LUZ ESPÍRITA
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O QUARTO CRESCENTE - José António/Ana Cristina Vargas

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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:01 pm

Se Esther foi justa e fez justiça em sua vida, é porque entendia o amor de forma plena.
Coragem, querida!
O influxo da energia benfeitora de Safia acalmou a repercussão orgânica e mental das emoções violentas que experimentou à visão de Kaleb.
Layla encontrou em si o espírito de arqueira, a disciplina mental e emocional que o exercício fizera desenvolver desde a infância.
Com absoluto controle andou em direcção ao sultão, acomodando-se ao seu lado, executando cada passo que traçara mentalmente no plano de expulsar e destruir os invasores de seu lar.
Safia suspirou resignada.
Em seu olhar luzia uma cálida chama de paciência, de aceitar o que se tornara inevitável.
Em pensamento, abençoou sua protegida e afastou-se dali.
Na manhã seguinte o sultão exalava satisfação e alegria.
Esquecera-se das razões que o levaram àquele pequeno porto na Europa.
Das questões religiosas, não lembrava sequer de um argumento.
Observava a falta de sumptuosidade da propriedade com desagrado.
Queria jóias, luxo e toda sensualidade de sua corte no Egipto.
Era em meio ao fascínio do Oriente que queria gozar da companhia de sua nova escrava.
Exibi-la seria um deleite à sua vaidade masculina.
Omar o ouvia escondendo a revolta.
Procurou chamá-lo à responsabilidade do momento, em vão.
– Confio em você.
É um líder guerreiro ímpar.
Delego-lhe as decisões e o comando de nossas acções.
Ficarei com as funções de estado e negociações com o Califa Al Hussain.
Ele é jovem, mas é um homem sábio, de bom gosto…
– É um infiel.
Deturpa a mensagem sagrada.
É dissoluto nos costumes e nas tradições…
– Ah!… Xeque Omar, se as mulheres andaluzas são todas assim… quem sou eu para condená-lo?
Matemos os homens e tomemos sob nossa protecção as mulheres.
Elas são incomparáveis.
Encontrei uma rainha sob a pele de uma escrava.
Desistindo de argumentar com o sultão, Omar ficou matutando sob a última frase ouvida.
Desconfiava da jovem.
“Fidelidade feminina é raro, mas existe, e quando existe é inviolável, incorruptível.
Será essa escrava fiel?
E se for, a quem?
Por certo que não é a nós que a compramos ontem.
Espero que essa paixão que cegou Kaleb se apague logo, como é de seu feitio.
Vou manter vigilância ferrenha sobre ela”, decidiu Omar num solilóquio íntimo.
***
Nas ruínas habitadas por irmão Leon imperava o trabalho, a alegria e a doença.
À primeira vista esta afirmação pode parecer descabida; como é possível a convivência da alegria e da doença?
Temos a alegria como incompatível com a doença.
Aliás, é só observar o semblante das pessoas quando ingressam nos aposentos de um enfermo.
Em geral, antes sorriam e conversavam descontraidamente; à medida que se aproximam da porta, a conduta vai mudando.
Mescla-se o medo e, socialmente, se considera adequado manifestar tristeza.
Deveria ser o contrário.
A tristeza pode gerar doenças sérias; a alegria é energia de bem-estar; por que não dizer de cura ao lado do amor?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:02 pm

Sentimentos contagiam e desencadeiam reacções orgânicas.
Cercar enfermo de lamentos e tristeza é piorar sua condição.
A saudável alegria – que não é balbúrdia, nem euforia desmedida – torna mais suave a convivência com a enfermidade, conduz paz e esperança.
Alegria é virtude; tristeza é necessidade existencial.
A igreja católica tomou para si a condição de representante do cristianismo quando ele deixou de ser um movimento de pessoas em busca de crescimento espiritual para converter-se na religião oficial do império romano, que de perseguidor arvorou-se em herdeiro único da mensagem de Jesus.
Entre as muitas inversões que, ao longo dos séculos, ela fez imiscuir nas ideias e ideais de Jesus e seus primeiros seguidos está a glorificação da tristeza e sufocação e repressão da alegria.
