LUZ ESPÍRITA
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:20 am

LIÇÕES DA SENZALA
Maria Nazareth Dória

ESPÍRITO LUÍS FERNANDO

Sinopse:

Seu nome em Angola era Luiz Fernando.
Vivia em família em sua aldeia.
Uma vida harmoniosa e feliz.
Num domingo ensolarado, Luiz Fernando vai com o pai em busca de um tronco para construção de um tonel e são cercados por brancos.
Os dois são violentamente colocados em um navio negreiro juntamente com outros de seu povo e jamais voltam a ver os seus.
O destino era uma terra distante chamada Brasil e começa ali uma nova trajectória para o negrinho Miguel, nome recebido ao chegar em terras brasileiras por vó Joana, uma velha escrava bondosa que o ampara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:20 am

CAPÍTULO I - A MINHA FAMÍLIA
Nas noites enluaradas, a natureza embelezava a nossa aldeia!
Na brisa fresca da noite, as palmeiras balouçavam as suas folhas, formando figuras estranhas; e as crianças inventavam mil e uma brincadeiras.
Era uma semana de festa para a minha gente!
Cultuávamos e respeitávamos a Lua como uma deusa.
Sua luz suave e fria convidava ao aconchego e ao amor.
Lua, eterna deusa do amor e da fertilidade!
Eram belas e inesquecíveis noites que os nossos pais, avós e tios reuniam-se para discutir e planear o destino de nossa gente.
Enquanto conversavam, preparavam o fumo para os seus cachimbos e cigarros de palha.
As mulheres assavam batatas, estalavam milho de pipoca, enchendo gamelas e peneiras de palha; os homens bebiam a aguardente preparada em nossa aldeia; nós, as crianças, às escondidas, lambíamos as cuias e acendíamos os cachimbos dos nossos avós, aproveitando para pitar e fazer as nossas brincadeiras.
O afluente de um rio límpido banhava a nossa aldeia angolana, garantindo-nos uma vida farta, com muitos peixes e, nas matas, muita caça. Lá não havia fome, pois onde há água não existe miséria.
Mãe-África, fauna, flora e filhos, riqueza natural e encanto.
Aldeia-paraíso, pequeno pedaço do mundo com uma beleza admirável!
Há regiões onde os homens continuam brigando, sofrendo e morrendo de fome, falta de educação, saúde, miséria e, principalmente, falta de amor.
Na África, a contínua força de vontade dos seus filhos é uma prova verdadeira de vida.
Em nossa aldeia, cultivávamos algodão, milho, feijão, mandioca, fumo, amendoim, arroz, batata-doce, inhame e outras plantas.
Tínhamos frutas e verduras o ano inteiro; criávamos galinhas, porcos, cavalos, cabras e gado.
As mulheres fiavam e teciam as nossas roupas, ajudavam os homens na plantação e colheita à invenção e preparação de tudo o que usávamos na aldeia.
Lembro-me, como se fosse hoje, de como as moças se vestiam e se enfeitavam com cores alegres.
Dentes fortes, brancos e perfeitos.
Como eram bonitas e saudáveis!
Amamentavam todas as crianças da aldeia, e todas essas mulheres eram as nossas mães-de-leite - era comum oferecerem leite a todas as "crianças de peito", isto é, às crianças que ainda mamavam.
Nenhuma criança buscava o seio de uma única mãe; e essa parte do corpo da mulher era sagrada, cultuada e respeitada como a verdadeira fonte da vida.
Nossos avós, pais e tios assumiam funções na comunidade, tais como:
curandeiros, caçadores, pescadores, sapateiros, ferreiros, domadores de animais, pedreiros, serralheiros, conselheiros, parreiras, costureiras, bordadeiras etc.
Todos trabalhavam, contribuindo para o sustento da aldeia, e ensinavam todos os segredos e habilidades aos mais jovens.
Especialistas da própria aldeia faziam as nossas casas.
Construídas de madeira, cipó e barro, cobertas de palhas seleccionadas, aguentavam chuvas e tempestades sem colocar nossas vidas em risco.
Dormíamos em redes, esteiras e camas feitas de madeira da nossa mata, e as panelas, pratos, potes e tachos eram feitos de barro escolhido pelos mais experientes; as crianças aprendiam a mexer com o barro, fazendo brinquedos.
Aliás, os nossos avós faziam brinquedos lindos de madeira, corda, palha, pano e barro.
Meu pai construía canoas, pilões, gamelas, móveis, carroças, carros de boi, tambores, pandeiros, violões e vários utensílios de madeira.
Ele mesmo saía às matas para escolher a peça.
Às vezes, eu ia junto, e eu gostava de ficar observando os pássaros, cobras, borboletas e outros tantos animais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:20 am

Ficava admirado com a natureza singular de cada um; contemplava a natureza em sua pluralidade e esplendor.
E, quando voltávamos, eu sempre levava alguma coisa nova para a minha mãe.
Um dia, enquanto o meu pai escolhia e cortava um tronco de árvore para fazer um pilão comunitário, sem tirar os olhos da natureza, segui outro rumo.
Levado pela curiosidade, fui me afastando até chegar a um local fechado e escuro, e, até então, desconhecido.
Belo dia e grande descoberta!
Por entre os troncos das árvores secas, em ninhos bem construídos, ficava o viveiro dos urubus.
Alguns filhotes brancos como flocos de algodão; outros, com manchas pretas.
No movimento do olhar curioso, ora os meus olhos se erguiam aos urubus que sobrevoavam, ora buscavam decifrar o que havia ali, logo aos pés das árvores.
Algo se misturava às fezes dos urubus.
Fui me aproximando e tocando naquele estranho e pequeno fruto, uma espécie de coco como eu nunca havia visto.
Comecei a catá-los, enchendo a minha mochila de couro de lebre, quando ouvi o grito do meu pai, chamando-me para retornarmos.
Saí pulando de alegria com o meu novo achado!
Meu pai, suado, com o seu chapéu de palha preso ao pescoço por uma tira de couro, sorria-me; ao mesmo tempo, prendia um cigarro de palha entre os dentes.
Essa imagem eu ainda guardo perfeitamente em minha mente.
Ele estendeu a cabaça de água, oferecendo-me para beber e perguntou-me:
- O que tem aí de tão bom nessa mochila?
Escorrendo água pelos cantos da boca, molhando a minha camisa de algodão cru, respondi, eufórico e orgulhoso:
- O senhor não vai acreditar...
Não sabe o que eu descobri!
Achei a casa dos urubus e alguns filhotes, parecendo urubuzinhos, mas são brancos!
Meu pai gargalhou, explicando-me:
- Filho, os urubuzinhos são brancos quando nascem.
- Então, pai, veja o que eu encontrei no chão!
E, sorrindo, mostrei-lhe.
Meticulosamente, ele foi examinando os frutos e me pedindo para levá-lo ao ninho dos urubus.
Todo envaidecido, eu guiava o meu pai à origem do grande achado.
- Filho, se eu não estiver enganado, isto é uma relíquia!
Se for o que eu estou pensando, nossa vida vai melhorar muito.
Pagamos caro pelo óleo de dendê porque não temos essa palmeira abençoada por aqui.
Acho que é o coco do dendê.
Os urubus voam longe, ficam muitos dias afastados dos seus ninhos e alimentam-se não só de restos mortais, mas também de frutos e sementes.
Por longo tempo, entre entusiasmo e estímulo, a conversa continuou.
Eu o ouvia atentamente, sentindo-me o maior e o mais importante descobridor.
Chegando ao viveiro, meu pai encontrou, entre as fezes dos urubus, alguns cocos que começavam a brotar.
Analisando minuciosamente com as mãos e com os olhos, exclamou:
- É isso, então!
Os cocos brotam, mas não vingam!
Revolvemos as fezes dos urubus e, apanhando todos os cocos que encontramos, fomos embora.
Meu pai levava nas costas a pesada tora de madeira e eu levava o nosso achado.
Quando entramos na aldeia, foi uma festa em torno do meu pai.
Todos viam, com admiração, a tora que ele trabalharia e transformaria no novo pilão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:21 am

