LUZ ESPÍRITA
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Espiritismo Uma Religião Brasileira / José Luís dos Santos

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:20 am

Espiritismo  Uma Religião Brasileira
José Luís dos Santos


SUMÁRIO
Introdução..

1 - No começo, a França
As mesas girantes
A sistematização de Kardec
O sistema espírita
Chegada ao Brasil

2 - O espiritismo num ambiente católico
Conflito religioso
Penetração das ideias espíritas
Grupos, centros e federação

3 - Ciência ou religião?
A corrente rustanista
A Federação Espírita Brasileira
O trabalho de divulgação
O espiritismo e a cura
Relações com a homeopatia
Com a República, limitações
Os rumos do espiritismo no Brasil

4 - O espiritismo se dissemina
A questão da Bíblia
Características da expansão
Difusão pelo país
O espiritismo em São Paulo
Uma expansão de base interiorana
O apóstolo de Matão

5 - Expressões do movimento espírita
A psicografia
O espiritismo e a lei
Espiritismo e baixo espiritismo
Espiritismo, medicina e loucura
O apoio ao esperanto

6 - A delimitação do movimento
Fenómenos espíritas
Um médium de sucesso
O movimento federativo
Rupturas no movimento espírita
Por uma base comum


Última edição por Ave sem Ninho em Qua Mar 20, 2024 11:21 am, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:20 am

7 - O espiritismo se consolida
A unificação espírita
Particularidades da unificação espírita
As operações de Arigó
A importância de Francisco Xavier

8 - Desafios da unificação
Autonomia e desvios
Movimento com referência comum
Contestações ao espiritismo
Do Brasil para o mundo

9 - Conclusão: A presença do espiritismo
O espiritismo e o Brasil contemporâneo
Bases sociais do espiritismo
Inserção do espiritismo

Cronologia
Sugestões de leitura
Bibliografia
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:21 am

INTRODUÇÃO
O espiritismo tem hoje lugar assegurado no universo religioso brasileiro.
O movimento espírita está consolidado, possui uma imagem de respeitabilidade e consegue exercer uma influência que vai muito além do âmbito de suas instituições espíritas. Noções que lhe são básicas, como a de possibilidade de comunicação com os espíritos ou a de reencarnação, já estão bastante difundidas.
O sucesso do espiritismo num país que durante séculos foi oficialmente católico é fruto de uma história que começou na segunda metade do século XIX, quando as obras de um francês com pseudónimo Allan Kardec começaram a circular entre membros da elite brasileira.
Actualmente, o nome Allan Kardec é aqui bastante conhecido. Muitos brasileiros até o receberam no Registro Civil, e há lugares com essa denominação. Um levantamento publicado no Anuário Espírita de 1979 trazia uma grande lista de logradouros públicos com nomes relacionados ao espiritismo. Entre os personagens brasileiros ligados ao movimento espírita, Bezerra de Menezes era o que mais aparecia, com uma avenida, uma praça, 18 ruas e uma travessa localizadas em cidades brasileiras. Já Allan Kardec consta como nome de sete praças, cinco avenidas e 50 ruas em diversos Estados.
No caso de Kardec trata-se de uma homenagem expressiva a um personagem que, em seu país de origem, é ainda pouco conhecido. Ela decorre do fato de o espiritismo ter se expandido no Brasil como em nenhuma outra parte do mundo e utilizar-se das obras de Kardec como referência básica.
Há uma escassez de dados estatísticos sobre o espiritismo brasileiro.
Segundo a revista Veja e o Instituto Gallup, em 1990 seriam 6,9 milhões os espíritas em nosso país. Uma das características do espiritismo no Brasil é a aceitação de seus princípios e o respeito a suas práticas por uma parcela da população muito maior do que a dos adeptos que se consideram espíritas.
Milhares de centros espíritas se espalham por todo o país, havendo também inúmeros grupos familiares que se dedicam ao espiritismo sem a preocupação de organizar para tanto uma sociedade civil com sede e estatuto, como é o caso dos centros. O movimento espírita conta, entre suas muitas obras, com orfanatos, asilos, hospitais em várias partes do país e dispõe de uma forte infra-estrutura de editoras, jornais e radiodifusão.
Médiuns espíritas importantes, como o mineiro Francisco Xavier e o baiano Divaldo Franco, são figuras de expressão nacional.
Ao longo de sua história no Brasil, o espiritismo soube elaborar soluções para as dificuldades que enfrentou, tanto as internas ao próprio movimento quanto as emanadas de suas relações com outros sectores da vida social. Ao fazê-lo, produziu maneiras específicas, brasileiras, de ser espírita.
É sobre isso que versarão as próximas páginas, e com uma preocupação adicional: a de que, discutindo a trajectória do espiritismo, seja possível entendermos um pouco mais a dinâmica cultural brasileira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:21 am

1 - No COMEÇO, A FRANÇA
Nascido na França, Hippolyte Leon Denizard Rivail (1804-1869) fez carreira como professor e autor de livros escolares. Ao iniciar suas publicações espíritas adoptou o pseudónimo de Allan Kardec, que teria sido seu nome numa existência anterior. Kardec apresentou ao mundo o que chamou de terceira revelação, em sequência às de Moisés e Cristo, e registrou numa série de livros o que lhe teria sido informado por espíritos superiores como fundamento de uma nova religião, uma nova ciência e uma nova filosofia.
Esses livros deram origem ao que é conhecido como Codificação Espírita, e o primeiro deles, O livro dos espíritos, foi publicado em Paris no ano de 1857.
Procedimentos visando a comunicação com espíritos eram então bastante comuns nos meios burgueses da França, tendo lá chegado por intermédio de missões de espiritualistas americanos, que os disseminaram também em outros países da Europa.
A suposição de que era possível comunicar-se com espíritos não era nova nem original, como a literatura dos povos antigos o atestava.
A hegemonia do cristianismo fizera com que, na Europa, essa ideia perdesse a pujança que havia tido no passado. Ela, contudo, persistia com força em variados povos e culturas de todo o mundo, fossem aldeias da África e das Américas ou cidades da índia e da China, com os quais os europeus mantinham contacto por meio do comércio e da dominação colonial.

As MESAS GIRANTES
0 que havia de novo em meados do século XIX na Europa era a intensidade com que se buscava a comunicação com os espíritos e a agitação que isso ocasionara nos ambientes frequentados pela burguesia.
Costuma-se atribuir a origem de todo esse movimento a fenómenos ocorridos em 1848 em Hydesville. Estados Unidos, quando as irmãs Margaret e Katie Fox começaram a desenvolver mecanismos para a comunicação com os espíritos e a interpretar pancadas e ruídos sem explicação plausível atribuídos a eles. Seguiu-se, a partir de então, um grande interesse por esses fenómenos, cuja manifestação mais frequente (e popular) na década de 1850 se dava por meio das chamadas mesas girantes.)
Em sua forma mais comum, um grupo de pessoas se reunia em torno de uma mesa, colocava as mãos sobre ela e se concentrava. A mesa deslocava-se, supunha-se, devido à manifestação de espíritos.
Entendia-se também que a partir do movimento da mesa era possível receber informações e respostas a questões formuladas aos espíritos.
A mera curiosidade ou o desejo de se comunicar com pessoas falecidas atraíam muita gente a essa prática.

A SISTEMATIZAÇÃO DE KARDEC
O livro dos espíritos foi apresentado como resultado de um trabalho metódico de interrogação dos espíritos em sessões realizadas por Kardec, em sua própria residência, e um pequeno grupo. Conteria assim um conjunto de verdades comunicadas directamente do mundo espiritual por intermédio de vários médiuns, ou seja, pessoas por meio das quais os espíritos se manifestavam.
Esse material foi compilado e organizado por Kardec, que enfatizava serem os conhecimentos que ele sistematizara oriundos de espíritos como "São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luís, O Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin, Swedenborg".
A partir de sua publicação, e com a liderança de Kardec, o movimento espírita deslanchou na França e atingiu outros países. O trabalho de Kardec se intensificou, e passaram a colaborar com ele vários novos médiuns.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:21 am

MÉDIUNS PSICÓGRAFOS
Muito importantes na actividade de construção do movimento espírita foram os médiuns psicógrafos, aqueles que recebiam por escrito as manifestações espirituais: em transe e segurando um lápis, o médium escrevia, como explica Kardec, "por um impulso involuntário e quase febril", as comunicações dos espíritos. Tal procedimento permitia maior flexibilidade em relação a muitos dos complicados sistemas que haviam sido elaborados para esse tipo de comunicação e, segundo esse autor, foi sugerido pelos próprios espíritos.
A busca de comunicação com espíritos passava, pois, a prescindir das mesas girantes. A mesa, porém, manteve sua associação com o espiritismo. Era caracteristicamente em torno de uma mesa que os médiuns se reuniam em suas sessões, e assim continua sendo no Brasil.
Outras obras de Kardec se seguiram, como O livro dos médiuns, em 1861, e O evangelho segundo o espiritismo, em 1864. Todos esses livros continuam a ser constantemente publicados no Brasil — foram e ainda são de importância capital para o movimento espírita brasileiro.

