LUZ ESPÍRITA
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Tempo - Oportunidade de Evolução - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:38 pm

Tempo - Oportunidade de Evolução
Wanda A. Canutti

Espirito Eça de Queiroz

WANDA A. CANUTTI (18-12-1932/20-04-2004)
A médium Wanda Albertina Canutti, a quem o Espírito Eça de Queirós ditou Getúlio Vargas em Dois Mundos, nasceu em 18 de dezembro de 1932, na cidade de Araraquara, SR
Nessa* cidade do interior paulista, realizou seus estudos, desde as primeiras letras, e residiu até a sua desencarnação, ocorrida em 20 de abril de 2004.
Wanda Canutti completou o curso Normal em 1950, e, de 1951 a 1964, leccionou recreação num parque infantil da cidade, do qual veio a ser directora alguns anos depois.
Em 1960, tendo sido aprovada no exame vestibular da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara, ingressou no curso de Letras Anglo-germânicas, que frequentou em concomitância com o trabalho que realizava.
Formou- se em 1963 e, no ano seguinte, começou a leccionar Português (...).
A semente da Doutrina Espírita, que germinaria um dia, foi lançada no lar pelo pai, que desde cedo fazia comentários acerca do Espiritismo.
Essas palavras não foram levadas ao vento, mas foram penetrando nas mentes e corações dos filhos para, mais tarde, quando fosse chegada a hora, darem os devidos frutos.
Ligada à Sociedade Espírita Kardecista “0 Consolador", dirigida pela irmã, Léa Canutti Fazan, executou trabalho mediúnico por mais de dez anos, tendo já lançado 13 títulos, iniciando com a publicação de Getúlio Vargas em Dois Mundos, (hoje em sua 12a edição), culminando com este último, lançado em março de 2004 com o título:
0 Tempo - Oportunidade de Evolução.
Da médium, ainda constam outros títulos no prelo, pela mesma Editora EME.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:38 pm

PALAVRAS DO AUTOR
Assim como o Espírito, dentro da sua imortalidade, é importante porque precisa promover a sua evolução e caminhar para Deus, o tempo também tem sua importância.
Não que estejamos comparando um ao outro, pois o tempo, apesar de ser eterno, transcorre rotineiro e não vai além da sucessão das horas e dos dias.
Todavia, existe uma correlação muito estreita entre um e outro, no que respeita à sua utilização.
O Espírito se utiliza do tempo e o tempo é o instrumento que o auxilia na sua redenção, pois está intimamente ligado a ele pela forma do seu aproveitamento.
O tempo é infinito e Deus não tem pressa porque é misericordioso e bom, e sabe compreender nossas faltas.
Entretanto, por nós mesmos, para que mais rapidamente evoluamos e não percamos momentos que nos auxiliem a deixar de sofrer, é do nosso mais profundo interesse aproveitá-lo em toda a sua plenitude.
Os minutos compõem as horas e estas compõem os dias, cada um parecendo transcorrer indiferente, mas trazendo-nos as oportunidades de aprimoramento.
Entretanto, se ainda ignoramos essa inevitabilidade, nós utilizamos o tempo para a satisfação dos nossos prazeres, sejam de que natureza forem, e nos afastamos das acções nobres que aprimoram e elevam o Espírito, conduzindo-o ao Pai.
Isto ainda quando não o utilizamos só em nosso prejuízo, mas em prejuízo do nosso semelhante, comprometendo-nos, amealhando sofrimento e postergando, para tempos distantes, a nossa evolução espiritual.
Sejamos, pois, quem formos, como componentes deste imenso contingente de seres encarnados neste Planeta, saibamos que estamos sob os olhos do Pai, em oportunidade que Ele nos concedeu em favor de nós mesmos.
Aproveitemos os nossos dias, utilizando bem as nossas horas e até nossos minutos, pois é num deles que, às vezes, comprometemos não só todas as horas do nosso dia, mas toda a nossa existência.
Sejamos ciosos de nossas acções, porque todas elas retomam a nós mesmos.
Se praticarmos o mal, o mal receberemos; e se praticarmos o bem, esse mesmo bem virá a nosso favor, senão nesta encarnação, nas futuras existências.
Sejamos mais felizes e soframos menos, sabendo preparar cada instante da nossa vida, desvencilhando-nos das dívidas que trouxemos, compreendendo o nosso próximo, auxiliando a sua necessidade, para sermos auxiliados por Deus nas nossas próprias necessidades.
Aqui estamos como Seus filhos e por isso somos, diante Dele, todos irmãos.
Por que ofendermos algum deles, se sabemos que com isso estaremos ferindo as Leis Morais estabelecidas por Deus?
Cuidemos de nossas acções em todos os momentos de nossas vidas e procuremos, se erramos, não ser reincidentes.
E um recurso para não mais sofrermos e não verificarmos, ao final de uma encarnação, quando tivermos que nos deparar com a verdade do Mundo Espiritual, não a que ilude e engana mas a verdadeira, real e única diante de Deus, que nos sentimos fracassados e envergonhados, porque malbaratamos a oportunidade concedida pelo Pai, ou nada fizemos em favor de ninguém nem em favor de nós mesmos, do nosso Espírito.
Sabemos que só ele é que importa, só ele é que retoma ao Mundo Maior, deixando aqui o corpo e todas as vaidades e ilusões terrenas que nada valem, senão para demonstrar o nosso orgulho.
As nossas acções, boas ou más, seguem connosco como marcas indeléveis.
Levemos, pois, ao Mundo Invisível, as acções no bem, tendo sabido utilizar adequadamente o nosso tempo em todos os seus minutos, porque ele é que é, na nossa vida de encarnados, o instrumento mais eficaz com o qual contamos para o nosso aprimoramento.
Não nos acomodemos, porque ele aprecia ser bem utilizado e não desperdiçado por aqueles que o vêem passar sem nada fazer, ou que o utilizam em acções indignas.
Ele caminha sempre em frente e jamais para ou retoma, mas aos que sabem aproveitá-lo em toda a plenitude de seus mínimos momentos, faz-se como o maior condutor do progresso espiritual.

Eça de Queiroz
Araraquara, 02 de janeiro de 1998.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:38 pm

1 O DESCONHECIDO
Naquela estrada afastada, numa casinha muito simples, quase perdida na mata, um senhor vivia muito só.
Já não era jovem nem vigoroso, e o pouco que trabalhava, fazia-o com dificuldade.
As vezes, até a falta do mais necessário era obrigado a enfrentar.
Lenha para o fogão, pegava-a nas imediações, entre os galhos secos de árvores velhas que tombavam, ou em outros que ele próprio era obrigado a decepar do tronco, para secar e servir de combustível ao seu fogão onde cozia o parco alimento.
Ao redor da casa, pequenos canteiros proviam-lhe das hortaliças que o alimentavam, e até alguns grãos que resistiam mais tempo e poderiam ser guardados, retirava do mesmo terreno.
Pouco se afastava dali.
A cidade mais próxima não era tão perto que lhe facilitasse a ida constante, mas, vez ou outra, era necessário que fosse.
Pedia alguma roupa, alguns utensílios para a sua casinha e retomava, não raro, bastante carregado.
De outras, nem sempre encontrava as pessoas que o ajudavam, e, nessas circunstâncias, tentava outras residências, mas dificilmente era atendido.
Quem era aquele homem que há alguns anos aparecera na região?
Ficara uns dias na cidade, vivendo do pouco que trouxera, e após, embrenhando-se pela mata através de uma estradinha estreita e íngreme, às vezes abrindo o próprio caminho, conseguira, numa clareira à beira de uma outra estrada, construir uma pequena cabana que foi melhorando aos poucos com os próprios recursos da região e muito trabalho, e ali se instalara.
O seu nome?
Ninguém o sabia!
Nunca revelara e, se documentos trouxera, tinha-os bem escondidos.
Contudo, por algum nome deveria ser chamado quando começou a ficar conhecido entre os que o ajudavam, e até lhe reservavam alguma roupa ou objecto que não desejavam mais.
Todos o chamavam de Desconhecido, mesmo os que já o conheciam há algum tempo...
Perguntas lhe eram feitas, sobretudo pelos que o auxiliavam, que sempre assim acontece, e sentem-se no direito não só de fazê-las mas de impor ordens e ditar comportamentos.
Mas ele esquivava-se, repetindo:
- Chamem-me de Desconhecido que me deixarão contente.
Na verdade, o que lhes significava um nome?
Ele poderia dizer qualquer um, apenas para satisfazer os curiosos, mas preferiu a alcunha de - Desconhecido.
Até ele mesmo, com o passar do tempo, foi perdendo a própria identidade e integrando-se cada vez mais na que o povo criara.
Quando batia à porta de alguma casa, e uma criança vinha atendê-lo, pedia:
— Diga à mamãe que o Desconhecido chegou.
Quem não o conhecesse, estranhava, tomava a perguntar, e ele confirmava, repetindo o que já dissera.
A pessoa entrava e logo a senhora dona da casa vinha atendê-lo, sabendo perfeitamente quem a procurava.
Nunca faltara com o respeito a ninguém.
Era educado e demonstrava ser possuidor de uma boa instrução, mas, mesmo que o interrogassem, nada conseguiam.
O seu passado estava morto.
Não que se mate e enterre um passado, uma parte da vida com todas as experiências que se acumulam, boas ou ruins, com todos os sentimentos guardados no coração.
O que ele pretendia, era esquecê-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:39 pm