Porém, mesmo no auge desse domínio e de inversão de valores – à época conhecida como a Idade da Trevas –, os valores reais da mensagem do Rabi da Galileia reencarnaram-se no cantor de Assis.
O humilde Francisco, valoroso médium, ensina à humanidade novamente a alegria de render graças e glorificar a criação.
Ele é simplicidade, fé e poesia, na manifestação de seu amor incondicional à mensagem de Jesus, à vida e aos seus semelhantes desde o menor ser irracional vivo até o ser moral – o espírito humano.
Irmão Leon fora um delicado aprendiz dessas lições.
Reconhecia que, ao lado de Francisco de Assis, reencontrara seu equilíbrio, a paz, uma razão para prosseguir vivendo e amando; não saberia viver de outra maneira, naturalmente, sem imposição de votos exteriores – a ordem dos irmãos menores ainda não era reconhecida pelo Igreja.
Dedicaria o resto de seus dias a essa forma de viver e ensinaria a quantos por ela se interessassem, sem fazer, desse, seu objectivo de acção.
O principal era sua experiência, sua vivência.
Após a partida de Karim, na manhã seguinte, quando a aurora despontava, debruçado sobre o parapeito da desgastada janela, ele olhava os enfermos e indagava ao céu:
– Que farei com eles?
Muitos, a maioria, não fala minha língua.
Que faço, Senhor?
Manteve os olhos no firmamento alguns segundos; depois, começou lentamente a menear a cabeça em silenciosa concordância, como se compreendesse uma mensagem inaudita.
Murmurou:
– Caminhar, Andar, ir até eles.
Sim. Lógico. Entendo.
Ficar olhando não solucionará nada.
Claro, claro, como fui imbecil.
Óbvio que permanecer aqui distante deles olhando o céu é fazer coisa nenhuma para encontrar a solução.
És magnânimo, Senhor, divina inteligência.
Obrigado! Quisera ser inteligente como Tu.
Um dia… um dia… quem sabe, não é?
– O que? – indagava ele baixinho e aguardava.
Estou perdendo tempo?
Que é coisa preciosa?
Se entendi, tenho que fazer?
Ouvi direito, Senhor?
– Estás me repreendendo.
Eu aceito, como dizem meus hóspedes: sou submisso.
De imediato afastou-se da janela seguindo em direcção à saída.
Sob o batente estacou, atento, inclinando o ouvido direito mais para o alto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:02 pm

– O quê… Ah! Lembrar-me de agir como eu gostaria que fizessem comigo se estivesse no lugar deles. Está bem, entendido.
Ganhava o meio do pátio quando a voz da consciência novamente o fez parar.
– Como, Senhor?
Estás a me dizer que não é fazer o que eu gostaria e da forma como entendo agora, mas, sim, perguntar a eles o que desejam e o que precisam?
Sim, é lógico,
tens razão. Colocar-me no lugar do outro é isso, porque é bem assim que eu gostaria.
É verdade.
Eu teria horror se alguém chegasse e fosse mexendo em mim, fazendo mil coisas, sem se importar com o que eu estivesse sentindo.
Claro, claro, entendi a lição.
Perguntarei a cada um deles o que posso fazer para ajudá-los.
Deu mais alguns passos e parou de novo, lançou um olhar ao céu que se tornava azul e disse:
– Tem mais alguma coisa, Senhor, que desejes me dizer ou alertar?
Ahã, sei. Lembrarei que eles são muçulmanos e respeitarei integralmente sua forma de pensar e crer.
Sim, bem lembrado, é um direito deles e um dever meu.
Sim, sim, lembrarei.
Lógico, Senhor, por favor!
Sou parvo, mas nem tanto, nem pensei em impor-lhes minha fé só porque lhes dou abrigo.
Oram isso eu já aprendi.
Mais nada? Então estamos conversados.
Agora é entre mim e eles. Certo.
Se precisar, eu Te chamo.
Vai com Deus! O quê?
Ah! Estão sempre juntos.
Que bom, glória a Deus, então!
Andou e trabalhou em meio aos muçulmanos feridos, distribuindo sua mensagem humana de fraternidade acima de rótulos religiosos.
Falava do que tinham em comum:
exaltava-os na fé em Deus e tinha o cuidado de referir-se a Ele como o Misericordioso, o Clemente, em nada lhes ofendendo a forma de crer.