0 SISTEMA ESPÍRITA
A ideia que sustenta os trabalhos de Kardec é a de que os espíritos existem antes e depois da vida terrena. Em decorrência, desaparece para os espíritas a concepção estrita de morte: esta não seria mais do que a circunstância pela qual o espirito abandona definitivamente o corpo físico de sua existência na Terra, e a isso dão o nome de desencarnação.
Os livros de Kardec supõem também que os espíritos podem ter repetidas existências físicas. Na época em que Kardec escreveu suas obras, o termo metempsicose era específico para dar conta dessa concepção. Kardec o discute em O livro dos espíritos e rejeita-o na medida em que esse dizia respeito a concepções de origem egípcia, grega e hindu das quais discordava. Assim, a metempsicose, tal como então entendida, supunha que o espírito podia, em sucessivas vidas, transmigrar entre homens e animais, ideia contra a qual Kardec se opunha decididamente.
Preferiu usar o termo reencarnação para dar conta dessa ideia, com o sentido da volta do espírito à carne, mas sempre no âmbito da existência humana.
Para Kardec, a relação dos espíritos com a Terra não se dava somente por suas encarnações (nascimentos; assunção da vida carnal por parte de um espírito) e reencarnações. De facto, suas interferências seriam freqüentes na vida cotidiana, afectando para o bem ou para o mal a saúde e a existência dos terrestres. A comunicação com os espíritos era vista como possível e desejável, porque permitiria enfrentar influências maléficas e obter apoio e orientação de espíritos considerados evoluídos — a própria doutrina espírita era, aliás, apresentada como fruto dessa orientação.
Boa parte da preocupação inicial de Kardec foi estabelecer um método de comunicação com os espíritos, à maneira da ciência experimental, que pudesse ser repetido e que colocasse sob controlo possíveis distorções das mensagens dos espíritos. Daí a importância que deu aos médiuns, que considerava intermediários e veículos das manifestações dos espíritos e os quais foram tema de seu segundo trabalho, O livro dos médiuns.
Esse sistema de pensamento organizava-se tendo por eixo uma concepção evolucionista: os espíritos se hierarquizariam segundo seus méritos e evolução moral. A Terra era vista como um planeta de provação e as reencarnações como etapas no caminho da evolução espiritual.
Essa evolução era entendida como de carácter progressivo, sem retrocessos, e o progresso conduziria à perfeição, cujo ritmo ficaria na dependência do uso que cada qual fizesse de seu livre-arbítrio ao longo das sucessivas existências.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:22 am

EVOLUCIONISMO
O eixo evolucionista era, então, marca de grande actualidade da proposta kardecista. De facto, o evolucionismo era o chão comum das principais teorias científicas do século XIX. Apresentava a vida e a humanidade numa sequência de fases e etapas que vinham desde aquela que supunham a mais antiga.
Frequentemente, as teorias evolucionistas tinham as formas primitivas por mais rústicas ou inferiores que as que lhes sucediam. As classes e nações dominantes interpretavam o evolucionismo a sua maneira, usando-o para justificar a dominação e o colonialismo. A noção de avanço e superioridade ao longo das escalas de evolução era muito comum nas teorias sobre a cultura e a sociedade; no espiritismo, então, ela é fundamental.
No Brasil foi forte a influência de autores evolucionistas no século XIX, continuando pelas primeiras décadas do século XX. E notória a presença, na formação da República, dos seguidores do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), criador do positivismo e tido como o pai da sociologia. A medicina brasileira foi influenciada pela obra do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), autor de uma teoria da evolução que revolucionou as ciências biológicas no século XIX. Para o direito brasileiro, por sua vez, foram importantes as ideias do filósofo inglês Herbert Spencer (18201903), autor de um sistema de evolução que se aplicava a todos os tipos de fenómenos conhecidos. No movimento socialista, noções de evolução eram também comuns.
Quanto ao espiritismo, este trouxe a ideia de evolução para as concepções espirituais e de vida pós-morte.

ESPIRITISMO E CRISTIANISMO
Os livros de Kardec traziam uma aproximação com o cristianismo, notadamente com os valores morais presentes nos evangelhos.
Isso se tornou bem marcado na obra O evangelho segundo o espiritismo.
A relação com o cristianismo revelou-se importante para as concepções espíritas no Brasil em dois aspectos principais. Por um lado, o movimento espírita desenvolveu uma forte preocupação com a caridade.
Por outro, o espiritismo marcou sua pregação por uma acentuada ênfase na moralidade, tomando o cristianismo como referência para normas e condutas humanas.
Ao mesmo tempo, diferenças profundas separam o espiritismo e o cristianismo. O primeiro não aceita que Jesus Cristo seja um ser divino, nem postula que os homens possam encontrar a salvação de suas almas por meio da aceitação de Cristo e da graça de Deus, como o fazem os cristãos.
De facto, o espiritismo afirma a possibilidade de aperfeiçoamento do espírito — termo preferível a "alma" — por meio da evolução moral obtida pelos esforços de cada um. Separam-nos, também, as ideias de reencarnação e da existência do espírito antes do início de uma vida, que são importantes para o espiritismo. Além do mais, o catolicismo condena explicitamente a tentativa de comunicação com as almas dos mortos.

A CIÊNCIA DE KARDEC
As obras de Kardec procuravam apresentar as ideias de maneira clara, argumentativa, e construir um sistema lógico a partir da aceitação da existência dos espíritos. Kardec queria contrapor à ciência dominante, que chamava de materialista, uma outra ciência, que considerasse a existência dos espíritos como realidade objectiva, sujeita inclusive a experimentações controladas.

CHEGADA AO BRASIL
Esses livros, essas ideias e as práticas do espiritismo chegaram da França ao Brasil fazendo o mesmo caminho que já tinha servido para aqui disseminar as mesas girantes, das quais no país já se dava notícia em 1853. O interesse pelo espiritismo foi além das mesas girantes e tampouco ficou restrito aos membros da colónia francesa então existente no Rio de Janeiro, difundindo-se por sectores das elites do país, notadamente na capital do Império e na Bahia.
O primeiro núcleo espírita activo no país organizou-se na Bahia, na década de 1860, sob a liderança de Teles de Menezes, e foi concebido não só para estudar e praticar o espiritismo, mas também para difundi-lo. As actividades organizadas do movimento espírita não pararam desde então: o espiritismo cresceu, tornando-se bem conhecido no Brasil, e a divulgação das ideias espíritas tem sido feita de maneira incessante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:22 am

2 - 0 ESPIRITISMO NUM AMBIENTE CATÓLICO
Por muitas décadas, desde sua chegada ao Brasil, o espiritismo cresceu num ambiente maciçamente católico.
As relações entre a hierarquia católica e a administração do Império eram tensas na segunda metade do século XIX. Eclodiam conflitos quando sectores da Igreja resistiam ao que consideravam ingerência do governo civil nos assuntos eclesiásticos, culminando na chamada Questão*Religiosa (1872-1875). O catolicismo continuava, no entanto, a usufruir dos privilégios de ser a religião oficial do país. Assim, estava estabelecido no artigo 5º da primeira Constituição do Brasil, a de 1824: "A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império".
Entretanto, o catolicismo não era a única religião aqui admitida.
A mesma Constituição, e no mesmo artigo que lhe garantira o status de oficial, abrira, com restrições, a possibilidade de que outros credos aqui se instalassem. Os interessados teriam de fazê-lo de maneira discreta, conduzindo suas práticas em lugares sem identificação externa e evitando a expansão por proselitismo (actividade de converter alguém a uma seita, religião, ideia ou sistema).
Esses dispositivos beneficiaram principalmente os protestantes que emigraram como trabalhadores da Europa para o Brasil, aos quais era permitido que continuassem com as concepções e os cultos religiosos de seus países de origem. Naquela época, o protestantismo ficou quase que inteiramente restrito a localidades de imigrantes ou, quando muito, a colónias de estrangeiros das principais cidades do país. Era ténue sua presença na população brasileira tradicional e não constituía uma ameaça ao catolicismo.
Por outro lado, e à margem dessas garantias legais, as tradições religiosas de origem africana estavam vivas no país e na maior parte da população brasileira, que era constituída de negros e mulatos. A despeito da base social numerosa, essas tradições religiosas portavam a marca da escravidão e o peso da exclusão a ela relacionada. Se é facto que, apesar disso, as elites sabiam dessas concepções e das práticas a elas associadas, também é verdade que estas não tinham então condições de ameaçar directamente o catolicismo e sua hierarquia.
A introdução do espiritismo originou uma situação bem diferente: ocorreu na população branca, de classe dominante, nos mais poderosos centros políticos e administrativos do país (Salvador e Rio de Janeiro). Apesar de não haver consenso entre os seguidores do espiritismo sobre se deveriam enfatizá-lo como ciência ou religião, a hierarquia católica deu logo sinal de que se tratava de uma ameaça.

CONFLITO RELIGIOSO
As primeiras escaramuças deram-se assim que o espiritismo assentou as bases iniciais de sua organização. O arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, e também presidente do Instituto Histórico da Bahia, D. Manoel Joaquim da Silveira, publicou uma pastoral em 1867 criticando os "erros perniciosos do espiritismo". D. Silveira via o espiritismo como "essencialmente religioso, ou antes, (...) um atentado contra a Religião Católica".
Ele estava preocupado com a propaganda espírita na Bahia, que merecera registo do próprio Allan Kardec, em 1865, em sua revista espírita. Ainda em 1865, Teles de Menezes, membro do mesmo Instituto Histórico da Bahia, havia fundado um grupo familiar de espiritismo — a primeira associação espírita do país — e, em 1866, traduzira parte da obra O livro dos espíritos, de Kardec, e a fizera publicar em Salvador.
O próprio Teles de Menezes respondeu à pastoral com uma carta aberta defendendo a "preexistência, reencarnação e manifestação dos espíritos".
As actividades espíritas na Bahia tiveram seguimento e as dificuldades com a Igreja Católica também. Em 1869. o mesmo Teles de Menezes lançou a primeira publicação periódica da história do espiritismo no Brasil, intitulada Eco de Além-Túmulo.
Em 1871. pretendeu o grupo de Menezes receber registo formal para sua associação religiosa, agora intitulada Sociedade Espírita Brasileira. O registro foi negado por se entender que a sociedade concorreria com a Igreja Católica.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:23 am

