LUZ ESPÍRITA
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 07, 2018 7:46 pm

Capítulo 12 - A ROSA BRANCA
Dias após o enlace, quanto tudo entre ele e Mafalda parecia felicidade, Margarida, passeando pelos jardins do palácio, chegou até a pérgula onde uma vez estivera com o príncipe e recebera dele uma rosa branca.
Com os olhos fechados, entregue a seus pensamentos, percebeu que alguém entrava.
Abriu os olhos e, à sua frente, estava o príncipe Contini, com outra rosa branca nas mãos.
— Lembra-se, Alteza? - indagou ele, estendendo a mão para entregar-lhe a rosa.
— O que faz aqui, príncipe?
Deveria estar em companhia de Mafalda!
— Sua irmã estava ocupada com uma providência em nossos aposentos e resolvi sair.
Eu a vi pela janela, passeando pelo jardim, e quis lhe falar!
— Tudo o que quiser me falar, agora, faça-o diante de Mafalda!
Não quero que ela o veja aqui!
Deixe-me entregue aos meus pensamentos e vá embora!
— Sempre a tive na conta de pessoa tema e delicada, e não posso acreditar que me mande embora.
Trouxe-lhe a rosa branca, o símbolo da paz e da pureza que sinto em seu coração, Alteza!
— Não devo aceitá-la!
Leve-a à Mafalda que agora é a sua esposa.
Ela deve estar sentindo a sua falta.
Por favor, deixe-me!
— Eu a deixarei, sim, mas só depois de dizer que não consigo tirá-la do meu pensamento!
— E muito tarde para isso!
Deveria ter pensado antes!
— Eu precisava casar-me com Mafalda, mas é a senhorita que meu coração ama!
— Não continue, por favor!
Não me faça sofrer mais do que já tenho sofrido!
— Se tem sofrido é porque me ama também!
— Isto não vem ao caso, agora!
Por favor, vá embora e deixe-me em paz, senão serei obrigada a falar com papai!
— E o que ele poderá fazer?
Tenho a certeza de que não terá coragem de lhe dizer nada!
Dê-me um beijo apenas que me sentirei feliz e depois vou-me embora.
— Não se atreva, Alteza!
Não toque em mim! — manifestou-se com energia ao perceber que ele se aproximava.
Não é digno de nenhum sentimento bom que eu pudesse ter a seu
respeito!
— Ninguém manda nos seus sentimentos, não comandamos o nosso coração!...
— O senhor fará a minha irmã infeliz!
Por que se casou com ela? Tomo a dizer que não é digno do amor de ninguém.
Dizendo isso, levantou-se rapidamente para se retirar, mas ele tentou segurá-la.
Assustada e temerosa, conseguiu desenvencilhar-se e saiu correndo.
Nunca imaginara ser alvo de tal situação.
Quanto tivera que resistir, mas quanto estava decepcionada com ele.
Temia já pela felicidade da irmã.
Se ele a escolhera, era porque tinha algum plano em mente, desses do qual o coração não participa, e, numa união, só traz infelicidade.
Margarida correu muito e entrou em casa cansada.
Ao dirigir-se a seu quarto, Mafalda surpreendeu-a apressada e ofegante e perguntou-lhe:
— O que a assustou, Margarida?
Você entrou correndo nem me viu, e está cansada!
— Nada me assustou! Lembrei-me de uma obrigação a cumprir e não queria esquecê-la novamente!
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 07, 2018 7:46 pm

— Que obrigação é essa, tão importante, para ficar assim?
— Coisas minhas, nada de importante aos outros!
— Está bem! Viu o Fernando? Estou procurando-o!
— Não o vi!... Estava no jardim mas não o vi!
— Vou continuar a procurá-lo!
Margarida entrou em seu quarto e chorou muito.
Sua vida, daí para a frente, seria um tormento.
Ele não a deixaria em paz e ela não sabia até quando resistiria.
O melhor seria fazer o que tinha em mente.
Imaginara afastar-se de casa para não sofrer, vendo a felicidade da irmã, mas nunca supusera ter que fazê-lo para não comprometer essa felicidade, pelo assédio do príncipe.
Ele demonstrou que não tinha carácter e, a qualquer hora, sua irmã o surpreenderia insistindo, atrevendo-se a actos com os quais ela jamais concordaria.
Limpou os olhos e novamente saiu do quarto à procura da mãe.
Passou por uma sala onde Mafalda já estava junto do príncipe, em demonstrações de carinho.
A irmã chamou-a, dizendo:
— Já encontrei Fernando, Margarida!
Ele também veio do jardim, mas disse-me que não a viu.
— E verdade!
O jardim é muito grande e podemos passear por ele sem nos encontrarmos!
— Aonde vai agora? — perguntou-lhe Mafalda.
— Estou à procura de mamãe, preciso falar-lhe!
Sabe onde ela se encontra?
— Eu a vi com papai, no grande salão!
Ela foi reunir-se a eles, e compreendeu que também o príncipe dissera não tê-la visto.
Foi melhor, Mafalda não ficaria preocupada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 07, 2018 7:46 pm

Capítulo 13 - RENÚNCIA
Margarida encontrou os pais conversando e percebeu que o rei, animadamente, fazia planos, esperando contar com Fernando.
Teve receios. Algum motivo muito forte o fizera escolher Mafalda, colocando em perigo o reino de seu pai, e demonstrando, por isso, ser uma pessoa sem carácter, como também o era pelo que tentara há instantes.
Depois de passar um tempo com eles, Margarida indagou ao pai:
— Posso, papai, tirar por um pouco a mamãe de sua companhia?
Preciso falar-lhe.
— Certamente, filha!
Se a companhia dela me é importante como esposa, como mãe, a você, deve ser muito mais!
— Vamos comigo, então, mamãe?
Margarida levou-a ao jardim para conversarem a céu aberto, e, ao perceber que ninguém estava por perto, contou-lhe o sucedido.
— Eu sei que essas palavras lhe trarão preocupações, mas tinha que dizê-las, para que entenda o que vou falar agora!
— Mais ainda, filha?
— Sim, mamãe! Desde que Mafalda foi a escolhida, abrigo um pensamento em mim, mas aguardava ainda um tempo para tentar esquecer o príncipe e sofrer menos.
Todavia, depois do que houve hoje, a minha presença será uma constante ameaça à felicidade de Mafalda.
Não que eu pretenda desrespeitá-la, mas ele não me deixará em paz.
Mesmo recusando as suas propostas, ela poderá surpreendê-lo e não acreditar em mim!
— O que pretende, filha?
O que tem em mente há tempos, como diz?
— Quero ir embora!
Sei que sentirei muito a sua falta, a de papai, de Mafalda e até do príncipe, mas, para a felicidade de todos nós, não posso mais permanecer neste palácio.
Eu o esquecerei e todos aqui ficarão tranquilos e felizes.
— Embora como, filha?
Este é o seu lar, nós somos a sua família!
— Eu sei disso, e senti-me sempre muito feliz aqui, mas agora não é mais possível!
Vou para um lugar de muita paz.
— Que lugar é esse?
— A senhora sempre nos ensinou a orar, a crer em Deus, não é mesmo?
Pois então, vou dedicar-me a Ele!
Quero ir para um convento!
— Convento, filha!? — perguntou a mãe, surpresa e assustada.
Logo surgirá também alguém que lhe queira e você se casará!
— Não me casarei com ninguém!
Nenhum homem é merecedor do nosso amor!
Amo o príncipe e senti muito não ter sido a escolhida, mas, pelo que ele me disse hoje, é desonesto; se tivesse casado comigo, certamente estaria assediando Mafalda.
Não me casarei, mamãe!
Quero ir embora. Pelo menos sofrerei um pouco pela ausência de todos, mas logo me acostumarei e não serei ameaça à felicidade de ninguém!
— Seu pai não concordará!
— A senhora o convencerá, explicando-lhe os meus motivos!
Ele compreenderá e me dará razão! O seu reino não pode ser ameaçado, justamente agora que conseguiu o genro de que precisava, e que espero, nunca o decepcione!
Depois do que houve hoje, não me será difícil esquecê-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 07, 2018 7:46 pm