Notando que aqueles que estavam em melhor condição de saúde esfregavam a terra nos braços e no rosto para purificar-se para as orações, prontamente acercou-se do que lhe era mais simpático, comunicava-se como podia, misturando sinais, gestos e palavras, e ofereceu:
– Amigo, há um poço no pátio.
Seria excelente se os feridos quisessem se n]banhar, fazer suas abluções, purificar-se para as orações.
Infelizmente, não disponho de uma casa de banho, com o conforto que devia haver na da mesquita que vocês frequentavam.
Mas a água será melhor do que areia.
Podem usar à vontade, o poço nunca secou. É limpa e pura.
Tenho tinas de madeira que podem servir como banheiras…
– É muita compreensão sua.
Não esqueceremos sua bondade.
Tem em nosso povo amigos, irmão Leon – respondeu o muçulmano que o entendia, saudando-o agradecido.
– Por favor, use o que eu ofereço.
Conduza seu povo.
Eles irão melhorar mais rápido ao se sentirem em contacto com Deus.
O homem sorriu, pediu ajuda para pôr-se de pé e solicitou ver o poço.
No local, constatou que havia água em abundância, limpa, cristalina.
Logo reuniu os que estavam melhor e improvisaram uma casa de banho ao ar livre.
Os feridos foram lavados, e o novo amigo do religioso improvisou uma pequena assembleia religiosa, sendo escolhido o imã.
Caía a tarde, quando irmão Leon e seus dois auxiliares e amigos foram convidados a acompanhar a reunião dos hóspedes para, em prece, agradecer a Alá o dom da vida que lhes fora preservado e orar por seus mortos.
A alimentação era pouco variada, mas suficiente para todos.
Alimentados, limpos e medicados no corpo e na alma, eles logo encontraram o caminho do restabelecimento e da dolorosa, porém, imprescindível, aceitação de todas as perdas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:02 pm

NÉMESIS EM ACÇÃO
Cinco dias se passaram após o regresso de Layla a Cádiz.
Uma certa melancolia se apossava devagarzinho de sua alma, como uma sombra que espreita a madrugada, fugindo à luz do sol.
A tristeza se insinuava em seu olhar, mas desaparecia no confronto com outros sentimentos.
Ironicamente, ela trajava as próprias roupas não destruídas com a tomada da propriedade.
Fingira surpreender-se ao ver o baú cheio de roupas feitas sob medida, emitira gritinhos pretensamente de espanto, mas que eram também manifestação de dor.
Sentira-se como se visse seu próprio corpo morto; uma lembrança dos dias passados, das alegrias, dos afectos, de toda uma forma de vida da qual fora arrancada com violência.
– Eram da filha do emir.
Não é muita sorte, minha linda, que lhe sirvam tão bem? – indagou Kaleb, cada dia mais encantado com a formosa escrava.
Observou-a correr os dedos pela veste de seda bordada; notou a expressão profunda em seu rosto e interpretou tudo errado.
Pensou que ela estivesse acariciando o próprio corpo, proporcionando-lhe prazer, como forma de seduzi-lo.
Acercara-se dela, beijando-lhe os ombros, o pescoço e as faces.
Ao sentir um sabor salgado nos lábios, regozijou-se: ela chorava de prazer ao seu toque.
– Você é como as areias do deserto, linda.
Fascinante, às vezes escaldante, outras fria; em um momento banhada de luz e, logo, a mais profunda escuridão.
Você amará o deserto.
Vocês são forças semelhantes – murmurou Kaleb entre beijos e carícias.
A alma da jovem ardia de dor, construindo a compreensão vivencial de que tudo nesta vida é transitório.
É sábio desapegar-se, reconhecer a possessividade e transformá-la em generosidade, alterando seu núcleo central.
Descobria o preço amargo da satisfação da vingança.
O sultão queimava, cego e surdo, nas chamas da paixão sexual, aquele era o abraço dos extremos, representativo de que proximidade física nem sempre é sinónimo de comunhão espiritual.
Layla sorvia a taça amarga do veneno, antes de ofertá-la ao agressor.
Muitas partes de si morriam; suas perdas prosseguiam.