Deveria ter seus motivos, deveria ter tido sua família de origem, no seio da qual um dia fora feliz, como quase todos o são, amparados e amados por seus pais; deveria ter constituído o próprio lar, como resultado de algum sentimento de muito amor, enfim, deveria ter sido feliz...
Entretanto, se de tudo se afastara, se pretendia esquecer quem fora, algum acontecimento grave deve ter ocorrido para desequilibrá-lo de tal forma, retirando-o do seio familiar, da rotina estabelecida em sua vida, afastando-o de entes queridos, deixando tudo o que conquistara, por aquela vida solitária de tantas privações.
E o seu íntimo como estaria?
Parecia viver em paz!
Sua vida era a mais simples possível, e lutava para a sua sobrevivência.
Alguns anos haviam decorrido, tantos, que ele podia avaliar apenas pelas pessoas que o atendiam nas casas que o ajudavam. As que eram crianças e corriam à porta, já eram adultas cuidando de suas próprias vidas, e outros mais velhos já haviam partido...
Não foram esses detalhes aparentemente simples, e outro de maior importância que estava sentindo no próprio físico, teria perdido a noção do tempo.
Enquanto as crianças iam crescendo e se tornando adultas, ele ia envelhecendo, sentindo-se mais debilitado e chegava à cidade com dificuldade.
Os caminhos haviam se encurtado porque a cidade se estendera, e ele conseguia auxílio mais próximo de casa, mas estava cada vez mais difícil cuidar das hortaliças.
A saúde já estava abalada, e algumas senhoras, percebendo suas dificuldades, insistiam para que procurasse um médico, — sempre havia os que consultavam gratuitamente — e houve uma delas que conseguiu um que o atendesse, mas ele recusou a consulta.
— Nada tenho em minha vida, de nada preciso e, no dia em que Deus me chamar, comparecerei diante d’Ele e Ele somente irá julgar-me, ninguém mais!
O que quereriam dizer aquelas palavras? - ficou imaginando a senhora a quem falara.
Com certeza têm relação com o seu passado que sempre fez questão de esconder, querendo, ele mesmo, esquecê-lo sem conseguir.
Ele deve ter sofrido muito e sofre ainda!
O Desconhecido sempre dava suas justificativas, e ninguém ousava insistir para qualquer modificação - não adiantaria.
O seu modo de vida parecia estar cristalizado em si mesmo, e ele providenciava o mínimo para não morrer de fome e ter o corpo coberto, que a decência ainda fazia parte das suas convicções.
Naquele dia ele foi embora e mais duas vezes voltou, mais emagrecido e desgastado.
Na terceira, porém, tão mal se encontrava, o cansaço era tão grande, a respiração difícil dificultando-lhe a fala, que a senhora que mais assiduamente o auxiliava, espantou-se:
— O senhor não pode ficar assim!
Bem que lhe pedi para consultar um médico a até lhe arranjei um, mas o senhor recusou e piorou muito.
Com dificuldade pediu que não se preocupasse, pois nada teria a perder quando deixasse a Terra e até se sentiria aliviado.
— Temos por obrigação, diante de Deus que é o Pai da Vida e diante de nós mesmos, de lutar e não nos entregarmos à enfermidade.
Se Ele nos proporcionou meios de cura, temos que procurá-los.
Eu vou recolhê-lo, agora, e mandar chamar aquele mesmo médico que o senhor recusou consultar.
— Não é preciso!
Só desejo descansar um pouco, depois vou me embora.
— O senhor não chegará à sua casa!
Venha, sente-se aqui!
Ela colocou-o sentado numa cadeira confortável no seu terraço, e entrou para chamar o aludido profissional.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:39 pm

Contudo, quando retomou ele havia piorado e encontrava-se praticamente inconsciente.
Falou-lhe, ele não respondeu mas respirava, e, em poucos instantes, antes do socorro chegar, pendia a cabeça sem vida.
A senhora ficou muito aflita.
O que fazer em tal situação?
Ele não possuía ninguém nem recursos para os funerais.
Ela mesma teria de providenciá-lo.
Tentando avisar o médico que nada mais adiantaria, ele já havia saído e logo chegava, acabando por atestar a sua morte por problemas cardíacos.
E ele mesmo, acostumado a salvar vidas, mas também familiarizado com a morte, ajudou-a, tomando providências imediatas junto das autoridades de direito, para o sepultamento do corpo.
Ah, quando chegaram e pediram a identificação do morto, ninguém a possuía!
- Não podemos enterrá-lo sem saber quem é!
— Ele mesmo se dizia - o Desconhecido— e nunca revelou sua identidade a ninguém.
— Mas não o era, que a senhora o conhecia bem!
Precisamos de algum documento.
A senhora sabe onde ele morava?
— Tenho noção, mas não sei exactamente!
— Pois mandaremos averiguar e, se a senhora puder nos acompanhar, reviraremos a casa até encontrarmos algum documento.
— Se ele sempre quis se manter como Desconhecido, não temos o direito de violar sua casa!
— Mas perante a lei é necessário!
Somos obrigados a fazê-lo!
— Então providencie a retirada do corpo daqui e depois iremos.
As medidas foram tomadas, e os vizinhos que ainda não estavam participando da situação e conheciam o morto, ao verem aquele movimento desusado, achegaram-se também, formando um grande grupo de curiosos.
Quando o corpo foi levado, um dos policiais pediu à senhora para que os acompanhasse na procura da casa e na busca de algum documento.
— Talvez tenhamos que avisar algum familiar!
— Se ninguém nunca se importou com ele, por que deve ser avisado?
— Não sabemos o que houve nem por que se escondeu neste local.
Pode ser que o tenham procurado, não sabemos!
— Tem razão!
Depois de alguma procura pelos caminhos íngremes, avistaram uma casinha muito pobre que supuseram, fosse a do Desconhecido.
Para entrar, a porta não ofereceu nenhuma dificuldade.
A pobreza do lado de dentro não era menos assustadora que a imaginada e demonstrada pelo lado de fora.
Hortaliças, não havia mais!
Há tempos ele deixara de cultivá-las, e até fome, deduziram que andava passando, pela dificuldade de chegar à cidade.
Olharam por todos os cantos e, a muito custo, se depararam, bem escondidos sob seu próprio desgastado colchão, uns papéis bem acondicionados de modo que não se estragassem.
Imediatamente o policial exclamou:
— Deve ser o de que precisamos! Vou levá-los!
— Sem examiná-los? — indagou a senhora.
Abra-os e veja, do contrário, continuaremos a procurar.
— Aqui não teremos muito o que procurar!
— Eu gostaria de vê-los!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:39 pm

Sempre tive muita pena dele, sempre respeitei a sua decisão de manter-se anónimo, mas entendia, também, que não era um pobre comum.
Parecia ter cultura e não veio parar na nossa cidade à toa.
— Está bem, vamos averiguar!
Entre a certidão de casamento e o diploma de engenheiro, havia um outro documento que atestava a propriedade de uma casa muito grande.
— Eu tinha certeza disto tudo!
Resta-nos saber por quê! - ponderou a senhora.
— Com todos estes documentos, não ficará difícil!
No momento, para a polícia, interessa apenas a sua identidade para que seja enterrado.
Depois procuraremos encontrar seus familiares e, se eles desejarem, mandarão buscar o corpo para sepultar junto deles.
— Poderão ignorar!
Não sabemos de nada!
— Não se esqueça de que há, aqui, uma escritura de propriedade!
Se o sentimento de amor não conta, o de posse falará mais alto.
Levando os documentos que puderam encontrar, deixaram a casinha sem o trabalho de fechar com segurança a porta.
Seu morador não mais regressaria e nada do que ali havia tinha valor.
Se outro qualquer, em condições semelhantes de vida, quisesse se apossar do local, poderia fazê-lo sem dificuldade.
Quando os documentos foram entregues às autoridades, a surpresa foi geral.
Não tinham contacto com ele que nunca lhes dera trabalho por nenhuma contravenção, só não compreendiam o que poderia ter acontecido para que deixasse o lar, uma casa que deveria ser bastante confortável pelo que o documento descrevia, uma profissão de elite e rendosa, sem nunca ter pronunciado uma única palavra a respeito, que a senhora que o ajudava mais frequentemente o afirmara.
Diante do que possuíam em mãos e da curiosidade aguçada, eles tomariam as providências o mais rápido possível.
— Se apenas mandarmos averiguar através dos policiais da cidade, onde a casa se encontra, não será tão eficiente como verificar in loco, conversar com algum familiar e ter a história da sua vida.
— O senhor está pensando em mandar alguém pessoalmente para as averiguações?
— Mandar, não!
Tomarei a mim mesmo esta tarefa!
Eu próprio deverei procurar a família, dar-lhe a notícia, verificar a reacção deles, se é que ainda lá se encontram, e saber o que aconteceu.
Afinal, devem ser pessoas de bem.
A casa, pelas dependências, deve ser muito confortável, e ele era um engenheiro!
— Que teve a própria vida arruinada...
— Não sabemos os motivos!
A senhora que ainda se encontrava presente a esta conversa, disse que gostaria de saber o resultado das averiguações, pois tinha o morto em grande consideração.
Aquele resto de dia transcorreu, o corpo foi sepultado junto daqueles que não têm como pagar, e, em pouco tempo, estaria esquecido, deixando até alguns aliviados porque não mais os molestaria com pedidos.
Após uns poucos dias, depois de mandar informar se o endereço anotado na escritura ainda existia, e quem eram os moradores daquela residência, uma pessoa do corpo de policiais, exercendo um cargo de certo destaque e portando todos os documentos, acrescentados do atestado de óbito, partiu para as investigações.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:39 pm