Ele não merece o amor de ninguém!...
— Filha, como vou dizer tudo isso a seu pai?
— E preciso, até para que ele fique prevenido contra o príncipe!
Apenas Mafalda não deve saber de nada.
Peça-lhe que providencie a minha ida o mais rápido possível!
É a minha decisão! Entremos, mamãe, e fale-lhe agora mesmo!
Vou para meu quarto e a aguardarei lá!
Margarida foi para o seu quarto onde esperaria pela mãe.
Sabia que o pai concordaria porque, acima do amor de pai, estava a obrigação como soberano supremo daquele reino, que não poderia ver-se ameaçado nem ser alvo de nenhum escândalo, o que ela pretendia evitar.
Esperou mais de uma hora.
Olhava para todos os objectos que decoravam seus aposentos, olhava as paredes, o armário de belos vestidos — nada daquilo servir-lhe-ia mais...
Do momento em que sua mãe chegasse, trazendo a resposta do pai, nada mais teria valor.
Tudo ali permaneceria, e ela partiria apenas com a roupa do corpo.
Para onde pretendia ir, o luxo e a vaidade não teriam lugar...
Todas seriam iguais — a mais rica, a mais pobre, a mais humilde, todas usando o mesmo traje, utilizando- se dos mesmos objectos, o mínimo imprescindível às necessidades mais prementes.
Ela começava a ficar impaciente, e pensou ir ao encontro dos pais para reforçar o pedido com seus próprios argumentos, mas conteve-se.
Confiava na mãe, e ela saberia como fazê-lo.
Ah, como sentiria sua falta, sempre tão tema, amiga e compreensiva!
Tão preocupada com a felicidade das filhas, orientando-as para que não sofressem.
Mas, por mais que tivesse sido advertida, o seu coração não obedeceu e, rebelde e insensato, deixou-se apaixonar tão intensamente, a ponto de ela ser obrigada a deixar a companhia dos familiares que tanto amava.
Em meio a esses pensamentos e reflexões, a porta do quarto se abriu e a mãe entrou.
Ela levantou-se imediatamente e foi ao seu encontro.
— Então, como papai reagiu ao meu pedido, a tudo o que lhe contou?
— Ficou furioso com o que lhe aconteceu e decepcionado.
Tem receio de que o príncipe esteja lhe preparando alguma cilada, através do casamento, mas ficará atento.
Quanto ao seu desejo, ficou consternado.
Sabe que seu pai muito ama as filhas e sentirá a sua falta, mas compreendeu que, para o momento, é a melhor solução.
Quem sabe, num futuro, se algo mudar, você poderá retomar.
— Não, mamãe! Quando sair, não voltarei mais!
Entregarei minha vida a Deus e para Ele viverei.
Sentirei muita falta de todos, mas logo me habituarei.
Estando ligada a Deus, e naquele ambiente de paz e simplicidade, ser-me-á mais fácil...
— Ficarei triste, filha, sem a sua presença!
— A senhora se acostumará!
Logo Mafalda poderá ter um filho e a casa ficará alegre outra vez!...
Quando papai tomará as providências para a minha ida?
— Disse que mandará um emissário, amanhã mesmo, ao convento mais próximo de que tem notícia, e, quando ele regressar, você poderá, se a aceitarem, começar a preparar-se.
— Do momento em que tomei a decisão, já estou preparada, desde que nada poderei levar!
Irei só com a roupa do corpo!...
— Você sofrerá muito, filha!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 07, 2018 7:47 pm

— Sentirei a falta de todos, é nisso que estará o meu sofrimento!
Mas, mesmo assim, sofrerei menos que permanecendo aqui, colocando em risco a felicidade de Mafalda.
Mamãe, tenho outro pedido a fazer!
— O que deseja agora, filha?
— Gostaria que nada comentasse, no palácio, sobre essa decisão.
Quero que Mafalda e o príncipe saibam apenas quando estiver saindo e for me despedir.
Não desejo ouvir nenhuma palavra de Mafalda para convencer-me do contrário, nem que o príncipe me assedie novamente.
Procurarei ficar o mais reclusa possível, assim irei me acostumando.
Não gostaria, também, de entrar no convento com o título de princesa, conquanto ele de nada adiante lá!
Prefiro passar por alguma jovem do povo.
— Isto não será possível, filha!
Como irá se apresentar com identidade falsa?
— Quando chegar, pedirei, então, à madre, que esqueça quem sou, e trate-me igual a todas as que lá estão!
— Nunca pensei, fôssemos nos afastar dessa maneira! Imaginei que um dia até pudesse sair daqui, mas levada por alguém a quem amasse, que partisse feliz e cheia de esperanças.
— Parto feliz, mamãe! Não iria, se não gostasse do que vou fazer!
— Seu pai quer conversar com você antes de mandar o emissário. Se quiser, levá-la-ei à sua presença agora mesmo!
— É melhor irmos! Assim tudo ficará resolvido logo, e o emissário poderá partir amanhã bem cedo. Pelo que sei, os conventos ficam muito longe daqui!
— Vamos, filha, que ele a espera!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:11 pm

Capítulo 14 - A PARTIDA
Margarida foi à presença do pai que, consternado e preocupado, também não via outra solução.
Abraçou a filha, compreendendo o seu sacrifício e até agradecendo-lhe, porque, acima do seu coração de pai que sofreria muito, estava seu dever de soberano.
Prometeu-lhe cumprir o seu desejo, mas que ela partisse ciente de que ele sentiria muito a sua ausência, assegurando-lhe que, se a situação, de alguma forma mudasse, mandaria buscá-la de volta.
Margarida afirmou-lhe que a sua decisão não teria volta.
Caso esquecesse o príncipe, receava o seu assédio constante, podendo ocasionar graves transtornos à segurança do reino.
No dia seguinte, pela manhã, um emissário partiu para o convento indicado, levando uma carta à madre superiora.
Foi-lhe recomendado que aguardasse a resposta.
A distância era muito longa e, embora seu animal fosse veloz, não daria para retomar àquele mesmo dia.
Seria um dia para ir e, em sendo recebido logo no convento, descansaria numa hospedaria, esperando estar de volta no dia seguinte.
Essas providências tomadas, Margarida sabia que só teria a resposta em dois dias.
Após, partiria imediatamente.
Durante esse período, pouco saiu do quarto.
O príncipe procurava-a com os olhos, sempre atento ao jardim.
Visitava a biblioteca diversas vezes ao dia, mas nunca a encontrou.
Nada disso passou despercebido à rainha.
Viam-se no horário da refeição, depois Margarida convidava a mãe para acompanhá-la à biblioteca, escolhia um livro que levava ao quarto, e lá ficava entretida com a leitura.
Mafalda sentia a irmã diferente, e foi ao seu quarto saber o que estava acontecendo.
Ela, porém, demonstrando, mesmo com o sofrimento do coração, um sorriso de alegria ao vê-la, nada revelou que causasse preocupação.
Disse que se sentia bem ali, agora que o quarto era só seu, e tinha a tranquilidade para 1er sem atrapalhar alguém mais que quisesse utilizar-se da biblioteca.
A mãe ficava em sua companhia todo o tempo de que dispunha, pois logo não a teria mais consigo.
Sofria já, pensando na sua ausência, mas nada poderia fazer.
Afinal, na tarde do terceiro dia, desde que conversara com o rei, o emissário chegou trazendo a resposta.
O rei leu-a com ansiedade e mandou chamar a filha, em seguida.
Quando ela chegou, entregou-lhe a carta para que ela mesma a lesse.
Ao terminar, perguntou ao pai:
— Posso partir hoje?
— Já é tarde, filha!
Amanhã tomaremos as providências necessárias, e esse mesmo emissário deverá acompanhá-la.
Conhece bem as estradas e guiará o cocheiro da carruagem que a levará.
Deixemos para depois de amanhã!
Sabe o quanto me é doloroso tomar essas medidas para afastá-la de casa, mas cumpro um desejo seu.
Eu, por mim, por mais ameaçado estivesse meu trono, nunca a afastaria da nossa companhia, não fosse a sua própria vontade.
— Sei disso, papai, mas vou feliz!
Não tenha cuidado comigo, que vou para um lugar muito bom e estarei em paz.
— E só isso que me conforta, filha!
A certeza de que estará bem e até feliz!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:11 pm

— Amanhã, então, será o meu último dia aqui, e à noite, após o jantar, farei a comunicação à Mafalda.
Em seguida, irei para meu quarto; nem ela nem o príncipe me verão mais!
Quanto a vocês, meus queridos, quero-os na hora da minha partida, para receber o seu abraço e suas bênçãos.
— Não obstante com o coração em pranto, ficaremos em sua companhia até o último momento!
Sua mãe poderia acompanhá-la, mas não é conveniente que uma rainha saia assim, e a viagem é muito longa para quem terá de voltar.
O dia seguinte foi tranquilo.
Margarida olhava com atenção para todos os detalhes do palácio, querendo reter em sua memória o local onde fora tão feliz.
Gostaria de voltar à pérgula do jardim e lá reflectir muito, mas nem isso pôde fazer, com receio.
Não tinha mais liberdade.
Na madrugada do dia imediato, tudo estava pronto para a partida.
Quando fez a comunicação à Mafalda, logo após o jantar, ela ficou estupefacta, pensando que fosse uma brincadeira da irmã.
— Não, Mafalda, nunca brincaria com um assunto desses! Parto amanhã, ao alvorecer, e nunca mais voltarei.
Se sentir saudades, poderá visitar-me, mas eu, aqui, não retomarei!
O príncipe sentiu essa revelação como uma punhalada no peito, tamanha a dor que experimentou.
Ele a amava, mas sua ambição fora maior.
Receava que, escolhendo-a, outro pretendente aparecesse a Mafalda que, como mais velha, teria todo o direito, bem como o seu marido, sobre o reino, e não queria deixar perder a oportunidade.
Esperava até conseguir alguma atenção especial de Margarida, após, como tentara.
Teria paciência, e, mais dia, menos dia, ela cederia aos seus desejos, mas não contava com essa decisão tão drástica.
Tudo estava consumado e a sua vida, naquele palácio, não seria feliz.
Só lhe restava atingir o outro objectivo, que se fizera maior que os próprios sentimentos, e esse, ele o conseguiria.
Não teria pressa, mas conseguiria...
Após a comunicação, Margarida despediu-se e recolheu-se para o descanso.
A madrugada encontrou-a pronta para partir.
A carruagem aguardava-a.
Os pais acompanharam-na, e ela, despedindo-se com um grande abraço, reprimindo as lágrimas, partiu...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:11 pm