À sombra de um velho jatobá, meu pai sentou-se.
As mulheres entregavam os pratos feitos aos homens e às crianças.
Era a hora do nosso almoço.
Logo após a refeição, meu pai reuniu os homens mais velhos da aldeia, perguntando-lhes se conheciam o pequeno coco encontrado.
O meu avô, com o fruto na mão, falou, cheio de emoção:
- Pessoal, isto é o coco que dá o óleo do dendê!
Todos queriam ver e tocar o coco.
Meu pai deixou quebrar um deles para que todos pudessem conhecer o conteúdo.
E, cuidadosamente, abriu um, depois mais outro e, por fim, cinco resistentes cocos estavam ali para que todos pudessem degustar.
E cada um provaria um pedacinho daquele tesouro chamado dendê.
Meu pai, apontando para mim, contava aos outros que fui o descobridor daquela relíquia.
Era costume em nossa amada aldeia, sempre à sombra de belas árvores, os nossos avós repetirem as histórias que os mais velhos contavam:
"Muito longe dali ficava o grande mar.
E era tão grande que o rio parecia um fio de cabelo perto dele.
E, nesse gigante, havia peixes tão grandes que se resolvessem entrar no pequeno rio, parte deles ficaria descoberta e eles logo morreriam."
As crianças ficavam de olhos arregalados de medo.
E eu tentava imaginar o tamanho desses peixes.
Aos olhos das crianças, tudo o que está acima do seu tamanho parece-lhe dez vezes maior.
Eu via o tamanho do nosso afluente como hoje vejo o tamanho do mar.
Imaginava que, se de repente um desses peixes pulasse em direcção ao céu e caísse, acabaria com o mundo.
Nossos avós também contavam que, nas redondezas do mar, os homens plantavam as palmeiras que davam o dendê.
Os urubus, em tempo quente, saíam em busca de algo diferente, restos de peixes mortos nas vazantes das marés.
Engoliam os cocos de dendê, pois a casca que encobria o fruto servia de remédio.
Por vários dias, conservavam o alimento nas entranhas, e alguns retornavam ao viveiro, quando, então, liberavam as sementes nas fezes.
Eu sonhava, imaginando os urubus voando ali perto.
E como eles viam tantas coisas bonitas!
Mas os homens jamais poderiam chegar tão perto, pensava eu.
E, daquele dia em diante, comecei a ver os urubus como verdadeiros deuses, pois eles traziam riqueza para nós.
Os homens mais velhos da aldeia preparavam lugar apropriado para plantar e vigiar o nascimento dos cocos.
Passou-se um tempo, e as crianças podiam ver, apenas de longe, as pequenas árvores soltando as folhas.
E, nas noites de luar, o assunto principal era o plantio de dendê e a fabricação dos produtos, assim que os frutos começassem a brotar.
Antes de encontrar em nossa aldeia o fruto raro, uma ou duas vezes por ano, e durante até sete dias, homens e mulheres saíam para outras fazendas; eles iam trocar as mercadorias que produziam pelo óleo de dendê.
Os homens saíam armados mata adentro, não só para caçar os animais que nos forneciam carne, mas também na tentativa de encontrar outros ninhos de urubus e, consequentemente, depósitos de sementes.
Em pouco tempo, tínhamos uma pequena área plantada, que era um local sagrado.
E, naquele templo, fui o primeiro menino a entrar.
Pisei no chão com tanto cuidado, como se temesse fazer barulho com os meus pequenos passos.
Emocionado, vi que algumas palmeiras já estavam acima da minha cabeça.
Colocando as mãos no rosto, eu olhava para cima e, entre os raios de sol, as palmeiras pareciam sorrir para mim.
O meu povo, que dividia tudo, agora sorria esperançoso com a safra vindoura.
Em nossa aldeia, não existia um único dono de algo, tudo ali era de todos.
Tanto que a palavra usada e mais adequada para expressar a união de todos era: nosso!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:21 am

CAPÍTULO II - O ÚLTIMO BEIJO DA MÃE
Era uma manhã ensolarada e, como sempre, sentados embaixo das frondosas árvores frutíferas, fazíamos a nossa primeira refeição.
Cuscuz de milho com leite de cabra, mandioca, batata-doce e inhame com queijo.
Algumas crianças tomavam suco de fruta, outras tomavam leite.
Os adultos bebiam algo escuro e forte, feito com muitas sementes secas.
Lembro-me de que, nessa mistura, adicionavam mostarda, gergelim e outras sementes de que já não me recordo o nome.
A minha mãe lembrou-me de que era sábado, e as crianças, jovens, velhos e adultos deveriam se banhar cuidadosamente, pois à tarde haveria o nosso culto.
Dia em que a aldeia parava para receber os deuses que comandavam os homens da terra.
Os domingos eram para o descanso, festas, brincadeiras e namoros.
Vejo com muita alegria que já se passou tanto tempo e os deuses continuam exercendo o mesmo papel entre os homens: distribuindo ensinamentos e amor.
Aprovo totalmente o nome com que baptizaram a cidade dos deuses: Aruanda! (cidade de luz).
Meu pai levantou-se, dizendo que antes das onze horas da manhã estaria de volta.
Iria à mata buscar um tronco de madeira que ele deixara preparado para o transporte; pretendia fazer um novo tonel para guardar e conservar aguardente.
Eu adorava acompanhá-lo até a mata e, olhando para ele e para a minha mãe, criei coragem e perguntei:
- Posso ir também?
Eu prometo que quando chegar, vou tomar o meu banho direitinho.
Na aldeia, o banho era um ritual.
Homens, mulheres e crianças deveriam esfregar, em todo o corpo, as folhas que os deuses indicavam.
Para cada pessoa, o banho com a erva apropriada, pois nem todos podiam usar as mesmas folhas.
Minha mãe olhou para o meu pai e sorriu, aprovando o meu pedido.
- Se o seu pai consentir, pode acompanhá-lo.
Na volta, os dois vão directo para o banho.
E não se atrasem! - disse rindo e piscando para o meu pai.
Saí pulando de alegria, fui pegar a minha mochila e o meu estilingue.
Usava-o para derrubar as frutas que estavam maduras e que eu não alcançava.
Nunca para matar os pássaros, tampouco para derrubar os seus ninhos.
Calcei a minha bota de couro de cabra, coloquei o meu chapéu de couro de boi e enchi a cabaça de água; meu pai pegou as cordas e a sua machadinha, calçou as suas botas de couro e catou o seu chapéu de palha.
Foi até a minha mãe e conversaram baixinho.
Eu não ouvi o que eles falavam, mas, pelos olhares, combinavam alguma coisa.
Aproximei-me da minha mãe, ela se abaixou para me abraçar e, beijando-me, disse:
- Cuide-se, beba água e não tire o chapéu da cabeça.
Ande pela sombra.
Dei-lhe um beijo e, de repente, olhando para a ela, parecia-me mais bonita; muito mais bonita que os outros dias.
Interessante e inexplicável!
E, naquele momento, o meu coração disparou.
Em meu pequeno peito, sentia algo que não podia entender.
Acompanhando o meu pai e acenando aos meus amiguinhos, olhei atentamente para a minha mãe.
Ela correspondeu, sorrindo.
E como estava linda, admirei!
Por que, antes de sair dali, mesmo ainda perto dela, já sentia saudade?
Entramos na trilha que nos levava à mata.
Logo, comecei a me divertir, vendo os pássaros e as borboletas que se escondiam nas folhas coloridas das árvores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:21 am

Andando cerca de uma hora e meia, chegamos ao local onde o meu pai deixara o tronco.
Ele o cobriu com folhas para evitar possíveis rachaduras.
Olhei, admirado, era um tronco e tanto!
Meu pai é muito sábio, ele escolhe a madeira certa para as coisas certas, pensei comigo.
Começamos a amarrar o tronco nas cordas, pois assim ficaria mais fácil para o meu pai levá-lo nas costas.
Estávamos prontos para retornar à aldeia quando ouvimos vozes que se misturavam ao barulho das folhas se rasgando.
E, de repente, sem que nada pudéssemos entender, do meio da mata, surgia um alvoroço de pessoas, cercando-nos com redes.
Em desespero, olhava para o meu pai, olhava para aquela gente, olhava para mim mesmo.
Meu pai, seguindo-me com os olhos e num movimento atónito, tentava fugir.
Ele lutou e lutou e, sem mais condições físicas, foi violentamente amarrado e amordaçado.
Eu tremia e, sem forças, não podia respirar.
Ficamos presos nas redes.
No meio dos homens brancos, alguns deles com os cabelos da cor de fogo, e dos homens negros que ali estavam, o único e último consolo era a imagem da minha mãe que vinha até mim.
Os brancos apontavam-me, falavam uma língua que eu não entendia.
Um deles aproximou-se de mim e, falando nossa língua, perguntou-me onde ficava a minha aldeia, como era o meu nome e se eu sabia voltar sozinho.
Ainda tremendo, tentando responder e entreabrindo os lábios, percebi os olhos do meu pai me dizendo:
"Não fale, filho!"
E então, consegui dizer que eu não sabia voltar sozinho e dei o meu nome errado.
O negro, em sua própria língua, falou com os brancos:
- Ele vai junto com o pai, não precisamos prendê-lo.
E, virando para mim, disse:
- Comporte-se!
Levaram-nos.
Andando cerca de duas horas, chegamos ao outro lado da mata.
Eu já não aguentava mais ficar em pé.
Quando paramos, eles nos deram água para beber e ficamos sentados junto de outras pessoas na mesma situação que nós.
Havia poucas crianças e não vi nenhum velho.
A maioria era de homens na faixa etária do meu pai, alguns mais moços e algumas mocinhas entre treze e quinze anos.
Com os homens amarrados e amordaçados, acomodaram-nos em carroças puxadas por cavalos.
As crianças ficaram com as mulheres, que foram alertadas para que não abrissem a boca.
E, uma vez ou outra, quando as carroças passavam paralelas, eu via o meu pai.
Mesmo amordaçado, ele me dirigia um olhar de amor, pedindo-me calma.
Entendia perfeitamente, porque era possível e comum o nosso povo comunicar-se através de olhares.
Vi quando o sol desapareceu no horizonte e a brisa morna já anunciava a chegada da noite.
Ouvi os brancos falando com os negros e parando as carroças.
Todos queriam ir ao mato fazer as suas necessidades e foram amarrados uns aos outros, sob vigilância.
Depois nos deram alguns pedaços de pão seco, carne salgada e água.
Ouvíamos o canto dos pássaros nocturnos e tudo ali me causava medo.
A imagem da minha mãe me protegia, mas eu não imaginava que, naquele instante, apenas começava uma grande trajectória na minha vida.
Eu nem desconfiava que jamais tornaria a vê-la nesta minha caminhada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:21 am

