essa razão, detidas em artesanatos obscuros ou encargos singelos, em longa e dolorosa subalternidade, nos quais entesouram humildade e equilíbrio, paz e moderação;

artistas contrariados nas mais altas aspirações, arrastando defeitos físicos e inibições outras que lhes obstam temporáriamente as manifestações e sob as quais adquirem a reeducação dos próprios impulsos com o respeito necessário para com os sentimentos do próximo;

mulheres de profunda capacidade afectiva jungidas a corpos que lhes deprimem a apresentação, aprendendo em terríveis conflitos da alma quanto dói a deserção do lar e o menosprezo aos compromissos da maternidade;
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:10 pm

homens hábeis e enérgicos, carregando frustrações insidiosas e ocultas que lhes proíbem a euforia orgânica, no estágio físico, de modo a edificarem o espírito de entendimento e caridade, no âmago de si próprios...

A palestra admirável, que valera por aula inesquecível no ânimo dos ouvintes, foi repentinamente interrompida pelo abraço de Ambrósio e Priscila que aguardavam os peregrinos fora das portas.

Saudações, bênçãos, votos, alegrias.
O serviço religioso no lar se revestiu das características do Evangelho em casa, nos domicílios cristãos da Terra.

Havia, porém, ali, naquela tenda simples, valioso trabalho de extensão do apoio espiritual aos amigos sofredores da vizinhança.

Vinte e duas entidades, das quais vinte mulheres e dois homens, tinham vindo do grande nevoeiro próximo, a fim de ouvirem a palavra do Irmão Cláudio, entremostrando anseios de tranquilidade e transformação.

Desdobraram-se as tarefas nos moldes das reuniões evangélicas do mundo, suplementadas pela conhecida orientação espírita-cristã, portadora da interpretação respeitosa, mas livre, dos ensinamentos do Senhor.

Na fase terminal, passes de reconforto e mensagens de esclarecimento, advertência e ternura.
Ocasiões de serviços repontaram do quadro para Ernesto e Evelina, que, por designação do orientador, suavizaram os padecimentos de duas das irmãs visitantes, a se cobrirem de lágrimas, depois dos comentários ouvidos.

Toda a equipe se dedicava a conversação edificante, às despedidas, acompanhando os frequentadores humildes da sementeira evangélica, fora da casa, quando, emergindo da névoa, compacto grupo de Espíritos zombeteiros e dementados apareceu.

Explodiram impropérios, entremeados de vaias e ditos chulos.

Prevenindo, especialmente aos dois recrutas, Cláudio avisou:
— Não se aflijam. A ocorrência é normal...

— Patifes! Sumam, sumam daqui! (1) — rugiu um dos atacantes de vozeirão descomunal — não queremos sermões, nem encomendamos conselhos.

Amainando a saraivada de insultos, Cláudio tomou a palavra e falou alto, sem alterar-se:
— Irmãos!... Para aqueles de vós que desejais vida nova com Jesus, somos companheiros mais íntimos desde agora!...
Vinde à verdadeira libertação! Unamo-nos em Cristo!...

- Hipócritas!... — reagiu a mesma voz troante, seguida pelas gargalhadas irónicas de muitos — nada temos com Jesus!... Mascarados!

Vocês todos são iguais a nós, vestidos na capa de santarrões!...
Nós é que podemos chamar vocês para a liberdade!...
Larguem as asas de barro!...

Anjos cotós! Cães enfeitados!...
Vocês são tão humanos, quanto nós mesmos!...
Se são corajosos, deixem de ser burros velhos no freio da disciplina e venham ser livres como somos!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:11 pm

Dito isso, a malta avançou sobre o grupo fraterno, mas Cláudio, evidentemente em oração, ergueu a destra e um fio de luz cortou o pequeno espaço que isolava os agressores.

A chusma de infelizes estacou, aterrada.
Alguns deles caíram no solo, como que traumatizados por força incoercível, outros resistiram vomitando injúrias, ao passo que outros ainda fugiam em disparada...

Todavia, dentre aqueles que se mantinham de pé, um deles, muito jovem, bradou com acento inesquecível:
— Evelina!... Evelina!... É você aqui?
Oh! Estou vivo, estamos vivos!... Quero Jesus! Jesus!
Socorro! Socorro!... Quero Jesus!...

Cláudio aquiesceu, compadecido:
— Vinde!... Vinde!...

O moço arrancou-se da quadrilha, seguiu na direcção que Cláudio lhe indicava e, em poucos momentos, a senhora Serpa, trémula e consternada, tinha diante de si, Túlio Mancini, aquele mesmo rapaz a quem amara noutro tempo e que, segundo estava convencida, havia descambado nas trevas do suicídio por sua causa.

(1) Compreendemos a inconveniência das citações pejorativas; entretanto, embora esmaecidas, acreditamos que as reacções dos companheiros menos felizes, internados em regiões hospitalares ou purgatoriais, devem comparecer no presente relato, de modo a não fugirmos do encontro com a verdade. — Nota do autor espiritual.
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14 - Novos rumos

A senhora Serpa, extática, não conseguiu articular palavra.

— Evelina!... Evelina!... — gritava o moço como que dementado de júbilo.
Agora!... Agora que vi você, reconheço que estou vivo... Vivo!...

Cláudio considerou a delicadeza do momento e recomendou medidas para que o rapaz fosse abrigado no lar de Ambrósio, até que se lhe providenciasse hospitalização conveniente, de modo a se adaptar ao meio como se impunha.

Depois de passes reconfortantes em que se lhe sossegaram as emoções, Túlio Mancini foi conduzido à residência dos modestos amigos que o acolheram alegremente, enquanto o grupo socorrista retornava ao campo doméstico.

Distinto psicólogo, Irmão Cláudio se absteve de quaisquer alusões pessoais, a não ser nas frases ligeiras com que notificou a Fantini e à senhora Serpa a possibilidade de reverem o amigo reencontrado no dia seguinte, se o desejassem, prometendo indicar-lhes o endereço preciso, de vez que esperava situá-lo em dependência de reajuste e descanso, tão logo pudesse avistar alguma das autoridades a cuja orientação se lhe vinculava a obra assistencial.

Ernesto, a seu turno, estimaria ouvir a companheira com respeito ao suicida que lhes fora objecto de tantos comentários, desde a conversação primeira;
no entanto, calava-se, observando-a francamente aparvalhada e apoiando-se-lhe ao braço em fundo silêncio.

Na cabeça dele, Fantini, pensamentos contraditórios se embaralhavam, sugerindo inquirições sem resposta.

Não era Túlio um suicida? — perguntava-se.
Lera bastante material informativo sobre suicidas, além da morte, e acreditava estivessem eles comumente agoniados nas duras penalidades a que se impunham pelo desacato às Leis de Deus.

Por que motivo escapara Mancini às corrigendas a que fazia jus, pervagando à vontade na província de alienados mentais, entre Espíritos rebeldes e vagabundos?

Homem educado, porém, buscou emudecer considerações e perguntas para únicamente reverenciar a perplexidade da amiga que, desde muito, lhe ganhara o coração.

Passo a passo e diálogo a diálogo, a equipe dispersou-se entre saudações de fraternidade e votos de paz.

A sós com Evelina, entretanto, o generoso amigo, para dissipar os pensamentos constrangedores de que a via cercada, sorriu e falou com excelente humor, infundindo-lhe calma e optimismo:
— Excelentíssima senhora Serpa, se alguma dúvida nos restava sobre a morte de nossos corpos físicos que já devem ter desaparecido no bojo da terra, já não nos é possível doravante qualquer incerteza.