Capítulo 15 - VIDA NOVA
Margarida seguia sua viagem com o coração em pranto.
Uma escolta acompanhava-a e protegia-a, mas dentro da carruagem, ela estava só.
Só com as tristezas, só com as parcas esperanças...
A solidão que sentiria, mesmo convivendo com muitas companheiras, como esperava, seria muito grande, e já começara desde que entrara na carruagem.
Seu coração estava dorido e sua vontade era de chorar.
Esforçava-se, porém, e fazia-se forte.
Deveria exercitar e começava ali mesmo, do momento em que renunciava ao que sempre tivera e esperara da vida.
Tudo ficava para trás, à medida que a carruagem se afastava...
Era como se deixasse, pelos caminhos, a Margarida que fora, atirando pela janela da carruagem suas esperanças, seus sentimentos e suas dores.
Quando chegasse, queria ser outra, e para isso se esforçava.
Quanto mais longo fosse o percurso, teria mais tempo para preparar-se.
Ao final de muitas horas de viagem, ela avistou, ao longe, um prédio majestoso, bem afastado da cidade, num local aprazível, mas solitário.
O emissário que a acompanhava, aproximou-se da carruagem e indicou-lhe como sendo o convento para onde se dirigiam.
Era o de que precisava, era o que esperava.
O local oferecer-lhe-ia a paz que tanto desejava.
Alguns minutos mais pararam à porta.
O emissário, conforme instrução de Sua Majestade, adiantou-se e fez-se anunciar, dizendo que havia estado ali há três dias, e que trouxera a jovem para ficar.
Foi orientado para que ela entrasse, que logo mais a madre superiora a receberia.
Ele voltou até Sua Alteza, dando-lhe essas instruções, e ela, descendo, agradeceu aos que a haviam acompanhado, e entrou naquele novo ambiente, ao qual nunca supusera pertencer um dia.
Nada demorou e a madre superiora, uma senhora ainda moça, aparentando muita austeridade, veio recebê-la.
— Então é a princesa, filha do nosso Soberano, que temos a honra de receber para estar connosco?
— Sou uma humilde jovem que, a partir deste instante, quer apenas servir a Deus, esquecida de quem foi.
— Muito bonito de sua parte!
Mas o que uma jovem bela e com a sua posição deseja entre nós?
— Servir a Deus, estar feliz e em paz, e, se me for permitido, gostaria de fazer-lhe um pedido.
— Todos os que desejar, Alteza!
— Por favor, meu nome é Margarida!
Pediria que esquecesse quem fui e não o dissesse a ninguém!
— Seu pai nada nos enviou, como é hábito?
— Sim, mandou-me entregar-lhe este pacote, dizendo que estará sempre à disposição para todas as necessidades que tiverem.
A madre, sorridente, pegou o pacote, ao mesmo tempo que chamou uma auxiliar, pedindo-lhe que encaminhasse Margarida ao seu alojamento.
Que lhe desse todas as instruções necessárias a esse começo, a fim de que ela se sentisse integrada na vida que teria daí em diante.
Margarida seguiu-a, e foi levada por um longo corredor escuro, ao quarto que ocuparia, no qual estavam instaladas mais duas companheiras.
Uma, vinda há também não muito tempo, e a outra, já com seu hábito definitivo, servindo de orientadora às recém-chegadas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Ela deu-lhe a roupa que deveria usar, igual à de todas nas mesmas condições de noviça, até que recebesse seu hábito definitivo.
Qualquer outra informação, a irmã que fazia parte do mesmo quarto, dar-lhe-ia, como também a conduziria aos locais que passariam a fazer parte de sua vida ah:
a igreja, o refeitório, o pátio, e outros.
Seria orientada, até que conhecesse toda a instituição e pudesse movimentar-se sozinha.
Recomendaram-lhe que descansasse por aquela noite que já se aproximava e, no dia seguinte, aguardasse uma entrevista com a madre, para orientá-la quanto ao regulamento a seguir e às funções que desempenharia, porque, ali, todas trabalhavam.
Margarida ouviu sem nada dizer, e a auxiliar retirou- se, deixando-a só.
A tristeza não tinha medida em seu coração.
O ambiente era tétrico, assustador.
O corredor, escuro, os móveis do quarto onde deveria ficar, pesados e sombrios.
Que saudade sentiu da claridade de seu quarto, com as janelas dando para o imenso jardim.
Mas deveria esquecer.
Ela própria escolhera sua nova vida e precisaria adaptar-se.
Pouco depois, entrou no quarto a outra jovem noviça e, muito alegre, perguntou-lhe:
— E a nova companheira? Estarei feliz com alguém como eu, principiante também. Como é seu nome?
— Chamo-me Margarida e também estou feliz em tê-la em minha companhia!
— Meu nome é Celeste e vamos nos dar muito bem.
Vou instruí-la com tudo o que já aprendi, mas não agora!
Deve descansar, que amanhã será outro dia!
A irmã que está connosco no quarto, nos orienta e está sempre atenta ao que fazemos.
E mais velha que nós, meio ranzinza, mas não me incomodo.
Descanse que o dia, aqui, começa às cinco e meia, pois temos que nos levantar para a missa.
Assim que a irmã Felícia chegar, dar-lhe-á as instruções.
Logo mais ela voltou da tarefa que realizava, avisada de que a jovem esperada, chegara.
Encontrou-a conversando com Celeste e deu- lhe algumas instruções quanto ao modo de se portar, avisando-a de que, em sua presença, não queria conversas.
Os assuntos mundanos haviam ficado do portão para fora, e agora deveria dedicar-se intensamente à nova vida que escolhera, esquecendo-se de tudo o que deixara, vivendo somente para ajudá-las e para Deus.
Margarida ouvia-a atenta.
Era a primeira orientação que recebia em relação às suas atitudes, e prometeu obedecer.
Mostrou-se dócil e compreensiva, manifestando desejo de se esforçar para cooperar.
Irmã Felícia disse que a levaria para tomar uma refeição leve, pois a hora do jantar — ali muito cedo — já havia passado, e que, após, descansasse.
No dia seguinte, depois da missa, seria levada à madre, de quem receberia as instruções que faltavam, e começaria alguma actividade indicada por ela.
Margarida não tinha vontade de comer nada.
Alimentara-se durante o percurso com algumas frutas que trouxera, e, se permitido lhe fosse, gostaria de recusar a refeição e ir directo ao repouso.
Celeste, ouvindo as instruções da irmã, ficou calada e foi se preparando para dormir.
Margarida fez o mesmo e, no dia seguinte, à hora determinada, estavam em pé.
Diariamente, todas assistiam à missa, oficiada por um padre designado para esses serviços.
Ele tinha seus aposentos contíguo ao convento, e ali residia para executar as suas tarefas, e em auxílio à madre.
Realizava os ofícios religiosos todas as manhãs e à noite.
Os da noite eram privativos às irmãs mais graduadas, e ouvia-as todas em confissão, desde as noviças até à madre superiora.
As vezes o padre que servia o convento era chamado para outro lugar, e vinha um novo para substituí-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Nunca ficavam ao desamparo de um confessor, nem dos ofícios religiosos.
Ele era também um colaborador e orientador da madre, nas suas lides administrativas e no relacionamento que deveria manter com as congregações a que estavam subordinadas.
Após a missa a que assistiu com muita devoção, pedindo fervorosamente a ajuda de Deus para essa nova vida que iniciava, tão diferente da que sempre tivera, e após o parco café da manhã, Margarida foi levada à madre, por irmã Felícia, como fora recomendado.
A madre, ocupada com um afazer, pediu que ela aguardasse um pouco, dispensando a irmã que a acompanhava, e logo mais a recebeu.
— Como se sente, princesa, entre nós?
— Se me é permitido pedir, não me chame de princesa.
Não quero que ninguém ouça.
Trate-me como a todas!
— O seu desejo será cumprido plenamente!
Vou estabelecer a sua tarefa agora, que aqui todas executam um trabalho.
O que vou lhe determinar, eu sei, não é digno de uma princesa como a senhora, mas se fizesse de outra forma, iriam descobrir quem é, e a senhora não gostaria, não é mesmo?
— Sim, quero ser igual a todas, sem que ninguém saiba quem sou, nem de onde vim!
— Pois então, para que nunca isso aconteça, e ninguém desconfie, terá de fazer um trabalho bem simples.
— Eu o executarei com dedicação, seja qual for!
— Estamos precisando de mais alguém que auxilie na cozinha.
Sei que não deve saber cozinhar, mas aprenderá pelo menos a limpar!
É o que fará! O serviço lá é muito, o nosso convento é grande, e terá bastante trabalho.
Será bom e lhe fará bem.
Esquecerá logo de onde veio.
Nem mesmo você se lembrará de que é uma princesa! Ninguém saberá, como deseja!
— Realizarei o que me determinar!
— Deixe-me ver suas mãos! — ordenou.
Margarida estendeu-as — brancas e delicadas, unhas
bem feitas e polidas.
— Mãos de verdadeira princesa, mas logo as terá como as de uma camponesa!
É o que quer, não?
— Farei o trabalho que me for ordenado!
Se no começo não souber realizá-lo bem, acostumar-me-ei e logo farei melhor!
— Estabelecida a sua tarefa, que começará amanhã mesmo, ainda falta um outro detalhe muito importante, para que possa iniciar aqui os seus esforços, e receber, um dia, o seu hábito definitivo.
— Estarei pronta para obedecer!
— Você precisa passar pela confissão, para viver somente a sua vida aqui!
Deverá confessar todos os motivos que a levaram a tomar essa decisão, todos os seus anseios e frustrações...
Deve expor o seu coração ao nosso confessor que a ouvirá.
Ele a espera na capela!
Após, a irmã Felícia a levará a conhecer alguns dos nossos departamentos, para que saiba movimentar-se dentro do permitido e necessário, sem que ninguém precise acompanhá-la.
Amanhã, logo após a missa, começará a desempenhar a sua tarefa!
Irmã Felícia a conduzirá também à cozinha, e a apresentará à nossa irmã encarregada daquele sector.
Ela está incumbida de determinar a sua actividade. Agora pode ir!
Já sabe ir à capela, não?
— Sim, senhora!
Assisti à missa e sei onde é!
— Pois pode ir que o nosso padre a espera!
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Capítulo 16 - CONFORTO
Margarida, humildemente submissa à vontade e às determinações da madre, deixou a sua companhia e seguiu em direcção à capela.
Sabia o caminho e ia destemida.
O confessor era-lhe necessário naquele momento.
Sempre abria o seu coração à mãe, mas agora, que deveria ficar ali, tendo renunciado à sua vida anterior, um confessor seria uma bênção.
Ouviria o seu desabafo, os seus anseios e teria para ela a palavra de conforto e paz por que tanto ansiava.
Após, sim, confortada e encorajada, enfrentaria qualquer tarefa que lhe determinassem.
Nela se aplicaria intensamente, para que, a cada manhã, ao acordar, tivesse diminuídas em seu coração, as recordações de sua vida no palácio, ou melhor pensando, até a palavra palácio deveria ser esquecida...
Colocaria em seu lugar sua nova habitação, com tudo o que ela representaria para os seus sentimentos e esperanças — o convento.
Chegou à capela, confiante, e observou que ela se encontrava completamente vazia.
Viu no primeiro banco, de costas, o padre que a esperava.
Submissamente caminhou até ele e, apresentando-se, disse-lhe:
— Senhor, a madre enviou-me para que me confessasse!
Aqui estou à disposição, e esperançosa no conforto que me dará!
— Filha, — disse-lhe ele, levantando os olhos do seu livro de orações — já a esperava!
Pouco sei a seu respeito, mas, em confissão, no seu desabafo, poderei conhecê-la melhor e a aconselharei como me pede.
Levantando-se, ele dirigiu-se ao confessionário, indicando-lhe a parte de fora onde ela deveria ajoelhar-se e começar a falar.
Margarida contou-lhe a sua história, não tão longa pelo período que fora vivida, mas tão intensa em sentimentos, que falou por mais de uma hora, partindo do momento em que o príncipe entrara no palácio.
Ele a ouviu atentamente, interrompendo-a vez por outra com alguma indagação e, ao final, pedindo-lhe que orasse bastante, abençoou-a e deixou o confessionário.
Tão emocionada estava e tão profundamente envolvida na situação, que não se levantou de imediato, precisando o padre tocar-lhe o ombro e fazê-la retornar ao momento presente.
Antes de se retirar da capela, ele convidou-a:
— Sente-se aqui um pouco, filha, se quiser ainda falar alguma coisa que não seja em carácter de confissão!
— Quero apenas agradecer!
Aliviei-me bastante e sinto- me confortada.
Não conto mais com mamãe para ouvir-me, e tenho sofrido muito por causa do meu coração.
— Aqui, seus sofrimentos passarão!
Dedique-se a Deus, que é o nosso Pai e vela por nós, que sua nova vida terá a paz por que tanto anseia!
Você tomou a decisão correta, retirando-se daquele ambiente comprometedor de sua honra e da honra de sua família.
Se nada mais tem a dizer, vá em paz e, quando precisar, sabe que pode contar comigo.
— Agradeço-lhe muito, e peço-lhe que não comente ter vindo eu de um palácio e ter sido uma princesa.
— O que ouço em confissão, deixo dentro do confessionário!
Vá tranquila com as bênçãos de Deus, e procure realizar as suas tarefas em obediência a Ele, que será muito feliz!
Margarida retirou-se confortada e esperançosa.
O padre lhe transmitira confiança e alguma esperança de paz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Aplicar-se-ia intensamente à sua nova vida e teria nele um confessor para suas aflições e um amigo.
Ficou satisfeita.
Em seu quarto, encontrou irmã Felícia que a levou para receber as determinações da responsável pela cozinha, conforme recomendação da madre.
Ficou assustada com o tamanho dos utensílios onde preparavam as refeições, com a quantidade imensa de alimentos, e pensou no seu trabalho.
Obteve as orientações da encarregada, que a recebeu com a fisionomia austera e fechada, transmitindo-lhe um pouco de receio.
Muitas irmãs ali trabalhavam e ela seria mais uma.
Sua tarefa seria promover a limpeza de tudo, desde as panelas, após servidas as refeições, pratos e talheres, bem como o chão.
Era muito serviço que dividiria com mais duas companheiras.
Em pouco tempo tudo deveria estar em ordem, para o preparo da refeição seguinte.
Teria que chegar antes do café da manhã e permanecer até o término da limpeza do almoço.
Outras companheiras entrariam para a arrumação do jantar, deixando as mesas postas para o café da manhã.
Trabalharia nesses dois turnos em forma de revezamento semanal.
O serviço era muito e a ele não estava acostumada, mas nada disse.
Nunca havia entrado numa cozinha, a não ser quando criança, ao correr atrás de Mafalda ou fugindo dela, durante as brincadeiras, assim mesmo não era tão grande.
Receava não conseguir cumprir bem suas tarefas, mas se esforçaria.
No dia seguinte, logo após a missa, deveria já se apresentar à encarregada.
O resto do dia foi mais tranquilo para Margarida, que permaneceu no quarto, pensando, pensando, ou conversando com Celeste, quando ela estava livre de suas obrigações, e sem a presença de irmã Felícia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Capítulo 17 - EM TAREFA
Toda a vez que lhe vinham à mente lembranças do lar, dos familiares, Margarida, num grande esforço, afastava-as, procurando reter somente as preocupações da vida no convento.
A tarefa do dia seguinte a inquietava, não por ter que trabalhar, pois enquanto estivesse entretida numa actividade intensa, esqueceria de si própria, mas temia não corresponder às exigências quanto à sua realização.
Receava ter que manejar aqueles utensílios tão grandes e não conseguir fazer uma limpeza adequada.
Mas como tudo se aprende e com boa vontade se executa, cumpriria suas funções o melhor que pudesse.
No dia seguinte, logo pela manhã, apresentou-se para iniciar o trabalho, e foi recebendo as orientações à medida que terminava cada tarefa.
Cansava-se muito, as mãos doíam-lhe, e temia não aguentar até o final do turno.
Todavia, com muito esforço, conseguiu.
A encarregada chamou-lhe atenção algumas vezes, porém as companheiras, que também haviam passado por situação semelhante, tentavam ajudá-la.
Quando encerrou o seu horário, não aguentava mais.
Foi directo para o quarto e deitou-se, mas logo irmã Felícia chegou, dizendo-lhe que aquela não era hora de ficar deitada e deu-lhe uma outra obrigação mais leve, porém não a deixou descansar.
À noite, quando pôde repousar, dormiu logo e só acordou ao ser chamada para começar tudo novamente.
Os dias foram passando, e, aos poucos, ela foi se acostumando ao trabalho.
Quando mudou de turno, verificou que o serviço não era tão pesado.
A parte maior era realizada pela manhã.
Entre o revezamento dos turnos de trabalho, entre os ofícios religiosos e alguma leitura — pouca pelo tempo que lhe restava — alguns meses passaram.
Quem a visse, talvez não a reconhecesse mais, contudo era ainda muito bela, e destacava-se entre as outras.
As mãos perderam a delicadeza, mas, longe de serem grosseiras, guardavam ainda os traços da nobreza que trazia no sangue.
Nunca, a não ser da madre, ouvira um comentário a respeito de sua condição de princesa.
O tempo transcorria e, a par do trabalho, preparava-se para receber o hábito definitivo, após o voto que deveria fazer.
O capelão que a ouvira em confissão, logo no primeiro dia, sempre a confortava e a compreendia, e tinha para com ela um carinho especial, pois sabia do seu sacrifício, pela posição que ocupara.
Margarida via nele a única pessoa amiga que a aconselhava e a encorajava, estimulando-a a adaptar-se cada vez mais à vida de reclusa.
Era como um pai para o qual não tinha segredos.
Entretanto, dia chegou que ouviu dizer que ele fora chamado para uma missão em outro local, como às vezes acontecia aos padres que se dedicavam ao convento, e ele partiria.
Ela pediu licença para confessar-se, pois queria lhe falar, dizer o quanto lhe devia em conforto e em amizade; que sentiria a sua falta e receava que o próximo não a compreendesse como ele.
Ele abençoou-a, aconselhando-a a sempre orar a Deus, em quem encontraria o conforto para as necessidades, mas que ela não estaria ao desamparo de um amigo.
No mesmo dia em que partiria, outro chegaria.
Margarida despediu-se e nunca mais o viu.
No dia imediato, à hora da missa, era outro que lá estava para oficiá-la, e diferente de seu amigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:12 pm