O nome de família dos moradores da casa era o mesmo dos papéis encontrados.
Logo após o horário do almoço, chegou à residência procurada.
Imaginava-a mais sumptuosa, mas a pouca conservação tirava-lhe muito da aparência que deveria ter tido nos áureos tempos, quando fora construída, quiçá por ele mesmo, como engenheiro que o era, cheio de planos, de sonhos, de ilusões...
Depois de anunciar que trazia um assunto de grande importância para conversar com a dona da casa, foi recebido por uma senhora impaciente e sem muita disposição de ouvi-lo, conservando ainda um pouco da beleza que deveria ter possuído quando jovem.
— De que se trata? - indagou ela sem mandá-lo sentar.
— O assunto é um tanto delicado e longo e, se a senhora permitir, gostaria de sentar-me para conversarmos mais à vontade.
— Eu não tenho nada para conversar com o senhor!
— Mas eu tenho e trata-se de um assunto do seu interesse.
Venho falar-lhe sobre o senhor Geraldo de Alcântara.
Ao ouvir esse nome, ela transtornou-se, e, a seguir, falou- lhe:
— Se até aqui não tínhamos nada para conversar, em se tratando dele, temos menos ainda.
Nada quero saber dessa pessoa!
— O que ele era da senhora?
— Era meu marido.
Se já está satisfeito, pode se retirar!
SE- Ainda não!
Venho da parte da polícia da cidade onde ele
se encontrava, e precisamos conversar.
Se a senhora não quiser atender-me como cidadão, - perdoe-me o que vou lhe dizer - terá que me atender em nome da polícia.
Não terá como recusar.
Vim da minha cidade para isso e não irei embora sem lhe falar.
Poderia tê-lo feito através dos policiais desta cidade, mas vim pessoalmente e não vou perder a viagem.
A contragosto ela mandou-o sentar-se, acrescentando:
— Seja breve porque, em relação à pessoa citada, nada me interessa!
- Mas ele não era seu marido?
- Infelizmente o foi!
— Bem, então agora a senhora pode considerar-se viúva!
Seu marido morreu há alguns dias atrás, mantendo-se sempre em nossa cidade, no anonimato, sendo conhecido pela alcunha de o Desconhecido, como ele mesmo desejava.
Vivia da caridade alheia e na mais extrema miséria, mas nunca fez nada que desabonasse o seu carácter.
As pessoas que o ajudavam regularmente, gostavam dele, apiedavam-se da sua situação e desconfiavam, pela educação que revelava através dos menores gestos, que não era qualquer um.
A senhora ouvia-o indiferente.
Nada demonstrou que a abalara e nada parecia interessar-lhe, mas era obrigada a ouvir.
Ao final da sua narrativa, ela assim se expressou:
— Diante do que o senhor me revelou, pelo menos não preciso mais ter receio de que ele, um dia, possa me bater à porta!
— Para completar o relatório que devo fazer em relação àquela pessoa que foi enterrada como indigente, eu preciso de mais alguns dados:
— A senhora é só ou tem filhos?
— Os meus filhos a mim pertencem e não vou expô-los a uma situação de vexame pelo pai que possuíam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:39 pm

— Não sabemos o que houve, uma vez que a senhora se recusa a falar, mas ele nunca demonstrou, através de nenhuma palavra ou ato, ser uma pessoa como a senhora quer fazer-me acreditar.
— Eu convivi com ele e sei o que sofri!
Penso que esta entrevista pode ser encerrada, e o senhor levar a certeza de que me aborreceu profundamente.
— Nem sempre nosso trabalho é agradável, mas devemos realizá-lo.
Antes de me retirar, devo deixar com a senhora estes documentos que foram encontrados na pequena casinha onde ele vivia.
Agora lhe pertencem.
Ele estendeu-os a ela que pegou por obrigação, mantendo- se fria, indiferente como havia se mantido até então, e foi se levantando, querendo dizer que a entrevista estava encerrada e ele deveria retirar-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:40 pm

2 AMARGURA
À retirada do portador dos documentos e das informações, a senhora, cujo nome era Virgínia, com os papéis na mão, dirigiu- se ao seu quarto e, fechando a porta, sentou-se em uma poltrona diante de uma mesinha.
Cerrou os olhos e pareceu-lhe que, naquele instante, toda a sua vida desfilou ante seus olhos, mas tendo-a como protagonista de uma tragédia muito grande, tão grande que arrasou por completo a sua existência, a daquele que ela escolhera para companheiro, e a do pequenino ser, a esperança mais pura e mais bela que ela abrigava no coração.
Não, ela não queria recordar!
Lutara toda a sua vida para esquecer e não seriam aqueles papéis, aquela visita inesperada que revolveria um passado de tanta dor.
Descerrando os olhos, olhou para os papéis, abriu-os, leu a sua certidão de casamento que a reportava a um dia que ela julgou, seria o mais feliz de sua vida, e olhou para o documento de propriedade da casa.
Ah, a sua casa!
Lembrava de quando era ainda um sonho, e de quando Geraldo, cheio de entusiasmo e planos, crescendo e florescendo na profissão, a idealizava.
A cada dia um pequeno pedacinho, depois de bastante estudado, ia sendo fixado no papel, e ambos participavam, sentindo-se cada vez mais felizes porque estavam mais próximos de concretizar o sonho.
Depois de muitas modificações, de ideias abandonadas substituídas por outras consideradas mais funcionais e modernas, o projecto surgiu todo pronto e belo.
Antes que um único tijolo tivesse sido colocado, mesmo no papel, eles passeavam pela casa e, motivados pelo entusiasmo, viam-se instalados nela com todo o mobiliário e a decoração.
Ah, que tempos felizes!
— Quando nosso filhinho chegar, meu querido, já quero estar em nossa casa nova.
Veja, este será o seu quarto, e os outros que vierem também terão seus quartos esperando-os!
Eu quero muitos filhos, você sabe!
Adoro crianças e é o que posso lhe dar para vê-lo mais feliz.
Nós todos seremos muito felizes, a nossa família toda reunida...
Já pensou quando eles estiverem crescidos, esta sala de jantar será pequena!
Quero uma mesa bem grande e longa com todos à nossa volta...
De repente despertou das recordações e, dando um salto da poltrona, colocou-se em pé imediatamente, recusando-se a pensar.
— Por que estes pensamentos agora, por que estas lembranças de um tempo feliz, se a felicidade durou tão pouco?
De que me adiantou a casa construída, os sonhos concretizados, se a minha alegria maior, a esperança mais bonita de minha vida se foi por culpa dele?
Eu gostava de todos os meus filhos, mas daquele, do primeiro que aguardara em meio a tantos sonhos,... não, não poderia ter sido ele!
A minha vida, a partir de então, perdeu a razão.
A realidade foi muito dura, e eu não quis vê-lo nunca mais.
Expulsei-o daqui e ele se foi!
Por que levou o documento que atesta a propriedade desta casa, eu não sei.
Ela nunca deixou de ser minha, mesmo sem este documento.
E ele, com o documento em mãos, passou a morar numa casinha pobre e a viver da caridade alheia.
- Foi o que mereceu, não tenho nem um pouco de pena.
O que ele me fez foi o maior sofrimento que uma mãe pode sofrer e não sei como pude suportar.
Talvez porque ainda tivesse meus outros dois filhos para criar!
Entretanto, cada vez que olhava para eles, que devia cuidar deles, eu o fazia com certa raiva.
Por que o meu mais querido não estava comigo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 23, 2018 8:40 pm

Eles não tinham culpa e tiveram sempre uma mãe amarga, triste e revoltada, mas eu não poderia ter sido diferente.
Recusando-se a prosseguir nestas recordações que a custo sempre tentara esquecer, ela deixou o quarto, mas antes, olhando- se no espelho que outrora lhe revelava tanta beleza, exclamou:
— Foi isto o que a vida fez de mim!
Foi assim que ele me deixou!
Os documentos ficaram sobre a mesinha como que esquecidos e ela saiu.
Andou pela casa examinando cómodo a cómodo, entrando em cada um e saindo logo a seguir, como se estivesse passeando pelo projecto há tantos anos atrás.
Sim, muitos anos haviam passado.
A casa estava construída há pouco mais de vinte e cinco anos, e a tragédia ocorrera depois de cinco; fazia vinte anos que Geraldo os deixara.
Ela lutara para criar os filhos, os dois que restaram.
Seus pais a ajudaram e ela conseguiu.
Hoje estavam crescidos, um rapaz de vinte e três anos e uma jovem de vinte e um.
Ah, o seu querido estaria completando vinte e cinco anos.
Conforme ela desejara, ele nascera logo depois que se mudaram.
Não havia ninguém na casa, além dela e da criada.
Seu filho mais velho, também um engenheiro recém-formado, trabalhava numa empresa para adquirir habilidade e bastante experiência na profissão, para depois abrir sua própria firma.
A jovem, completando o curso universitário, logo também estaria apta a desempenhar sua profissão.
Eles sempre perguntavam pelo pai, do qual não se lembravam, mas a mãe dizia que havia morrido e que a família eram apenas eles três.
Nem do filho mais velho que se fora, queria falar.
Sabiam que haviam perdido um irmãozinho, mas a mãe sempre se recusou a tocar no assunto, e eles não sabiam a causa da sua morte.
Ao menos nisso a mãe os preservara de abrigar o mesmo ódio que ela trazia no coração.
Quando aquele dia terminou, encerrado pela tarde que se foi, os dois filhos da senhora Alcântara - que ainda conservava o nome do marido, apesar de tudo e como viúva que se proclamava - retomaram para casa, encontrando-a mais irritadiça, mais sofrida, mais amarga.
A filha, que nunca compreendera bem a mãe, indagou o que havia acontecido, mas ela, como era hábito, mostrando certa frieza, respondeu que nada havia acontecido, que sua vida era sempre a mesma.
— Mamãe, desde o tempo em que a minha memória pode recordar, a senhora é sempre muito triste, muito amarga!
O que houve em sua vida que a fez assim?
Seja o que for, sou sua filha como o Alberto também o é, e temos o direito de saber.
Não a estou recriminando mas não acredito que a senhora tenha sido sempre desse jeito.
Deve ter havido algum tempo em que foi feliz, que sorria e tinha esperanças.
Ninguém pode revelar tanto azedume a vida toda, sem nenhum motivo.
Conte com sua filha que a ama, abra o seu coração!
Já não sou mais uma criança que aceita qualquer desculpa.
Se a senhora quer saber, nem que papai tenha morrido, eu acredito.
Onde ele está sepultado?
O que houve, mamãe?
Far-lhe-á bem falar, a senhora se aliviará!
Indiferente, ouvia as palavras da filha, sem entender por que justamente naquele dia, quando tantas recordações lhe voltaram à mente, ela precisava tocar naquele assunto.
Reconhecia que muito mais poderia ter oferecido aos filhos em carinho e amor, mas e o outro?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:37 pm