Ela diligenciou, em vão, sorrir.
Sentia-se esmagada, abatida...

Ernesto redobrou esforços por chamá-la ao reequilíbrio e, depois de larga série de alegações construtivas, rematou:
— Acaso, não temos nós solicitado trabalho?
Quem dirá não tenhamos sido induzidos, sem perceber, pelas autoridades daqui, ao achado de hoje?

Esse Túlio que lhe foi, um dia, companheiro de sonhos, será talvez para nós o começo de novos rumos...
Uma nova ocupação, um caminho de acesso à elevação espiritual a que nos cabe dar início...

Você concordará em que o vemos necessitado de. tudo...
Aquela voz atormentada, aqueles olhos de doente não nos enganariam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:11 pm

Estamos diante de alguém que solicita atenções imediatas e, a rigor, sendo pessoa de suas relações, é nosso parente próximo.
Somos agora os únicos familiares que ele possui.

Porque a amiga se referisse, de leve, à dor misturada de assombro que a descoberta lhe causara, Fantini voltou ao bom-humor do princípio e gracejou, de braços abertos:
— Que esperaria de melhor a senhora Serpa, a fim de trabalhar?

Cravou as mãos na cintura, num gesto que lhe era peculiar, e sublinhou:
— Quanto ao mais, minha querida amiga, lembro aqui a declaração filosófica de um velho companheiro:
«Convivei e purificai-vos».

Estamos desencarnados e precisamos, como nunca, de burilamento moral.
Se a presença de Túlio nos chama ao serviço que nos testará a capacidade de amor ao próximo, não hesitemos abraçar as novas obrigações.

Dias transcorreram até que os dois amigos conseguissem reavistar o rapaz, então suficientemente melhorado, depois dos cuidados recebidos.

Ernesto fitava-o, curioso, no primeiro tête-à-tête, mas Evelina sentia-se tomada de surpresa e inquietação.

Aquele era Túlio Mancini, mas um Túlio Mancini diferente, Os olhos penetrantes, quando pousados nela, denunciavam sentimentos estranhos.

Nem a ela, nem a Fantini passavam despercebidos os propósitos enfermiços a lhe nascerem, ali mesmo, à frente dos dois, sem que o moço se soubesse intimamente visto e analisado.

Sem qualquer impulso intencional, Ernesto e Evelina permutavam impressões, telepaticamente, reconhecendo com mais clareza que lhes era possível conversar pelo idioma do pensamento, de modo espontâneo, principalmente ali, diante de um companheiro que não lhes comungava o mesmo nível de ideias e emoções.

Naquele momento, guardavam a convicção de ler na alma de Túlio, como num livro aberto.

Registando as afirmações entusiásticas do rapaz, a imaginar-se vivo no mundo físico pelo fato de haver reencontrado a ex-noiva, os dois amigos não se animavam a desmanchar-lhe, de pronto, a ilusão.

— O que mais me espanta é ter aguentado isso aqui, tanto tempo, com o flagelo da dúvida... — suspirou Mancini, aliviado.

A senhora Serpa diligenciou modificar-lhe o curso dos raciocínios, no evidente intuito de prepará-lo para a verdade, e interpôs com bondade:
— De minha parte, o que mais lamentei foi a sua atitude, atirando contra você mesmo, num ato de loucura...

— Eu? eu?!... pois você não soube? — redarguiu o moço, admirado — nunca fiz isso!...
Tive, é verdade, a fraqueza de pensar, um dia, em matar-me pelo veneno por sua causa, mas, depois, reconheci que você não me desprezava e eu queria, a todo preço, reconquistar a sua afeição.

Sucede, porém, que no anseio de colocar-me fora de campo, Caio foi procurar-me, solicitando-me ir com ele ao meu escritório, para consultarmos juntos um livro de Direito Internacional.

Porque alegasse urgência, não vacilei em prestar-lhe o favor.
Era um feriado e as salas próximas jaziam fechadas.

A sós comigo, abandonou os assuntos da profissão, e passou a acusar-me.
Disse que a minha covardia, recorrendo ao veneno, abalara o amor que existia entre ele e você...
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Tentei justificar-me...
Quando me detinha a considerar a pureza de meu afecto, aquele brutamontes vomitou insultos que não consigo olvidar e, sacando um revólver, me alvejou no peito...

Caí no piso e nada mais vi...
Acordei, não sei quando, num quarto de hospital e, desde então, vivo enfermo e revoltado, buscando reaver a saúde para ensinar àquele biltre quanto vale a minha vingança...

Um raio que caísse, ali, sobre os três, não teria arrasado o ânimo da senhora Serpa quanto aquela revelação terrível.

Num átimo, percebeu que Túlio não largara o corpo em arrancada suicida, mas sim constrangido pela arma daquele a quem desposara no mundo, ao mesmo tempo que Fantini, estupefacto, concluía que o rapaz fora vítima de um crime desconhecido entre os homens;
e fosse porque aflitivos pensamentos de culpa lhe azorragassem o cérebro ou porque notava no moço o anseio indisfarçado de ficar a sós com Evelina, rogou telepaticamente a ela não fizesse o mínimo esforço por trazer Mancini à realidade e sim tivesse paciência, até que pudessem estabelecer planos de socorro ao moço infeliz.

A senhora Serpa entendeu e Ernesto pediu licença para afastar-se.
Queria pensar, repousar...
Ao demais, informou, era natural que os dois tivessem confidências, de coração para coração.

Mais tarde se reencontrariam.
Embora contrafeita, Evelina aquiesceu.
Quando se voltou, porém, para o ex-noivo, sentiu-se algo desamparada, qual se renteasse com perigos ocultos.

Mancini convidou-a a pequeno passeio pelo parque da instituição que o albergava e, em poucos instantes, ei-los, um ao lado do outro, a passo vagaroso, entre sebes floridas e árvores protectoras, aspirando o vento embalsamado de nutrientes perfumes.

— Evelina — recomeçou ele —, quem é este velho que você está trazendo a tiracolo?
A interpelada mostrou-se penosamente impressionada com a frase agressiva, pronunciada em tom de sarcasmo; no entanto, respondeu, gentil:
— Trata-se de amigo distinto, a quem devo inestimáveis favores.

Ele chasqueou:
— Compreenda que sofri muito para achar você...
Agora, não cedo sua companhia a homem algum, mesmo que esse homem fosse seu pai...

Ela se dispunha a revidar, solicitando moderação;
todavia, Mancini prosseguiu, eufórico:
— Evelina, tenho um mundo de coisas a saber, a perguntar e a ouvir de você...

Não sei, realmente, se tenho estado louco.
Onde estamos? que fazemos?...
Entretanto, prefiro falar de você e de mim, unicamente de nós dois...

Nessa altura do diálogo, esbarraram com bonito e pequeno caramanchão, totalmente envolto de trepadeiras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:12 pm

Túlio, em voz suplicante, implorou fizessem ali uma parada de refazimento.
Sentia dores, quando se movimentava em demasia, alegou.
Desde o tiro sofrido, não se reconhecia o mesmo.

Evelina obedeceu maquinalmente impulsionada pela compaixão.
Acomodaram-se ambos num dos bancos existentes no recinto doce e agreste.

O moço relanceou os olhos, por todos os lados, como a certificar-se de que se viam absolutamente sozinhos e, em seguida, cerrou a única porta da peça, que passou a receber luz e ar através das altas e estreitas janelas que quase se comunicavam com o teto.

Em se voltando para a companheira, patenteava no semblante tamanha expressão de sensualidade que a senhora estremeceu.