Esse era muito jovem ainda, e mesmo bonito, se assim poderia pensar.
Não lhe inspirou a confiança do antecessor, méis não se preocupou.
Suas actividades seriam desenvolvidas, ela acostumar-se-ia a esse novo confessor e a vida prosseguiria como sempre.
Naquela mesma manhã, após a missa, Margarida, habituada e consciente das obrigações, foi directo à cozinha para as lides do dia, que eram grandes.
Sofrerá muito no início, mas estava mais acostumada.
Não reclamava, pois com tanto trabalho e no cuidado para realizá-lo bem, sem despertar o mau humor da chefe, ocupava o pensamento e ia se esquecendo do motivo principal de sua vinda ao convento.
Lembrava-se do carinho dos pais, da amizade da irmã, e, às vezes, sentia muita saudade do lar, porém, quando se lembrava do príncipe, agradecia a Deus ali estar, afastada de problemas que poderiam ter sido muito sérios se lá tivesse continuado.
Ocupada com os afazeres, ouviu uma conversa estranha aproximando-se da cozinha, e constatou que a madre, acompanhando o novo sacerdote, penetrava naquele ambiente.
Pelo que Margarida pôde compreender, ela acompanhava-o a uma visita a todas as dependências do convento, para adaptá-lo ao lugar onde ele prestaria os seus serviços.
Quando entraram, Margarida levantou os olhos para vê-los, e, no seu olhar, encontrou também o do sacerdote, ouvindo a madre chamá-lo de irmão Cirino.
Ela continuou o serviço, e ele, afastando-se da madre, chegou-se mais perto dela, perguntou-lhe o nome e dirigiu-lhe algumas palavras que Margarida apenas ouviu e agradeceu.
Fez o mesmo com algumas das companheiras, estimulando- as ao trabalho e até dizendo que a cozinha,
juntamente com a capela, eram as partes mais importantes do convento, porque ambas propiciavam a cada um o de que necessitavam — o alimento para o corpo e para o Espírito!
Parecia ser alegre, e Margarida esqueceu aquela primeira impressão, ao vê-lo durante a missa.
Ao se retirar, disse a todas que as esperava para as confissões, e que estava à disposição para o auxílio espiritual, como também esperava delas o aconchego para o seu estômago faminto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 08, 2018 7:13 pm