Não estava presente, ela não o vira crescer nem ir à escola...
É certo que eles não tinham culpa, ela também não tinha, mas o culpado agora estava morto.
- Poderia dizê-lo sem estar mentindo, como o fizera até então, e estaria mais à vontade para dizer-se viúva.
A filha ainda prosseguiu com alguns apelos, mas Virgínia, pretextando um mal-estar qualquer, disse que iria recolher-se e não queria jantar.
— Jante você com seu irmão, eu vou me deitar!
— Não digo que a senhora, desse jeito, acaba ficando doente!
—Não se incomode comigo, eu sempre fui assim!
Se algum dia fui diferente, alegre e feliz, não me lembro mais!
— Então a senhora considera-se infeliz?
E nós, nada significamos?
— Eu vou me deitar! - reafirmou ela, sem se importar com as perguntas da filha, nem com o significado de cada uma delas.
Em seu quarto, tomou novamente os documentos deixados sobre a mesinha e guardou-os muito bem guardados, pensando:
— Nada farei com eles!
Não procurarei passar, em definitivo, esta casa em meu nome, pois não será por muito tempo.
Quando me for, eles tomarão as providências, procurarão os papéis e farão o que for necessário.
Não quero mais remover cinzas, porque as brasas que elas ainda escondem podem me queimar mais.
Quem sabe um dia meus filhos me compreenderão, mas, de minha boca, nunca saberão de nada, de nada...
Mais alguns dias se passaram desse acontecimento, e a senhora, procurando esquecer, num esforço vão, trazia toda a sua vida num desfile de cenas ante seus olhos.
Por mais insistisse em evitá-las, elas se tomavam presentes com mais intensidade.
A medida do esforço para esquecer o passado, era a mesma com que o fazia retomar.
Quando via que era impossível, seu orgulho ainda falava mais alto, e, como que num desafio, dizia de si para consigo:
— Não falta muito!
Vocês não me atormentarão por muito tempo mais!
O que me consola é que sei, logo me libertarei de tudo isso, e aí quero ver onde ficarão as lembranças que persistem em minha mente, atormentando-me.
A libertação é um consolo, é uma esperança e será também uma frustração para essas recordações que eu não desejo trazer tão vivas como se me apresentam, depois daquela visita e da entrega dos documentos.
Ah, pobre senhora!
O que pensaria sobre o que acontece com os que partem desta Terra?
Que os que a deixam, se é que para eles a vida tem alguma continuidade, estarão libertos de tudo o que o coração abrigava em mágoas e rancores, em frustrações e ódios, e passarão a viver como se a morte fosse um banho de esquecimento e purificação?
Ou que as imperfeições que carregam - se assim puderem considerar o mal que trazem em si — se diluem, e cada um, ao deixar o corpo, adquire qualidades angélicas?
Quão importante é o conhecimento para os que ainda se encontram em lutas redentoras no orbe terrestre!
Nenhuma ilusão toma o lugar da realidade, pois sabem exactamente o que os aguarda no Mundo Espiritual.
Sabem que cada um carrega em si as mesmas frustrações, as mesmas imperfeições, e, se ainda não conseguiu compreender o seu semelhante, perdoando-lhe as faltas, leva também as mágoas, o ódio e, às vezes, até o desejo de vingança.
E ainda mais!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:37 pm

Ante tudo isso, todas essas sensações se revelam muito mais intensas, pois limitam-se somente ao Espírito, desligado das lutas diárias pela sobrevivência, dos atractivos que a Terra oferece, e fazem sofrer muito mais.
Para os orgulhosos, porém, para os que se fecharam em sua própria dor, sem compreenderem aqueles que os rodearam e com os quais conviveram, como se todos lhes fossem devedores da paz perdida ou das mágoas com as quais a vida os marcou, o sofrimento será muito maior.
O orgulho e o egoísmo são seus companheiros constantes e, com companhias tão consideráveis na escala das imperfeições humanas, com as quais vivem em perfeita harmonia de gostos e atitudes, não precisam de mais nada.
Pobre senhora!
Ela deve ter tido seus momentos de sofrimento dos quais ninguém está isento neste orbe, mas não soube enfrentá-los.
Não soube compreender, mas tão somente acusar, desejando encontrar um culpado para suas dores.
E, com isso, fechou-se em si mesma, amargurou todos os seus dias sem desejar romper o casulo de tristezas que ela própria construiu e fez questão de conservar, enredando-se nele cada vez mais, e amargurou a vida dos que a amavam.
Um dia Virgínia compreenderia todo o mal que espalhou - ela que se julgava a atingida - e teria diante de si toda a verdade dos fatos, a que sempre recusara aceitar.
Como tudo tem sua hora, na hora certa ela saberia, e talvez sofresse ainda mais do que se julgava sofrer até então, e nós prosseguiremos a nossa narrativa, para não retirá-la da linha de acontecimentos que deve manter.
Naquela tarde, a filha, durante o jantar do qual a mãe não participou, comentou com o irmão a conversa que havia mantido com ela, fazendo alguns comentários:
— Gosto muito de mamãe como é justo que gostemos.
Reconheço as lutas que ela empreendeu para nos criar depois da morte de papai, mas não é normal nem salutar que tenha se mantido nessa atitude de recolhimento e azedume a vida inteira!
Também penso assim!
Na verdade ela lutou para nos proporcionar o melhor, como você afirmou, mas e o amor?
Seria suficiente fazer o que ela fez?
Mamãe nunca se aproximou de nós para saber se tínhamos algum problema, pois só os que ela considerava seus, eram importantes.
Temos mãe, gostamos dela como devemos gostar, mas mamãe é muito distante de nós.
— Não sabemos, mas deve ter acontecido alguma coisa terrível em sua vida para tê-la deixado assim!
— Por mais terrível, tenha sido, o tempo ameniza todas as dores e faz com que as pessoas prossigam a vida dentro da normalidade e da rotina diária.
— Tem razão!
Se as mágoas persistem, guardam só para si, sem deixar transparecer, sem se deixar abater e continuam a luta.
Mas com mamãe foi diferente.
Ela faz questão de sofrer e de mostrar a todos que sofre, não se importando connosco.
Agora ela está ausente, mas se estivesse aqui, estaria calada, reprimindo até a nós mesmos que nos sentiríamos constrangidos diante dela.
— Ela deve ter ficado assim depois da morte de papai!
— Você imagina que papai tenha morrido de facto?
— Por que diz isso?
— Não sei mas nunca visitamos a sua sepultura e, quando pergunto onde ele está enterrado, ela, irritada, desconversa ou não me dá resposta.
Acho que se separaram e ele pode ainda estar vivo.
— E onde estaria!
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Tempo - Oportunidade de Evolução - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti Empty Re: Tempo - Oportunidade de Evolução - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:38 pm

Gostaria muito de conhecê-lo!
— Um dia nós ainda teremos toda a verdade!
Quem sabe a mamãe mesma resolva nos contar!
— Será um pouco difícil, mas não impossível...
Este assunto ainda foi discutido durante algum tempo e com muita franqueza pelos dois irmãos, mas, por mais falassem, por mais revelassem suas frustrações e mágoas, não obstante de natureza completamente diferente das sentidas pela mãe, não tinham solução.
Não dependiam do esforço próprio - que este eles o faziam para que a convivência no lar fosse agradável e sentissem um pouco de carinho e atenções da mãe, mas era em vão.
Nunca, nenhum dos dois teve coragem de chegar à mãe e contar um fato presenciado na rua, ou alguma novidade a seu próprio respeito.
Diante dela sentiam-se tolhidos em comentar até o rotineiro como é próprio em todas as famílias.
Ela, também, nunca perguntou como estavam se saindo nos estudos, se tinham dificuldades, se estavam sendo bem sucedidos.
Era como se não existissem.
Seu pensamento estava voltado e cristalizado naquele que se fora, nas suas gracinhas, nas primeiras palavras, nos primeiros passinhos sem o apoio de ninguém, nas suas brincadeiras.
Só ele era o centro de tudo, mas não estava mais presente.
Havia partido há cerca de vinte anos e ela, sem a presença dele, parara no tempo e vivia de amarguras, sem falarmos no que fizera ao marido que julgou culpado pela morte do filho.
Os outros dois cresceram carentes de afecto, mas o tempo passou.
No início, eles não compreendiam.
Quando passaram a raciocinar com clareza, a colocar a mãe em comparação com o que outras crianças comentavam dos seus lares, foram vendo o quanto ela era diferente, o quanto eram relegados a si mesmos.
E, desse carinho materno que todas as crianças necessitam, eles sentiam falta.
Se agradasse os filhos que restaram, ela sentia como se estivesse traindo e desprezando o que se fora.
Não obstante os dois tivessem crescido acostumados com o pouco que ela lhes oferecia, às vezes sentiam falta do aconchego materno para discutir seus receios, suas frustrações e expectativas, como também falar sobre suas alegrias e vitórias.
Ainda bem que os dois irmãos se entendiam e, quando a ocasião se lhes oferecia, conversavam e sentiam-se mais unidos por dividirem os mesmos sentimentos.
Nunca em nada disso aquela mãe pensou, senão em si mesma e naquele filho que não estava mais presente.
Se todos os que perdem um ente muito querido, agirem como Virgínia, mesmo que seja o filho mais próximo do coração, o mundo seria um desfile de tristezas, lágrimas e sofrimento, muitas vezes maior do que já o é, mesmo todos se esforçando e tentando compreender a vontade soberana de Deus que sabe o que é melhor para cada um de nós.
Entretanto, ela estava longe desse entendimento.
Há alguns meses Virgínia começou a sentir certas sensações que a perturbavam ainda mais do que tudo o que fizera questão de guardar em seu Espírito.
E depois de muito pensar, sem comentar com nenhum dos dois filhos, consultou um médico que diagnosticou um mal que, a qualquer momento, poderia ser surpreendida pela morte.
Por mais grave seja o mal que atinge um cliente, é de obrigação ética do médico e dever de ser humano, animá-lo e dar-lhe esperanças, mesmo porque ele não conhece os desígnios divinos nem sabe o que lhe está preparado.
Contudo, diante da prática e de casos semelhantes que a ciência atesta e com os quais se deparam constantemente, muitos médicos podem fazer uma previsão frente a alguma enfermidade, sem contudo revelar ao paciente a intensidade do mal que o acomete.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:38 pm