Para driblar esse obstáculo, os espíritas baianos fundaram a Associação Espirítica Brasileira, que, apresentada como uma associação científica, pôde ser registada.
A confrontação entre o movimento espírita e a Igreja Católica que a organização do espiritismo na Bahia revelou permaneceu até o final do Império e prolongou-se após a proclamação da República.
Foram claras as condições em que se estabeleceu esse conflito.
Afinal, o espiritismo se implantou no que era então o núcleo dominante da população católica; criou bases sólidas no período final do Império: beneficiou-se da retracção que o catolicismo vivia, uma vez que este ia perdendo a relação privilegiada que mantinha com o Estado no Brasil. Não só as relações da hierarquia católica com o Estado eram difíceis, como as elites políticas debatiam a separação entre a Igreja e o Estado, o que viria a ocorrer com a República.
No âmbito estritamente religioso das últimas décadas do século XIX, era o espiritismo a ameaça religiosa mais visível para a hierarquia católica. Depois de Salvador, o movimento espírita começou a se organizar na capital do Império, na década de 1870, e o fez com grande dinamismo, estabelecendo sociedades espíritas e difundindo suas ideias. A Igreja reagiu de púlpito e através de suas publicações. O movimento já estava bem assentado quando o bispo do Rio de Janeiro, em 1882, registou formalmente a ameaça, lançando uma pastoral em que condenava o espiritismo. O médico António Pinheiro Guedes retrucou com artigos dirigidos Ao episcopado brasileiro, os quais serviram de base para a criação, em 1883, do jornal espírita O Reformador, até hoje publicado.
Embora o núcleo dinâmico do espiritismo estivesse então no Rio de Janeiro, outros grupos se desenvolviam em várias partes do país, causando preocupação aos católicos. Assim, já em 1889, um documento do bispado de Mariana, Minas Gerais, atacava o espiritismo e alertava para seus perigos. Tachava-o de pior "mil vezes que seca e fome", definindo-o como "culto prestado ao demónio".

PENETRAÇÃO DAS IDEIAS ESPÍRITAS
As concepções espíritas que tanta repulsa causavam à hierarquia católica entraram no Brasil registadas em livros e circularam de início em grupos restritos da elite brasileira.
A habilidade de ler e a condição de comprar livros eram privilégios de pequena parte da população do país; menor ainda era o circuito em que novas ideias e autores eram debatidos.
A proposta de uma religião racional, baseada em textos organizados sistematicamente e atenta às tendências do conhecimento da época, terá contribuído para sua aceitação por sectores da elite que tinham uma preocupação constante com o que ocorria na Europa.

ESPIRITISMO E POSITIVISMO
A despeito dessa ênfase na ciência e na razão, importa assinalar que a proposta espírita incorporava, e até realçava, o mundo do sobrenatural.
E relevante fazer aqui um contraponto com o positivismo, inspirado nas obras de um outro francês, Auguste Comte, e que da mesma forma se propagava em sectores das elites brasileiras da segunda metade do século XIX. O positivismo propunha uma síntese universal, calcada na razão e no conhecimento experimental. As crenças
religiosas, a superstição e o culto ao mistério eram então tidos como equívocos característicos dos dois primeiros estágios em que se dividiria a humanidade — o teológico e o metafísico —, a serem superados no terceiro e último — o estágio positivo. As condenações dos positivistas brasileiros eram explícitas em relação às concepções e práticas do espiritismo, que classificavam como uma seita mágica.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:23 am

SINTONIA CULTURAL
O sucesso do espiritismo no Brasil está claramente associado a sua ênfase no mundo dos espíritos, cujo acesso propunha colocar ao alcance de seus adeptos por meio de suas sessões. Pode-se mesmo supor uma predisposição cultural para aceitar tais concepções. Assim, as ideias de mediunidade e de comunicação com espíritos podiam ser assimiladas a aspectos da influência africana e indígena na formação do Brasil. Acresce que o próprio catolicismo apresentava-se de forma heterogénea no Brasil, com muito lugar para o inexplicável, o fenomenal, o milagroso, no que dizia respeito às almas.
E a partir desse condicionamento cultural mais amplo que se pode entender como o espiritismo foi crescendo para além dos pequenos grupos nos quais suas concepções foram primeiro introduzidas.
Até mesmo as reuniões espíritas podem ter tido antecedentes no país. Pelo menos é o que sugere um documento procedente da Bahia, publicado em fac-símile no Anuário Espírita de 1967. Nele, um juiz municipal do Segundo Reinado relata as providências que tomara ao ser informado que no distrito da Mata de São João se repetiam "reuniões nocturnas em casa certa a pretexto de se ouvirem revelações das almas dos mortos que se fingem aparecer com número crescido de concorrentes...".
Isso foi em 1845. Os fenómenos de Hydesville, Estados Unidos, que são tidos por marco inicial do movimento espírita, só começaram em 1848.

GRUPOS, CENTROS E FEDERAÇÃO
A implantação do espiritismo dependeu de iniciativas isoladas de grupos discretos, tratando da própria organização interna, definindo cada qual seus modos de actuação. Eram eles que cuidavam da arregimentação de novos adeptos e estabeleciam suas metas e actividades.
Não havia uma estrutura que condicionasse o desenvolvimento das sessões nem o funcionamento dos núcleos que foram se formando; para tanto, era nas obras de Kardec que se buscava inspiração.
A tendência ao trabalho autónomo dos núcleos espíritas era reiterada pela importância atribuída à mediunidade e à maneira como esta foi concebida por Kardec. A mediunidade permitiria o acesso organizado ao mundo espiritual e poderia ser trabalhada e aperfeiçoada, mas era tida antes de tudo como um atributo individual.
A doutrina espírita entende que a comunicação com os espíritos tem que ver tanto com os médiuns quanto com os próprios espíritos, e que as relações que em cada caso se estabelecem entre eles definem as características específicas de cada núcleo. Entende ainda que os benefícios das sessões espíritas dependem da evolução tanto dos espíritos quanto dos espíritas e da deliberação de cada qual em se aperfeiçoar. Essas concepções limitavam desde o início a possibilidade de controlo externo e formalizado das actividades dos núcleos espíritas.
Os primeiros grupos organizaram-se de maneira familiar, reunindo parentes e conhecidos para a discussão de textos e questões espíritas e para a realização de sessões em que se procurava comunicação com os espíritos. Esse tipo de associação permanece até o presente. Não raro, tais grupos se organizam em torno de uma liderança carismática, seja por suas habilidades dirigentes, seja por sua condição de médium, e frequentemente por ambos os motivos.
Essa é a origem mais corriqueira dos centros espíritas no Brasil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 11:24 am

3 - CIÊNCIA OU RELIGIÃO?
Do mesmo modo que na Bahia, foi de um grupo de estudiosos dos fenómenos espíritas que surgiu a primeira sociedade organizada do Rio de Janeiro, a segunda do país, o Grupo Espírita Confúcio, cuja directoria foi empossada em 1873, contando com a participação de membros expressivos das camadas dominantes do Rio de Janeiro.
Vários grupos então se sucederam no Rio, em consequência tanto da expansão do número de adeptos quanto das disputas internas sobre a direcção que deveria ser dada ao movimento espírita. Opunham-se em especial os que pretendiam dar um status de ciência para o espiritismo e os que enfatizavam sua dimensão religiosa. Os mais religiosos eram tachados de místicos pelos adversários internos.
Essa polarização conduzia a ênfases diferentes nas práticas espíritas.
A tendência científica favorecia as pesquisas de fenómenos espíritas e as experimentações controladas envolvendo as manifestações espirituais. A tendência religiosa preocupava-se com o recebimento de mensagens e instruções espirituais voltadas para o aperfeiçoamento moral.
Nessa dinâmica surgiram outras associações. Importante foi a Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade, dissidência do Grupo Confúcio. Tratava-se de um agrupamento de orientação religiosa, até que foi dominado pela ala científica, que mudou seu nome para Sociedade Académica Deus, Cristo e Caridade. Os espíritas de orientação religiosa, ao abandonarem essa sociedade, fundaram, por sua vez, outras, como a Congregação Anjo Ismael e o Grupo Espírita Caridade.

A CORRENTE RUSTANISTA
Outros grupos se formaram.
Era comum que tivessem vida efémera, com a estabilidade comprometida por divergências internas.
Dentro da corrente religiosa, uma nova dissensão se estabeleceu, visto que uma parte dela acrescentava a Kardec as concepções de outro espírita francês, Jean Baptiste Roustaing, cuja obra principal, Os quatro evangelhos, publicada em 1866. não fora negada nem aceita por Kardec, se bem que este criticara a concepção de Roustaing a respeito de Cristo.
Esse ponto específico foi magnificado no Brasil e levou os kardecistas brasileiros a se oporem com rigor aos adeptos das ideias de Roustaing.
A divergência principal dizia respeito à natureza do corpo de Cristo. Para ambas as correntes.
Cristo não era Deus, mas um espírito extremamente evoluído, um espírito que alcançara a perfeição e que desempenhara entre os homens uma missão especial, a de colocá-los no caminho da evolução espiritual. Os kardecistas consideravam que esse espírito vivera como homem na Terra. Já para os rustanistas (seguidores de Roustaing), Jesus não tivera um corpo físico. Para eles não faria sentido um espírito perfeito ter uma existência carnal na Terra, lugar de provação e expiação: o corpo de Cristo fora aparente, constituído de fluido, que para os espíritas é um elemento universal, intermediário entre a matéria e o espírito.
Desse modo, Jesus pudera viver entre os homens sem estar em contradição com a perfeição que já havia alcançado. Os kardecistas consideravam que essa concepção do corpo de Cristo apelava para o sobrenatural e dava um carácter místico à religião espírita.
Para defender e propagar suas ideias, os adeptos de Roustaing produziram obras de impacto na época. Bittencourt Sampaio, que sugeria ter escrito por inspiração espiritual, publicou em 1882 A divina epopeia de João Evangelista com uma primeira parte em decassílabos soltos e uma segunda que a interpretava de acordo com a doutrina do espiritismo.
António Luís Saião publicou em 1893 um grosso volume com o título Trabalhos espíritas, em que, à semelhança do método de Kardec, relatava o resultado de uma série de comunicações espirituais obtida nos trabalhos de seu grupo espírita. Em 1897 publicou outro livro: Estudos dos evangelhos.
Todos esses trabalhos sintonizavam com as ideias de Roustaing, as quais, reiteravam, tinham apoio no plano espiritual.
Essas obras eram, de facto, o produto intelectual de membros da tendência religiosa que seguia o rustanismo (doutrina de Roustaing), organizados no Grupo dos Humildes, depois conhecido como Grupo Ismael.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:43 pm

A FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA
Se a proliferação de núcleos favorecia a expansão do espiritismo, suas divergências internas enfraqueciam-no num ambiente que continuava hostil e em que o catolicismo predominava.
A constatação dessa fragilidade levou os espíritas a proporem uma entidade que a todos representasse.
Assim, em 1884, dois anos após a pastoral do bispo do Rio de Janeiro, foi criada na capital do Império a Federação Espírita Brasileira (FEB), com a expectativa de filiar todos os grupos e tendências espíritas, independentemente de suas divergências.
A intenção da Federação Espírita Brasileira era a de representar não apenas os grupos espíritas do Rio de Janeiro. Sediada na capital política e mais importante cidade brasileira da época, a Federação pretendia ser a representante do espiritismo no Brasil. Havia então notícias de iniciativas espíritas em várias partes do país.
O projecto era ambicioso e enfrentava desde logo uma dificuldade: como dar uma direcção unificada ao movimento se os núcleos espíritas eram autónomos?
Com a criação da FEB inaugurou-se também esta que se tornaria uma questão crucial do movimento espírita brasileiro.
Um passo importante para equacioná-la foi tentar definir qual o modelo de representação do espiritismo.
Isso foi feito num encontro do movimento espírita do Rio de Janeiro realizado no começo de 1889. Decidiu-se que o espiritismo brasileiro seria organizado numa base federativa, como aliás o nome da FEB já sugeria.
A ideia de organização federativa das províncias, em oposição à centralização da monarquia, frequentava na época os debates a respeito do futuro do Brasil. Era essa a proposta que os republicanos defendiam para o país. Se bem o imperador acabasse por aceitá-la, as forças políticas que sustentavam a monarquia eram. no geral, avessas à ideia.
No movimento espírita era comum a presença de pessoas comprometidas com o liberalismo e com as ideias republicanas, e muitos de seus líderes registavam participação na vida política brasileira.
Assim, a tradução e a adaptação para o movimento espírita de uma proposta sobre o futuro político do país não eram motivo de estranheza.

BEZERRA DE MENEZES (1831-1900)
Um líder que se encaixava nesse perfil de participação política era Bezerra de Menezes, que, aliás, presidia a Federação Espírita Brasileira na época da decisão federativa. Conhecido médico, político do Partido Liberal e empresário, ele aderiu publicamente ao movimento espírita em 1886, o que causou grande impacto nos círculos em que era conhecido.
Bezerra de Menezes é hoje tido como o mais importante espírita brasileiro. Ao se converter, jogara o peso de sua influência a favor dos que propugnavam por uma relação decisiva entre o espiritismo e o cristianismo. Não se preocupava com o chamado lado científico do espiritismo, considerando desnecessários seus experimentos. Sintonizado com as tendências mais religiosas do movimento, era adepto da obra de Roustaing.
À época em que começou a participar activamente do movimento espírita, eram fortes as disputas entre as tendências. A despeito da decisão favorável à unificação federativa do movimento, com a qual ele havia pessoalmente se envolvido, as tensões internas fizeram com que esse projecto ficasse no papel. As tendências estavam antes preocupadas que suas ideias prevalecessem na Federação.
A primeira fase de sua participação na direcção da FEB, em 1889, não chegou a completar um ano. Sua liderança foi se esvaziando em consequência das disputas entre os que enfatizavam o aspecto científico do espiritismo e os que, como ele, eram chamados de místicos. A partir de 1891, Bezerra de Menezes entrou num período de afastamento da política interna do espiritismo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:43 pm

0 TRABALHO DE DIVULGAÇÃO
Voltando aos primórdios na Bahia, é importante ressaltar que, logo após criar seu Grupo Espírita, Teles de Menezes tratou de traduzir trechos da obra de Kardec para divulgação no Brasil. Isso foi em 1866. Em 1869. o mesmo grupo fazia surgir o primeiro periódico espírita do país, o Eco de Além-Túmulo.
Esse padrão de formação de núcleos seguido de actividades editoriais repetiu-se depois muitas vezes na história do espiritismo no país. Para o sucesso do movimento não bastava só a base de adeptos organizados em grupos ou só a disponibilidade de livros e outras publicações espíritas. Uma e outra tinham que andar juntas. Na falta de uma estrutura hierárquica comum, era por meio da divulgação de textos básicos do espiritismo e do registo de suas ideias e problemas em periódicos que se procurava garantir um certo grau de concordância interna, evitando-se que os núcleos se apartassem por demais uns dos outros. Pobre de rituais que pudessem ser aprendidos e copiados, o espiritismo esteve desde cedo associado à transmissão escrita de ideias e informações.
Publicar era uma maneira eficiente de contribuir para a ampliação do movimento.
Assim também ocorreu no Rio de Janeiro. Criado em 1873 o Grupo Confúcio, logo, um de seus membros principais, o Dr. Joaquim Carlos Travassos, passou a se dedicar à tradução de obras de Allan Kardec para o português. Até 1876, quatro obras estavam traduzidas e publicadas na capital: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O céu e o inferno e O evangelho segundo o espiritismo. Já em 1875 ocupava-se o Grupo Confúcio do lançamento de um periódico, a Revista Espírita.
No Rio de Janeiro, espíritas e assuntos espíritas tinham certo acesso à imprensa — parte da qual estava comprometida com a crítica ao conservadorismo católico. Bezerra de Menezes protagonizou o mais importante episódio de divulgação de ideias espíritas através da imprensa convencional. Após sua conversão ao espiritismo em 1886, sob o pseudónimo de Max, passou a publicar artigos em O Paiz, jornal de maior circulação na época. Seus textos obtiveram grande repercussão e prosseguiram até 1893.
Anos antes, o movimento espírita já ganhara volume suficiente para lançar seu próprio periódico.
Foi um membro da Sociedade Académica Deus, Cristo e Caridade, o fotógrafo Elias de Souza, que, em 1883, se dispôs a criar o periódico O Reformador. Em 1884, com a fundação da Federação Espírita Brasileira, este passou a ser seu órgão oficial de propaganda e permitia a ligação da Federação com núcleos espíritas espalhados por todo o país. Procurava contentar as várias tendências e tomava posições favoráveis à abolição da escravatura e à liberdade de religião.
A actividade editorial do movimento foi aumentando, com a publicação de títulos de Kardec, além dos já citados, de seus seguidores franceses, de Roustaing, assim como de espíritas brasileiros.
O próprio Bezerra de Menezes produziu obras espíritas, como o romance A casa assombrada e os estudos A loucura sob novo prisma e A doutrina espírita como filosofia teogónica.

0 ESPIRITISMO E A CURA ]
A relação com a cura foi outra forte marca da implantação do espiritismo no Rio de Janeiro e esteve presente na expansão posterior do movimento.
Muitos médicos tiveram importante participação nos primórdios da actividade espírita no Rio de Janeiro, como Joaquim Carlos Travassos, António Pinheiro Guedes, António de Castro Lopes, além de Bezerra de Menezes. Esse fato, sem dúvida, ajudou o espiritismo na busca por afirmação e legitimidade.
A cura espírita, no entanto, tinha aspectos que em muito a diferenciavam da medicina oficial.
Para os seguidores da obra de Kardec, a saúde tinha um componente moral e estava ligada à evolução dos espíritos. A doença, como outros sofrimentos, era entendida como expiação de erros passados, desta e de outras vidas, e também como provação, oportunidade para a evolução espiritual.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:44 pm

Muitas doenças e sofrimentos derivavam, segundo os espíritas, da interferência de espíritos malévolos, acarretando problemas físicos, mentais ou de ordem pessoal. Eram as obsessões. A acção do espiritismo podia então ser dirigida para convencer esses espíritos a abandonarem suas vítimas.
Consideravam que os sofredores podiam receber ajuda de pessoas com dons especiais e de bons espíritos. Assim, explicava Kardec, algumas pessoas eram tidas por capazes de curar "pelo simples toque, pelo olhar, por um gesto mesmo, sem o socorro de nenhuma medicação". Isso poderia ser apenas fruto da "exaltação dos poderes magnéticos" naturais que elas possuíam, não configurando a mediunidade. Frequentemente, porém, esse dom era associado à "intervenção de uma potência oculta".
Esse era o caso dos médiuns curadores, que se supunha agirem por influência espiritual. Eram pessoas definidas como capazes "de curar ou aliviar". Com o auxílio de espíritos, esses médiuns poderiam ampliar seu poder de cura. Essa energia combinada poderia ser transmitida pelos médiuns aos doentes através de orações e da imposição de mãos, ou passes, como costumam chamá-la.
Levar aos doentes e sofredores o benefício da mediunidade era visto como uma missão por meio da qual se podia praticar a caridade, entendida como a mais elevada virtude. A temática da caridade era fundamental para a tendência religiosa do movimento espírita, de modo que desde logo se estabeleceu uma relação próxima entre essa tendência e as actividades de cura.
Essa mediunidade fazia parte de um conjunto de actividades terapêuticas espíritas. A par da acção dos médiuns curadores estavam a desobsessão. ou seja, o convencimento de espíritos malévolos para que deixassem de importunar suas vítimas, e também as recomendações de natureza moral aos doentes, com destaque para a oração, o estudo, os bons pensamentos e intenções e a prática da caridade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:44 pm