Capítulo 18 - PADRE CIRINO
A rotina diária continuou, e mais alguns dias passaram.
Margarida, às vezes, pensava na sua situação, querendo saber se nunca mais mudaria de actividade, e chegou a perguntar à irmã Felícia.
Tinha cultura suficiente para efectuar outros serviços, mas nunca ninguém lhe oferecera nada.
Nem a madre falara mais com ela sobre trabalho.
Parecia tê-la esquecido propositadamente, para que nem ela própria se lembrasse de que fora uma princesa.
Escreveu duas ou três vezes aos familiares, mas nunca obteve resposta e nada sabia do lar.
Eles também lhe haviam escrito, e até um mensageiro do palácio fora enviado, mas, como toda a correspondência passava pela censura da madre, ela interceptara, tanto as que deveriam ter sido enviadas como as que chegaram.
Se ela desejava esquecer sua identidade, nada deveria ligá-la à vida anterior, era preciso ficar segregada somente ao convento, sem nenhuma recordação.
Percebia-se, nessa atitude, não o desejo de ajudar, mas uma espécie de irónica punição.
Mais alguns meses e ela receberia, juntamente com diversas noviças, o hábito definitivo.
Era uma cerimónia muito bonita à qual já havia assistido quando da vez de outras companheiras.
Gostaria de ter a presença dos pais, porém sabia que seria impossível.
Margarida precisou entrar em contacto mais directo com o padre Cirino, para as confissões que realizavam constantemente.
Ao procurá-lo, ele reconheceu-a, perguntando-lhe:
— E Margarida, a jovem que trabalha na cozinha?
— Sim, e venho para que o senhor me ouça em confissão!
— Aqui estou, filha, e serei todo ouvidos, mas nada deve esconder!
Deus sabe de todos os nossos passos e, se não os reconhecermos, seremos castigados por Ele.
— Nada esconderei, senhor, e nada tenho também que me condene, mas gostaria de ouvir algumas palavras de conforto.
Sinto muita saudade de casa, estou também cansada do serviço que realizo, e gostaria, quem sabe, com o seu auxílio, de mudar de actividade.
E assim lhe contou que possuía conhecimento necessário para realizar outro trabalho.
Não que se queixasse, agradecia a Deus tê-la colocado lá, pois serviu para esquecer tantas mágoas que trouxera, porém, sentia- se cansada e poderia ajudar em outro sector.
Com esses esclarecimentos e a recomendação de nada esconder, contou-lhe quem era e por que viera, como havia feito ao seu antecessor, de quem havia recebido muita ajuda.
Padre Cirino ouvia-a atentamente, perguntando muito, e, no final, sem que dissesse uma única palavra do conforto que ela esperava, falou-lhe apenas:
— Eu logo adivinhei que não poderia ser uma simples serviçal naquela cozinha!
Percebi em você um certo ar de nobreza, talvez pela beleza de seus traços!
É muito bela, sabe disso, não?
Margarida, que não esperava aquele comentário, corou e abaixou a cabeça.
Indagada, logo após, por que se calara, ela apenas conseguiu dizer:
— O que mais me empenho em esquecer, é que fui uma princesa!
Nunca ostentei, nem no palácio, esse ar de nobreza que me atribui.
Procuro ser simples e obediente, por isso tenho realizado minhas tarefas com esforço e boa vontade.
— Está bem, eu a compreendo! — respondeu.
Não se zangue comigo, mas sua nobreza está no sangue.
Nem sempre é possível disfarçar!
Esqueça o que eu disse, menos que é muito bonita!...
Isto não pode esconder!...
Prometo- lhe que conversarei com a madre a seu respeito e veremos o que fazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:01 pm