O caminho da vingança é tão mal traçado quanto um abraço de serpentes, no qual não se sabe onde começa uma e acaba a outra.
Quem era vítima e quem era agressor?
Layla era a vítima de ontem, Kaleb a vítima de amanhã.
Um agrediu; a outra irá agredir.
Apenas uma ténue linha permitia diferenciá-los, a linha da necessidade.
Kaleb agredira sem necessidade; a filha de Al Gassim agredia por necessidade.
Embora essa ténue divisão não a isentasse da dor, sofrimento e responsabilidade, era, por assim dizer, uma atenuante a favor de Layla.
O escândalo é necessário – ensinou Jesus –, mas ai daquele por quem venha.
O escândalo pode converter-se em benefício ao agredido, mas, ainda assim, não retira a responsabilidade do agressor.
O facto de que do mal nascerá um bem não serve como justificativa, pois do bem, também nasce o bem.
Ele é auto-fecundante.
O mal é por ele fecundado.
Toda centelha de luz que lançamos em nosso interior fecunda um mal – uma ignorância – que carregamos e faz nascer o bem.
Layla vivia processos rápidos de amadurecimento e transformação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:02 pm

Se as cercanias em torno de Cádiz viviam dias de tensão, mas não de conflito, o facto se devia a que todas as batalhas tinham por arena o íntimo da que fora princesa e era agora escrava.
Engolindo e sufocando a dor, Layla gemeu.
O que soou aos ouvidos de Kaleb como a melhor das músicas, fê-lo sentir-se poderoso, fonte de um prazer inesgotável.
– Quando meu amo pretende voltar à sua terra?
Nunca falou antes…
– Breve, linda.
Você se apaixonará pela minha terra.
Ela é adorável, como seu corpo.
– Se é o sultão quem diz…
Diga-me como é viver em seu reino?
Claro, eu irei morar no harém junto com as outras.
Você tem muitas escravas?
É um homem poderoso, deve ter também muitas esposas.
Quantas? Elas são bonitas?
Dançam para você?
– Hum, quantas perguntas!
– Perdão – pediu Layla.
É curiosidade, nunca havia falado sobre seu reino, seu povo.
Eu não sei nada.
Não que precise saber, mas… bem, é bom que saiba, sou curiosa e adoro aprender sobre países e culturas não conheço.
– A viagem é longa.
Eu lhe ensinarei tudo que desejar quando estivermos a caminho.
Agora não temos tempo.
É preciso resolver logo essa questão, fixarmos o domínio sobre o porto.
Tão logo isso esteja consolidado, um navio retornará ao Egipto, com ordens de trazer os reforços necessários para começarmos a invasão territorial até a tomada de Córdoba – Revelou Kaleb, inebriado pelos carinhos que as mãos e Layla lhe fazia.
Nem ao menos percebera que revelava seus planos de guerra contra o Califa Al Hussain.
– Ah! Eu pensei que me levaria para conhecer o deserto em breve – resmungou Layla, fingindo-se dengosa.
Sonhei em vão com o luxuoso palácio que me descreveu e com as jóias que me presentearia.
Ainda bem que as roupas das mulheres desta casa escaparam à devastação.
– É natural que existam roupas femininas na casa de um muçulmano influente.
Mas não tenho tanta certeza se elas são algo bom.
Talvez eu mande queimá-las para que você permaneça nua, presa nos meus aposentos.
Layla riu, de forma rouca e baixinho.
Escapando do abraço, começou a dançar para o deleite do sultão, empurrando-o e jogando -o sobre um leito coberto de almofadas.
– Não faça isso, eu imploro – pediu Layla, enquanto fazia os seios estremecerem ao ritmo de uma música que só ela ouvia.
A viagem ainda demorará muito.
Você não sairá de Al-Andaluz antes da tomada de Córdoba.
– Não sei – respondeu Kaleb, acompanhando com o olhar faminto o ventre da dançarina ondular à sua frente, acariciando-a sem pudor.
Não me arrisco desnecessariamente – e puxou-a sobre si, encerrando a conversa.
Na manhã seguinte, Layla espreitava o longo corredor vazio.
Abaixou-se e descalçou as botinas.