UMA MEDIUNIDADE PREFERENCIAL BRASILEIRA
As obras de Allan Kardec contemplavam uma possibilidade diferente de acção espiritual na cura de doenças, na qual os espíritos, manifestando-se através de médiuns, poderiam diagnosticar problemas de saúde e prescrever as medicações adequadas. Os médiuns envolvidos não tinham, assim, qualquer influência nos resultados e nem a acção curadora dependia de qualquer poder próprio.
Para Kardec, eram "simples médiuns escreventes". Um médium desse tipo era especializado em "servir mais facilmente de intérprete para os espíritos".
Os produtos dessa actividade mediúnica eram receitas, daí a denominação de médiuns receitistas dada a eles, os quais, segundo Kardec informava em O livro dos médiuns, eram muito comuns. Em nenhuma parte, porém, esse tipo de mediunidade se expandiria tanto como no Brasil. A acção dos médiuns receitistas foi fundamental para o sucesso da implantação do movimento no país.
Alguns dos médicos que participaram das primeiras décadas do movimento espírita no Rio de Janeiro actuavam como médiuns receitistas, mas nem todo médium receitista era médico; de facto, a maior parte deles não tinha vínculo com a medicina. Joaquim
Carlos Travassos e Bezerra de Menezes foram médicos e receitaram sob inspiração mediúnica, mas outros médiuns receitistas importantes tinham profissões diversas:
Bittencourt Sampaio era advogado, Frederico da Silva Júnior, funcionário público, João Gonçalves Nascimento trabalhava como despachante alfandegário e Domingos Filgueras era segundo-comandante de Guardas da Alfândega.
Esses médiuns atendiam nas sociedades espíritas de que faziam parte, nas próprias residências ou na dos enfermos, ou nos mais variados lugares: Domingos Filgueras chegou a atender numa sala da Alfândega.
Embora a concepção espírita de doença implicasse várias opções de tratamento, a mais concorrida era, sem dúvida, a que envolvia a acção receitista dos médiuns.
Para milhares de pessoas, esse era o modo como o espiritismo se apresentava, tornando-o conhecido para além dos grupos que criavam sociedades espíritas e organizavam sessões mediúnicas com regularidade.
Uma característica que se firmou na prática brasileira desse tipo de mediunidade foi a rapidez na emissão das receitas; para tanto era desnecessário o contacto do paciente com o médium ou mesmo que os problemas físicos dos doentes fossem trazidos até ele. Bastava o nome e o endereço dos necessitados e as receitas eram expedidas.
Apesar de a massa dos pacientes ter se constituído de gente pobre, sem contacto com as obras kardecistas ou rustanistas, membros da elite também recorriam aos médiuns receitistas em busca da cura para suas doenças e de seus familiares. Foi, por exemplo, pelo caminho da cura que chegou ao espiritismo o advogado António Luís Saião, que depois veio a ser líder e intelectual importante dentro do movimento.
A actividade dos médiuns receitistas contribuiu para difundir amplamente o espiritismo na população do Rio de Janeiro. E verdade que essa difusão tomava, às vezes, formas que desagradavam suas lideranças, como a proliferação de médiuns nas populações mais pobres, actuando individualmente, desvinculados do movimento, mas inspirados no sucesso do espiritismo. Sectores de outra forma externos à propaganda espírita tomaram conhecimento, senão de suas concepções, pelo menos de sua existência. Um produto comum, a receita médica, servia para estabelecer uma oposição entre médiuns e médicos na busca da cura de doenças por parte de amplos sectores da população.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:44 pm

RELAÇÕES COM A HOMEOPATIA
A mediunidade receitista manifestava no Rio de Janeiro uma clara preferência pela homeopatia.
Medicamentos homeopáticos eram prescritos e até preparados e distribuídos pelos próprios médiuns.
Espíritos de antigos médicos homeopatas, como Bento Mure e João Vicente Martins, eram tidos como responsáveis pelo trabalho de muitos médiuns. Mure e Martins eram nomes caros ao movimento espírita, por terem estado envolvidos com discussões e experimentações espiritualistas no Rio de Janeiro, antes mesmo da chegada do espiritismo; segundo os espíritas, tinham então manifestado dons mediúnicos e continuavam, a partir do plano espiritual, a desenvolver actividades de apoio ao movimento, prescrevendo por intermédio de médiuns.
Mesmo médicos diplomados e formados na alopatia, como era conhecida a medicina dominante, prescreviam homeopatia quando em estado mediúnico. Era o caso de Bezerra de Menezes.
A associação com a homeopatia, enfatizada pela actuação dos médiuns receitistas, fazia sentido no âmbito das lutas que o espiritismo travava para se firmar perante o mundo oficial do país.
A homeopatia e o espiritismo chegaram ao Brasil vindos da Europa, onde haviam se desenvolvido em épocas e contextos diferentes.
Entre ambos, algumas relações podiam ser estabelecidas.

SAMUEL HAHNEMANN (1745-1843)
A homeopatia deve suas concepções básicas ao médico alemão Samuel Hahnemann, que, a partir de um processo de experimentação com fármacos, desenvolveu um sistema original de diagnóstico e tratamento.
Segundo as conclusões que apresentou em seu livro, Organon, um medicamento que produzisse um determinado conjunto de sintomas em pessoas saudáveis curaria os mesmos sintomas numa pessoa doente.
Isso não tem relação específica com nenhuma concepção espírita.
Não se pode, a partir daí, derivar qualquer implicação de natureza moral, o que é básico para a maneira como os espíritas entendem a saúde e a doença.
Ocorre que Hahnemann também constatou a eficácia das pequenas doses das substâncias medicamentosas, que podiam, de facto, ser tão pequenas que escapavam, e ainda escapam, a qualquer teste físico ou químico de verificação de sua presença nos medicamentos homeopáticos.
Como tal sistema podia ser comprovado empiricamente, segundo Hahnemann, seria então possível conceber a existência de uma dimensão não-material, com a qual estariam associados tanto as substâncias que serviam de base para a produção dos medicamentos da homeopatia quanto os organismos humanos. Essa é a ponte que permite uma aproximação com as concepções espíritas, uma ponte a partir da concepção do medicamento e não através da teoria da cura.
A obra básica da medicina homeopática, o Organon, surgira em 1810, e a homeopatia se difundiu por vários países da Europa, inclusive na França. Hahnemann passou os últimos oito anos de sua vida em Paris, onde, octogenário, faleceu em 1843, mais de uma década antes de o Prof. Rivail, depois Kardec, interessar-se por assuntos espíritas. Mesmo assim, o fundador da homeopatia tem seu nome ligado ao surgimento do espiritismo.
Segundo as informações de Kardec, Hahnemann é um dos espíritos associados a seu trabalho de codificação em livros como O evangelho segundo o espiritismo e Obras póstumas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:45 pm

DIFICULDADES COM AS CONCEPÇÕES DOMINANTES
Tal como o espiritismo, e com antecedência de duas décadas, a homeopatia chegara ao Brasil vinda da França, tendo por pioneiro o médico lionês Benoit Mure, aqui conhecido como Bento Mure.
Em analogia com o espiritismo que se implantou num ambiente católico e hostil, a homeopatia tentou prosperar enfrentando a oposição da medicina alopática, cujas concepções de saúde e doença, procedimentos terapêuticos e medicamentos eram diferentes.
Esses factores favoreceram a criação de vínculos entre espiritismo e homeopatia, que se iniciaram no Rio com os primeiros núcleos espíritas, permaneceram fortes nas primeiras décadas do século XX e ainda persistem.
Nas condições em que isso se deu, o espiritismo teve um benefício adicional dessa associação. É que, com suas actuações no âmbito da cura, o movimento espírita também afrontava o sistema médico oficial. A associação com a homeopatia evitava aprofundar esse enfrentamento, dado que as receitas obtidas com médiuns receitistas comumente não continham medicamentos da medicina dominante.

COM A REPÚBLICA, LIMITAÇÕES
Com a proclamação da República, a liberdade religiosa passou a ser garantida, mas os espíritas viram-se às voltas com novas dificuldades. Se o catolicismo perdeu a condição de religião do Estado, nem por isso deixou de utilizar a formidável força de sua importância na sociedade brasileira para se opor ao espiritismo. Além do mais, as leis da República nascente deixavam o movimento espírita numa situação desconfortável.
A Constituição de 1891, fruto do trabalho de uma Assembleia Constituinte convocada pelo governo provisório, garantia ampla liberdade de culto no país e reconhecia a liberdade de crença. No entanto, no final do ano anterior fora editado o Código Penal da República, o qual condenava explicitamente o exercício de actividades de cura sem habilitação legal e a prática do espiritismo.
A edição do Código Penal foi seguida de acções da polícia na repressão ao espiritismo e suas actividades de cura. Estas haviam de facto se expandido e institucionalizado com a criação, pela FEB, meses após a proclamação da República, do Serviço de Assistência aos Necessitados, que procurava garantir atendimento gratuito com a cooperação de médiuns, fossem eles formados ou não em medicina.