Margarida deixou a companhia do padre um tanto preocupada.
Desde que chegara, nunca mais ouvira nenhuma referência à sua beleza e, se a possuía, esquecera.
Aquelas palavras não deveriam ter sido ditas por um sacerdote, mas por um homem comum...
O que se esconderia no coração de padre Cirino?
Teve receios e, em vez de sair confortada como desejava, saiu mais preocupada e mais ligada ainda à sua vida anterior.
Chegou ao quarto, que naqueles dias trabalhava no turno da tarde, e ficou muito pensativa.
Pegou o livro de orações e orou muito a Deus, pedindo que a ajudasse, que a protegesse e lhe desse forças de levar o que pretendia até o fim de seus dias.
Enquanto orava, foi se sentindo melhor, e percebeu que Celeste entrara no quarto, mas ficara em silêncio, ao vê-la orando.
Quando a companheira viu que ela terminara, perguntou-lhe:
— Como foi sua confissão com padre Cirino?
— Foi bem, mas estranhei muito!
Estava acostumada com o que partiu!
— Eu ainda não me confessei com ele, mas o farei logo, talvez amanhã mesmo!
Você viu como ele é jovem e bonito?
— Não prestei atenção se é bonito, mas é bem mais jovem que o outro!
Nisso entrou irmã Felícia e a conversa encerrou-se:
— Margarida, a madre quer lhe falar!
— A mim, por quê?
— Vá até ela e saberá!
— Terei feito alguma coisa errada?
— Não posso saber!
Vá que ela a espera!
Meio receosa, Margarida foi à sala da superiora, encontrando lá Padre Cirino.
— Mandou chamar-me, senhora?
— Sim! Padre Cirino esteve conversando comigo e disse-me que está precisando de alguém que o ajude mais directamente em seus serviços.
Alguém que faça apontamentos, anote-lhe horários, copie orações, enfim, ele precisa de alguém que tenha bons conhecimentos em escrita e leitura, e como sabe que os tem, pediu-me para tirá-la da cozinha para ajudá-lo.
Fará o mesmo horário que fazia lá, e, nas horas vagas, como também está habituada ao trabalho, promoverá a arrumação dos aposentos dele, colocará ordem nos seus livros...
— É uma ordem, senhora, ou poderei recusar?
— Sim, é uma ordem!
Padre Cirino, aqui, é o representante de Jesus, e um pedido seu precisa ser atendido.
Portanto, considere-se desligada da cozinha, e amanhã, após a missa, ficará à disposição para o que ele desejar.
— Gostaria muito de sair da cozinha e ajudar em algum outro sector, mas esse trabalho, agora...
— Não tem recusa nem escolha!
Quem escolhe aqui somos nós — ele a escolheu e eu ordeno.
Pode retirar- se e amanhã, após a missa, espere-o para receber as determinações.
Margarida saiu consternada.
Como pôde confiar nele para o seu desabafo?
Como lhe revelou que estava cansada do trabalho que realizava?
Se tivesse permanecido calada, nada disso teria acontecido.
Até gostaria de realizar aquela actividade, e o faria com muito gosto, se fosse com o padre anterior em quem confiava, mas esse, agora, tão diferente, esquecido de que era um sacerdote, falava em beleza.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:01 pm

Estava receosa, mas não tinha alternativa!
Errara em confiar e agora tinha que arcar com seu erro.
Não o conhecia e não poderia imaginar o resultado de sua confissão.
Muito preocupada, voltou ao quarto, retomou o livro de orações e orou muito, com ainda mais fervor que o havia feito instantes atrás, pedindo a Deus protecção para a nova tarefa que desempenharia, porque tinha muito medo.
Nem irmã Felícia nem Celeste estavam mais no quarto e, após as orações, ela reflectiu bastante, mas os receios continuavam.
Pensou que deveria confiar, porque, se ele era ali o representante de Jesus, como a madre dissera, nada de mal lhe faria.
Jesus amava seus irmãos e só queria o seu bem.
Precisava confiar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:01 pm

Capítulo 19 - ACTIVIDADE CONSTRANGEDORA
Margarida quase não dormiu àquela noite, tão preocupada ficou.
Teria que estar na companhia de padre Cirino e, talvez, ele não a respeitasse, mas precisava confiar.
Ele era um sacerdote, um representante de Jesus e nada lhe faria.
O convento era um lugar abençoado, e nunca, nada de mal lhe aconteceria.
Mas, nesse misto de pensamentos, pelo que ele lhe dissera e pela ordem que recebera, tendo que ir também a seus aposentos promover a arrumação, sentia um grande desconforto.
Quando o novo dia amanheceu, surpreendeu-a acordada há muito tempo.
Levantou-se, arrumou-se e dirigiu-se à capela para assistir ao oficio religioso.
Durante a realização da missa, prestava muita atenção em padre Cirino e via que ele observava todas as irmãs ali presentes, sobretudo as noviças.
Ao término da missa, Margarida foi tomar o café e colocou-se à disposição dele.
Padre Cirirvo possuía uma sala no corpo principal do convento, na parte administrativa, à porta da qual a esperava com um sorriso cordial.
Levando-a para dentro, deu-lhe uma mesa pequena, que pediu, fosse colocada bem em frente à sua.
A posição era muito desconfortável para ela, mas, como só deveria obedecer, nada disse.
Recebeu uns escritos para que fizesse algumas cópias e aplicou-se ao trabalho.
De início, desculpou-se por sua letra não estar tão bonita como antigamente, pelo trabalho que realizara, mas prometeu que logo faria melhor.
Padre Cirino, que não estava interessado em letra nem no que mandara copiar, disse que estava muito bem.
Sentado à sua frente, constantemente lhe dirigia a palavra para que ela erguesse os olhos do trabalho e olhasse para ele.
Margarida percebeu que ele se extasiava nesses momentos, tendo até, num deles, lhe feito um pedido:
— Pare um pouco, que quero mirar a sua beleza que me deslumbra!
— Não devo, senhor!
Aqui vim para um trabalho e quero realizá-lo bem.
— Quem foi que a tirou daquele serviço tão árduo e indigno de uma princesa?
— Por favor, esqueça o que lhe contei!
Aqui sou como todas as outras!
Sou apenas Margarida!
— Não pode negar sua origem!
Logo farei com que suas mãos tenham a mesma delicadeza de quando chegou!
Mãos de princesa!
— Por favor, padre Cirino, deixe-me trabalhar!
— Pois que o faça, Margarida, pois que o faça!...
Margarida abaixou a cabeça para continuar a tarefa, mas não conseguia escrever mais.
A letra piorou pelo tremor das mãos e ela parou um pouco.
Ele a observava nos menores gestos.
— Já se cansou, princesa?
Margarida nada respondeu e ele insistiu, advertindo-a:
— Quando falo ou pergunto quero ser atendido!
— Perdão, senhor!
Mas não consigo trabalhar pelas suas palavras.
Por favor, deixe-me realizar a minha tarefa!
— Está aqui para isso! Ninguém a impede de trabalhar tranquilamente!
— Estou nervosa pelo que me fala!
— Nada disse que a ofendesse, pelo contrário, louvo-lhe a beleza e me comprazo em olhá-la!
Que mal há nisso?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:01 pm

Mas, se a perturbo, vou sair um pouco. Pode continuar!
A vontade de Margarida, quando ficou só, era sair correndo e esconder-se em seu quarto, mas sabia que não podia.
Seria castigada pela desobediência a ordens superiores.
Enquanto ele esteve fora, ela colocou a cabeça entre as mãos, em atitude de muita reflexão e desespero, e pensou muito...
Não no que passava naquele instante, mas no que teria que suportar ainda...
Melhor ter ficado na cozinha, cujo trabalho, apesar de pesado e cansativo, era tranquilo.
A encarregada era ranzinza, mas nunca ninguém a molestara, como padre Cirino o fazia.
Logo ele estava de volta e, surpreendendo-a nessa atitude, indagou-lhe:
— Não continuou o seu trabalho?
Por que está assim?
Vejo que em nada o adiantou.
— Por favor, senhor!
Se eu trabalhar sossegada, logo aprontarei tudo o que me pediu.
— Ninguém a impede!
Parece uma ave assustada quando se vê ameaçada por um felino!
Eu não a ameaço em nada!
Não tenho culpa se é bela e se me agrado de sua beleza.
Dessa forma transcorreu todo o primeiro dia daquele novo trabalho.
Apenas no horário do almoço ficou mais serena, mas mal conseguiu alimentar-se.
Completado o horário, ele a dispensou, dizendo que a aguardava no dia seguinte, e que à tarde, quando o trabalho estivesse terminado, precisava que ela fosse a seus aposentos fazer uma arrumação em seus livros.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:02 pm