— Evelina!... Evelina!... — rogou ele, apaixonadamente — você sabe que tenho esperado por este momento de felicidade, em todos estes anos de angústia. .. Você e eu, juntos!.

Ela não foi totalmente insensível ao apelo afectivo daquele homem jovem a quem amara, e enterneceu-se.
Relembrou as noites de cochichada ternura, nos parques e nos cinemas, antes de comprometer-se com Serpa.

Sim!... Aquele era Mancini, o rapaz que a impressionara tanto!
A mesma simpatia e a mesma voz de enamorado, acenando-lhe com a renovação do destino.

Instintivamente, rememorou as infidelidades do marido, o escárnio revestido de belas palavras que recebera dele tantas vezes em casa e, por um momento, balançou-se-lhe outra vez o coração, entre os dois, qual ocorrera nos tempos do noivado...

Túlio estava, agora, diante dela, prometendo-lhe, de novo, um amor ardente e tranquilo...
Achou-se como que inebriada pelas considerações que ouvia, mas a consciência vigilante impeliu-a a reajustar-se.

Via-se dominada por estranho sentimento que a induzia para ele;
no entanto, ao mesmo tempo, algo em Mancini, naquele instante, lhe impunha medo e certa repugnância.

Não era ele mais o cavalheiro de outra época.
Mostrava-se imponderado, desabrido.

Moralmente refeita, Evelina confessava a si mesma que não lhe cabia o direito de ceder a quaisquer sugestões incompatíveis com a sua dignidade feminina.

Casara-se. Devia ao esposo lealdade e acatamento.
A consciência controlou a sensibilidade.
A noção dos compromissos assumidos guardou-lhe a alma nobre e sincera.

Impôs-se fortaleza e serenidade, resolvendo permanecer a cavaleiro de emoções que não se justificavam.

Enquanto semelhantes reflexões lhe escaldavam a cabeça, Mancini continuava:
— Deixe-me recostar em seu colo, um momento só!...

Evelina, quero sentir o calor de seu coração...
Tenho necessidade de você, qual o sedento quando se aproxima da fonte! Compadeça-se de mim!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jul 03, 2012 9:12 pm

Observando os gestos de desconsideração que ele passara a assumir, a moça tentou recuar e replicou, valorosa:
— Túlio, contenha-se!
Não sabe você que desposei Caio, que tenho a responsabilidade de um lar?

— Oh! o infame!...
Compreendo que a minha ausência longa terá levado você a desposar aquele canalha, mas isso não fica assim,...

E, depois de pausar, alguns instantes, prosseguiu para a companheira estarrecida:
— Evelina, sei que você não é indiferente ao que sinto!
Vamos!... Diga que me atende

Acto contínuo, intentou beijá-la.
Embora possuída de assombro e temor, ela ganhou ânimo e, retrocedendo, reagiu indignada:
— Túlio, que é isto? estará você louco?

— Tenho pensado em você, dia e noite...
Desde que tomei o balaço daquele patife que levarei à cadeia, não tenho mais ninguém na imaginação!...
Não se compadece você de mim?

O entoo comovedor daquela voz feria-lhe fundo a alma;
no entanto, a senhora Serpa objectou, firme:
— Compreendo a sua estima e agradeço a lembrança, mas julga você justo atacar-me assim, desrespeitosamente, quando já lhe falei que tenho um marido e, por isso mesmo, contas a prestar?

Mancini silenciou por momentos;
em seguida, exibiu nos olhos esgazeados a perturbação que lhe passou a senhorear os mecanismos da mente, transfigurou o pranto em escárnio e desfez-se numa gargalhada terrível.

— Um marido!... Um marido, aquele crápula!... — zombou.
O povo de onde venho agora, o povo da terra da liberdade, tem toda a razão...
Entendo, você agora faz parte dos santos, mas eu não sou mascarado.

Sou o que sou, um homem com as funções que me são próprias...
Quero você e isso a escandaliza? Boa piada!...

Você é uma mulher como as outras, você não é melhor do que todas aquelas que conheço na terra da liberdade, apenas com a diferença de que você se oculta na capa andrajosa da disciplina...

— Sim — suspirou Evelina, magoada —, não nego a minha fragilidade humana...
Não acredita você, porém, que a disciplina é a melhor maneira de educar-nos e dignificar os nossos sentimentos?

— Ah! Ah! Ah!... — galhofou ele — obediência é a camisa-de-forças em que os hipócritas metem os simples, mas você mudará de ideia...

A moça agoniada confiava-se à oração muda, implorando socorro aos poderes da Vida Maior.

Enquanto isso, o companheiro avançava, mofando:
— Olhe para dentro de você mesma e verificará seu disfarce...
Você é um anjo de pé-de-chumbo, igual aos outros macacos fantasiados que andam por aí.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:35 pm

Largue mão disso... Todos somos livres!...
Livres filhos da Natureza para fazer o que quisermos!...
Proclame a sua independência se não deseja acabar na senzala dos tartufos da sujeição!...

Mancini investiu para ela e estava prestes a agarrá-la, quando alguém providencialmente bateu à porta.

Constrangido embora, Túlio refez-se, de imediato, e foi atender.
O mensageiro declinou para logo a sua condição.

Tratava-se de auxiliar do Instrutor Ribas e vinha da parte dele, a fim de conduzir a irmã Evelina Serpa ao Instituto de Protecção Espiritual, para a solução de assunto urgente.

A senhora respirou aliviada e percebeu que fora ouvida na silenciosa petição e, enquanto agradecia, em pensamento, o amparo salvador, Túlio, seguido igualmente de perto pelo emissário, voltou à casa de reajuste, onde foi recolhido à cela especial, destinada a serviço de segregação e tratamento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:36 pm

15 - Momentos de análise

Atendendo à solicitação de Ernesto e Evelina que ansiavam por esclarecimento, no embaraço que a presença de Túlio lhes impunha à cabeça, o Instrutor Ribas marcou-lhes encontro, de que se valeram pontualmente.

No ambiente acolhedor do Instituto, o amigo lhes ouviu pacientemente as arguições.

Que significa a perturbação do rapaz?
como lograriam os dois, notadamente Evelina, auxiliá-lo correctamente?
ser-lhes-ia lícito rogar ao Instituto alguma informação, quanto às acusações de Mancini contra Caio Serpa?

Estariam ambos capazes de assumir responsabilidades para ajudar ao moço infeliz?

Após ouvi-los, o orientador repartiu com eles um olhar de brandura e advertiu:
— Vocês já reiteraram diversos pedidos de acesso ao trabalho espiritual;
não estranhem se chegou a hora de começar.

Depois de uma pausa, transformada em sorriso:
— Túlio Mancini é o marco de início da obra redentora que abraçam.

Investiguem os próprios corações, especialmente nossa irmã Evelina, e verifiquem a pena que as dificuldades dele lhes causam.
Onde o amor respira equilíbrio, não há dor de consciência e não existe dor de consciência sem culpa.

— Oh! Instrutor — clamou a senhora Serpa diga, por gentileza, tudo o que devo fazer!
— Falar-lhes-ei como a filhos, porque entre pais e filhos não prevalecem susceptibilidades.

Mudando de tom:
— Irmã Evelina, que sensações foram as suas, em se vendo a sós com o amigo recém-visto?

A moça, que formulara o intimo propósito de arrostar a verdade, fossem quais fossem as consequências, admitiu:
— Sim, ao rever-me a sós com ele, sem ninguém a observar-nos, como que me detive nas lembranças do passado, quando supunha haver achado nele o homem de minha preferência.