IMPACTOS NO MOVIMENTO ESPÍRITA
O movimento espírita contava com a participação ou simpatia de médicos, advogados, militares, além de membros do Executivo, Legislativo e Exército, os quais julgavam injusta sua penalização. Apontavam a contradição entre a liberdade religiosa que a Constituição de 1891 consagrara e a condenação ao espiritismo expressa no Código Penal de 1890. Reagiram pedindo ao governo e ao Congresso a modificação do Código Penal, mas sem sucesso.
Essa situação provocou efeitos imediatos no movimento espírita do Rio de Janeiro. Desde a edição do Código Penal até meados de 1893, verificou-se uma mudança na condução do movimento, com o predomínio gradativo da tendência científica sobre a religiosa. Nessa situação de dificuldade, é como se o espiritismo recorresse a um padrão de seus primórdios em Salvador.
Naquela ocasião, os espíritas haviam mudado de religiosa para científica a denominação de sua sociedade.
Agora, e mais uma vez, o espiritismo tentava se apresentar como científico perante a sociedade que o colocava em cheque.
Reforçar o entendimento do espiritismo como ciência foi uma defesa adequada no momento em que a nova legislação passava a discriminá-lo, mas o predomínio da tendência científica no movimento teve duração efémera.
O recurso ao Congresso Nacional contra o Código Penal foi apresentado em agosto de 1893. Em setembro do mesmo ano eclodiu a Revolta da Armada contra o presidente Floriano Peixoto, e a situação ficou tensa na capital da República.
O governo decretou o estado de sítio, que, com vários prorrogamentos, permaneceu válido no Rio de Janeiro até o final de junho de 1894. Nesse contexto, todas as sociedades, inclusive as espíritas, tiveram de fechar as portas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:45 pm

HEGEMONIA DA TENDÊNCIA RELIGIOSA
Retomadas as actividades das associações espíritas, o predomínio da tendência científica revelou-se contraditório com a dinâmica do movimento, já que seus líderes pretendiam limitar o Serviço de Assistência aos Necessitados, em que actuavam os médiuns receitistas.
As condições de saúde na capital eram graves, com seguidas epidemias. Nesse contexto, gozando de prestígio popular, os médiuns receitistas prosseguiam suas actividades, a despeito das críticas da tendência científica e das perseguições da polícia. Acresce que as diligências policiais não estavam resultando na condenação dos médiuns.
A actuação dos médiuns receitistas, que tendia a reforçar a tendência religiosa do movimento, tornava inconsistente a liderança dos científicos. Num último movimento, estes criaram o Centro Espírita de Propaganda, como alternativa à Federação Espírita Brasileira.
A tendência científica pretendia que a nova entidade funcionasse sem o tipo de atendimento mediúnico a problemas de saúde patrocinado pela FEB.
Com esses desencontros, a Federação dava sinais de enfraquecimento.
Para tentar reverter essa situação, Bezerra de Menezes foi de novo chamado para sua presidência. Era um nome respeitado fora dos círculos espíritas e, ao afastar-se da FEB, deixara de se envolver de maneira activa e se desgastar nas disputas internas.

Os RUMOS DO ESPIRITISMO NO BRASIL
Bezerra de Menezes presidiu a FEB de 1895 a 1900. Esse foi um período de sedimentação de características do espiritismo no Brasil.
As dissensões internas persistiram no movimento e a FEB não conseguiu efectivar seu projecto de unificação federada, que datava da primeira presidência de Bezerra de Menezes, em 1889.
O próprio facto de ser ele o presidente nesse período decisivo acrescentou novas dificuldades, devido a suas posições francamente rustanistas, às quais se opunham os kardecistas.
Apesar disso, a FEB conseguiu permanecer como referência para o movimento em todo o país.
Podemos dizer que esse período de Bezerra de Menezes à frente da Federação marca o final de uma etapa, a de implantação do espiritismo no Brasil, e o início de outra, a de sua expansão. Esse período marca, também, a afirmação de rumos internos ao movimento que, posteriormente, o guiaram em seu crescimento.

0 ESPIRITISMO COMO RELIGIÃO
Embora Bezerra de Menezes tenha mantido a FEB aberta às várias tendências do movimento, o espiritismo, antes de mais nada, afirmou-se como um movimento religioso, que se apresentava como um aprofundamento do cristianismo.
Ficaram, assim, num plano secundário as propostas iniciais do espiritismo como ciência e filosofia, além de religião. A proposta filosófica, aliás, nem chegara a gerar uma tendência organizada no país.
Como religião é que o espiritismo cresceu e se reproduziu milhares de vezes em núcleos pelo país. Foi dessa maneira que o movimento espírita se inseriu na dinâmica cultural brasileira.
Depois daquele período efémero de 1890 a 1893, a tendência científica não mais conseguiu empolgar a direcção do movimento e sempre esteve longe de ser hegemónica quanto às práticas efectivas do espiritismo.
Nesse sentido, as disputas doutrinárias entre kardecistas e rustanistas significaram uma reiteração do carácter religioso do espiritismo brasileiro: puxavam o foco das disputas internas para a esfera da religião.
Outras características da expansão espírita ficaram definidas nesse período de Bezerra de Menezes à frente da FEB.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:46 pm

AMPLIAÇÃO DAS BASES SOCIAIS
Entre as características da expansão espírita, destaca-se a relação entre o espiritismo e a cura em associação, não exclusiva, mas frequente, com a homeopatia. As actividades dos médiuns receitistas tornaram-se comuns em várias partes do país e tiveram papel fundamental na formação do espiritismo brasileiro.
Essas práticas já haviam garantido força a seus adeptos nas disputas internas e continuaram importantes para eles, na medida em que contribuíam para ampliar suas bases sociais. Ajudaram, ainda, a construir para os espíritas uma imagem positiva em amplos sectores da população brasileira.

A LIVRARIA DA FEB
A par da dinâmica de ampliação do espiritismo por força das actividades mediúnicas, manteve o movimento a ênfase na leitura e nas publicações. Para garantir o acesso aos livros espíritas de autores estrangeiros
e brasileiros, a Federação Espírita Brasileira criou em 1897 uma livraria especializada. Os espíritas consideram, com razão, que esse foi um marco na história do movimento. A livraria da FEB inaugurou uma bem-sucedida associação, que persiste até hoje, entre actividade editorial e sistema próprio de circulação. Ela foi uma importante referência para os centros e núcleos espíritas que se organizavam pelo país, servindo, ainda, de inspiração para outras iniciativas do género.

PENETRAÇÃO AMPLA
É importante observar que a vitória da ênfase religiosa na organização do espiritismo brasileiro não eliminou a atenção à racionalidade interna de suas concepções e a preocupação de estar em dia com o conhecimento científico. Procurava-se apresentar o mundo dos espíritos como uma realidade objectiva que não colidia com outras realidades objectivas de que as ciências constituídas se ocupavam.
A persistência dessa proposta facilitou o enraizamento do espiritismo em sectores sociais com acesso à educação formal e sua penetração em grupos profissionais de formação académica. De fato, a adesão ao espiritismo foi bem longe: até mesmo entre os militantes anarquistas se encontravam adeptos de ideias espíritas.

A UNIFICAÇÃO E BEZERRA DE MENEZES
O projecto de unificação, no qual Bezerra de Menezes insistia, também ajudou a traçar os rumos do espiritismo no Brasil e, se ao longo de décadas ficou no papel, nunca foi deixado de lado, seja na retórica, seja nas providências efectivas que acabaram por implantá-lo a partir de 1949.
O nome de Bezerra de Menezes não haveria de ser esquecido. O reconhecimento de sua liderança pelos espíritas de todo o país ultrapassou os limites de sua vida, e seu nome permaneceu como um elo comum no espiritismo.
Actualmente, Bezerra de Menezes é nome de muitos centros espíritas, tema e referência constantes nas publicações produzidas pelo movimento. Supõe-se que seu espírito esteja vigilante e atento, manifestando-se através de médiuns em várias partes do país, seja em actividades de cura, seja na orientação, por meio de mensagens, de decisões internas ao movimento espírita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:46 pm

4 - O ESPIRITISMO SE DISSEMINA
Salvador e Rio de Janeiro foram as bases dinâmicas da implantação do espiritismo no Brasil, mas não foram as únicas cidades do país onde as ideias espíritas deram origem a núcleos organizados ainda no século XIX. O espiritismo sedimentava-se em cidades tão distantes entre si quanto Belém e Porto Alegre; nesta, já em 1887, era criada uma Sociedade Espírita com a intenção de organizar os vários núcleos existentes.
Nas três primeiras décadas do século XX, o movimento espírita teve um grande crescimento.

A QUESTÃO DA BÍBLIA
A disponibilidade de livros e periódicos em português, aos quais os editores procuravam dar ampla divulgação, sem dúvida facilitou a expansão do movimento. O espiritismo penetrava com seus livros básicos em ambientes católicos. Segundo histórias que circulam entre os espíritas, naqueles ambientes a leitura da Bíblia pelos fiéis era desaconselhada pela hierarquia católica.
Embora os opositores católicos do espiritismo reajam com vigor a essas histórias, é provável que a propaganda espírita tenha se beneficiado dos ecos de antigas normas pastorais, ainda vigentes no catolicismo brasileiro do século XIX. Elas eram inspiradas nas deliberações do Concílio de Trento (1545-1563), momento em que a Igreja Católica se organizou para enfrentar a Reforma Protestante.
Tais normas vedavam a leitura da Bíblia a não ser às pessoas que fossem consideradas "suficientemente avançadas em conhecimento e virtudes", como relata o historiador católico Hugo Fragoso. Consagravam uma oposição entre os "ministros da palavra" (os padres) e os "ouvintes da palavra" (os leigos). Em contraponto, O evangelho segundo o espiritismo circulava livremente.
Os espíritas faziam questão de propagar seus livros o mais que pudessem. Incentivavam, ademais, que cada qual fizesse sua leitura dessas obras, ao passo que, no catolicismo, era ressaltado o peso da tradição religiosa e das interpretações dos sacerdotes e autoridades da Igreja. Actuação parecida à do espiritismo teve, a propósito, o protestantismo, para cuja inserção entre os brasileiros a distribuição de Bíblias foi uma actividade importante.
Além dos textos doutrinários, o espiritismo que se formava por toda parte do país dispunha também de modelos de organização testados e aprovados nas etapas de implantação do movimento.