Capítulo 20 - ULTRAJE
Ah, pobre ave assustada!
Antes, quando deitava para o repouso, tão cansada vinha, que dormia bem toda a noite, serenamente, apenas aguardando para o dia seguinte, mais trabalho, mais trabalho...
Todavia, e agora? A cama não era mais o seu lugar de repouso.
Não, não era possível repousar, sentindo-se ameaçada.
Padre Cirino em nada a desrespeitara, a nada se atrevera, a não ser suas palavras de jovem galanteador, estranhas na boca de um sacerdote...
Porém, não precisava mais, só isso a perturbava e a punha inquieta, e ela temia.
No silêncio da noite, quando os pensamentos criam temores que se agigantam dentro de nós, martirizando- nos e tirando-nos completamente o repouso, Margarida pensava, temia e se atormentava...
A noite foi longa, mas o dia surgia e era hora de levantar-se e recomeçar.
Pensava muito no que ele dissera ao despedi-la na véspera.
Que a queria em seu quarto para a arrumação de seus livros!
Logo foi para a missa e, recolhida em si mesma, orou fervorosamente.
Tão alheia do ambiente ficou que, na hora da comunhão, teve que ser avisada pela companheira do lado.
Caminhou de cabeça baixa, sem levantar os olhos um só instante, e a missa terminou.
Fez a primeira refeição e retomou à sala dos tormentos, — assim a considerava.
Ele recebeu-a com aquele mesmo sorriso com que a recebera no dia anterior, e deu-lhe outras cópias para serem feitas.
Margarida obedeceu-lhe e começou o trabalho.
— Hoje, — disse ele — vou deixá-la mais à vontade!
Tenho que voltar à capela para as confissões, mas, quando terminar, esteirei aqui e, à tarde, como já lhe disse, iremos aos meus aposentos pois quero ensinar-lhe o que deve fazer lá.
Margarida nada respondeu e ele retirou-se.
Ah, que alívio sentiu sem a sua presença!
Não fossem as estranhas atitudes, o trabalho em si era muito agradável e ela gostava de realizá-lo.
Sozinha, logo cumpriu tudo o que ele determinara, e o realizou bem.
Até a caligrafia ficou bonita.
Ah, se todos os dias fossem assim, como estaria tranquila, segura!
Ao ter esses pensamentos, porém, lembrou-se de que, logo mais, teria que estar a sós com ele, num local desligado do corpo principal do convento, e temia.
Os aposentos dele compunham-se de um quarto, uma pequena saleta particular, um local para banhos e nada mais.
Não poderiam estar dentro do próprio convento, pela condição de ser padre.
Mais afastados, como era hábito, a sua tranquilidade e a de todas as irmãs estaria preservada.
Ele era o guardião de todas elas, o auxiliar que ali estava em nome de Deus, e tinha que ter o seu conforto, a sua vida privada, embora passasse quase todo o dia em actividade no convento.
Quando o dia terminou, Padre Cirino conduziu Margarida ao quarto dele.
Ela ia receosa, encolhidinha e de cabeça baixa, como um animalzinho assustado.
Ao entrarem, ele disse:
— Seja bem-vinda aos meus aposentos!
Hoje, sendo a primeira vez que aqui vem, quero que esteja feliz e sem preocupação!
Olhe para mim! Nada receie!...
Margarida continuava na mesma atitude e ele insistia:
— Trouxe-a para arrumar meus livros que estão fora de lugar!
Veja esta estante, está quase vazia! — e, mostrando uma pequena mesa em sua saleta, falou-lhe:
— Há livros sobre esta mesa, há livros pelo quarto!
Eu sou desorganizado e preciso de sua ajuda...
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:02 pm

Os livros não eram muitos, e pareceu a Margarida que haviam sido retirados da estante e espalhados propositadamente.
Obediente, ela começou a juntá-los e colocá-los nos lugares, e, quando arrumou os poucos espalhados pela saleta, ele disse que no quarto havia mais.
Dizendo isso, ele dirigiu-se ao quarto e sentou-se na cama.
Ela seguiu-o meio receosa, procurando com os olhos onde havia mais livros para ser recolhidos.
— Veja! — disse-lhe ele — Aqui sobre a mesinha de cabeceira há alguns, venha apanhá-los!
Para chegar à mesinha e pegá-los, Margarida, vacilante e caminhando muito devagar, precisou passar por ele.
Quando colocava a mão nos livros, ele, ali bem pertinho, segurou-a com força, abraçou-a fortemente, e submeteu-a aos seus desejos.
Ela gritava e se debatia, mas de nada adiantou.
Passado algum tempo, Padre Cirino deixou-a, e ela, chorando em desespero, tão abalada estava que não tinha condições de sair.
Ele dizia-lhe palavras de amor, tentando acariciá-la, mas ela o repelia.
— Não adianta repelir-me, Margarida!
Agora você me pertence!
Sempre que eu quiser, virá aqui arrumar os meus livros...
Fiquei muito feliz hoje, e agradeço a Deus o ter me enviado a este convento para encontrá-la.
Já percebeu que estou apaixonado por você, desde que a vi na cozinha, a primeira vez?
Sua beleza me fascina e eu lhe quero muito!
— Eu não voltarei mais aqui! — respondeu-lhe, em lágrimas.
— Como não?!
— Contarei tudo à madre!
— Em seu lugar, nada diria!
Ela não acreditará, e até poderá castigá-la por isso!
— Prefiro qualquer castigo a ter que me submeter ao senhor novamente!
— Não diga isso! Fique feliz que a amo!
Quantas das suas companheiras gostariam de
estar em seu lugar, mas foi você que escolhi!
— Contarei à madre agora mesmo! Quero ir embora!
Ela procurou recompor-se um pouco e saiu correndo.
Tão assustada e nervosa estava, que entrou na sala da madre, sem ser anunciada e sem bater à porta.
— O que é isso, Margarida?! — perguntou-lhe energicamente.
Como entra aqui dessa maneira?
Não sabe que deve bater e esperar ser atendida?
— Perdoe-me, mas estou fora de mim pelo que me aconteceu!
— O que lhe aconteceu?
Margarida, envergonhada e em poucas palavras, contou-lhe o sucedido.
Ao terminar, ouviu da madre:
— Como ousa criar uma fantasia tão grande na sua imaginação?!
O que aconteceu para inventar essa calúnia contra padre Cirino?
Devia agradecer-lhe por ter intercedido a seu favor e tê-la tirado daquele serviço pesado!
— Prefiro voltar a ele, senhora!
Quero voltar à cozinha!
— Quem é você aqui, para querer?
Quem manda e decide somos nós, e se padre Cirino quis ajudá-la, continuará trabalhando com ele!
Agora pode ir, e veja bem o que faz e o que feda!
Não ouse repetir a ninguém o que veio me contar, porque a castigarei, se souber!
Lembre-se do que já lhe falei!
Conquanto não acredite em nada do que me disse, padre Cirino aqui é o representante de Jesus e, como tal, faz o que quer, e temos que acatar-lhe a vontade.
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:02 pm

Capítulo 21 - SÚPLICA
Ah, pobre Margarida!
A quanto renunciara em busca de um pouco de paz!
Quanto lutara consigo mesma para manter a dignidade e honradez, e, de um momento para outro, num lugar que entendia, estaria amparada e resguardada, vira-se submetida àquela situação de humilhação e vergonha.
Como continuar ali, tão conspurcada estava?
Mas se abandonasse o convento e voltasse para casa, seria ainda muito pior!
Não seria só ela a sofrer, mas toda a família!
O príncipe Fernando, sabendo a causa de sua volta, talvez ainda se portasse pior que padre Cirino, em prejuízo de todos.
Escolhera essa vida e teria que suportar tudo o que dela lhe adviesse.
Orava muito, chorava quase em desespero, mas não tinha outra solução.
Teria que sofrer sozinha e, ainda, calada...
No quarto, numa confusão de tantos pensamentos, sentindo-se humilhada, ultrajada em sua dignidade, Celeste entrou, encontrando-a em prantos.
Por mais que insistisse para que ela contasse o que havia ocorrido, nada podia dizer.
Se a madre se colocara a favor de padre Cirino, não tinha dúvidas de que a castigaria, aumentando-lhe o sofrimento.
Quando irmã Felícia chegou, encontrando-a em desespero, nada disse ou perguntou.
Interpelada por Celeste para que fizesse alguma coisa por ela, apenas respondeu:
— Deixemo-la entregue a si mesma!
Deve estar com saudades de casa.
E normal que isso aconteça, às vezes.
— Após tantos meses? — perguntou Celeste, revelando preocupação.
— Sim, sempre é tempo de sentir saudades e hoje, talvez, tenha sido o seu dia. Deixe-a em paz!
Margarida passou o resto daquela tarde deitada e não se levantou nem para o jantar.
Ali ficou prostrada, infeliz, e até uma certa revolta contra padre Cirino, sentia em seu íntimo.
Como o que não tem solução, por si só se desfaz ou se agrava, ela deveria deixar a vida transcorrer, e acatar as determinações da madre.
Se ela não acreditou, ou quisera evitar problemas, falaria ela própria, rogaria, imploraria ao padre, no dia seguinte, que a dispensasse daquela função.
Naquela noite ela não dormiu um instante sequer.
Ao levantar-se, pela manhã, tinha que fazê-lo e cumprir as obrigações, os olhos estavam vermelhos e inchados, a fisionomia triste e cansada...
Caminhou como um autómato e foi à missa.
No momento da comunhão, não se levantou do lugar, mesmo tendo sido chamada pela companheira do lado.
Não tinha coragem de receber das mãos que a conspurcaram, a hóstia da redenção.
A madre estava presente e observava-a, vendo a sua desobediência que considerou como sendo a Deus.
Ali nada fez, mas, no final, mandou-lhe dizer que fosse à sua sala, antes de começar o trabalho do dia.
A mesa do café quase nada se alimentou, e foi à sala da madre.
Fez-se anunciar, e padre Cirino mesmo, lá se encontrando, recebeu-a à porta, mandando-a entrar.
A madre indagou-lhe daquela desobediência, mas Margarida, em frente ao padre, nada pôde dizer.
E, mesmo que ele não estivesse, se falasse, seria castigada.
Pediu desculpas pelo acto, disse estar se sentindo mal, e não suportaria caminhar para receber o santo sacramento.
A madre dispensou-a para não aumentar a questão, Margarida saiu, seguida pelo padre, e dirigiu-se à sala onde deveria trabalhar.
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:02 pm