CAPÍTULO III - NAVIO NEGREIRO
Encolhidas no canto da carroça, todas as crianças choravam baixinho.
Cansados e com sono, sentíamos falta do nosso leito.
Um dos homens brancos resmungou ao negro alguma coisa em nossa língua, e o negro logo gritou com as crianças:
- Vocês vão dormir com os seus pais.
Mas se alguém continuar chorando, vai dormir sozinho e fora da carroça para as onças virem comê-lo.
Fui também me encolhendo, aconchegando-me ao meu pai, pois a sua presença dava-me segurança.
Eu não conseguia fechar os olhos e só pensava em minha mãe, imaginando o seu desespero.
E os meus irmãos? E o povo da aldeia?
Todos deviam estar nos procurando.
Eu havia deixado o chapéu ao lado da machadinha do meu pai, e o tronco ficou no mesmo lugar.
Será que, algum dia, tornaria a vê-los?
Os homens teriam compaixão e nos soltariam?
e, pelo menos, o meu pai pudesse falar...!
Mas ele estava amordaçado e procurava me acalmar apenas com o olhar.
Do mesmo jeito, encolhido como estava, adormeci.
Sonhei que estava sentado com o meu avô.
Ele fumava seu cachimbo e me contava uma história.
Ao acordar, o meu corpo doía, pensei estar na minha rede, mas logo abri os olhos e me lembrei de onde estava.
Meu pai me olhava, estava abatido, muito abatido.
Eu olhei à minha volta, havia aproximadamente dez homens empilhados na carroça com o meu pai.
Todos amordaçados, com os olhos abertos, olhando-me com pena.
Eu me lembrava do sonho que tive com o meu avô:
"Meu neto, a única coisa que une os homens é o amor.
Esteja onde você estiver, guarde sempre o amor que agora carrega em seu coração.
O nosso corpo é como aqueles cocos de dendê que você apanhou:
podem ser levados para longe, para o outro lado do mar pelos urubus, podem sofrer muito na pele, mas a alma, que é a semente, brotará lá adiante, trazendo uma nova vida.
Procure ficar calmo e lembre-se sempre das estórias das sementes de dendê!"
Os primeiros raios apareciam no céu, era o que o meu avô chamava de romper da aurora.
As carroças começaram a andar e só pararam quando o sol já aparecia no horizonte.
Os homens, amarrados como animais selvagens, foram levados para perto das moitas à beira da estrada; e as mulheres, para o lado oposto, para assim, fazerem as suas necessidades.
Só então percebi que no meio dos nossos vigilantes, havia algumas mulheres que acompanhavam as outras mulheres, fazendo pouco caso de tudo e de todos.
Eu não entendia o que elas falavam, mas compreendia os seus gestos e olhares.
Elas brincavam e se divertiam com os homens brancos e eram diferentes das mulheres da nossa aldeia.
Deram-nos pão e um caldo preto muito doce para beber.
Disseram ser feito de cana-de-açúcar e que tinha o nome de "melado".
Eu sentia muita sede, mas, ainda eles nos deixavam beber água à vontade.
Só hoje sei a razão por que o melado mantinha o nosso organismo em funcionamento.
Não corríamos o risco da desidratação, pois bebíamos muita água.
O sol já estava baixando, e, por volta de três horas da tarde de domingo, entramos numa estrada coberta pelo pó branco da areia.
Os homens, ainda amarrados e com as almas distantes, olhavam a paisagem lá fora, tentando, talvez, mudar o destino que os aguardava.
E mesmo vivendo aquele pesadelo, não se podia deixar de admirar a beleza natural, para além do cativeiro.
Mais adiante, avistei algumas palmeiras carregadas de cachos de cocos amarelos e logo pude constatar que era dendê.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:22 am

Fiquei sonhando, imaginando que logo a nossa aldeia estaria coberta daquelas palmeiras, e o nosso povo, usufruindo de toda a sua riqueza.
Vi um urubu voando lentamente e senti inveja dele.
Olhei para a carroça em que meu pai estava preso e, em silêncio, duas lágrimas rolaram dos meus olhos.
O sorriso da minha mãe, piscando para o meu pai; o seu beijo em meu rosto e eu olhando para ela até entrarmos na mata; ela me acenando e sorrindo...
Guardadas comigo, todas aquelas imagens e cenas deram-me forças para viver.
Chegamos à beira-mar.
Eu olhava admirado e amedrontado o gigantesco oceano.
Lembrava-me da história do meu avô, olhava para as imensas ondas e procurava o grande peixe.
Os homens pararam as carroças e fomos todos descendo.
A mira dos guardas brancos e armados, os homens foram desamarrados, e logo todos estavam transportando caixotes para um barco.
Fiquei esperançoso; então era isso!
Eles queriam que o meu pai carregasse aqueles caixotes e depois nos mandariam de volta a nossa casa, pensei.
Já estava escurecendo quando me jogaram dentro do barco junto com as mulheres e as outras crianças.
Todos nós gritávamos e chorávamos desesperados.
E, ali mesmo, começamos a levar chicotadas.
- E se alguém gritar, vai apanhar mais! - alertaram.
De outros barcos, os homens acompanhavam nossa embarcação.
Avistei o meu pai e senti um pouco de tranquilidade:
não estava sozinho naquele inferno!
E, com o meu pai perto de mim, confortei-me; a imagem da minha mãe continuava a me acompanhar e isso também me dava forças para suportar.
Com o medo e com o balanço do mar, fui ficando tonto e enjoado.
Recolhi-me num canto e comecei a vomitar.
Logo vi que todos os meus companheiros de infortúnio também vomitavam, excepto as mulheres brancas e os três homens que estavam com elas.
Chegamos perto de um monstro negro e todo desenhado de branco, amarelo e verde.
Nele, alguns panos também coloridos: as bandeiras.
Encostaram os barcos, colocaram uma ponte, empurram-nos para dentro.
Descemos as escadas e chegamos num lugar escuro, uma parte iluminada apenas por lampiões que os homens brancos carregavam.
E, ali, ficamos trancados como animais.
Homens, mulheres e crianças, todos juntos.
Não havia camas nem redes, apenas alguns engradados de madeira furados com poucas palhas forrando o chão.
O cheiro era horrível.
Ainda pude ficar ao lado do meu pai e conversar com ele.
Ele me abraçou e choramos juntos pela primeira vez.
- Papai, onde estamos e para onde vamos? - perguntei, chorando.
- Filho, nós estamos num "navio negreiro".
E, para onde vamos, eu ainda não sei.
Só sei que vamos ser escravos dos brancos.
Vamos procurar não aborrecê-los e fazer tudo o que eles nos pedirem.
Vamos trabalhar muito e vou lutar para ficarmos juntos.
Apesar de muito calor e do mau cheiro, adormeci junto ao meu pai.
Sonhei que estava em nossa aldeia, as mulheres lavavam roupas, rindo e conversando, enquanto as crianças nadavam e faziam apostas:
quem ficaria mais tempo embaixo d'água?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:22 am

Acordei com o navio balançando, abri os olhos devagar, lembrando-me de onde estava.
Meu pai olhava-me, e seus olhos, que antes eram tão vivos e alegres, agora pareciam fundos e distantes.
Deu-me um sorriso triste e eu lhe retribuí com um abraço silencioso.
Conversávamos com os olhos e agora estávamos aprendendo a conversar com os braços e corpos.
Estávamos no inferno, era o que diziam os homens da minha terra.
Alguns choravam, gritavam, batiam com a cabeça no casco do navio e chamavam pelos nossos deuses.
Não havia luz no fundo do navio negreiro.
Um dos homens gritava, usando uma linguagem que não vou repetir aqui.
Alertava que fizéssemos as nossas necessidades ali mesmo.
E, quem fizesse depois, comeria as suas próprias fezes.
Os homens viraram as costas para que as mulheres fizessem as suas necessidades; depois, foi a vez dos homens.
Cada um recebeu um pedaço de sabugo de milho para se limpar.
Depois que todos terminaram, quatro dos nossos homens, à mira dos guardas armados, desceram para fazer a limpeza.
Os furos nos engradados tinham exactamente aquela finalidade.
O mau cheiro sufocava-nos, provocando ânsia de vómito.
Os guardas andavam de um lado para o outro e chutavam os nossos homens, sem motivo algum.
Estávamos vivendo, de fato, um pesadelo!
Dia a dia no balanço do mar, sem ver o sol nem sentir o cheiro da terra; sem roupas limpas, tomávamos banho com água salgada.
Os negros que falavam a nossa língua, rindo, diziam que era para desinfectar e conservar a nossa carne.
A alimentação consistia em farelo de milho, pão seco, mel preto e muita água.
O tempo parecia uma eternidade naquele inferno negro, e todos os dias eu perguntava:
"Papai, que dia é hoje?".
E, assim, pude constatar que já estávamos havia mais de vinte dias vivendo no mar.
Certo dia ouvimos um movimento estranho entre brancos e negros.
Meu pai, olhando pela fresta da grade, disse que encostaram em algum lugar.
Mais tarde, vieram buscar alguns homens para ajudar a transportar caixotes, e o meu pai foi um deles.
Fiquei aflito, torcendo as mãos, sem entender o que se passava ali.
À noite, meu pai retornou contando que aqueles caixotes continham mercadorias que foram trocadas por pão, farelo e o mel preto que ele chamou de "kabaú": mel dos negros.
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória  Empty Re: LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Ago 30, 2016 10:22 am