CARACTERÍSTICAS DA EXPANSÃO
Assim, os grupos familiares, a formação de centros como sociedades civis legalmente constituídas, a actividade editorial, a importância dos médiuns receitistas e também a preocupação de organizar os centros espíritas em associações ou federações, tudo isso se mostrou recorrente no crescimento do espiritismo.
O Rio de Janeiro, onde esses modelos haviam se consolidado, era uma importante referência, e durante muito tempo a mais importante, no crescimento do espiritismo.
A partir dela generalizaram-se até mesmo as disputas doutrinárias; e as diferenças de opinião entre o kardecismo e o rustanismo não foram apagadas no espiritismo brasileiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 06, 2024 8:46 pm

ASSISTENCIALISMO ESPÍRITA
As disputas doutrinárias não deram, no entanto, ao movimento a tónica de seu crescimento efectivo.
É que com o predomínio de kardecistas ou rustanistas estava o movimento comprometido com a organização do espiritismo como religião.
Essa base religiosa, com sua ênfase na caridade, foi um importante factor interno na associação entre o crescimento do espiritismo e a criação de entidades como "albergues nocturnos, orfanatos, asilos, abrigos, escolas primárias, hospitais", conforme as discrimina um levantamento publicado em 1931 no Anuário Espírita do Brasil.
As possibilidades de actuação de entidades religiosas no atendimento às carências sociais da população apenas se acentuaram na medida em que as cidades cresciam e novos centros urbanos se formavam nas primeiras décadas da República.
A escassez de iniciativas sociais do Estado tornava o assistencialismo espírita possível, resultando para o movimento em novas bases de apoio. Também aqui o espiritismo penetrava numa esfera de actuação em que o catolicismo tinha presença hegemónica.

DIFUSÃO PELO PAÍS
O espiritismo marcava sua presença em capitais e cidades do interior e mesmo em alguns bairros rurais. Na virada do século XIX para o XX, o movimento espírita crescia não só nas capitais já citadas, mas ainda em São Paulo, Maceió, Aracaju e Curitiba. Antes de 1930, sua presença era registrada na maioria das capitais e em inúmeras outras cidades nos quatro cantos do país, como por exemplo:
Pedreiras, no Maranhão; Paineiras, no Ceará; Garanhuns, em Pernambuco; Alagoa Nova, na Paraíba; Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo; Ponta Grossa, no Paraná; Juiz de Fora, em Minas Gerais; Resende, no Rio de Janeiro; Itapira, em São Paulo; Pelotas, no Rio Grande do Sul. Embora alguns núcleos filiados ao Centro Espírita de Propaganda, que, conforme vimos, apoiava-se na tendência científica do espiritismo, tenham sido fundados — como nos municípios paulistas de Guaratinguetá e Botucatu —, a imensa maioria dos núcleos e centros seguia a ênfase religiosa do espiritismo.
O espiritismo conseguiu se implantar até mesmo em alguns agrupamentos rurais, como em Santa Maria, no Triângulo Mineiro, cujo Centro Espírita Fé e Amor foi fundado em 1900, e na Fazenda Palmella, no Estado de Goiás, onde em 1929 foi fundado o Centro Espírita Luz da Verdade. Data de 1923 a criação de um centro espírita no Engenho Amor da Pátria, em Água Preta, Pernambuco.
Nos centros urbanos, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, havia uma tendência para difundir o movimento no âmbito de certas categorias profissionais, como jornalistas, médicos e militares.
A disseminação do movimento espírita não foi homogénea no país. De facto, o espiritismo cresceu com mais pujança nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Alguns desdobramentos são de particular importância para a compreensão da dinâmica desse movimento e serão considerados a seguir.

0 ESPIRITISMO EM SÃO PAULO
O espiritismo na cidade de São Paulo desenvolveu-se a partir de 1890 com a criação do Grupo Espírita Verdade e Luz, logo seguido de um órgão de imprensa com o mesmo nome, produzido em tipografia própria. Iniciativas espíritas anteriores existiram, porém sem continuidade. O próprio nome Verdade e Luz era uma referência a um grupo então inactivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2024 11:28 am

ANTÓNIO GONCALVES DA SILVA, O BATUÍRA (1839-1909)
Em São Paulo, o responsável por esse movimento, conhecido por Batuíra, era um português de origem humilde que havia enriquecido como empresário e que se tornara dono de uma extensa área para onde a cidade ia se expandindo, no actual bairro do Cambuci.
A partir de seu envolvimento com o espiritismo, passou a actuar como prático, receitando homeopatia, e como médium de cura, aplicando passes e distribuindo água fluidificada, ou seja, a água que se supunha enriquecida de fluidos espirituais pela acção mediúnica. Batuíra passou também a recolher pessoas com problemas mentais, ou obsidiados, como preferiam os espíritas, em sua própria residência.

TIPOGRAFIA ESPÍRITA
A Tipografia Espírita organizada por Batuíra começou imprimindo 2 mil exemplares do Verdade e Luz, atingindo o pico de 15 mil em 1897, baixando para 6 mil em 1900 devido aos custos e subindo para 11 mil em 1904. Eram números expressivos para a época. O jornal circulava em vários Estados, tornando o movimento paulista conhecido e associando Batuíra com a criação de grupos e centros no Estado do Rio e em Minas Gerais, além de São Paulo.

ASPECTOS NOVOS NO MOVIMENTO ESPÍRITA
Batuíra procurou consolidar a obra de seu grupo espírita criando a Instituição Cristã Beneficente Verdade e Luz com património próprio, o qual incluía a tipografia e dois sítios em Santo Amaro. Foram assim estabelecidas as bases de recursos que permitiram a criação de diversas entidades de assistência social dirigidas a "órfãos, viúvas pobres (...) enfermos e obsidiados", além de escolas para crianças.
Em 1908, Batuíra tomou a iniciativa de criar a União Espírita do Estado de São Paulo, com o objectivo de unificar o movimento regionalmente, e filiou-a à Federação Espírita Brasileira.
Assim, o movimento espírita em São Paulo tomou impulso repetindo padrões de sua história no Rio de Janeiro, introduzindo, porém, novos elementos.
O líder do Grupo Verdade e Luz não era um membro da elite política e intelectual da cidade, mas um imigrante português que acumulara fortuna por intermédio de variadas actividades, nas quais se incluíram a entrega de jornais, a administração de uma rinha de galos, um teatrinho, a compra de terras e a venda de saibro (mistura de barro e areia grossa), retirado de um morro de sua propriedade. Seu sucesso nas actividades espíritas apontava uma mudança no recrutamento social do movimento.
Em resumo, as actividades espíritas que Batuíra promoveu estavam directamente vinculadas à criação de obras sociais e à constituição de um património que as pudesse sustentar. Esse padrão organizatório viria por muitas vezes se repetir na trajectória do espiritismo.

UMA EXPANSÃO DE BASE INTERIORANA
Um dos principais nomes do movimento espírita na primeira metade deste século foi Eurípedes Barsanulfo (1880-1918), cuja dedicação ao espiritismo foi intensa.
Suas actividades tiveram forte repercussão regional a partir da pequena cidade de Sacramento, no Triângulo Mineiro.
Sacramento era um lugarejo de poucas ruas, quando em 1904 Barsanulfo deu início às suas actividades espíritas, as quais tomaram forma a partir de seu contacto com um núcleo rural espírita do município, a Fazenda Santa Maria. Lá, num aglomerado de aproximadamente 30 casas próximas à sede, um tio de Barsanulfo havia criado, em 1900, o Centro Espírita Fé e Amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2024 11:28 am

UMA TRAJECTÓRIA PECULIAR
É ilustrativo traçar, ainda que brevemente, o caminho que levou o espiritismo até a cidade de Sacramento.
O empresário espanhol Fernando Peiró, sócio de uma empresa de cal, havia se convertido ao espiritismo em 1896, assistindo sessões na residência de um advogado e coronel de Uberaba. O tio de Barsanulfo, Mariano da Silva, conhecido por Sinhô, passou em 1897 a trabalhar na indústria de cal da qual Peiró era sócio e foi por ele convertido ao espiritismo, ao mesmo tempo que uma série de fenómenos os levou a concluir que "Santa Maria era um foco de médiuns". Em 1900, o núcleo espírita da fazenda já estava instalado.
Assim, em cerca de cinco anos o espiritismo fez no Triângulo Mineiro uma significativa trajectória social. Começou com um membro da elite tradicional, o que caracterizara os primeiros tempos do movimento espírita no Brasil; passou para um pequeno empresário de origem estrangeira, como no caso de Batuíra; e depois para um trabalhador rural que implantou um centro espírita numa fazenda. A presença activa de um pequeno empresário apontava uma tendência da expansão do movimento espírita para além da elite tradicional. Já o trabalhador rural representava, se considerarmos a história dessa expansão, uma situação rara. O movimento espírita teria dificuldade de contar com números expressivos de adeptos regulares na massa trabalhadora mais pobre do país, tanto rural quanto urbana.