Mas não foi o que aconteceu com a senhora Alcântara.
Ela, com muita insistência, quis todos os detalhes, e ele, pressionado e embaraçado diante de tanta objectividade, foi expondo, fazendo com que ela mesma se antecipasse ao julgamento final, concluindo que não tinha muito tempo de vida.
A qualquer momento poderia ser surpreendida com a chegada da morte, mas não se abalou.
Ao contrário, parecia feliz, como se ela, ao partir, estivesse pregando alguma peça à vida que lhe fora tão adversa e triste, segundo sua própria apreciação.
Mais algum tempo passou sem que nenhum comentário por parte dela fosse feito, nem em relação aos documentos, nem em relação à morte de seu marido e muito menos quanto ao seu estado de saúde.
Todavia, mesmo sem comentar, os sintomas foram se agravando e, às vezes, durante a noite, ela passava mal e sua mente, de pronto, pensava:
— Será hoje?
Depois o seu coração ia se asserenando, mas os efeitos do mal iam ficando cada vez mais marcados em seu físico.
Tão bem ela escondia e, talvez, pelo seu modo de ser, nunca nenhum dos dois filhos percebeu.
As obrigações domésticas quase não mais as realizava.
A filha sempre tomou a si muitas das tarefas, e o irmão, quando passou a perceber seu próprio salário, para deixar a irmã mais livre, e desejoso também de dar um auxílio à mãe, convenceu-a a admitir uma ajudante.
Mas até com esta era calada, ranzinza e exigente.
Só lhe dirigia a palavra para dar uma ordem de serviço ou para criticar alguma tarefa que considerava mal executada.
Na maioria das manhãs, os filhos saíam para suas obrigações sem ver a mãe, que ficava até mais tarde em seu quarto, entregue às suas recordações; por isso, naquela manhã, a sua ausência não foi sentida, e eles deixaram o lar sem saber o que havia acontecido.
Quando a auxiliar do lar chegou, cansou de bater à porta, mas ninguém atendeu.
Esperou mais algum tempo, tomou a bater e foi embora, imaginando que todos tivessem precisado sair, sem tempo de tê-la avisado, e considerou a ocorrência normal.
Quando os filhos retomaram, a casa continuava fechada, em absoluto silêncio e perceberam que nem as actividades domésticas mais simples de arrumação e limpeza haviam sido executadas.
A jovem estranhou muito e, pé ante pé, para não ser surpreendida pela mãe e receber alguma admoestação, chegou à porta de seu quarto, aguçou os ouvidos, mas nada ouviu. O silêncio era absoluto.
Nas outras dependências da casa já estivera e não vira ninguém.
Falando com o irmão, ele aconselhou-a a abrir a porta do quarto para ver o que acontecera.
— Eu tenho medo!
Nunca fiz isso em toda a minha vida!
Ela nunca permitiu que entrássemos em seu quarto, você sabe disso!
— Mas agora é preciso.
Ela pode estar lá e precisando de nós!
— Então venha comigo!
Os dois aproximaram-se novamente pé ante pé, tomaram a parar diante da porta para tentar ouvir algum ruído, por menor que fosse, mas nada.
— Vamos! — disse o irmão.
— Vá você na frente!
Decidido, ele girou a maçaneta abrindo a porta cuidadosamente, e entrou seguido pela irmã.
Encontraram-na deitada como se estivesse dormindo.
Um olhou para o outro sem nada dizer, com receio, e o rapaz aproximou-se do leito e tocou na mãe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:38 pm

Qual não foi sua surpresa ao perceber que ela estava sem vida.
Virou-se para a irmã, e ainda em voz baixa, como se o receio continuasse, disse-lhe:
— Ela está morta!
— Morta?! Mamãe está morta?!
—Deve ter se sentido mal durante a noite e não nos chamou.
Podia tê-lo feito!
—Você sabe que ela nunca faria isso!
Quem sabe agora ela poderá se sentir um pouco mais feliz.
Não terá mais que suportar a nossa companhia.
— Não fale assim!
Ela deve ter tido os seus motivos para ser como o foi!
— Que faremos agora?
—Temos que tomar as providências necessárias!
Deixemo-la aqui, que de nada adianta mexer!
Eu vou sair para fazer o que é preciso, e, enquanto isso, você procura alguma roupa para prepará-la.
— Eu não tenho coragem de mexer com ela!
—Espere-me que, ao voltar, eu a ajudarei e nós o faremos!
Compete a nós como filhos.
É a nossa última obrigação em relação a ela.
Dizer que os filhos não ficaram chocados diante daquela situação não revela os verdadeiros sentimentos que os tomaram naquele instante.
No entanto, aquele apego intenso que normalmente há entre mães e filhos, não existia.
Ela própria os relegara à distância a vida toda, não só física mas a dos sentimentos que envolvem o coração e a alma, e eles a viam, naquele instante, como se vê qualquer pessoa em condição semelhante, mas lamentando que poderiam ter vivido de modo bem diferente.
Enquanto o irmão não regressava, a jovem, depois de separar as roupas com que deveriam preparar o corpo da mãe, sentou-se na sala e, no silêncio da solidão, reviu muitos momentos de sua vida.
Por mais aguçasse a memória, por mais procurasse entre todos os dias e situações de sua vida, não encontrou uma só em que a mãe lhe dirigiu a palavra com um certo carinho, mínimo que fosse.
E muito menos encontrou uma em que ela tivesse estendido o braço e afagado seus cabelos, como as crianças gostam tanto.
Todavia era sua mãe, respeitava-a, mas lamentava a sua morte antes de ter havido alguma modificação.
A chegada do irmão, as medidas necessárias para a ocasião foram tomadas.
O corpo foi preparado e exposto na sala da casa, onde passaram a noite sem que ninguém os tivesse visitado.
Amizades, ela não possuía.
Parentes mais próximos, já os havia perdido.
Os filhos, enfrentando aquela situação tão inusitada e surpreendente, não avisaram ninguém e a noite passou.
Pela manhã, porém, Alberto avisou no seu trabalho o que havia ocorrido, justificando sua ausência, e alguns de seus companheiros viriam para os funerais.
O mesmo aconteceu com a irmã que avisou a uma amiga, e ela, comunicando às outras colegas, também se reuniriam para o sepultamento.
Quando a criada chegou, assustou-se e contou o acontecimento do dia anterior, mas nada mais restava a fazer.
Os funerais foram realizados, talvez, conforme ela própria desejava, sem ninguém vindo vê-la e poucas pessoas acompanhando o féretro.
E aquele dia tão cheio de cansaço e frustrações por tudo o que haviam passado no transcorrer de suas vidas, terminou.
—Agora somos só nos dois, mano!
Devemos nos unir ainda
mais.
-- Sempre fomos só nos dois!
Mamãe amargurou a sua vida, amargurou a nossa, cuja causa nunca chegamos a saber.
— Quem sabe agora ela está mais feliz!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:38 pm

3 A BUSCA
Daquele dia em diante, a vida dos irmãos mudaria.
Não que estivessem satisfeitos com a morte da mãe, mas gostariam que ela tivesse sido diferente, que tivessem podido estar sempre unidos no aconchego do carinho maternal, tão sublime, tão temo e tão necessário.
Porém, não foi possível e lhes deixara mágoas profundas no Espírito.
Mas o tempo, que é o grande remédio, com certeza amenizaria todas as dores.
Agora eram só os dois, e um dia, quem sabe, eles constituiriam o próprio lar junto de alguém que amassem, teriam os próprios filhos, e procederiam de modo bem diverso.
O carinho, que nunca tiveram, dariam com tanta força àqueles que Deus lhes mandasse, que nunca, em nenhum momento, acontecesse o que acontecesse, seriam relegados a si mesmos.
Passados alguns poucos dias do acontecimento que os atingira, a criada que sempre arrumava o quarto da patroa, sob a vigilância da presença dela para que não mexesse em nada, perguntou aos filhos da senhora que partira:
— Há dias não entro no quarto de D. Virgínia.
E necessário abri-lo, arejá-lo e fazer uma boa limpeza.
— Tem razão!
Parece que esquecemos dele! — respondeu a jovem.
— Precisamos dar uma busca nos pertences de mamãe e ver o que podemos doar a quem necessite.
Não devemos deixar guardado nada que não terá mais uso! - lembrou Alberto, presente à interpelação da criada.
— Nós o faremos!
No próximo domingo, se Alberto se dispuser, faremos uma vistoria geral, retiraremos o que deve ser doado, depois você fará a limpeza necessária, e deixaremos aquele quarto sempre aberto! - falou a jovem à criada que esperava alguma resposta.
Depois que ela se retirou, a jovem falou ao irmão:
— Há dias venho pensando em fazer isso, mas não tive coragem nem de lhe dizer.
Era como se estivesse invadindo e profanando um local que não me pertence, algum lugar místico, estranho e cheio de mistérios.
— Não exagere tanto!
Eu a ajudarei e faremos o que for necessário.
— Quem sabe encontraremos papéis, entre os guardados de mamãe, que nos trarão algum esclarecimento.
— É verdade!
Não havia pensado nisso!
— Aguardemos o domingo!
Os dias passaram e, no domingo pela manhã, logo após a primeira refeição, um olhou para o outro lembrando o que haviam combinado.
A jovem estava receosa, mas o irmão falou-lhe resoluto:
— E preciso!
— Sentir-me-ei vigiada, lá dentro!
Mamãe nunca nos deu liberdade de entrar em seu quarto, como se ele fosse um santuário sagrado para ela.
— Era o depositário maior de suas mágoas!
— Quando mamãe estava só, fechada em seu quarto, sentiria tantas amarguras como demonstrava?
Será que nem lá dentro encontrava paz?
— Talvez sim, por isso não permitia que lá entrássemos para não macularmos, com a nossa presença, o seu santuário!
Bem, vamos sem demora!
Ao abrirem o quarto para o que pretendiam, a cama ainda se encontrava desfeita, como fora deixada quando seu corpo foi retirado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:39 pm