Senti-me transportada à juventude, e então...

— E então — o mentor benevolente completou a frase reticenciosa — as suas próprias vibrações lhe encorajaram a agressividade afectiva.
— Entretanto, recordei, às súbitas, os meus compromissos conjugais e contive-me.

— Fez muito bem — contrapesou Ribas —, ainda assim, o seu coração falou sem palavras, provocando novas sequências do desajuste emocional de que Mancini foi vítima, na experiência terrestre, em grande parte motivado por suas promessas não cumpridas.
Oh! meu Deus!...

— Não se aflija.
Somos Espíritos endividados, perante as Leis Divinas, e estamos situados na faixa de expressiva transição, a transição do amor narcisista para o amor desinteressado.

Temos teorias de santificação para o sentimento, mas, na essência, somos, na prática, simples iniciantes.

Na esfera dos pensamentos nobres, assimilamos o influxo dos Planos Gloriosos;
todavia, no campo dos impulsos inferiores, carregamos ainda o imenso fardo de desejos deprimentes, que se constituem de vigorosos apelos à retaguarda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:36 pm

Impressionado, Fantini apartou:
— Quer dizer que o homem terrestre...

— É um ser de inteligência refinada pelos poderes que adquiriu na caminhada evolutiva em que se empenha, desde muitos séculos, mas ainda oscilante, de modo geral, entre animalidade e humanização, conquanto os casos particulares de criaturas que já se encaminham da humanidade para a angelitude.

A maioria de nós outros, os Espíritos capitulados na escola da Terra, nos achamos em trânsito da poligamia para a monogamia, com referência à devoção sexual.

Decorre daí o impositivo de vigilância sobre nós mesmos, sabendo-se que o sexo é faculdade criativa, nos domínios do corpo e da alma.

Denotando, porém, o propósito de não se afastar do problema específico de Evelina:
— Compreensível, minha irmã, que você houvesse registado o fenómeno da atracção de que dá notícia e muitíssimo justa a continência a que se determinou, exortando o raciocínio claro e responsável a frenar o coração imaturo.

Ninguém atingirá o porto da dignidade espontânea, sem viajar, por longo tempo, nas correntes da vida, aprendendo a manejar o leme da disciplina.

Embora isso, porém, saibamos debitar a nós próprios os erros que perpetramos, no tocante aos valores afectivos, a fim de saná-los ou resgatá-los em momento oportuno;
— Devo reconhecer minha dívida para com Mancini, hipotecando-lhe noutro tempo tantos votos de felicidade que deixei para ele absolutamente vazios... — suspirou a senhora Serpa, desconsolada.

— Isso mesmo. Túlio terá cometido muitos disparates, até agora;
no entanto, a sua consciência de mulher não se eximirá, com certeza, aos compromissos que lhe cabem no assunto.

— E de que modo apagar o meu débito?
— Auxiliando-o a limpar as próprias emoções, como se purificam as águas de um poço barrento.

Diante da inquietude que passou a desassossegar a jovem senhora:
— Nada de precipitação, nem de violência.
Forçoso aceitar-nos tais quais somos e facear os problemas que nos advenham dos próprios desacertos.

Não estudamos para chorar.
A irmã está consciente de que cooperou no desastre moral do amigo em análise.
Vejamos serenamente o que lhe será possível fazer agora, de maneira a que se reponha na estrada certa.

— Pequenina quanto sou, que conseguiria realizar? - suplicou a moça, humilde.

Ribas recorreu a largo móvel em que se adivinhava complicada peça de arquivo e, sacando uma ficha, explicou que ali jaziam sumariados todos os informes que Evelina prestara em seu primeiro contacto com o Instituto.

Em seguida, elucidou que, de posse da versão doada por ela mesma, acerca dos acontecimentos que lhe haviam atormentado a existência, ele, Ribas, providenciara a obtenção de conhecimentos complementares, alusivos à senda que ela escolhera trilhar.

Viera, assim, a saber que Mancini efectivamente perdera o corpo físico pela acção delituosa de Serpa, que lograra ilaquear as autoridades humanas com um crime perfeito, no qual compusera com habilidade a tese de suicídio.

Vítima da desencarnação prematura, perambulara o rapaz, algum tempo, à feição de sonâmbulo, na paisagem terrena que lhe servira de fundo à tragédia, sendo, mais tarde, recolhido, ali mesmo, na cidade de regeneração e refazimento em que lhe pesquisavam agora a situação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:36 pm

Aí convalescera por alguns meses;
no entanto, a paixão que Evelina lhe insuflara levianamente na alma lhe fixara nela e em torno dela os pensamentos.

À vista disso, tornara-se arredio ao próprio reerguimento, acabando por fugir no rumo do tenebroso distrito da inteligência desenfreada, onde se relegara, nos últimos anos, a desvarios diversos.

Vinculado à moça que lhe acalentara em vão tantos sonhos de ventura e de afecto, viciara-se no território da sombra, desconsiderando a própria respeitabilidade.

Retornando àquele pouso de consolação e reequilíbrio, por efeito do reencontro com a criatura que lhe permanecia na mente por eleita inesquecível, fora agraciado com novo ensejo de auto-reeducação.

A senhora Serpa e Ernesto assinalavam, atónitos, a exposição que primava por lógica irretorquível.

Às agoniadas inquirições da interessada, quanto ao comportamento que lhe competia adoptar, Ribas aclarou:
— Podemos dizer-lhe, minha irmã, que, por seus méritos indiscutíveis, benfeitores e amigos de que dispõe na Espiritualidade Maior rogaram aos agentes da Divina Justiça não lhe permitissem a desencarnação sem começar o processo de sua reabilitação espiritual na Terra mesmo...

Assim é que, através da onda mental dos remorsos que lhe ficaram, à face do suposto suicídio de Mancini, você atraiu para o próprio claustro materno o Espírito sofredor de um irmão suicida, sentenciado pela própria consciência a experimentar a provação de um corpo frustrado, de modo a valorizar com mais respeito o divino empréstimo da existência física.

Como é fácil de ver, as angústias da maternidade malograda lhe foram extremamente úteis na Terra, por lhe haverem proporcionado ensejo a preciosas reparações.

— Entretanto — mencionou Fantini —, informámo-nos de que Mancini não caiu por si próprio e sim pela arma do rival.
— Apesar disso — consertou Ribas —, não olvidemos que o moço empreendeu, antes, a lamentável tentativa, impulsionado pela acção da própria Evelina, dando a Serpa o molde do crime.

Esboçando sorriso benevolente:
— Estamos examinando, entre amigos, a lei de causa e efeito.
Compreendamos que a justiça funciona em nós mesmos.

— Mas...
Fantini, admirado, iniciou debalde a tréplica vacilante.
Ignorava como entretecer novas dúvidas, ante a conceituação racional que o mentor tranquilamente patenteava.

Foi o próprio Ribas quem retomou o fio das justificações. anotando:
— Somos mecanicamente impelidos para pessoas e circunstâncias que se afinem connosco ou com os nossos problemas.

Suscitando ideias de autodestruição na mente de um homem cujas atenções granjeara, Evelina transportou-se da irreflexão para o arrependimento, depois de verificar-lhe a derrocada moral numa empresa gorada de suicídio, procurada conscientemente.

Apenas aí, coagida pela compunção, nossa irmã percebeu que agira em prejuízo do rapaz de quem obtivera integral confiança, lesando, em consequência, a si própria. Lastimando Mancini, deplorava a si mesma e, nesse estado de emoções negativas, fez-se vaso de uma entidade nas condições em que supunha haver precipitado o moço menos feliz.