CAPÍTULO IV - A SEPARAÇÃO
A cada dia que passava, os nossos sofrimentos redobravam.
Havia muita gente doente, com febre, vómitos e diarreia.
Resolveram suspender o mel, servindo apenas água com um pó branco chamado tapioca, pão e farelo de milho.
E, uma vez por dia, bebíamos um tipo de chá amargo.
A vista de todos, alguns homens e mulheres, contorcendo-se de dor, morriam - e nada podíamos fazer.
Os mortos eram arrastados como bichos pelos nossos irmãos de sofrimento e jogados ao mar do jeito que estavam.
O meu pai estava muito magro - eu podia ver todas as suas costelas - e, então, percebi que eu também estava muito magro.
Aquele saco furado em cima, que me deram como roupa, parecia um balão em volta do meu esqueleto.
A cada dia, surgiam mais surpresas desagradáveis.
Por diversas vezes, os guardas negros levavam as meninas mais novas para fora do porão.
Depois, elas voltavam com as vestes de saco manchadas de sangue.
Num canto, ficavam encolhidas, chorando com a cabeça escondida entre as pernas e os braços.
Eu ficava apavorado, achando que elas haviam apanhado muito.
Comecei a passar entre as grades e, pelas frestas, no alto do porão, pude ver o que acontecia:
as meninas eram terrivelmente violentadas, e muitas delas ficavam grávidas daqueles monstros.
Caí em desespero, presenciando a crueldade daqueles homens sem coração.
Lembrei-me da primeira vez que os guardas vieram buscar as meninas.
E só então entendi a razão por que os homens da nossa terra avançaram contra eles, tentando defendê-las, mas logo foram massacrados a chutes e pauladas.
Como nada podia fazer para impedir tal atrocidade, chamei meu pai para ver a triste cena.
- Filho, mesmo magro eu não posso passar por essa fresta tão estreita.
Eu lhe disse que era noite de lua cheia e ficamos os dois abraçados e em silêncio novamente.
Imaginava a minha família, todos sentados em nosso terreiro e chorando a nossa falta.
A minha mãe, tão jovem e tão bonita, os meus irmãos, os meus avós, a minha aldeia... tudo ficou para trás!
Perguntava-me se algum dia ainda voltaria à minha gente, ao meu lugar.
Para onde estavam nos levando e por quê?
Não fizemos mal aos homens brancos, e muito menos aos negros.
Meu pai passou a mão ossuda em minha cabeça e parecia ouvir os meus pensamentos.
- Filho, lembre-se sempre dos conselhos dos nossos deuses:
"Estejam onde estiverem, nós estaremos sempre com vocês..."
Eles estão aqui nos protegendo, apesar de todo o sofrimento; eles estão com a sua mãe também.
Estamos juntos!
E se o deus de todos os deuses, que é o nosso deus também, assim preparou o nosso caminho, devemos seguir sem reclamar.
Os nossos deuses, filho, estão na lua, no sol, nas estrelas, no ar, nas águas deste mar que nos leva para longe; eles estão em mim e em você; eles estão em tudo.
Eu adormeci ouvindo o meu pai falar sobre os nossos deuses.
Logo estava sonhando que corria livremente por nossa aldeia e via as plantações de dendê.
Agora, tinha certeza, era mesmo dendê; eram iguais àquelas palmeiras que vi na praia.
Corria ao encontro de minha mãe, ela abria os braços para mim, sorrindo e me perguntava:
"Onde você esteve?
Por que demorou tanto, meu filho?".
No momento em que eu tentava explicar o que havia acontecido, acordei.
O tempo passava e aquela viagem parecia não ter mais fim.
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória  Empty Re: LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:41 am

"Um dia, ancoramos!"
Foi isso o que ouvi de um dos nossos vigilantes negros.
No outro dia, logo cedo, os guardas apareceram com algumas roupas esquisitas, encheram algumas barricas de água do mar, entregaram-nos um sabugo de milho, e os homens que falavam a nossa língua gritaram:
- Isso é para todos tomarem banho!
E esfreguem bem.
Queremos todos limpos!
Daqui a pouco, vamos descer e vocês precisam estar limpos e bonitos!
O meu pai ajudou-me a entrar na barrica de água gelada, esfregou-me bem.
Eu gostei do banho, até sorri.
Ele me ajudou a vestir a roupa de saco que estava limpa, mas era grande e folgada demais para o meu tamanho.
Aqueles que resistiram ao balanço do mar estavam magros e com profundas olheiras.
Todos se entreolhavam e ouvi um dos homens perguntando ao meu pai:
- Qual será o nosso destino agora, meu irmão?
- Aquele que Deus nos reservou, meu amigo - disse meu pai.
Dali nos levaram em fila.
Aguardávamos ansiosos pelas ordens dos guardas.
E eu sempre perto do meu pai, agarrando-me à mão dele.
Acontecesse o que acontecesse, estávamos juntos, pensava eu.
Carreguei a minha mochila, ali eu levava as minhas relíquias.
Entramos num barco junto com outros homens, e eu admirava as ondas do mar.
Era a coisa mais linda que eu já vira em minha vida.
Acostumado com o balanço, já não sentia enjoos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:41 am

Capítulo V - ADEUS, MEU PAI
Chegando em terra, um carro puxado por quatro bois levou-nos a um lugar cheio de pessoas, animais e toda espécie de mercadorias.
No meio daquele movimento todo, muitas pessoas brancas, vestidas de uma forma que eu nunca tinha visto.
Uma delas, apontando para o nosso lado, sorria, enquanto falava coisas que não entendíamos.
Um menino branco de cabelos cor de fogo, vestido igual aos outros, jogou-me uma banana, que comi com gosto.
Ele sorriu, falando alguma coisa aos seus pais, que me olhavam.
Os homens brancos não se aproximavam; somente os negros, aqueles que falavam a nossa língua, circulavam entre nós.
Ficamos muito tempo ali, os guardas negros mandavam os homens se virarem de um lado para o outro, mostrando braços, pernas e dentes.
Eu não entendia o porquê daquilo.
Alguns homens e mulheres foram separados e levados para fora e acompanhados por alguns homens brancos.
Um homem bem novo e vestido como os outros, apontou para o meu pai, e o negro perguntou alguma coisa.
E, fazendo um gesto com a cabeça, respondeu olhando para mim.
E só entendi quando o guarda negro trouxe as algemas para colocar nos pulsos do meu pai.
- Você já tem dono, é aquele senhor ali!
Disse rindo e apontando para o homem bem vestido.
- E o meu filho? - perguntou o meu pai.
- O negrinho ainda está sobrando, pois o coronel não quis o seu filho.
Acha que ele só dará prejuízo.
Agora, feche o bico.
É bem melhor para você.
Meu pai ajoelhou-se com as duas mãos algemadas e pediu:
- Meu irmão, eu lhe peço, pela cor da nossa pele, em nome dos nossos deuses, fale com o senhorzinho para que ele aceite o meu filho.
Prometo que ele não dará prejuízos.
Meu pai continuou ajoelhado, pedindo.
Eu tremia da cabeça aos pés, senti dor de barriga e o estômago virava por causa do pavor.
Como eu ficaria sem o meu pai?
O guarda negro suspendeu o meu pai com brutalidade e respondeu:
- Para o seu próprio bem, aprenda a ficar de boca fechada ou começa a provar no lombo, aqui mesmo, o couro brasileiro.
Os guardas brancos agarraram o meu pai, empurrando-o violentamente para o meio da multidão.
Eu continuava tremendo sem sair do lugar.
Comecei a chorar, e um dos guardas me puxou a orelha com força, me mandando calar.
E um deles me disse:
- Se ficar quietinho, logo vai estar junto ao seu pai.
Segurei o pranto, enxuguei as lágrimas na manga da larga camisola de saco.
Estava com soluço e doíam-me a barriga, as pernas e a cabeça.
Já estava ficando escuro.
Da porta do mercado em que me encontrava, vi que a maioria das pessoas já havia ido embora.
Restavam duas moças, uma menina com nove anos, aproximadamente, e eu.
Apareceu um casal jovem.
A moça tinha os cabelos amarelos como as espigas de milho quando soltam os seus pendões; os olhos eram da cor do céu e a pele branca como as nuvens.
O moço era branco igual a ela, mas os olhos eram verdes, da cor das nossas matas.
Os dois sorriam, abraçados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:41 am