Sentou-se à mesa e ficou aguardando a sua determinação, de cabeça baixa, envergonhada, humilhada.
Ele, como se nada de mal tivesse havido, falou-lhe:
— Vejo que hoje, seus olhos de que tanto gosto, estão cansados e vermelhos, o que houve?
Margarida não levantou a cabeça nem respondeu, e ele continuou:
— Não gosto de vê-la assim!
Estou muito feliz e quero vê-la feliz também!
Hoje é um dia muito especial para mim, e não quero ver ninguém triste!
Gostei muito da arrumação que fez em meus livros e, daqui mais alguns dias, quando colocá-los em desordem outra vez, precisarei da sua ajuda.
Penso até que vou lê-los bem depressa para recebê-la novamente...
Margarida, ouvindo estas palavras, nas quais percebeu um tom suave de ironia, levantou a cabeça, e, com os olhos súplices, rogou-lhe:
— Pelo amor de Deus, dispense-me deste serviço!
Quero voltar para a cozinha, não posso mais ficar aqui!
— Como não pode?!
Estou muito satisfeito com o seu trabalho e não quero vê-la sofrendo com um serviço tão pesado!
— Lá trabalhava muito, mas sentia-me feliz!
— Pois agora deveria sê-lo muito mais!...
— Pelo amor de Deus, rogo-lhe, deixe-me ir embora daqui!
— Experimente pedir à madre, e diga-lhe as razões por que quer mudar de trabalho!
Quem sabe lhe atenderá!
— Dela nada conseguirei!
— Como sabe?
Já lhe contou o que pretendia?
— Infelizmente ela o considera representante de Jesus, e não acredita no que o senhor faz!
— Esta é a verdade!
Vim como representante de Jesus, na nossa Igreja, e com funções neste convento, portanto, faço o que quero e como quero!
Dê-se por feliz que gostei de você e a reverencio com o meu amor e a minha protecção!
Margarida entendeu que nada mais adiantaria dizer e calou-se, abaixando novamente a cabeça.
Logo após ele deu-lhe mais alguns papéis para copiar, dizendo-lhe:
— Hoje, como seus olhos estão tão vermelhos e inchados, talvez não consiga realizar bem o seu trabalho, mas, como sou compreensivo e condescendente, não tenho pressa da tarefa que lhe passei.
Pode desenvolvê-la com vagar, para não errar!
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:02 pm

Capítulo 22 - TERRÍVEL CONSEQUÊNCIA
Margarida cumpriu, com muita dificuldade, a sua tarefa do dia.
No horário do almoço ficou recolhida em seu quarto e não se alimentou.
Voltou após, submissa, para o término do trabalho do dia, e, quando se viu livre daquela presença tão repugnante aos seus olhos, retomou ao quarto e não saiu mais.
A noite, ardia em febre e, na manhã seguinte, não conseguiu sair do leito.
Celeste percebeu que ela passava mal e avisou irmã Felícia, que lhe deu um chá bem quente, com algumas gotas de um medicamento, e deixou-a deitada.
Margarida estava enfraquecida no físico e na vontade de viver.
Tinha saudades de casa e da mãezinha tão querida e solícita, e sua solidão foi maior.
Após a missa, como não se apresentou para o trabalho, o padre, em pessoa, tendo sabido que ela se encontrava adoentada, humildemente pediu autorização à madre e foi visitá-la.
Irmã Felícia estava presente, e ele viu que Margarida, desolada, ardia em febre.
Recomendando à irmã que cuidasse bem dela com medicamentos, obrigando-a a alimentar-se, retirou-se, prometendo retomar no fim do dia.
Mais serena sem o seu trabalho, com o alimento que a obrigaram ingerir e os medicamentos ministrados, em três dias Margarida estava bem novamente, mas havia emagrecido; seu rosto estava pálido e seus olhos mais fundos.
Padre Cirino, durante esse período, visitava-a duas vezes ao dia.
Sentia-se culpado, mas queria-a restabelecida, para não perder a sua presença em sua sala e mesmo em seus aposentos.
No quarto dia, já em pé, voltou à missa e às suas actividades.
Novamente lhe implorou que a dispensasse, mas ele, dizendo o quanto sentira a sua falta, o quanto ela lhe era necessária, não poderia mais ficar sem a sua presença constante.
Que ela se habituasse ao trabalho e à sua companhia, que se alimentasse bem para retomar ao vigor antigo, mas dispensá-la, não podia.
Margarida, tão sofrida, cada dia mais triste, não tinha ânimo para o trabalho nem vontade para alimentar-se.
Assim mesmo, ele fê-la novamente ir a seu quarto, e ela, sabendo para o que caminhava, parecia um autómato sem sentimentos, mas teve que se submeter aos seus desejos, não só aquela vez mas algumas outras mais.
Seu físico foi ficando combalido e sua beleza afectada.
O interesse que antes ela despertara em padre Cirino, já deixava de existir, e a sua presença começou a tomar-se-lhe incómoda.
Numa das manhãs em que ela se apresentou para o trabalho, após um mês que o realizava, ele disse- lhe que, naquele dia, lhe daria uma notícia que a deixaria feliz.
Contou-lhe que conversara com a madre, dizendo-lhe que o seu estado de saúde afectado não permitia mais que realizasse bem o trabalho, e desejava dispensá-la.
Outra a substituiria nas mesmas actividades, e ela, que fosse até à madre superiora receber novas instruções.
Margarida, nem ânimo para sentir-se feliz, possuía!
Nada mais lhe importava, tão transtornada ficara, mas saiu da sala e foi receber sua nova tarefa.
Fez-se anunciar, e foi recebida depois que ela dispensou a jovem com quem conversava, sua companheira de noviciado, que percebeu, seria sua substituta junto ao padre Cirino.
Era muito bonita e certamente havia sido escolhida por ele.
Teve pena do destino que a aguardava, mas nada poderia dizer.
Quando ela entrou, foi repreendida por não ter se portado à altura das necessidades do trabalho de padre Cirino, e avisada de que, a partir de então, ela retomaria à cozinha, como havia lhe pedido há pouco tempo atrás.
Margarida ouviu as ordens e retirou-se, mas tão enfraquecida se encontrava, que não teria condições de realizar novamente serviço tão pesado, como já o fizera.
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Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 2 Empty Re: Amor e Sacrifício - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 09, 2018 8:03 pm

Ela sabia que nada demoveria a madre, que não compreenderia suas necessidades de saúde, e nada respondeu.
Teria que se apresentar à encarregada daquele sector imediatamente, e começar as actividades.
Os dias estavam passando e cada um mais difícil a Margarida.
Recebia constantemente admoestações da encarregada, que ameaçou mandá-la falar com a madre, caso não se aprestasse mais, chegando, numa das vezes, a dizer-lhe:
— Gostaria muito de saber o que você aprontou com padre Cirino para ele ter lhe dispensado!
Deve ter realizado mal o seu serviço, deve tê-lo desobedecido, e ele se cansou.
Aqui é diferente, não vou mandá-la embora, mas posso castigá-la.
Quanto pior realizar o seu trabalho, mais terá que trabalhar!
Certa vez em que recebia uma reprimenda, Margarida perdeu os sentidos, caindo ao chão.
As companheiras que tinham pena e compreendiam o seu estado de saúde tão precário, acudiram-na.
Quando retornou, fizeram-na tomar um chá quente, mas Margarida não tinha mais condições de continuar o trabalho.
Pediu à chefe que a dispensasse naquele dia, e ela concordou, não sem antes lhe dizer umas imprecações.
Ah, pobre Margarida, a sua saúde tão abalada, sua vontade tão nulificada, a sua tristeza tão grande, nada mais esperava da vida!...
A paz e a tranquilidade que tanto aguardava, nunca lhe chegaram.
Ali não era o lugar que imaginara para o refúgio e a serenidade de seus sentimentos.
Sua saúde estava comprometida, e, quando irmã Felícia começou a cuidar dela, já mais velha e experiente, chegou a uma conclusão, trágica para Margarida — ela estava grávida!
Quando Margarida soube, se algum resto de ânimo ainda lhe restava, acabou de perdê-lo!
O que seria de sua vida?
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