À vista disso, converteu-se automaticamente em desventurada mãe de um companheiro suicida, no anseio de expiar a própria falta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:37 pm

Endereçando afectuoso olhar para a senhora Serpa:
— Enunciando inconscientemente o desejo de exculpar-se, o seu propósito alcançou o coração de amigos e benfeitores, no Mundo Espiritual, que lhe advogaram a concessão da bênção a que já nos referimos.

Você padeceu, pois, antes da desencarnação, a pena de que se julgava merecedora, sequiosa que se achava de propiciar a Mancini a supressão do mal que lhe havia causado.

Você não pagou em Túlio o débito em que se viu incursa, mas resgatou essa conta, junto a suicida anónimo, tão filho de Deus quanto nós, redimindo-se no foro íntimo, segundo a lei que rege a tranquilidade de consciência.

E o irmão desconhecido, ao mesmo tempo que amargou a provação do berço prematuramente inutilizado, começou a ressarcir a dívida que assumira para consigo mesmo, aprendendo quanto custa e como custa o tesouro de um corpo físico, utensílio de aperfeiçoamento e progresso.

Ernesto e Evelina escutavam, surpresos.

— Cumpre-se a Eterna Justiça no mundo de cada um de nós — rematou o professor.
Deus não nos condena nem nos absolve.

O Amor Universal está sempre pronto a soerguer-nos, instruir-nos, burilar-nos, elevar-nos, santificar-nos.
O destino é a soma de nossos próprios actos, com resultados certos.

Devemos sempre a nós mesmos as situações em que se nos enquadra a existência, porquanto recolhemos da vida exactamente o que lhe damos de nós.

— E agora? — interrogou Evelina, espantada.
— As circunstâncias trouxeram-lhe o credor ao ambiente pessoal, porque você, minha irmã, está felizmente em posição de prosseguir no trabalho restaurador!

— Que fazer, meu amigo?
— Se você está realmente disposta a renovar o caminho, chegou o momento de ajudar Mancini a desenvencilhar-se das ideias enfermiças que a sua conduta de moça menos responsável lhe instalou na cabeça, tornando-se presentemente para ele em devotada preceptora, a reformular-lhe a visão da vida, no plano espiritual.

— Não posso desempenhar, junto dele, o papel de companheira...

Ribas acarinhou-lhe a mão com ternura paterna e apontou:
— Se os erros da mulher não foram perpetrados, na categoria de parceira da vida sexual de um homem, ela não tem a obrigação de ser-lhe a esposa, tão-só porque lhe deva essa ou aquela indemnização no reino do Espírito, sucedendo o mesmo ao homem, referentemente à mulher.

Não obstante esse princípio, a lei de amor deve efectivar-se, independentemente das formas em que o amor se expresse.

E num tom de enternecimento profundo:
— Aqui mesmo, você pode regenerar o campo emotivo de Túlio e sublimar os seus próprios sentimentos em relação a ele, amparando-o e instruindo-o no grau de mentora maternal.

Quase sempre, a recuperação de alguém é uma planta sublime da alma que somente vinga porque a abnegação de outro alguém se dispõe a adubá-la com a protecção da ternura e com o orvalho das lágrimas...

Identificava-se Evelina banhada de esperança, Fantini mergulhou em alta meditação acerca das realidades eternas e Ribas, pressionado pelo horário que lhe convocava a presença em outros sectores, prometeu continuar a esclarecedora conversação, logo lhes surgisse a desejada oportunidade, em momentos seguintes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:37 pm

16 - Trabalho renovador

Vida nova começou para Evelina e Ernesto, especialmente para Evelina.

Indispensável auxiliar Túlio, abençoá-lo, renová-lo.
Para isso, os dois amigos se matricularam em colégio de estudos preparatórios de mais altas ciências do espírito.

Radiantes de esperança e entusiasmo, adquiriam conhecimentos em torno de evangelização, reforma íntima, sintonia mental, afeição, agressividade, autocontrole, obsessão, reencarnação.

A fim de conversar construtivamente com aquele que se lhe extraviara à conta pessoal, a senhora Serpa munia-se de instruções com que lhe pudesse ganhar o raciocínio.

Competia-lhe o esforço mais grave, desfazer-lhe na mente o quisto de ilusões que ela própria criara.

Fantini, contudo, que se compadecera fundamente do rapaz menos feliz, de acordo com avisos do Instituto de Protecção, poderia acompanhá-la a pequena distância, com a obrigação de intervir quando necessário.

No dia marcado para início da tarefa, a subdividir-se em visitas de esclarecimento e enfermagem três vezes por semana, Ribas seguiu em pessoa os dois obreiros para o refúgio de saúde mental em que os novos deveres se lhes impunham.

Integrando diminuta comunidade de enfermos da alma, o jovem Mancini se achava recluso em solitária dependência que o Instrutor informou estar erguida à base de material isolante contra o impacto de vibrações susceptíveis de agravar-lhe a sede de companhias menos recomendáveis.

O orientador apresentou ambos os companheiros às autoridades e auxiliares do pouso de reajuste e, tanto Evelina quanto Ernesto, sob o beneplácito da simpatia geral, puseram mãos à obra.

Túlio acolheu, encantado, a presença da moça e, de começo, reafirmava-lhe os protestos de devoção afectiva em ditirambos de lealdade e ternura.

A senhora Serpa, no entanto, redobrou cautelas emolduradas de carinho, suplicando a inspiração da Vida Maior, para não falhar na missão que abraçara.

Os diálogos terapêuticos prosseguiam, pontualmente.
Apesar disso, Mancini não se desfixava da paixão que o absorvia, lembrando um barco chumbado ao solo, incapaz de afastar-se do cais.

Principiasse Evelina a preparar clima adequado às lições e ele choramingava, à maneira de criança doente.
Declarava-se indisposto e inabilitado para o estudo, desconsiderado, ofendido nos brios próprios.

Asseverava-se infenso a qualquer ponderação filosófica, alegando não sentir inclinação para assuntos de fé.

Insistia em reconhecer-se unicamente um homem-homem, na definição dele mesmo, e, nessa condição, não queria uma enfermeira ou preceptora, mesmo solícita quanto a moça se revelava, e sim uma companheira, a mulher dos seus sonhos.

Evelina ouvia pacientemente os remoques e lamentações incessantes, aparando-lhe os golpes e podando-lhe as impressões destrutivas, sempre assistida por Ernesto que lhe supervisionava os esforços com generosa atenção. Imbuída das responsabilidades que lhe assinalavam agora a vida e sendo criatura profundamente emotiva, a senhora Serpa concentrava-se, de modo constante, no esposo, nele investindo toda a carga de seus potenciais afectivos.

Para sentir-se na posição de tutora maternal de Mancini, experimentava a necessidade de ser mais entranhadamente a mulher de Caio.

Por essa razão, mentalizava-lhe a imagem, a cada passo, endereçando-lhe em silêncio os seus mais belos pensamentos de amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:37 pm

É verdade que Serpa não lhe havia sido o consorte ideal.
Além disso, sabia-o agora homicida, com refinados recursos de inteligência para ocultar-se.

Evelina, porém, humana quanto qualquer ser humano, ponderava, de si para consigo, que ele se fizera criminoso por amá-la.

Eliminara a existência de Túlio para disputar-lhe o coração, em agoniado lance afectivo.