As roupas trocadas ainda estavam espalhadas sobre a cama, e eles, antes de qualquer iniciativa, pararam, olharam-no de cima abaixo, de um lado a outro, como a lhe descobrir segredos insondáveis, depois abriram a janela para que a claridade e o ar fresco e puro da manhã renovasse aquele ambiente um tanto assustador.
— Por onde começamos? - indagou a jovem.
— Retire, em primeiro lugar, toda essa roupa de cama, recolha todas as peças de uso pessoal aí espalhadas e deixe a cama livre.
Num instante ela fez o que lhe foi pedido, enquanto o irmão abria o armário que guardava as roupas da mãe.
Qual não foi a sua surpresa diante do que viu, que imediatamente chamou a irmã:
— Venha ver o que este armário ainda contém!
—Devem ser todas as roupas de papai!
São diversos temos e até camisas! - exclamou ela.
— Então mamãe tinha razão, ele deve ter morrido e ela nunca se desfez de suas roupas.
Se ele tivesse ido embora por algum problema entre eles, tê-las-ia levado!
t, — É muito estranho!
— Se vamos retirar as roupas de mamãe para doar, faremos o mesmo com estas!
Vou começar a retirá-las e você as dobrará, colocando-as sobre a cama.
Depois decidiremos o que fazer.
Temo a temo, camisa a camisa, vestido a vestido, casacos para o inverno, tudo foi separado e dobrado.
Quando os varões do armário se encontravam despidos de tantos cabides, a maioria guardando roupas que nunca viram a mãe usar, restavam as gavetas.
— Tenho um pouco de receio de mexer nelas!
Você sabe, as gavetas sempre guardam o que há de mais íntimo em nós.
Se quisermos conhecer uma pessoa, sem nunca a termos visto, é só mexer nas suas gavetas.
Cada uma é reveladora do carácter das pessoas, tanto pelos objectos que guardam como pela forma que estão arrumadas.
— Deixe de psicologia, agora, e vamos a elas!
Algumas foram abertas, as peças de roupas também
retiradas, não só as de uso pessoal como as de cama e banho, e restavam mais duas que, ao abrirem, entenderam que deveriam deixar para o fim.
—Antes de verificarmos os objectos e papéis destas gavetas, convém verificar se nada mais resta além disso.
— Tudo o que pertenceu à mamãe está sobre a cama!
— Pois bem, no espaço que sobra, despejarei os objectos desta primeira gaveta, e vamos verificar, peça a peça, todo o seu conteúdo!
Algumas caixinhas havia contendo coisas sem importância, nada de valor material, mas estavam guardadas, talvez, pelo valor afectivo que um dia puderam representar, e das quais ela não quisera se desfazer.
Em outras, foram encontradas algumas jóias de valor, que nunca a viram ostentar em situação alguma, e compreenderam, deveriam ter sido presente do marido, em algum momento de grande felicidade.
Eram lindas e valiosas.
— Por que mamãe nunca se desfez delas, revertendo-as em dinheiro depois que papai morreu, se tivemos sempre dificuldades? - ponderou a irmã.
— Ou ela desejou esquecê-las totalmente ou o valor afectivo ainda contava bastante!
Talvez tenha querido deixá-las para você, como lembrança de papai, e não houve tempo de lhas dar?
— Se ela desejasse que fossem minhas, há muito poderia tê-las dado!
Mas não faço questão de jóias, você sabe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:39 pm

— Agora são suas de direito e por merecimento!
— Bem, continuemos a busca!
Pelo que nos interessa, suponho que os papéis sejam mais importantes que as jóias.
Encerrando a vistoria naquela gaveta, retirados todos os objectos e separadas as jóias que ela guardaria em seu quarto, começaram a verificar os papéis da outra.
Havia-os bastante!
Alguns velhos, amarelecidos, outros mais recentes, e nenhum deveria ficar sem ser examinado.
Em cima de todos, encontraram um papel de receituário médico, com uma prescrição recomendando medicamentos que eles acharam, ela nunca os tomou.
— Então mamãe sabia que estava doente, consultou um médico e nunca nos disse, nem deve ter tomado os remédios prescritos.
— A vida, para ela, não tinha valor, e ainda deve ter ficado feliz pelo que ele lhe disse.
— Separe esta receita que vou conversar com o médico.
Quero saber o mal que a levou à morte.
Examinando os outros papéis, encontraram até aquela planta da casa, desenhada há tantos anos atrás e assinada pelo pai deles.
— Quantos sonhos devem ter acompanhado toda a elaboração desta planta, e quantos, também, na construção da casa!
Mamãe deveria ter sido diferente!
— Continuemos!
Se formos comentar e fazer conjecturas em razão de cada papel encontrado, não terminaremos hoje! - lembrou Alberto.
— Mas eles são o que temos de mais importante de mamãe e até de papai, de quem não lembramos e nada sabemos!
Lembra- se do que lhe falei a respeito de gavetas?
Esta poderá nos revelar muito sobre a vida de papai e mamãe, que ela nunca quis comentar.
Leve o tempo que levar, é tudo o que temos de mais vivo deles dois.
— Está bem!
Mas os comentários podem ficar para depois.
— Se deixarmos passar este momento, deixaremos perder muitas coisas!
Com o tempo faremos comentários e até suposições começaremos a criar em nossa mente, mas o que nos ocorre agora, devemos falar, é importante!
Outros papéis foram examinados, alguns sem importância que a eles nada revelava, até que, bem no fundo da gaveta, encontraram, dentro de uma pasta fechada, aqueles documentos que o policial havia trazido, e que ela, pretendendo não recordar, os guardara sob os outros papéis, para não ficarem à vista, se precisasse abrir a gaveta.
—Aqui deve estar o que nos interessa! - exclamou Alberto, tomando a pasta.
— Abra-a logo!
— É o que vou fazer!
Em primeiro plano, sob os outros papéis, encontraram a certidão de casamento e, ao final da leitura, alguns comentários foram feitos.
— Não sabíamos nem a data de casamento de nossos pais! - exclamou a jovem.
— Este, deve ter sido um dia muito feliz para eles!
— Se casamos com quem amamos, é o dia mais feliz de nossas vidas!
Colocando a certidão de lado, eles foram ao outro documento, mais espesso e fechado por uma capa.
Ao abri-lo, um outro papel dobrado, de aparência bem mais recente pela brancura da folha em contraste com as outras amarelecidas pelo tempo, foi encontrado.
O rapaz tomou-o, abrindo em seguida, deparando-se com o título que encabeçava os dizeres abaixo:
Atestado de Óbito!
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Tempo - Oportunidade de Evolução - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti Empty Re: Tempo - Oportunidade de Evolução - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:39 pm

— Aqui está! - exclamou ele.
E de papai! Mamãe não mentia.
Papai, de facto, está morto!
—Leia-o com cuidado! - recomendou a irmã!
Esse papel parece recente, veja como é diferente dos outros!
Com vagar, demorando-se em cada palavra, como que a procurar entre elas alguma informação que lhes seria importante, descobriram que o pai havia morrido há não mais de um mês.
— Então eu tinha razão!
Papai não estava morto!
Onde ele estaria?
— Aqui tem o nome da cidade onde morreu e deve estar enterrado! É longe daqui!
— Mas não é impossível irmos até lá para averiguar!
Eu gostaria de saber!
— Como este atestado veio parar às mãos de mamãe?
Deve ser por isso que ultimamente ela andava pior, mais calada, mais irritada e mais recolhida aqui em seu quarto.
— Alguém deve tê-la visitado.
— A criada deve saber.
— Tem razão! Amanhã lhe perguntaremos.
Deixando aquele atestado de lado, foram directo ao outro que atestava a propriedade da casa.
Depois de lê-lo totalmente, o jovem lembrou:
— Esta casa agora é nossa, de direito, e devemos passá-la para nosso nome.
Amanhã mesmo vou informar-me sobre o que fazer, e tomarei as providências para regularizar essa transferência, o mais rápido que puder.
Um dia, quando tivermos condições, faremos uma remodelação total, que ela está muito desgastada.
— Mamãe nunca deve ter feito nada nela.
Do jeito que foi construída, ficou!
— Não sabemos o que houve, mas mamãe não tinha condições de se envolver com reparos na casa.
— Mesmo que tivesse, nem sei se faria!
Nós a conhecemos bem!
-—Não o suficiente, lembre-se disso.
Mamãe nunca revelou seu íntimo a ninguém!
Sabemos apenas das suas atitudes, aquelas que ela não podia evitar de demonstrar, mas seu íntimo, o que trazia escondido dentro de si, nunca chegamos a conhecer.
Encerrado aquele trabalho que lhes trouxe alívio ao coração pela tarefa cumprida, trouxe-lhes também, por todo o resto do dia, oportunidades de muitas considerações, e, entre uma e outra, o pai voltava-lhes sempre.
Num momento, a jovem interrogou o irmão:
—Você imagina que se formos à cidade onde papai morreu e deve estar sepultado, indicada pelo atestado que encontramos, teremos mais informações sobre ele?
— Não sei! Se ele procedeu lá, como mamãe aqui, nada saberemos.
— Se algo devesse estar escondido é porque realmente houve algum acontecimento muito grave entre eles, tão grave que nunca desejaram contar.
— Não podemos julgar nem um nem outro, mas uma atitude como a que mamãe manteve durante todos estes anos, não foi correta.
Por mais atingida tivesse sido a sua alma, por maior fosse o seu sofrimento, nós, que convivíamos com ela, não tínhamos culpa e não devíamos ter sofrido suas consequências durante tanto tempo.
Foi egoísmo puro, o sentimento maior que ela trazia no coração, independente de qualquer outro de mágoas ou de dor profunda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 24, 2018 8:39 pm