Parados em frente ao mercado, ela disse algo ao homem, que lhe deu um beijo e se foi.
A moça ficou nos olhando, eu baixei a cabeça com medo e vergonha.
Logo, o moço voltou com uns papéis na mão e os entregou à moça.
O guarda negro entrou no engradado onde ficávamos trancados como porcos e falou-nos em nossa língua:
-Vamos lá, coisas nojentas!
Graças aos deuses, alguém comprou vocês.
Eu já estava pensando que teria de passar a noite aqui, vigiando vocês.
Descemos quase empurrados, e, àquela altura, todos estávamos urinados, e a menina estava encolhida com dor de barriga; logo, estava toda suja de fezes.
Um dos homens brancos indicou o caminho que teríamos de seguir.
Fora daquele local, ele nos levou a uma casa esquisita.
Uma negra velha nos levou até o fundo da casa, tomamos banho, vestimos roupas limpas, tomamos leite e comemos bolo.
A menina estava tremendo de febre.
Bebeu chá e comeu só um pedacinho de bolo.
A negra velha cobriu-a e deu-lhe um copo de água.
A lua estava começando a aparecer no céu quando fomos colocados no carro de boi.
No meio do caminho, eu me sentia tão cansado e fraco não me lembro o que aconteceu.
Sonhei que brincava no rio junto com os meus irmãos e amigos.
Acordei devagar.
Estava deitado numa esteira de palha, e a negra velha estava ao meu lado.
- Até que enfim você acordou, negrinho danado!
Pensei que estava morto!
É a primeira vez que vejo alguém ficar desacordado durante dois dias.
Vamos lá, tome este caldinho quente e vamos tentar urinar.
Logo, você estará curado.
A minha cabeça girava, mas, aos poucos, com ela me ajudando, fui engolindo o caldo.
Percebi que a menina estava triste e assustada e olhava-me; as duas moças, com roupas estranhas estavam lá também.
Elas me ajudaram a levantar e tentando ficar em pé, senti as pernas tremendo.
Seguraram meus braços e dei alguns passos.
A negra velha deu-me mais caldo quente, e, depois de algum tempo, consegui urinar.
Eu nada falava, apenas observava o lugar, perguntando a mim mesmo:
"Será que meu pai vai demorar a chegar?
Aquele homem falou que, se nós ficássemos em silêncio, logo estaríamos com os nossos pais".
A negra velha, sorrindo, falou:
- O meu nome é Joana.
E o seu, qual é?
- O meu é Luís Fernando.
- Muito bem, Luís Fernando, agora você está em outra terra vivendo uma nova vida.
A partir de hoje você vai se chamar Miguel e vai comer para crescer e ficar forte.
Hoje, você não vai sair do barracão; vai descansar e brincar com a Ritinha.
Amanhã, vai sair e andar um pouco e, logo, estará bom!
Pela janela de madeira, o sol entrava no barracão.
O chão de terra batida estava limpo.
Reparei que havia muitas camas forradas de palhas, esteiras e até redes.
Mas onde estavam os seus donos?
Fiquei me perguntando.
E calculei que meu pai devia estar morando ali.
Logo, eu estava caminhando!
As crianças têm o dom de se adaptar rápido às situações dolorosas.
Exactamente por serem inocentes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:41 am

- A vovó Joana é boazinha - Ritinha cochichou ao meu ouvido -, ela me deu banho, vestido e sandálias novas.
Comi muitas coisas gostosas que ela me deu, já sarei da barriga e fui ao rio tomar um banho!
À noite, todo mundo volta para dormir, e, no outro dia, todos vão trabalhar - continuou Ritinha.
Só ficam as vovós e as tias mais velhas para cuidar das crianças.
Está vendo aquela casa ali? - disse, apontando para um grande barracão.
Lá ficam todas as crianças.
Muitas crianças!
Nós só estamos aqui porque estávamos doentes.
Ainda não podemos ficar com as outras crianças para não lhes passar doenças.
Mas, logo, estaremos juntos delas.
Eu arrisquei soltar a voz e perguntei:
- E meu pai, você o viu?
Ritinha olhou-me seriamente e respondeu:
- Acho que nunca mais veremos os nossos pais.
Eles foram vendidos para outros coronéis, pois eu escutei a vovó Joana falando.
Ela disse que vai cuidar de nós, e que tivemos sorte.
A nossa Sinhá é muito boazinha.
Eu me sentei e comecei a chorar.
Como poderia viver sem o meu pai?
A vovó Joana veio arrastando os chinelos de corda.
Sentou-se perto de mim num banco de madeira e puxou-me para perto dela.
- Miguel, preste atenção ao que eu vou lhe falar:
Eu tive quatro filhos e sei que nunca mais os verei nesta terra, e nem por isso perdi a fé em nossos deuses.
Deus é tão bom, meu filho, que veja só:
não pude cuidar nem zelar pelos meus filhos; em compensação, estou aqui de braços abertos para todas as crianças.
Vejo, em cada um de vocês, os meus filhinhos.
Quando fui raptada da minha terra, deixei um filho do seu tamanho, ele tinha sete anos.
Hoje, meu filho deve estar com 38 anos e os dois menores com 35 e 33.
Trouxe um filho no ventre, que nasceu no cativeiro.
Esse foi arrancado dos meus braços, quando tinha cinco anos, e nunca mais o vi.
Fui vendida há quinze anos para esta Sinhá e aqui encontrei um pouco de paz.
Olha, Miguel, o nosso Pai Maior é muito sábio e, às vezes, não entendemos certas coisas e nunca pensamos que o sofrimento que passamos nesta vida é para alcançar a felicidade futura.
Ajudo no nascimento dos filhos de todas as escravas, e todos eles me chamam de vovó.
Você também pode me chamar assim.
Vou fazer o possível para ajudá-lo e quero que você seja um menino bem comportado e obediente.
Enxugue os olhos e vamos comer uma coisa gostosa que a vovó trouxe para vocês.
Ela me levantou, ficou me olhando e vi que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Em silêncio me abraçou, acariciando a minha cabeça.
- Miguel - disse vovó Joana -, vamos fazer um trato?
Eu estou velha demais e você e um menino.
Eu vou cuidar de você como se fosse meu netinho e você cuida de mim como se eu fosse a sua vovó.
Apesar de toda a angústia que me oprimia a alma, senti um pouco de alegria, pois alguém me queria.
Eu estava sendo amado, amparado uma alma caridosa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:42 am

Perdi a minha família, a minha liberdade, mas encontrei alguém que me oferecia conforto e amor.
Abracei vovó Joana e respondi, trémulo:
- Eu aceito!
Daquele dia em diante, comecei a trabalhar ao lado da minha avó.
Dormia perto dela e começamos a dividir tudo.
Assim, fui me habituando a nova vida.
Fazia tudo o que ela me pedia.
Eu era os seus braços, as suas pernas e os seus olhos.
Era assim que ela falava de mim aos outros.
Recebia muitos elogios de todos os outros escravos pela forma rápida que aprendia as coisas.
Ao lado da minha avó, descobri que, mesmo sendo um escravo e mesmo perdendo a minha liberdade, ainda me restava um fio de esperança: o amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:42 am

Capítulo VI - A JUVENTUDE
O tempo passou muito rápido, e as minhas esperanças de encontrar o meu pai foram ficando cada vez mais distantes.
Nunca deixei de pensar em minha aldeia, imaginava como estariam os meus irmãos.
Será que eles também tinham sido capturados?
As lembranças da infância, no seio da minha família, nunca se apagaram.
E, nas noites de lua cheia, sentava-me debaixo de uma palmeira e ficava sonhando com o passado.
Tentava imaginar para que lado devia ficar o nosso continente.
Lembrava-me do balanço do mar, dos últimos momentos ao lado do meu pai e do sorriso da minha mãe.
Completei quinze anos.
Tornei-me um rapagão alto e forte.
Realizava várias actividades na fazenda.
Com a minha querida vovó Joana e o negro velho Santino aprendi a ciência das ervas e preparava garrafadas para muitas moléstias.
Minha avó Joana levava-me à colheita das folhas, cascas e raízes das plantas medicinais.
Na fazenda, eu amansava os cavalos, bois de carro, cachorros para caça e cuidava dos arreios em geral.
Enfim, a minha especialidade, além de conhecer plantas, era domar os animais.
O coronel exibia-me com orgulho e, nos dias de festa, eu era o seu escravo predilecto; era o seu troféu, ele dizia.
O coronel mandava trazer animais das fazendas vizinhas para eu amansar.
Logo, a minha fama cresceu, passei a valer ouro, e as ofertas eram grandes.
O meu senhor sempre falava com orgulho:
- Não o vendo por dinheiro nenhum!
A minha vovó Joana ainda cuidava dos partos e remédios.
Claro que já não tinha mais o mesmo vigor de antes.
Eu lhe trazia mel, frutas, ovos de pássaro que colhia nas matas e ela ficava numa alegria só!
Todos os dias, antes de levantarmos da cama de palha, eu ouvia todas as recomendações dela:
"Nunca responder aos mais velhos, mesmo sendo eles escravos; nunca levantar os olhos diante dos senhores, mesmo sendo eles crianças; e, nem em sonho, pensar em fuga ou rebelião; procurar sempre agir com todo o respeito e obedecer a todas as ordens recebidas sem contestar".
Eu era o único escravo jovem que andava livremente pelas matas sem nenhum feitor me vigiando.
Apesar de nenhum escravo fugir daquela fazenda, nunca vi um negro amarrado ao tronco ou castigos violentos.
A maioria dos escravos foi comprada de outras fazendas e eles comentavam todo o sofrimento pelo que passaram.
Realmente, ali, em comparação as outras fazendas, era um paraíso.
Todos os dias, a saudade e a angústia oprimiam o meu peito.
As mesmas lembranças e sempre as mesmas perguntas voltavam:
Onde andará o meu pai?
Estará vivo?
Eu olhava para os meus irmãos negros e me lembrava da minha terra, da minha família.
Será que mais alguém foi arrebatado de lá?
E como estaria a plantação de dendê?
Teria vingado?
Eu já não era mais um menino, cresci sentindo a falta da minha mãe, do meu pai e da minha terra.
E a imagem clara dos urubus voando sobre a nossa aldeia; das mulheres carregando potes de água, sorrindo e falando dos seus sonhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:42 am