Aspirava a revê-lo em pessoa, haurir-lhe o calor da presença, a fim de revigorar-se para os embates morais a que se confiava;
entretanto, por mais solicitassem permissão para visitar a família terrena, Fantini e ela obtinham regularmente a mesma resposta dos mentores: «muito cedo».
Reconfortavam-se, por isso, com estudo e trabalho.

De vez em vez, o tête-à-tête entre ambos. As confidências.
Ernesto falava enternecidamente da esposa Elisa e da filha Celina.

Sensibilizado, entretecia no mágico painel da saudade a imagem das duas por espelhos cristalinos de amor, em que se comprazia mirar-se, conquanto a filha o tratasse, muitas vezes, com rebeldia cruel...

Decerto que a viúva e a jovem não arrostavam dificuldades materiais de vulto maior.

Legara-lhes renda expressiva. Boa casa.
Algum dinheiro em mãos honestas a fornecer-lhes pensão sólida e os seguros em que montara a defensiva doméstica.

Mas... e a ausência? Indagava-se, constantemente, junto da amiga que se lhe transformara em irmã de todas as horas.
A ausência, a distância!...

Perdiam-se os dois em conjecturas, prelibando alegrias de reencontro.
Achavam-se suficientemente informados de que entre eles e os amados do mundo se levantava agora o muro das vibrações diferentes.

Em vista disso mesmo, não mais lhes seria possível retomar-lhes a atenção como quem volta de uma viagem.

Competia-lhes a obrigação da conformidade, perante quaisquer transformações a que se lançassem.

Nesse sentido, até ali, haviam registado as mais diversas narrações de mortos que procediam da Terra, descoroçoados e tristes, ante a impossibilidade de serem vistos, ouvidos, assinalados, tocados pelos parentes.

Muitos voltavam consolados e esperançosos, como que libertos de laços e algemas que lhes fossem pesados aos corações, mas outros muitos regressavam desencantados e sorumbáticos, evidenciando pouca disposição para conversar.

Referiam-se a amigos e a mudanças radicais na vida caseira, mencionavam desastres e falências na ordem afectiva de almas inolvidáveis.

Eles dois, porém, se identificavam optimistas, confiantes.
Evelina entusiasmava-se, derramando-se em nobres impressões, diante de Ernesto, atento.

Caio, na opinião dela, caíra em deslizes;
todavia, reabilitara-se-lhe no conceito de esposa pelo alto gabarito de ternura e abnegação a que se elevara, durante os dias últimos da enfermidade que lhe fora fatal ao corpo físico.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:37 pm

Em verdade, podia ter sido desleal, durante algum tempo, lá isso podia.

Era um homem com as exigências naturais da vida comum e obviamente se distraía, enquanto lhe aguardava a cura e o refazimento, mas à frente da morte, diante da longa separação ... modificara-se, parecia haver recuperado a condição do noivo, amoroso, terno...

E Evelina, ao contemplá-lo com os olhos da imaginação, supunha-o agoniado e infeliz, no anseio de livrar-se da carne, a fim de reacolhê-la nos braços.

Antecipava opiniões, enquanto Fantini lhe guardava, com interesse, a doce expectativa.

Solenizando alegações, asseverava que Serpa cometera até mesmo a loucura de eliminar a presença de Túlio, no intuito de desposá-la.

Fora isso terrível calamidade, fora.
No fundo, porém, Evelina mostrava traços inequívocos da vaidade de sentir-se querida.
Declarava, resoluta, que tal qual se esforçava por Mancini, desvelar-se-ia, mais tarde, por Serpa.

Esmerar-se-ia em ajudá-lo em qualquer reparação que se fizesse precisa.
Ernesto volvia, então, a biografar-se, contando histórias do lar.

Amava a esposa, entranhadamente, e confessava que praticara muitos disparates, quando mais moço, de maneira a preservar a tranquilidade doméstica.

E a filha? Celina era uma bênção que lhe acalentara o coração na madureza.

Sempre terna, compreensiva, devotada.
Sonhara para ela um marido bom, amigo;
no entanto, deixara-a aos vinte e dois de idade sem casamento à vista.

Conquanto a dor de pai, distanciado de casa, depunha na filha a maior confiança.
Não lhe temia o futuro.
Além de provida com mesada apreciável, leccionava Inglês com mestria.

Ganhava dinheiro e sabia guardar.
Mantinham-se, desse modo, sucessivas conversações entre os dois.

Sentimentais. Saudosistas.
Passados seis meses de atenção e doutrinação, a benefício de Túlio, Ribas veio examiná-lo em pessoa, segundo promessa havida.

Após verificar a pontualidade e a eficiência de Evelina, através de anotações referendadas pelas autoridades orientadoras da casa, penetrou o aposento do enfermo, categorizado para ele como médico em acurada inspecção.

Ao primeiro olhar, porém, reconheceu que Mancini apresentava escasso proveito com as lições recebidas.

Apático, denunciava na mente uma ideia central: Evelina.

E com Evelina no miolo das mais profundas cogitações, vinham as ideias-satélites:
o anseio de transformá-la em objecto de posse única, o tiro de Caio, o desejo de vingança e as escuras alusões da autopiedade.

Ribas não descobria a mais ligeira fresta, naquele coração pesado de angústia, para filtrar um só raio de optimismo e esperança.
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Série André Luiz - E A VIDA CONTINUA... - Página 3 Empty Re: Série André Luiz - E A VIDA CONTINUA...

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:38 pm

Ás primeiras manifestações do inquérito afectivo, respondeu ao Instrutor, com a tristeza de um doente que se sabe sem cura:
— Qual, doutor, sem Evelina comigo, nada consigo entender.

Se ouço Evangelho, penso que ela — ela só — é o anjo capaz de salvar-me;
se anoto ensinamentos, acerca de autocontrole, vejo-a no pensamento, como sendo a única alavanca, bastante forte para governar-me;

se escuto exortações à fé, acabo querendo-a para meu reconforto exclusivo;

se recebo esclarecimentos em torno de obsessão, termino a aula confessando a mim mesmo que, se pudesse, largaria este hospital a fim de persegui-la e tomá-la em meus braços, ainda que para isso devesse caminhar até os derradeiros confins do mundo!...

O mentor sorriu, paternal, e aconselhou calma, equilíbrio.
— Reflictamos, meu filho, que somos espíritos eternos.

Urge conservar serenidade, paciência...
Felicidade é obra do tempo, com a bênção de Deus.
O rapaz revidou ácido, irreverente.

Não pedira, não aceitava conselhos.
Hábil psicólogo, Ribas despediu-se.
Á noite, esteve com os amigos e elogiou o trabalho de Evelina.

A empresa de reeducação fora efectuada com segurança.
Túlio, entretanto, não reagira construtivamente.
Mostrava-se abúlico, embutido nas fantasias que estabelecera em prejuízo próprio.

E terminou dizendo para Fantini e a senhora Serpa que o ouviam, atentos:
— Não vejo qualquer interesse para Mancini na permanência aqui.
Forçoso envidarmos esforços para que aceite, voluntariamente, a miniaturização. (1)

— Renascer? — redarguiu Evelina, assustada.
Será preciso tanto?

E Ribas:
— Nosso amigo está mentalmente enfermo, profundamente enfermo, traumatizado, angustiado, fixado.

O remédio será começar de novo...
Ainda assim, terá dificuldades e desajustes pela frente.

O benévolo mentor não traçou advertências, nem articulou qualquer sugestão.

E tanto Ernesto, quanto Evelina, enfronhados agora nos imperativos e provas da reencarnação, silenciaram de chofre, pensando, pensando...