— Os sofrimentos com o tempo se amenizam.
Se ela tivesse falado sobre eles, teria tido a nossa compreensão, o nosso carinho que sempre recusou, e teria sido menos infeliz, fazendo-nos também um pouco mais felizes.
— Mamãe não pensava assim e não adianta recriminá-la.
Ela agiu como lhe pareceu melhor.
Se não foi agradável a Deus, agora terá sua reprimenda.
Se era assim mesmo que deveria ter agido, terá sua recompensa e não seremos nós a julgá-la!
—Está bem! Mas voltando a papai, você considera de bom alvitre procurarmos mais informações?
— Vamos nos asserenar um pouco, deixar passar alguns dias, depois iremos.
Amanhã perguntaremos à criada a respeito da visita que ela possa ter recebido e veio lhe trazer o atestado.
Depois daremos um jeito em todas aquelas roupas, e aí, a hora que pudermos, pois teremos que despender, talvez, mais de um dia, nós iremos.
— O que faremos com o quarto de mamãe?
— E o melhor da casa e o mais bem localizado!
Se você quiser passar para ele... - propôs Alberto.
—Não me sentirei bem lá dentro!
Prefiro continuar no meu, onde estou bem instalada.
— Enquanto fazíamos a arrumação das roupas, pensei até em transformá-lo em escritório, quando puder trabalhar por minha própria conta.
HP- É uma óptima ideia!
Nossa casa é grande e dará muito bem para você trabalhar aqui!
Aí será preciso retirar os móveis.
— Sim, quero-o vazio por completo!
Algumas peças poderão ser distribuídas pelas outras dependências da casa, e o que não tiver uso para nós, doaremos também.
— Quem sabe a nossa criada não se interesse por eles?
— Tem razão!
— Não será preciso esperar trabalhar por conta para começar a remodelar o quarto.
Sentir-me-ei melhor, aqui dentro, se ele for transformado logo.
Com vagar poderá prepará-lo e começar a aceitar algum trabalho, mesmo antes de deixar seu emprego, para ir fazendo o seu nome.
—É um assunto para se pensar.
Temos muito tempo à nossa frente e não quero precipitar-me para não vir a arrepender-me depois.
— Mas desocupar o quarto, nós poderemos fazer logo.
— Se você preferir...
Aquele domingo encerrou-se, um tanto cansativo pelo inusitado das obrigações, mas, intimamente, sentiam-se bem.
Haviam realizado um trabalho necessário, feito algumas descobertas, — não todas as que desejavam - e novas esperanças adentravam-lhes o coração.
O quarto seria remodelado, colheriam informações sobre o pai na cidade de onde procedia o atestado de óbito, e os mistérios, os segredos tão cuidadosamente escondidos pela mãe talvez pudessem ser revelados.
Uma esperança nova também abrigavam em seus corações - a informação da criada a respeito da visita que sua mãe pudesse ter recebido.
Pela manhã, quando foi indagada, sem muito pensar, porque naquela casa não se recebiam visitas, ela logo se lembrou.
— Sim, cerca de um mês antes da morte da sua mãe, lembro-me bem, veio um senhor, após o almoço, desejando falar com a senhora da casa, e ela não queria atendê-lo.
Trazia uma pasta na mão que deveria conter papéis.
Não sei de mais nada!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 25, 2018 8:19 pm

— Já está bem assim! Obrigada! - agradeceu a jovem.
Os irmãos entreolharam-se desejando saber quem seria o homem que estava a par do acontecido com seu pai, para ter trazido em mãos aqueles papéis.
- Seria um amigo de papai a quem ele confiou aquela missão? - indagou-se Alberto.
Entretanto, perto da criada, esse assunto não deveria ser tratado.
Como vinha até então, a vida de ambos prosseguiu.
As roupas foram todas doadas.
Algumas peças do mobiliário foram sendo distribuídas pelas outras dependências da casa onde seriam úteis, restando a cama e o armário, peças maiores das quais eles queriam desfazer-se, modificando totalmente aquele ambiente, deixando-o mais agradável e menos sombrio de lembranças.
A criada, conforme previram, interessou-se por eles e mandaria buscá-los logo também.
A vida retomou à rotina anterior, contudo faltava-lhes a visita à cidade onde pretendiam colher informações, mas a oportunidade ainda não havia chegado e mais de um mês se passara da morte da mãe.
Entretanto, o que se deseja se espera, se sabemos adequar a nossa ansiedade às oportunidades, e eles foram se preparando, até que o dia em que puderam realizar a viagem, chegou.
Algum sacrifício foi realizado, tanto em relação às obrigações de cada um, quanto às despesas que seriam obrigados a fazer, mas o que poderiam obter compensaria qualquer sacrifício.
Depois de algumas horas de viagem, chegaram ao local, e, conforme haviam combinado, pois não conheciam ninguém, procurariam, em primeiro lugar, um posto policial onde pudessem, com certeza, obter algumas informações, para depois partir para as investigações.
Em razão do próprio estilo de vida que o seu pai adoptara, estranho e incompreensível para muitos, ele passara, não obstante “desconhecido”, a ser conhecido de todos.
Quando expuseram o que desejavam, o policial que os atendeu, disse-lhes:
— Sei do que se trata e conheci a pessoa a quem se refere, mas vou levá-los a alguém que poderá lhes dar mais informações.
Sabedor de quem havia se locomovido até a outra cidade para levar os documentos e quiçá, colher informações, levou-os até ele, em uma outra sala do posto policial, anunciando-os:
— Estes jovens desejam conversar com o senhor a respeito do Desconhecido.
Ao ouvir aquela alcunha os dois estranharam, mas nada disseram.
— Sentem-se!
A conversa pode ser longa!
Antes, porém, preciso saber o que vocês eram dele.
— Somos filhos do senhor Geraldo de Alcântara, não sei se falamos da mesma pessoa.
— Quando estive em sua casa, não os vi!
Fui recebido com certa reserva por uma senhora que nada me esclareceu e só me deixou falar quando disse que fora em nome da polícia e ela teria que me ouvir.
Mesmo assim foi muito pouco cordial e dispensou-me logo.
—Mamãe era assim mesmo, sempre irritada e triste.
Faleceu há pouco mais de um mês.
Foi encontrada morta em seu quarto.
Estava doente e nunca nos disse nada.
— Ela era amarga lá, e seu pai, infeliz aqui!
O que houve entre eles para que suas vidas ficassem tão estragadas, para que fossem tão infelizes?
— E por isso que aqui estamos!
Nós também de nada sabemos!
Surpreendeu-nos encontrar o atestado de óbito de papai, com data tão recente, entre os papéis que mamãe guardava, quando ela nos afirmava que ele já havia morrido há muitos anos.
Nós não o conhecemos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 25, 2018 8:19 pm

Não temos nenhuma lembrança dele!
— Muito esquisito!
Eu poderia levá-los a uma senhora que o ajudou bastante, mas de nada adiantaria.
Ela também de nada sabe.
Nem o nome, seu pai revelou.
Chamavam-no - o Desconhecido - alcunha que ele próprio incorporou, com o passar do tempo.
Só soubemos o seu nome quando morreu, pois precisávamos da sua identidade para sepultá-lo e demos uma busca em sua cabana.
— Então papai não trabalhava?
— Sempre viveu da caridade alheia, mas aquela senhora desconfiava que ele deveria ter uma boa educação, pelo que demonstrava.
Soubemos que era engenheiro, pelo diploma entre os seus papéis, os mesmos que entreguei à sua mãe.
— O que nos diz é surpreendente!
Nossa viagem até aqui de nada valeu diante do que pretendíamos, mas nos vem reforçar a convicção de que algo muito sério deve ter havido entre papai e mamãe, para que tivessem sido tão infelizes.
— O que posso dizer-lhes e que aquela senhora me contou, foi que uma vez, quando ele se encontrava já doente e ela insistia para que fosse ao médico, até arranjando um que o consultaria de graça, ele respondeu que nada tinha a fazer aqui, que poderia partir a qualquer hora, e só Deus o julgaria, ninguém mais.
— Isto é importante!
Ele deve ter sido acusado de alguma acção da qual não se julgava culpado.
— Se fosse ante a sociedade, ele teria sido procurado pela polícia.
Deve ser algum ato mais íntimo, mais familiar, até pelo comportamento de sua mãe que revelou muito ódio por ele.
Aqui ele era, apesar de mendigo - desculpe-me dizer assim - muito respeitador e correto.
Nunca ninguém teve a menor queixa dele.
— Onde ele está enterrado?
—Entre aqueles que nada têm a pagar.
A polícia fez o enterro.
— Pode nos levar até lá? - interrogou a jovem.
— Sem dúvida.
Mandarei um policial levá-los.
Pretendem retirá-lo daqui?
— Ainda vamos pensar.
Junto com mamãe é que não devemos pô-lo.
Se estavam separados em vida, cada um infeliz por seu lado, não será agora que deverão ficar juntos.
— Seria melhor deixá-lo aqui. - ponderou a jovem.
Se foi este o lugar que ele escolheu para viver, é aqui que deve ficar.
— Talvez você tenha razão. —'obtemperou o irmão.
Depois da visita à sepultura, os dois irmãos tomaram o rumo de volta.
Nada mais lhes restava fazer naquela cidade.
Algumas novidades para sua curiosidade, eles levavam, mas nenhuma revelação ante o que desejavam.
Se sua mãe era amarga e infeliz, ele não o havia sido menos.
Podemos até dizer que o havia sido muito mais.
Ela permanecera no lar e, conquanto entre lutas, tinha certo conforto, a companhia dos filhos e só não tinha o carinho deles porque ela própria o recusara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 25, 2018 8:19 pm