Eram pensamentos que eu levaria por todo o sempre.
Da minha vida passada, trouxe uma relíquia.
Recordava, enquanto apertava a mochila que a minha mãe fez com suas benditas mãos.
Era a única coisa que ainda conservava comigo.
E, eu sabia, jamais voltaria a ver a minha querida mãe, mas, o meu amor, ninguém poderia arrancar de dentro do meu coração.
Os deuses diziam que o corpo morria, mas a alma não:
elas se encontravam e se reconheciam num outro mundo.
E se isso fosse mesmo verdadeiro, algum dia ainda poderia encontrar todos a quem amei.
Às escondidas, os escravos se reuniam para consultar os nossos deuses.
Recebíamos muitos conselhos e orientações, e muitos irmãos ainda carregavam a revolta dentro de si.
Por que Deus nos castigava tanto?
Por que Ele nos criou negros?
Por que teríamos de continuar amando e respeitando um Deus que não se importava com o nosso sofrimento?
A resposta, por vezes serena, e, às vezes, cheia de energia, era sempre a mesma:
"Estamos aqui, não por vontade Dele, mas por nossa vontade".
E nos breves encontros, os nossos deuses advertiam:
"Estamos aqui para ajudá-los, portanto, não fiquem perguntando por sua terra e sua gente.
A sua terra e a sua gente agora são essas".
Ninguém se atrevia a fazer certas perguntas, embora a vontade da maioria fosse mesmo questionar.
Queríamos saber notícias do nosso passado.
Numa noite, iluminados pelos raios da lua, estávamos reunidos recebendo o nosso passe.
Uma das entidades presentes aproximou-se de mim e, tocando meu ombro, disse:
"Filho, busque aquilo que está dentro de você, caminhe, siga adiante e não olhe o que ficou para trás."
Fiquei imóvel, senti duas lágrimas escorrerem pelo meu rosto.
Como eu poderia esquecer a minha mãe, o meu pai, a minha família?
Como eu poderia viver como escravo, se sempre fui livre?
Era uma luta dolorosa dentro do peito, pois amávamos nossos deuses.
Mas o passado, ainda, era a única alegria, o único vínculo que tínhamos para nos sentir pessoas.
Mas Eles não nos davam nenhuma esperança em relação ao retorno do nosso passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:42 am

Capítulo VII - UMA PROVAÇÃO DOLOROSA
Já fazia algum tempo que eu tinha notado o senhor um pouco cansado e triste.
Cheguei a comentar com a minha avó que ele não me parecia bem.
Vi a sinhá nervosa, pedindo para que ele fosse ao médico.
- Filho, quando você estiver perto dele, sem que ele lhe pergunte, fale, mostre as ervas e as raízes que são boas para o coração - recomendou minha avó.
O senhor pegou, olhou as ervas e depois me disse:
- Há casos, Miguel, que nem ervas ou raízes e nada neste mundo pode dar jeito.
Quem sabe, no futuro, os homens desenvolvam recursos adequados para isso.
Miguel, as suas ervas e as suas raízes são a salvação desta fazenda:
elas curam o que pode ser curado.
Infelizmente, há coisas que somente Deus pode curar.
Fiquei admirado ao ouvi-lo falando em Deus.
- Miguel, prepare-me uma das suas garrafadas para aliviar a dor no peito e não comente com ninguém.
Naquele mesmo dia, com a ajuda da minha avó Joana juntei as ervas e raízes necessárias.
Sete dias depois, orgulhoso, com muita discrição, entreguei ao senhor o seu remédio.
Ele provou ali mesmo, fazendo uma careta.
- É bem amargo, Miguel, mas me fale como eu devo tomar.
Passei as instruções e ele guardou a garrafa, saindo satisfeito.
Preparei mais cinco garrafadas, e ele dizia se sentir bem com o remédio, pois a dor do peito desaparecera.
Eu notava olheiras em volta dos seus olhos, o rosto pálido e o facto de ele arquejar sempre.
O senhor já não era o mesmo e eu não via melhora em seu físico.
Sentia-me triste, pois não estava conseguindo curá-lo.
Certo dia acordei com um corre-corre danado na fazenda.
O coronel estava passando mal.
Chamaram-me na senzala, onde eu dormia com a minha avó.
Com dificuldade, a minha avó foi levada ao luxuoso quarto do senhor e, como sempre, eu a acompanhei.
A nossa sinhá estava aflita, chorando, e, ao ver a minha avó, gritou:
- Joana, pelo amor de Deus, faça alguma coisa por ele!
O coronel estava pálido e respirava com muita dificuldade.
Quando me viu, sorriu e falou baixinho:
- Miguel, o seu remédio prolongou a minha vida, mas a hora chegou.
Acho que o Chefe me chama para prestar contas.
Eu corri para fazer tudo o que a vovó me mandava.
Um médico branco foi trazido às pressas para acompanhar o doente.
A minha avó, quando saiu de lá, disse-me:
- Filho, ele só viverá por milagre de Deus.
O seu coração está fechando as veias por onde corre o sangue, o ar...!
Estremeci de medo!
- E, se o coronel morrer, o que será de nós?
- O que Deus quiser, meu filho, o que Deus quiser.
Vamos aguardar, orando aos nossos deuses por ele.
No fim da tarde, um feitor disse que ele teve uma melhora, havia pedido sopa, tomou leite e estava mais corado.
Eu fiquei contente, mas vi uma preocupação nos olhos da minha avó.
Não lhe fiz perguntas, com medo de ouvir, exactamente, o que no fundo eu já sabia.
À noite, a casa grande dormiu às claras, e não pregamos os olhos.
Ao amanhecer, ouvimos os gritos da sinhá e esquecemos que éramos escravos.
Os seres humanos têm o instinto do socorro em seu espírito!
Corremos até lá e ficamos sabendo da morte do nosso senhor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:42 am

Foi um choque para todos!
Chorávamos a sua morte, com sinceridade.
Todos os seus escravos tinham uma dívida de gratidão para com ele, pois o senhor comprava os escravos que os outros coronéis recusavam e tratava-nos como gente.
Foi um momento doloroso para todos.
Além disso, havia a incerteza do nosso destino, o medo do porvir.
Como se diz que uma desgraça nunca vem só...
Havia se passado um pouco mais de um mês da morte do coronel.
E, falando com a minha avó, ela se sentou bem devagar na cama e disse baixinho:
- Miguel, eu vou andando, meu filho.
Tenha paciência com a vida!
Por um momento, pensei que ela apenas brincava comigo.
Mas ela desmaiou e nunca mais acordou!
Escolhi o local no cemitério, eu mesmo cavei sua sepultura, e cada pancada que dava na terra era como se eu estivesse surrando a minha alma.
Eu enterraria a minha avó Joana!
Eu enterraria uma parte da minha vida!
Ela foi a pessoa que me deu forças para viver e quem ainda me fez acreditar na possibilidade da vida.
Ela estava me deixando...
E como eu poderia suportar viver sem ela?
O que seria de mim?
Desde quando saí da minha aldeia, eu não senti tanto medo como naquele momento.
As lágrimas desciam, enquanto eu dizia para os deuses:
"Darei os meus braços, meus olhos, minhas pernas, tudo para ter a minha avó de volta!"
Quem sabe, com a ajuda deles, ela retornaria à vida?
Passava-me essa ilusão pela cabeça.
No enterro dela, foram todos os escravos, muitos feitores e suas famílias.
A sinhá estava de luto pelo marido, e, toda coberta de preto, parecia dez anos mais velha.
Ela veio à senzala onde estava a rede com o corpo da minha avó.
Chorou, olhando para o corpo sem vida e, sem nada dizer, afastou-se.
Em silêncio, fizemos uma corrente em torno do corpo.
Depois, as escravas mais velhas puxaram uma oração em nossa língua.
Os nativos, até mesmo as crianças como eu, arrancados de nossa terra, guardamos por todo o sempre o dom das primeiras palavras em nossa língua materna.
No fim de tarde, um grande arco-íris formou-se exactamente onde estava aberta a cova da minha avó.
Eu na frente e outro escravo atrás levávamos a rede da minha protectora, enquanto uma multidão, rezando, acompanhava o enterro.
Cobrimos a cova e, em seguida, plantamos ervas, cravos e rosas sobre ela.
Assim que terminamos, não precisou molhar a terra, pois uma nuvem formou-se, deixando cair uma chuva rápida.
As ervas molhadas exalavam um cheiro maravilhoso, e a água da chuva lavou nossas lágrimas.
E então, foi isso!
Os deuses das sete cores formaram-se naquele arco-íris e levaram o espírito da minha avó.
Jogaram sobre nós aquela água abençoada para que todos voltássemos às nossas missões sem lágrimas.
Ela não reclamava, não chorava, respeitava a vida acima de tudo, e era isso o que ela nos pedia.
Voltei ao barracão da senzala e fiquei encolhido em nossa cama feita de palha de milho.
Ainda podia sentir o seu cheiro.
A minha avó cheirava a ervas e raízes, cheirava à mata.
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória  Empty Re: LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Ago 31, 2016 9:43 am