(1) Miniaturização ou restringimento, no Plano Espiritual, significa estágio preparatório para nova reencarnação. — Nota do autor espiritual.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Jul 04, 2012 8:38 pm

17 - Assuntos do coração

Esvaíram-se dez meses sobre a tarefa assistencial de Evelina e Fantini, ao pé de Túlio necessitado, quando os dois solicitaram entendimento com o Instrutor Ribas, ao redor de problemas que lhes escaldavam o pensamento.

Aspiravam, sobretudo, a rever os parentes no plano físico.
Convertera-se Ernesto num poço de memórias sobre a esposa e a filha, a senhora Serpa não mais suportava as saudades do marido e dos pais.

Porque ansiassem pelo retorno, ardiam na sede de informes e explicações.

O orientador acolheu-os com a lhaneza habitual e, após registar-lhes o pedido de bons ofícios para que lhes fosse obtida a concessão, acentuou, simples:
— Creio que vocês já estejam em condições satisfatórias para a execução do empreendimento.

Dedicam-se pontualmente ao trabalho, conhecem agora o que seja reencarnação, autodisciplina, burilamento próprio...

E evidenciando entranhado carinho:
- Algum motivo particular, mais intimamente particular, na petição?

Adiantou-se a moça, acanhada:
— Instrutor, venho experimentando desoladoramente a falta de Caio...

— Esposos que se amam — interferiu Ernesto —, quando distanciados um do outro, fazem-se noivos outra vez...
Porque não confessar que também eu ando aflito por abraçar minha velha?

— Caro amigo — aventurou-se Evelina, fixando o mentor de maneira expressiva —, em nos reportando à ligação conjugal, arriscaria uma consulta...

— Diga, filha...
— O senhor não ignora que, em meu primeiro reencontro com Mancini, senti-me, por momentos, a jovem menos responsável que fui, observando-me fortemente atraída para ele.

Depois, reagindo, vi-me, de novo, recuando mentalmente para o domínio de Caio, o marido que ficou no plano físico, dando a mim mesma a impressão de que sou um satélite, gravitando entre os dois...

Passei a esforçar-me em auxílio de Túlio e, aos poucos, venho reconhecendo que ele não é, absolutamente, o homem que eu desejaria para companheiro...

Entretanto, para ajudá-lo e tolerá-lo, presentemente, sinto necessidade de um estímulo...

— O amor a Deus.
— Compreendo hoje que todos respiramos na própria essência de Deus; contudo, o mistério para mim está nisso...

Sei que nada conseguimos sem Deus, mas, entre Deus e a obrigação que me cabe cumprir, preciso de alguém que me escore o espírito, que se me erija em apoio, na movimentação do quotidiano, em busca daquele estado de alma que apelidamos por paz interior, euforia ou mesmo felicidade...

Esta fome espiritual que me faz pensar dia e noite na reintegração com Caio significará que ele, meu esposo, é realmente o meu amor absoluto?

aquele espírito que será o sol de bênçãos a envolver-me para sempre, quando chegarmos à perfeição?

Ribas sorriu e filosofou:
— Todos nos destinamos ao Amor Eterno e no entanto, para alcançar o objectivo supremo, cada qual de nós possui um caminho próprio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jul 05, 2012 9:13 pm

Para a maioria das criaturas, o encontro do amor ideal assemelha-se, de algum modo, à procura do ouro nas minas ou de diamante nas catas.

É indispensável peneirar o cascalho ou mergulhar as mãos no barro do mundo, a fim de encontrá-lo.
Sempre que amamos profundamente a alguém, transformamos esse alguém no espelho de nossos próprios sonhos...

Passamos a ver-nos na pessoa que se nos transforma em objecto da afeição.

Se essa criatura efectivamente nos reflecte a alma, o carinho mútuo cresce cada vez mais, assegurando-nos o clima de encorajamento e alegria para a viagem nem sempre fácil da evolução.

Nessa hipótese, teremos obtido apoio seguro para a subida do acrisolamento moral...

Em caso contrário, a pessoa a que particularmente nos devotamos acaba devolvendo-nos os próprios reflexos, à maneira de um banco que nos restituísse ou estragasse os investimentos por desistência ou incapacidade de zelar por nossos interesses.

Então, surgem para nós aquelas posições espirituais que nomeamos por mágoa, desencanto, indiferença, desilusão...

— O senhor desejará talvez afirmar — recordou Fantini — que caminhamos na existência pelas vias da afinidade, de afeição em afeição, até achar aquela afeição inesquecível que se nos levante na vida por chama de amor eterno?

— Sim, mas entendendo-se o conceito de afeição, sem a estreiteza do sexo, de vez que a ligação esponsalícia, embora sublime, é apenas uma das manifestações do amor em si.

Determinado homem ou determinada mulher podem confirmar na esposa ou no esposo a presença do seu tipo ideal;
entretanto, talvez prossigam, após o casamento, mais intimamente vinculados ao coração materno ou ao espírito paternal...

E, às vezes, somente encontrarão o laço de eleição num dos filhos.
Em amor, a afinidade é o que conta...

— Instrutor — enunciou Evelina, impressionada - e as uniões de suplício, os casamentos infelizes?
- Sim, a reencarnação é também recapitulação.
Muitos casais no mundo se constituem de espíritos que se reencontram para a consecução de afazeres determinados.

A princípio, os sentimentos se lhes justapõem, no sector da afinidade, como as crenas de duas rodas que se completam para fazer funcionar o engenho do matrimónio...

Depois, percebem que é imperioso burilar outras peças dessa máquina viva, a fim de que ela produza as bênçãos esperadas.

Isso exige compreensão, respeito mútuo, trabalho constante, espírito de sacrifício.
Se uma das partes ou ambas as partes se confiam a desentendimento, a obra encetada ou reencetada vem a cair...

Então? — a pergunta de Evelina pairou no ar, revestida de imensa curiosidade.

Então, aquele dos cônjuges que lesou o ajuste, ou ambos, conforme as raízes da desunião, devem esperar pela obtenção de novas oportunidades no tempo para a reconstrução do amor que dilapidaram.

— Instrutor, permita-me uma pergunta.
A união conjugal de duas criaturas que se amam, quando interrompida pela morte no mundo, pode ser reatada aqui?

Ribas, expressivo:
— Perfeitamente, se os cônjuges realmente se amam...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jul 05, 2012 9:13 pm

Fantini apartou:
— E quando isso não acontece?

— Aquele que ama sinceramente continua trabalhando, neste lado da vida, pelo outro que não lhe guarda na Terra a mesma altura de sentimento, aprimorando a obra do amor em outros aspectos, que não o da afectividade esponsalícia.

A senhora Serpa mostrou o semblante iluminado por bonito sorriso e asseverou, segura de si:
— Isso não me ocorrerá.
Tenho hoje motivos para confiar em Caio tanto quanto confio em mim mesma.

- Sua fé — volveu o Instrutor — é um retrato de sua sinceridade.

Ernesto fitou demoradamente a companheira e admirou-lhe a ternura da alma boa e ingénua.
Desde muito, passara a nutrir por ela entranhado carinho.
Nunca a apanhara em qualquer deslize.

Sempre compassiva, abnegada.
Muitas vezes, surpreendia-se ligado a ela por encantadora atracção.

Sob que prisma a estimava?
Filha, companheira, mãe, irmã?
Não conseguiria dizer.

Temendo o mergulho em mais longas divagações, ele, o bom amigo, chasqueou, no intuito claro de desviar o curso dos próprios pensamentos:
— Instrutor Ribas, qual se verifica no caso de nossa irmã, também estou persuadido de que minha esposa espera por mim...
Entretanto, se isso não sucede?...