E, se tivesse sabido perdoar mágoas - se realmente tivessem havido, teria sido mais feliz.
E ele, o que tivera da vida? Nada!
Apenas dificuldades, miséria e solidão.
Como deveria ter sofrido o pobre infeliz!
Ah, se eles tivessem sabido, o rumo da vida do pai teria sido diferente!
Onde ficaram os anseios da sua profissão, se nem o lar possuía mais?
E o amor pelos filhos, como estaria em seu coração?
Como fora o seu viver de privações e mendicância, se possuía uma bela profissão capaz de proporcionar-lhe meios para um viver tranquilo?
Algo grave deveria ter havido e do qual ele era acusado, para dizer que só Deus o julgaria, ninguém mais.
Certamente quem o julgara e fora o responsável pela vida que ele tivera, fora a sua mãe, não havia dúvida.
Ah! Quantas reflexões, quantas suposições e quanta tristeza!
Como uma vida feliz e promissora se transforma, de um momento para outro, por causa da incompreensão? Fosse o que fosse, o pai era uma pessoa digna.
Saíra de casa, expulso, talvez, sem ter levado uma única peça de roupa, abandonado a profissão e vivido da caridade alheia, mantendo-se digno até dentro da infelicidade, e, ainda mais, nem o nome revelara.
Nunca, ninguém o soubera!
Ele era o desconhecido.
Sentir-se-ia assim, um pouco melhor?
Com certeza, no intenso desejo de esquecer, de esquecer e esquecer, quisera esquecer até o nome...
Era uma forma de nunca ser encontrado por ninguém.
Também, quem iria procurá-lo?
Os filhos eram muito pequenos, a esposa o rejeitara e deve tê-lo expulsado; só se fosse algum amigo, algum cliente, e, nas condições em que se encontrava, ninguém iria perder tempo de olhar para seu rosto para reconhecê-lo.
Jamais imaginariam que ele estivesse naquela condição e que atrás de um mendigo se escondia um homem de grande capacidade profissional.
E, sem o nome, mesmo sem reconhecê-lo pessoalmente, ninguém teria meios de apontá-lo.
Fora a vida que ele escolheu, vivendo muito infeliz, porquanto ninguém é feliz trazendo um íntimo tão pesado.
Que não seja de culpas, mas de recordações e de anseios frustrados...
Todo o percurso de volta, tão longo na ida, era pequeno para tantos pensamentos, conjecturas e suposições.
Os dois voltavam calados, mergulhados no próprio íntimo, mas vez por outra um quebrava o silêncio para expor uma suposição, o outro respondia com alguma palavra, concordando, discordando ou colocando outra em seu lugar, e a viagem passou.
Bastante longa e cansativa, mas completou-se.
Quando chegaram a casa era a madrugada de um domingo que se iniciava e propiciaria a ambos a oportunidade do descanso para o recomeço de uma nova semana.
Reingressariam na rotina das obrigações, mas convictos de que nada mais lhes restava procurar para saber o que havia acontecido entre os pais.
Algum dia, se Deus lhes permitisse, teriam toda a verdade, fosse quando fosse, e aí fariam o próprio julgamento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 25, 2018 8:20 pm

4 EM OUTRA DIMENSÃO
Se os filhos nada mais poderiam fazer para descobrir o que acontecera entre os pais, por não se acharem mais entre eles como encarnados, nós, que tratamos também do Espírito e com muito mais interesse pela sua característica de imortalidade diante de um corpo perecível, vamos ao encontro de cada um deles, obedecendo à ordem com que deixaram a existência terrena.
O Desconhecido, como se chamava e como era chamado, nada mais tinha a esconder que o Espírito nada esconde. Por mais anónimo queira passar, ele se revela por inteiro àqueles que o olham com acuidade espiritual e nada é oculto.
O senhor Geraldo, que assim passaremos a chamá-lo, depois de um longo período de sofrimento não só experimentado pela inocência da culpa que lhe imputavam, e pelo que havia acontecido sem que pudesse ter evitado, trazia também um corpo sofrido pelas privações geradas pelo desencanto da vida e pela vontade de também deixar aquela existência de tanto sofrimento.
Por que cuidar da saúde, se a tendo abalada era o melhor recurso para partir mais rapidamente?
Por que permanecer neste mundo de dores e desilusões, de incompreensões e intransigências, se para ele nada mais restava?
Perdera o primogénito adorado e ficara sem a companhia dos outros dois filhos que poderiam, de alguma forma, suavizar a dor que sentia.
Perdera a esposa por quem supunha ser amado, mas compreendia-a.
Ela, pelas suas atitudes, só poderia ter a mente doentia que se fixara num momento de dor, cristalizando-o em seu coração de tal forma que o expulsara de casa, por mais ele lhe explicasse a verdade.
Perdera a profissão para a qual se preparara tanto e lutara para conseguir um lugar ao sol, em meio a todos os que já possuíam um nome de destaque entre os mais capazes.
Perdera tudo, só não perdera a vida, justamente aquela que não mais fazia questão de conservar.
Por isso, quando percebeu que a enfermidade estava tomando conta de seu corpo, ao invés de entristecer-se, alegrou-se.
Retirar-se da vida por si mesmo, ele nunca o quisera - tinha alguma noção de religiosidade e sabia que ninguém deve atentar contra a própria vida sem praticar uma grande infracção diante de Deus.
E, diante de Deus, ele não queria ser culpado de nada.
Mas esse mesmo Deus que presenciara tanto sofrimento sem ter podido evitar que ocorresse - a razão ele não sabia, porque se era Omnipotente, tudo podia - ajudou-o de certa forma.
Sempre encontrou pessoas boas que o auxiliaram e até permitiu que não estivesse sozinho e abandonado em seu barraco, no seu momento extremo, mas diante daquela que sempre o considerara, para que tivesse uma sepultura como todos e para que também encontrassem, após, como de fato ocorreu, a sua própria identidade, que sabia, seria preciso.
Entretanto, tudo isso já passara e ele se encontrava no Mundo Espiritual.
E como estaria?
Os sofrimentos morais que carregamos quando encarnados, embora minando o físico, partem do Espírito, e, se assim ocorre, quando ele deixa o corpo que não mais consegue abrigá-lo, leva os mesmos sofrimentos até então experimentados - as dores, as mágoas, as frustrações.
Por isso deve passar por um tratamento intenso a fim de que, aos poucos, como resultado do esforço e da compreensão, através da ajuda que vai recebendo, esses males possam ir se desfazendo e o Espírito ressurgir mais aliviado, mais confiante e menos sofrido.
Geraldo, após deixar o corpo tão repentinamente à porta da casa daquela senhora, recebeu o auxílio de que se fazia merecedor.
Há tempos já estava sendo observado por um ente que lhe fora muito querido - sua mãe - que desejava ajudá-lo no momento do desprendimento.
E ela, amparando-o dentro do que lhe era possível e permitido, induziu-o ao local de onde deveria partir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 25, 2018 8:20 pm

Assim que se libertou daquele corpo macerado pelo sofrimento, ela, que promovera recursos espirituais para ajudá-la a amparar o filho, recolheu-o e levou-o a um posto socorrista mais próximo à crosta terrestre.
Lá passaria por um período de repouso em sua companhia, para que pudesse, após, ser encaminhado a uma Colónia Espiritual - se Deus permitisse, - a mesma onde ela se encontrava, para continuar a ampará-lo, e onde receberia a complementação do seu tratamento.
Ao contrário, o Espírito daquela que lhe fora esposa e o fizera sofrer tanto pela incompreensão e pela intransigência, ao deixar o corpo imóvel sobre a cama, depois de sentir todo o mal- estar que promovera a sua expulsão, não teve o mesmo destino dele.
Conquanto de moral ilibada, ela nunca soubera o significado da palavra compreensão ao sentir-se atingida de alguma forma, e, não obstante o seu julgamento fosse correto diante de si mesma-, levava no Espírito muitas culpas - não só pelo que imputara ao marido - mas todas as que advieram desta sua atitude.
Passara o resto de seus anos que foram mais de vinte - curtindo a própria dor na qual mergulhara, fazendo sofrer os que a rodeavam a vida toda, negando e recusando carinhos, entendimento e atenções.
Fora cruel consigo mesma pois aniquilou-se para a vida, aniquilando aqueles que dizia amar.
Agora, porém, com o Espírito liberto, ela teria, quando fosse adequado e tivesse capacidade, condições de compreender toda a verdade e oxalá, depois de tê-la, o arrependimento lhe tomasse o Espírito.
Só assim se comprovaria se ainda algum sentimento bom abrigava, e muito
mais fácil seria o seu tratamento.
Mas, até esse momento chegar, muito ainda teria que amargar.
Ela não fora, como o marido, recolhida para o amparo assim que deixara o corpo, e perambulava por muitos lugares, sem saber ainda o que acontecia.
As vezes gritava que queria voltar para casa, que ninguém a tiraria dela, mas, por mais gritasse, por mais se esforçasse, uma força estranha a afastava cada vez mais.
Seus caminhos eram desconhecidos e nada agradáveis.
Sentia que pisava em areias ardentes, mas não sob um Sol causticante e cheio de brilho, pois seus caminhos eram, as mais das vezes, escuros e tenebrosos.
Muitas sombras horrendas por eles transitavam.
Algumas em desespero de dor, outras sarcásticas, e dela aproximavam-se galhofeiras.
Ela corria de medo, sem encontrar nenhum refúgio que a escondesse e lhe desse um pouco de descanso.
Ah, a sua casa limpa, o seu quarto - o seu refúgio preferido - onde estariam?
O que havia acontecido para que tivesse uma transformação tão grande?
E os filhos?
Ah, lembrou-se dos filhos, pela primeira vez, com saudade.
Onde estariam?
Por que a deixaram naquela situação de abandono?
Muito tempo permaneceu nestas condições.
Quando alguma entidade se aproximava, não as sarcásticas nem as tão horrendas, e lhe falava, querendo uma companhia para desabafar suas dores a alguém que a ajudasse a entender melhor o que estava acontecendo, ela expulsava-a sem lhe dar atenção.
Demonstrava as mesmas atitudes de quando encarnada, mas agora de modo mais intenso, pelo sofrimento que era muito maior.
Não sabia há quanto tempo permanecia desse jeito, mas podemos dizer, era tanto que, se fosse levada de volta ao lar terreno, não o reconheceria mais.
A filha havia concluído seus estudos e trabalhava na sua profissão.
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