Algumas mulheres vieram me consolar.
Eu queria morrer, queria me enterrar junto da vovó.
Passaram-se alguns dias e a nossa vida continuava confusa com a morte do coronel.
A sinhá não entendia de administração, não tinha condições de tocar as fazendas do marido... era o que ouvíamos dos feitores.
Eu saía todos os dias cedo, a fim de colher raízes e ervas e, na volta, passava pelo cemitério onde deixava as coisas de que a minha avó gostava.
Ervas, cravos e flores, plantados em sua cova, enfeitavam e perfumavam todo o cemitério.
Um aroma suave banhava o campo santo com ternura.
E ali eu ficava todo o meu tempo livre.
Parecia que a minha avó Joana me ouvia e respondia a todas as minhas perguntas.
Sentado ao lado de sua cova, relembrava a minha chegada na fazenda, o seu carinho e todo o amparo maternal que ela me deu.
Consegui sobreviver em seus braços, encontrei nela parte da minha mãe.
Sem a minha avó, eu estava completamente perdido e inseguro.
Não sabia o que poderia me acontecer.
As lembranças me castigavam a alma.
Onde estaria o meu pai?
Estaria vivo ainda?
Ou, quem sabe, também já havia morrido.
E minha mãe? E minha aldeia?
E as palmeiras de dendê, ainda existiam?
Agora, sem a minha avó, daria tudo para retornar para a minha aldeia!
Continuava fazendo o meu trabalho, domando os animais e cuidando de todos os arreios.
Colhia as ervas, separava e preparava os banhos e chás para os ferimentos, coceiras e para todas as doenças dos negros que trabalhavam na lavoura e na casa grande.
Fazia três meses da morte do senhor.
Observei a sinhá andando ao redor da casa grande, envolta em seus trajes negros.
Lembrava-me do dia em que ela se aproximou daquele cercado, olhando-me e falando algo ao Senhor.
E, graças a ela, eu estava ali, pois poderia ter sido pior a minha vida.
Graças a ela, eu ganhei uma avó maravilhosa.
No meu coração eu pedia aos deuses que a protegessem.
Como eu gostaria de ajudá-la!
Claro que ela estava sofrendo, pois o nosso senhor era um homem muito bom.
Não tiveram filhos.
Se ela ao menos tivesse ficado com um filho para consolá-la...
De repente, comecei a entender algumas palavras das entidades que vinham nos ajudar.
Quando os irmãos reclamavam que Deus só amava os brancos, elas diziam:
"Se Deus só amasse os brancos, eles não sofreriam tanto quanto nós.
Vocês não percebem o sofrimento deles porque só enxergam o seu próprio".
E era verdade!
Diante dos meus olhos, eu via o sofrimento da sinhá.
Tão bonita e tão senhora de todos nós.
Estava distante de tudo e parecia que nada mais lhe importava, e deixava claro faria tudo para ter de volta aquele que se foi.
Ah! Se eu pudesse me aproximar dela e dizer algumas palavras de conforto!
Lembrava-me dos conselhos da minha avó Joana...
"nunca levante os seus olhos para os seus senhores; só responda o que lhe perguntam; responda baixo e com muito cuidado às palavras..."
Rezei pela alma do meu senhor, tão branco e tão importante e com um coração cheio de amor por todos nós.
Aquele homem foi um anjo que Deus colocou em nosso caminho.
Mas, sem ele, o que aconteceria connosco dali em diante?
Só Deus poderia saber, só Deus...
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória  Empty Re: LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Set 01, 2016 9:43 am

Capítulo VIII - A REFORMA
Num fim de tarde, enquanto engraxava e lustrava os arreios da fazenda, três carruagens de luxo chegaram ao pátio da fazenda.
Já fazia um ano da morte do nosso bondoso senhor.
Sem parar o trabalho, mas com olhos pregados nos visitantes, observei que os negros pararam os animais, limpando as portas das carruagens antes de abri-las.
De uma delas, saltou um cavalheiro alto, cabelos cor de fogo, ajudando uma moça a descer com sua dama de companhia.
Elas usavam roupas estranhas e chapéus enfeitados com fitas.
Eram brancas como as flores da açucena.
De outra carruagem, desceram dois senhores que usavam chapéus e barbas compridas, acompanhados de duas senhoras gordas, que se abanavam com leques coloridos.
A sinhá veio ao encontro deles, abraçando um por um.
Os escravos começaram a descarregar a terceira carruagem.
Eram baús e mais baús!
E para o meu espanto, chegava um carro de boi lotado de baús de zinco e madeira.
Logo fui chamado para ajudar a descarregar.
O jovem senhor de cabelos cor de fogo gritou em sua língua, e um dos feitores, que entendia o que ele falava, gritou para nós:
- Descarreguem tudo com cuidado, sem deixar escapar nada, ou vão inaugurar um tronco novo que o senhor vai instalar na fazenda.
Em silêncio, começamos a descarregar os baús.
Senti um tremor no meu coração ao me deparar com o olhar daquele senhor.
Ele me observava enquanto fumava um charuto.
Assim que terminamos de levar tudo para os lugares que ele indicara, o feitor nos dispensou, pois já estava escuro.
Fui terminar de guardar os arreios e levar os remédios de erva para os feridos que chegaram do campo.
Todos os dias retornavam escravos com cortes profundos nos pés e braços, com frieiras, dores nas costas e nos braços, outros com febre e diarreia; mulheres com cólicas menstruais e hemorragia.
O que não faltava era doença.
Com a morte da minha avó, continuei apanhando as ervas e raízes e ajudando o negro velho Santino a preparar os medicamentos, a enfaixar, com casca de algumas árvores, os pobres infelizes que se queixavam de dores nas pernas, braços e costas.
Naquela noite, não pude dormir, algo martelava por dentro.
Já era madrugada quando adormeci, e logo estava sonhando com a minha avó Joana.
Ela me dizia:
"Filho, faça tudo com muito amor em Deus.
A partir de agora, você vai precisar muito de Deus em todas as suas horas do dia e da noite.
Eu vou estar sempre ao seu lado...
não deixe de fazer as suas obrigações".
No outro dia, logo cedo, chamaram todos os negros ao pátio onde recebíamos as ordens dos feitores.
Um deles comunicava que já tínhamos novo senhor, e a nossa vida, a partir daquele instante, pertencia a ele.
Esse senhor e a nova sinhá seriam os novos donos daquelas terras.
A nossa sinhá iria embora com os senhores, que eram os pais dela.
O irmão dela assumiria as terras e os negócios deixados pelo cunhado.
Naquela tarde, nossa sinhá, acompanhada por todos os visitantes, diante da varanda de sua casa, falava-nos de sua partida.
Ficaríamos entregues aos cuidados do seu irmão e de sua cunhada, e tudo continuaria como sempre fora.
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LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória  Empty Re: LIÇÕES DA SENZALA - LUÍS FERNANDO / Maria Nazareth Dória

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Set 01, 2016 9:43 am

Essa foi à única exigência dela com o nosso novo senhor.
Senti um aperto no coração, pois a nossa protectora estava nos deixando.
Não sabia explicar, mas tinha certeza de que a nossa vida mudaria, e muito.
Mas, até então, nada havia mudado.
Todos trabalhavam no mesmo esquema do nosso falecido senhor.
Até, aproximadamente, dez meses da chegada deles, eu pouco via a nova sinhá caminhando pela fazenda.
O senhor, sim, andava o dia inteiro, observando tudo.
E também saía todos os dias, voltando tarde para casa.
Sem os escravos, os brancos não faziam nada da vida!
Certamente, não pensavam que os negros também eram pessoas; não imaginavam que os negros viam, ouviam, sentiam e compreendiam tudo o que eles planeavam.
Sebastião me contou, em segredo, que o senhor bebia demais, jogava e envolvia-se com as mulheres da casa onde se divertia.
Eu já previa o que seria de nós, a qualquer hora, quando ele resolvesse assumir, de vez, a fazenda.
Numa manhã, fui chamado para preparar os arreios e engraxar as rodas das carruagens.
Enquanto eu trabalhava, o senhor me observava com um olhar estranho.
E cada vez que ele chegava perto de mim, sentia um frio percorrendo o meu corpo; e, confesso, não sabia explicar porquê.
Ele montava nos cavalos que eu amansava e tratava, e eu sentia que ele aprovava.
Eu saía para apanhar as plantas medicinais ao raiar do dia e voltava antes de o sol ter nascido completamente.
Quando eu chegava com o saco cheio de ervas e raízes, o senhor acompanhava todo o trabalho.
O negro velho Santino tremia pela idade e tremia de medo quando se aproximava do nosso senhor.
Três dias depois de preparar arreios e carruagens, chegou a hora de carregar os baús para a viagem.
No começo da tarde, logo que o sol cruzou o meio do céu, vi a sinhá, abraçando a sinhá branca e o novo senhor.
Ela ficou algum tempo parada, olhando para todos os lados, como se estivesse se despedindo de tudo.
Eu ajustava os animais à carroça e, levantando os olhos, encontrei os dela, que me olhavam com ternura e bondade.
O mesmo olhar daquele dia que eu estava à venda em praça pública, quando ela me salvou.
O irmão ajudou-a a subir na carruagem e, quando todos se acomodaram, o nosso novo senhor, acenando para os passageiros, deu a ordem de partida.
As janelas de vidro estavam com as cortinas abertas, e a sinhá, olhando-me mais uma vez, acenou.
A minha vontade era erguer a mão e também acenar para ela, mas eu sabia que não podia fazer aquilo.
Um negro, mesmo que fosse liberto, não podia nunca acenar, piscar ou apertar a mão de um branco; um escravo como eu, podia muito menos.
Assim que as carruagens sumiram na estrada, o nosso novo senhor chamou um dos feitores que estava de plantão.
Eles se revezavam no trabalho e, a cada semana, alguns seguiam para os campos, enquanto os outros ficavam na casa da fazenda.
O senhor mandou trazer os troncos de madeira maciça com correntes e argolas de ferro, vinte chicotes de couro cru, pedaços arredondados de madeira - as ditas palmatórias - e outros tantos instrumentos de castigo, que, até então, só ouvíamos falar que existiam.
Os troncos foram instalados e ficamos aguardando o que viria.
Naquela noite, ninguém dormiu; amanhecemos com o dia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Set 01, 2016 9:43 am