DE CATÓLICO A ESPÍRITA
Por intermédio do grupo espírita da Fazenda Santa Maria, Barsanulfo entrou em contacto com o espiritismo e se converteu. Foi convidado a actuar como médium numa sessão em que teriam se manifestado o espírito de Bezerra de Menezes, que o informou que poderia actuar como médium na cura, e de São Vicente de Paulo, que lhe declarou ser seu guia espiritual.
Jovem, filho de uma família humilde em ascensão social por meio do comércio, Barsanulfo era um católico e educador dedicado. Sua conversão causou comoção em seu meio a ponto de implicar o fechamento do educandário que formara, por evasão dos professores e requisição, por seus proprietários, do prédio onde funcionava. Em 1905, Barsanulfo criou o Grupo Espírita Esperança e Caridade.
A partir dele surgiram uma farmácia e um laboratório alopático e uma escola intitulada Colégio Allan Kardec, onde o ensino da doutrina espírita fazia parte do currículo.

HOMEOPATIA E ALOPATIA
As actividades da farmácia estavam ligadas à mediunidade de Barsanulfo. Suas prescrições eram de remédios alopáticos ou de medicamentos à base de tintura de ervas recolhidas na região. Isso a despeito de o médium ter conhecimento da homeopatia e de atribuir suas receitas ao espírito de Bezerra de Menezes.
E curioso notar que Bezerra de Menezes vivera no Rio de Janeiro como médico alopata e produzira receitas homeopáticas como médium receitista; agora a seu espírito eram atribuídas receitas alopáticas através de um médium receitista do interior do Brasil. Isso ilustra bem a ideia de que não havia uma relação necessária entre homeopatia e espiritismo, e sim, principalmente, uma aproximação marcada pelas circunstâncias. O que não existia em Sacramento, ao contrário do Rio de Janeiro, era uma medicina forte, organizada com base na alopatia, e capaz de inspirar cautela às actividades de cura do espiritismo em formação.

DESDOBRAMENTOS REGIONAIS
As iniciativas espíritas de Barsanulfo tiveram implicações para o movimento espírita em toda a região. Anos depois, um antigo aluno do Colégio Allan Kardec inaugurou em Franca, São Paulo, a Fundação Pestalozzi, bem-sucedido educandário de orientação espírita. Um participante das actividades espíritas de Sacramento criou um núcleo do movimento no Estado de Goiás, em 1929, na antiga Fazenda Palmella. Esta ficava onde é hoje o município de Palmeio, no qual as actividades do espiritismo cresceram com grande desenvoltura, a ponto de tornar-se conhecido como Cidade Espírita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2024 11:28 am

CONCEPÇÕES ESPÍRITAS DE CURA
Além de atender às pessoas que o procuravam em nome de parentes e conhecidos adoentados, Barsanulfo recebia intensa correspondência de pessoas em busca de solução para seus males. Em estado mediúnico fazia as devidas prescrições, que eram aviadas pela farmácia do movimento e enviadas aos remetentes; os pedidos pelo correio foram se avolumando, chegando a atingir cerca de um milhar diário.
Para atender a toda essa demanda, Barsanulfo agia com rapidez, prescrevendo a receita na própria correspondência que recebia.
Sua relação com a cura não se resumia, porém, à actuação como receitista. Era tido também como um médium capaz de teletransporte: supunha-se que o espírito do médium, como que se desprendendo, transportava-se a distância para atender os necessitados, como parte de suas missões de cura. O movimento espírita de Sacramento partilhava, assim, um aspecto importante com a capital paulista. E que a actividade mediúnica de Barsanulfo em relação à doença, embora tivesse na prescrição de medicamentos a expressão mais visível, não se limitava a ela.
Seu caso e o de Batuíra mostram que iam se tornando mais disseminadas concepções de cura espírita que independiam de fármacos e que podiam ser inteiramente circunscritas na doutrina espírita, tanto na explicação das causas das doenças quanto em suas soluções terapêuticas. Isso implicava um maior enraizamento de concepções espíritas entre pessoas que se aproximavam do movimento.

VIGOR DO ESPIRITISMO
Em Sacramento, longe dos grandes centros urbanos, o espiritismo se estabelecia e tomava impulso.
A demanda por serviços de cura também era grande nas cidades pequenas, e as receitas obtidas por intermédio de médiuns aí encontraram acolhida. Ademais, como a procura por escolas aumentou devido ao crescimento dessas cidades, o movimento espírita, constituído basicamente por pessoas com alguma educação formal, encontrou mais um âmbito de actividade.
Barsanulfo faleceu em 1918, vítima da gripe espanhola. Sua actividade intensa ao longo de cerca de 12 anos solidificara o movimento espírita na cidade e na região, e seu nome continuou sendo uma referência forte na expansão do espiritismo.
O movimento podia, pois, crescer a partir de bases interioranas.

O APÓSTOLO DE MATÃO
Os primeiros anos do século XX foram férteis na criação de centros espíritas, com frequência situados em cidades pequenas e regiões distantes das capitais. Muitos tinham uma existência de poucos anos: servindo de base para o crescimento local do espiritismo, eram mais tarde substituídos por novas iniciativas. A maior parte deles tinha sua influência restrita ao próprio município em que se situava ou a localidades adjacentes. Às vezes, essa influência se propagava mais amplamente em virtude da presença de um líder carismático ou de um médium famoso.
Matão, no interior do Estado de São Paulo, conseguiu se estabelecer como referência importante para o movimento espírita, enfatizando a propaganda e a doutrinação.
As actividades de cura, conquanto praticadas, não foram as principais responsáveis pela influência regional que o movimento de Matão estabeleceu. Esse importante marco da história do espiritismo firmou-se em associação com as actividades de um farmacêutico e político chamado Cairbar Schutel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2024 11:29 am

CAIRBAR SCHUTEL (1868-1938).
Assim como seus contemporâneos, Batuíra, em São Paulo, ou Peiró, no Triângulo Mineiro, Schutel não fazia parte das elites tradicionais da região. Carioca, chegara a Matão depois de viver nas cidades paulistas de Piracicaba e Araraquara, e lá abriu uma farmácia.
Matão era, na época de sua chegada, uma pequena povoação do município de Araraquara, do qual pretendia separar-se politicamente. Schutel envolveu-se na luta emancipatória e, ao ser o município de Matão criado, em 1889, foi o primeiro presidente de sua Câmara Municipal, o que equivalia ao actual cargo de prefeito.
Cairbar continuou com suas actividades políticas até que em 1905 se converteu ao espiritismo, a partir de sessões realizadas na casa de um dos raros espíritas do local.

O CLARIM
Cairbar Schutel dedicou-se à leitura das obras de Allan Kardec e em meados desse mesmo ano de 1905 organizou o Centro Espírita Amantes da Pobreza, logo seguido da publicação do jornal O Clarim.
O lançamento de um órgão de imprensa próprio estava em sintonia com o que se verificava em outras partes do Brasil. Um Anuário Espírita publicado em 1906, em Curitiba, anunciava o aparecimento de 22 novos jornais espíritas no país, entre eles o periódico de Matão. O Clarim conseguiu uma notável continuidade e é publicado até hoje.

BOICOTE LOCAL
Essas iniciativas a favor do espiritismo enfrentaram forte oposição local. O padre, aliado ao delegado, pretendeu encerrar as actividades do centro espírita, visto que o Código Penal condenava a prática do espiritismo. Schutel ignorou a proibição, apoiando-se no direito de crença consagrado na Constituição de 1891.
A Igreja mobilizou os fiéis católicos contra o centro espírita, incentivando-os também a não comprar medicamentos na farmácia de Schutel.
Os registos que os espíritas fazem da história de seu movimento incluem vários episódios localizados de oposição e boicote movidos por católicos, e a história que contam de Schutel tem laivos de heroísmo. Ele teria, por exemplo, decidido discursar em praça pública para enfrentar a intimidação movida contra seu centro espírita, e seu decorrente esvaziamento. No momento em que discursava, uma passeata de católicos teria sido organizada e caminhado até a praça onde falava, gerando uma situação muito tensa, só contornada graças ao apoio a Schutel por parte de um médico e de um advogado local.

CURA E PROPAGANDA
As actividades de Schutel foram intensas. Actuava no atendimento a doentes, sendo um dos muitos médicos dos pobres que o espiritismo registra em sua história. As prescrições, no entanto, eram feitas a partir de seus conhecimentos de prático farmacêutico, e não como médium receitista. Aviava em sua própria farmácia os medicamentos que produzia.
Estava, a par disso, envolvido em modalidades de cura mais propriamente espíritas, na medida em que atendia e abrigava pessoas com problemas mentais (os obsidiados, na linguagem espírita), parte das quais recebia tratamento em sua própria residência ou numa casa que ele posteriormente alugou para alojá-las.
Sua actuação no movimento fez-se sentir em outros lugares, com suas publicações e actividades de propagandista.
O Clarim foi a base de uma empresa gráfica que a partir de 1911 publicou muitas obras espíritas, de autoria do próprio Cairbar Schutel e de outros seguidores do movimento. A partir de 1925, deu início a uma nova publicação periódica, a Revista Internacional de Espiritismo, que, assim como O Clarim, ainda circula.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 07, 2024 11:29 am

Schutel fazia-se também conhecido pela grande imprensa paulistana, com crónicas e reportagens publicadas no Correio Paulistano e na Plateia. Era um espírita de forte base regional que conseguia manter presença como figura pública na capital.
Como propagandista do espiritismo, apresentava-se em teatros e locais públicos das cidades da região, e de 1936 até 1938, ano em que faleceu, fez palestras sobre o espiritismo na Rádio Cultura de Araraquara. Antes dele tem-se notícia de apenas outra iniciativa análoga, a do advogado Henrique Andrade, que, entre 1932 e 1934, manteve um programa espírita diário na Rádio Educadora do Rio de Janeiro. Foi, pois, um dos pioneiros nessa modalidade de divulgação que viria a se tornar importante para o movimento.
Assim, a partir das actividades de um líder decidido e articulado com as forças políticas de sua região, o movimento espírita conseguiu contar com uma base contínua de propaganda situada no interior, numa demonstração de força e versatilidade do espiritismo no Brasil.
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