— Se isso não ocorre — e o mentor frisou as palavras com paternal inflexão de bom-humor —, você, Fantini, desfrutará, sem dúvida, a possibilidade de auxiliá-la na condição de um amigo fraternal.

— E, nessa hipótese, caber-me-ia o direito de eleger uma nova companheira na vida nova?
— As leis humanas, tanto no plano terrestre quanto aqui, são princípios susceptíveis de alteração e, na essência, não afectam as Leis Divinas.

Na moradia dos homens, não existe obrigatoriedade para o estado de viuvez.
Conservam-se órfãos de companhia no lar aqueles corações que o desejam.

Rompidos os compromissos do casamento com a morte do corpo, o homem ou a mulher permanecem sozinhos, quando possuem motivos para isso.

Natural aconteça aqui o mesmo, O homem ou a mulher desencarnados guardam insulamento ou não, conforme os propósitos íntimos que alimentem, entendendo-se, porém, que em qualquer posição dispomos de recursos para honorificar o trabalho da edificação do amor puro que acabará imperando, de maneira definitiva, em nossas relações uns com os outros.

Evelina, denotando preocupação no olhar, diligenciou colher maiores conhecimentos:
— Instrutor amigo, o senhor conhece companheiros que não conseguiram consorciar-se aqui?
— Eu sou um deles.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jul 05, 2012 9:14 pm

— Alguma razão especial? — esmerilou Fantini.
— Acontece que o amor conjugal, quando se exprime em bases do amor puro, continua vibrando no mesmo diapasão entre dois mundos, sem que a permuta de energias de um cônjuge para outro venha a sofrer solução de continuidade.

Minha esposa e eu sempre fomos profundamente unidos.
Bastávamo-nos na Terra um ao outro, em matéria de alimento afectivo.

Sobrevindo a minha desencarnação, percebi logo que ela e eu continuávamos em plena vinculação mútua, qual se fôssemos partes integrantes de um circuito de forças.

Na dedicação espiritual dela, colho meios de continuar em meu aprendizado do amor a todos, ocorrendo-lhe o mesmo.

— Ligação ideal!... — regozijou-se Evelina, extática.

Patenteando a ansiedade de que se via presa, no sentido de se reintegrar na ternura do marido distante, comentou, reverente:
— Instrutor, noto que há sempre reserva em nossos amigos mais experientes daqui, quando se diz algo sobre a possível desencarnação de pessoas queridas que deixamos na retaguarda...

Chego a pensar que isso é assunto proibido entre nós, será mesmo assim?
— Não tanto. À medida que se nos desenvolve a noção de responsabilidade, compreendemos a reencarnação como período de escola.

Cada existência está supervisionada por deliberações superiores, muitas vezes insondáveis para nós.

A interlocutora, denunciando aspirações íntimas, profundas, arriscou:
— Caro amigo, suponhamos que eu venha a reencontrar o esposo mergulhado em saudades iguais às minhas, atormentado, triste...

Não me será cabível, nem de leve, encorajá-lo na certeza de que seremos novamente felizes aqui, prometendo-lhe a ventura renovada para além da morte?
Digo isso, porquanto não lhe deixei filhos para entreter-lhe a coragem de sofrer, de esperar...

— Fuja de reflectir assim.
Não temos instrumentos para medir a fidelidade daqueles que amamos, e, ainda que seu marido estivesse agoniado, em tremendo desajuste, por motivo de sua ausência, não saberíamos se a desencarnação lhe traria o remédio adequado.

Quem nos dirá que a mais longa demora dele, no corpo físico, não seria a providência desejável, a fim de que se lhe revele com mais segurança?

Martelar-lhe na cabeça a ideia da morte significaria, provavelmente, ajudá-lo a reduzir tempo na experiência material;
e quem nos afirmará com certeza que ele se sentirá feliz, regressando à vida do espírito, por imposição nossa e não por determinação da natureza, sempre sábia, por reflectir os desígnios do Eterno?

— Oh! meu Deus! — e a senhora Serpa deixou escapar um suspiro de aflição — como agir em auxílio do coração que vive no meu?

Ribas respondeu, afectuoso:
— Em muitas ocasiões, quando dizemos que o coração de alguém pulsa em nós, seria mais justo declarar que o nosso coração é que pulsa nesse alguém...

E com inflexão mais carinhosa:
— Dentro de breves dias, você e Fantini poderão viajar, de visita ao ninho doméstico.

Evelina e o companheiro agradeceram, felizes.

Doce alegria banhou-lhes a alma, de improviso, como se o sentimento se lhes deslocasse das brumas da saudade para brilhar ao sol da esperança, em novo alvorecer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jul 05, 2012 9:14 pm

18 - O retorno

Enfim, a volta.

Ambos, Evelina e Fantini, manifestavam o contentamento de crianças em festa.
A primeira vinda ao lar, após dois anos.

Às despedidas, antes de se incorporarem à reduzida equipa de companheiros que tornariam ao domicílio terrestre em condições iguais às deles, recolheram de Ribas a recomendação:
— Vocês representam nossa cidade, nossos costumes e princípios, portem-se na base do novo entendimento.

Se precisarem de auxílio, comuniquem-se connosco pelo fio mental.
Um abraço e os votos de felicidade para a viagem.

Quando o veículo pousou rente à Via Anchieta (1), no ponto em que a estrada se bifurca, descerrando caminho para São Bernardo, o pequeno grupo dispersou-se.
Cada excursionista era um anseio itinerante, cada qual um mundo vivo de saudades.

O dirigente da caravana e responsável pela viatura marcou regresso para o dia seguinte.

Que os viajantes se reunissem, ali mesmo, esgotado o prazo de vinte horas.
Nossos amigos respiraram, maravilhados, o vento brando que os saudava.

Surpresos. Felizes.
Custavam a crer estivessem na entrada de São Paulo.
Embevecidos, contemplaram o céu lavado e imensamente azul do entardecer de maio.

Em torno, rajadas de frio neles fixavam recordações de tempos idos.
Caminhavam sob fascinante júbilo a lhes povoar o coração.
Era, sim, a cidade para eles familiar, a terra que amavam...

Inalavam sofregamente o aroma das flores e sorriam para os ocupantes dos carros que, naquele fim de sábado, desciam para Santos.

Evelina, que trazia a mente e o coração absorvidos pela imagem do esposo, em certo trecho do caminho perfilou-se diante de Ernesto, qual se buscasse nele um grande espelho, e indagou com ternura ingénua que opinião era a dele, na posição de homem, quanto à apresentação dela.

Queria estar nas mesmas características de simplicidade e bom gosto, com que o marido estimava encontrá-la no refúgio doméstico.

Sabia que a situação era outra.
Serpa não lhe identificaria a presença, do ponto de vista material, tanto quanto lograria vê-lo;
no entanto, ouvira dizer que as pessoas saudosas enxergavam os amados distantes com os olhos da alma, qual se trouxessem um televisor no pensamento.

Se Caio tivesse emoções e ideias concentrados nela, certamente lhe registaria os afagos, ainda que para ele tudo não passasse de simples memória.

Ernesto riu-se ao ouvi-la e elogiou-lhe a perspicácia.

Fitou-lhe o penteado e o rosto, pediu reajuste nas dobras do vestido e aprovou os sapatos, à feição de um pai, encorajando a filha para a exibição num baile de debutantes.

Depois, acusou-a com graça, asseverando que não lhe toava bem tão alta demonstração de coquetismo.
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