Era um domingo e então, a ordem:
Todos os negros da fazenda, do mais velho ao mais novo, seriam avaliados pelo senhor.
Tomamos banho e vestimos as nossas melhores roupas para nos apresentar ao senhor.
Ele mandou trazer, em primeiro lugar, todos os negros jovens.
Diante dele, e à luz do dia, todos deveriam se despir e ficar de pernas abertas.
Com uma régua de madeira larga, a mando do senhor, o feitor media os nossos órgãos genitais; e com um tipo de saco de borracha, espremia os nossos escrotos.
Eu não entendi o porquê daquela atitude estúpida!
Quando vi os negros tremendo de medo, veio-me um pensamento terrível:
será que vão nos castrar como castram os animais?
Deus! Se assim fosse, eu desobedeceria aos ensinamentos da minha avó Joana.
Os deuses condenavam quem tirasse a vida de quem quer que fosse, e pior ainda seria tirar a nossa própria vida.
Mas se acontecesse, realmente, o que eu estava pensando, nenhum de nós poderia continuar vivendo.
Ele nos dispensou, mas ouvimos, nitidamente, a ordem para que trouxessem todas as mulheres da casa com até 25 anos e que não estivessem grávidas.
Dor e vergonha estampadas no rosto de cada um dos meus irmãos de infortúnio.
Muitas daquelas mulheres eram suas irmãs, namoradas ou companheiras.
Sentimo-nos humilhados, com medo e revoltados.
Esses sentimentos começavam a se espalhar entre os homens.
Pensei em Ritinha.
Amava-a como se fosse minha irmã de sangue.
Ficamos no barracão da senzala, sob a mira dos novos feitores, todos mal-encarados.
Eles estavam ali cumprindo as ordens do senhor.
Sentado num tronco que servia de banco, no chão de terra batida, eu desenhava uma figura.
Ao mesmo tempo, meus pensamentos se voltavam para aquelas meninas.
Maldito navio negreiro!
Lembrava-me dos gritos e do sangue.
A meninas chorando e pedindo ajuda, sem que ninguém pudesse fazer nada por elas.
Na ocasião, como eu ainda não sabia da tortura do sexo, imaginava que eles batiam nelas.
Eu sofria e sofria, pensando na dor e na vergonha daquelas meninas.
Eles não só torturavam os seus corpos, mas também as suas almas!
Afinal, o que o novo senhor pretendia fazer com as meninas?
Em silêncio, pedia ajuda aos nossos deuses e protecção à minha avó Joana.
E rezava dentro do meu coração.
- "Mãe querida, foi e continua sendo a luz da minha sobrevivência.
Ajude-me, pelo amor dos nossos deuses!
Leve-me com você e liberte-me, minha avó!"
Passou-se, aproximadamente, uma hora e meia, mas me pareceu uma eternidade.
As moças estavam voltando, algumas delas cobrindo o rosto com as mãos, enquanto o soluço sacudia o peito.
Outras, de cabeça baixa, pareciam em estado de choque.
Foi Ritinha, a minha irmã, quem começou a falar:
- Ele mandou todas ficarmos sem roupa.
Colocou uma luva, apertou os nossos seios e as partes genitais.
Depois, separou virgens e não-virgens; e ordenou aos homens que as virgens não fossem tocadas.
Os homens mais experientes entreolharam-se.
Um feitor do nosso antigo senhor tirou o chapéu da cabeça, acendeu um cigarro de palha e, com a voz embargada, falou:
- Para o bem de todos nós, vamos obedecer às ordens dele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Set 01, 2016 9:44 am

Os nossos senhores já não estão mais aqui.
Os nossos senhores agora são outros.
A única coisa que peço a vocês é que me perdoem, pois daqui em diante, sinto, as nossas vidas vão virar pesadelos.
Não pensem que me sinto feliz em cumprir tais ordens, mas como todos vocês sabem, existe uma Lei Maior - a Lei da Vida -, e eu preciso viver tanto quanto vocês.
Pela primeira vez, vi um homem branco chorando com os negros!
Logo, apareceu um novo feitor que o levou.
- Você vai servir de exemplo para eles, seu branco safado.
A partir de hoje, faça o que o senhor mandar ou vai receber o mesmo tratamento que esses porcos recebem! - Disse, ironizando.
Todos foram obrigados a acompanhar aquele infeliz, do mais velho ao menor, ainda de colo.
E quando os últimos raios de sol já se escondiam entre as árvores, vimos o chicote cortando as carnes do infeliz feitor que ousou chorar por nós.
Depois, foi a vez de cada negro apanhar.
E, naquele dia, velhos, moços e todos nós apanhamos no corpo e na alma.
Ali começava o nosso pesadelo.
E, naquele instante, descobri que possuía sentimentos de ódio e de vingança dentro de mim.
Durante a noite, na senzala, ninguém conseguia dormir; todos nós estávamos machucados.
As crianças gemiam e uma delas foi ferida na cabeça, debatendo-se a noite toda e vindo a falecer ao nascer do dia.
O dia ainda não havia clareado totalmente quando três novos feitores, aos gritos, chutavam as portas rústicas da senzala.
Um deles, sem a menor piedade, pegou o pé do menino morto, suspendendo o corpinho no ar.
Olhou-me e disse:
- Pegue este lixo e enterre!
Vou avisar o coronel que perdemos a porcaria de um negro.
A mãe, encolhida de tristeza, olhava para o corpo do filho e não chorava.
Havia em seus olhos um brilho estranho, o brilho de dor de uma alma ferida.
Homens, mulheres, crianças, todos estávamos apavorados e em estado de choque.
- Todos em pé! - gritou o novo feitor.
Hoje será decidido o destino de cada um.
Aqueles que ousarem falar ou agir diferente serão cortados em pedacinhos, e na frente dos outros.
Obedeçam às ordens do senhor e todos se sairão bem.
Saímos em fila indiana em direcção ao pátio; o senhor já estava lá, em pé, olhando-nos como se fôssemos os seus animais.
Chegaram, então, os feitores:
- Senhor, aqui está o seu rebanho.
São 125 negros.
Dez mulheres, breve, darão suas crias; trinta, aproximadamente, ainda poderão procriar, e vinte não servem mais para dar crias.
Ele mandou separar as meninas - só as virgens - entre treze e dezassete anos.
Ritinha estava entre delas.
Eram dezanove mocinhas nessa faixa de idade.
Algumas namoravam os jovens escravos da fazenda.
E, como era de costume entre os antigos senhores, esperavam também dos novos senhores o consentimento para se casar.
Os olhos das meninas eram de medo, pavor.
Nos olhos dos rapazes, ódio, muito ódio, rancor!
E, com a respiração fraca, aguardávamos o porvir.
O nosso antigo senhor nunca fizera tais absurdos com nenhum de nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Set 01, 2016 9:44 am

E quando os escravos eram chamados para receber ordens, a antiga sinhá estava sempre ao lado do marido.
Com a nova, era tudo muito estranho, e nunca víamos aquela sinhá ao lado do senhor.
E mais estranho ainda era imaginar que aquele homem fosse irmão da bondosa sinhá que tinha partido.
Eram parecidos apenas nas feições, mas os corações eram totalmente diferentes.
As grávidas foram remanejadas para os afazeres da fazenda; os velhos, homens e mulheres, fariam a outra parte:
queijos, cuidar dos animais...
Aqueles que não produzissem o suficiente seriam vendidos ou trocados por qualquer coisa.
Homens, mulheres e crianças trabalhariam nos campos.
Eu, com dezoito anos, e um outro rapaz, com dezanove, seríamos os reprodutores da fazenda.
Ele dividiu o grupo de mulheres e ficaríamos, então, responsáveis por elas.
Eu já não sentia os meus pés no chão...
Deus, aquilo não podia ser verdade!
E eu estava realmente ouvindo o senhor falando:
- Miguel, continue a domar os animais e a preparar os remédios.
E dou um prazo de três meses para você engravidar essas mulheres.
As dezanove virgens ficariam sob a minha responsabilidade.
Entre elas estava Ritinha.
As demais mulheres ficariam com o outro rapaz e no prazo de três meses, seria feita outra avaliação.
- A partir de hoje, cada um de vocês terá um quarto separado.
Durante o dia, cada um deverá fazer as suas tarefas e, à noite, não podem dormir sozinhos.
Vão se alimentar bem, mas se no prazo que dei eu não vir resultados, mandarei castrar os dois.
E as mulheres que tentarem evitar gravidez, terão - e falou uma palavra que evito repetir - o seu órgão genital costurado.
E, na presença de todos, morrerão assim.
Quero todas vocês cheias!
As que colaborarem, vão comer bem e serão bem tratadas; mas as que tentarem se rebelar irão para o tronco.
Ele dispensou todos, ficando apenas comigo, que não me sentia na terra, tamanho pavor tomava conta da minha alma!
Assim que os feitores levaram os meus irmãos desafortunados para as suas tarefas, o senhor, batendo levemente com um chicote nas minhas costas e apontando em direcção à casa dos feitores, disse-me:
- Hoje à noite, naquele quarto, você fará o seu primeiro teste como macho.
Eu vou mostrar como se faz.
Vou tirar a virgindade de todas as mulheres, depois você faz o que deve ser feito.
Às dez horas da noite, mandarei levar a primeira e vou até lá.
Dispensou-me, lembrando que eu deveria cuidar dos meus afazeres.
Saí cambaleando em direcção ao barracão da senzala.
Caí sentado no tronco de madeira, sem poder conter as lágrimas.
Não estava acreditando!
Não podia ser verdade, só podia ser um pesadelo!
Saí desesperado em direcção ao cemitério e chorei de joelhos na cova da minha avó Joana.
Implorei com todo o sentimento da minha alma que ela me ouvisse e viesse ao meu encontro.
De olhos fechados, senti que algo como uma brisa me abraçava.
E, ainda sem abrir os olhos, vi e ouvi, ali, nitidamente diante de mim, minha avó falando:
"Meu filho, a sua cruz está pesada, mas você não está sozinho.
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