Não queria o menos risco de ruído e caminhou, apressada, até a outra ala daquele andar onde conhecia os caminhos que a colocariam dentro e fora dos muros da propriedade, sem ser vista pelos homens de Kaleb.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:02 pm

Escondido, em uma reentrância do grosso muro de pedra, Kiéram a aguardava aflito.
Ao vê-la com o rosto corado, os longos cabelos soltos, vestida com as belas roupas de seu passado, trazendo bem seguros em uma das mãos o par de botinas e o véu, esqueceu-se da missão de chefe de exército mercenário e abraçou-a forte, desejoso de ter a certeza de que ela estava bem.
Para Layla os braços do mercenário cristão tinham o saber e o aconchego do lar; sentia-se parte dele, querida e desejada apenas por ser quem era e como era.
Foi um refrigério para o que se obrigava a viver ao lado do sultão.
Mas era ciosa do dever e dos cuidados precisos.
Assim, beijando-lhe a face e acariciando-lhe os braços, afastou-se e falou baixo, escondida entre as pedras.
O lugar era escuro, quase uma gruta.
Repassou todas as informações que conseguira sobre os planos do sultão, os reforços militares e informações iniciais de como estava estruturada a segurança interna da propriedade.
Percorrera apenas algumas alas, exactamente como previra, daí a importância de preservarem aquele local de encontro.
Pediu-lhe cuidado para não o revelar, nem dar margem a desconfiança.
– Não há perigo, Layla. O que achou da minha roupa?
Fico bem em trajes orientais?
– Estranhei, acho que prefiro vê-lo com suas roupas de guerreiro cristão.
Num impulso, ela se aproximou de Kiéram, o abraçou, beijou-lhe os lábios e, antes que ele pudesse se recuperar da surpresa, afastou-se, desaparecendo nas sombras de volta ao interior da propriedade.
***
Karim velava o pai.
Era madrugada; os servos que o auxiliavam perambulavam pelo aposento na tentativa de espantar o sono que a hora quase impunha.
Só o dever é capaz de manter um ser humano acordado, vigilante, ao pé de alguém, nas horas mortas e silenciosas da madrugada.
E este é um sentimento que nasce na consciência, não na obrigação servil.
As horas da madrugada são um convite ao cumprimento da lei de repouso das actividades do corpo, da correria incessante atrás da sobrevivência material.
Algumas vezes é nessas horas silenciosas que nos permitimos meditar – a forma
de descanso dos espíritos –, esvaziando o pensamento, abrindo os canais de contacto com o mundo superior.
É aí que podemos ouvir em nosso íntimo a voz dos espíritos protectores, é quando deixamos aflorar os fluxos de criatividade e interacção.
São os benefícios do silêncio que naquele momento o jovem utilizava.
O filho do enfermo – moribundo em verdade – emir de Cádiz, contemplava a face paterna pálida e encovada.
Nasser Al Gassim tornara-se um velho em pouco tempo; seus cabelos haviam branqueado e caído significativamente, existindo rodas de calvície em várias partes da cabeça.
Emagrecera em decorrência de um estado nervoso que não dava condições de bem alimentar-se.
Falava pouco, respirava com dificuldade e dormia a maior parte das horas sob o efeito de narcóticos prescritos e administrados por Ibn Rusch.
“Meu Deus, o que é a vida? ”, meditava Karim durante a análise do doente.
“Meu pai, há poucos dias era um homem viril, forte, saudável, activo.
Agora… transforma-se, dia a dia, num trapo, num farrapo humano.
Sombra do que foi.
Aliás, sombra distorcida.
De que terão valido tantos anos de esforço, trabalho?
De que valerão esses dias e noites de sofrimento?
A morte virá, não resta dúvida, colherá os frutos da vida, pois é seu trabalho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

E o que fará deles?
Eis a grande questão.
A mágoa, a dor, a culpa o roem intimamente e com enorme e voraz apetite.
Já é possível visualizar o estrago.
A perda de Layla o destruiu.
Culpa-se por não a ter protegido.
Mas não devia.
De que adiante remoer uma mágoa, uma dor, cuja solução não está em nossas mãos?
Bem, é preciso reconhecer nossa falibilidade, o que não é nada fácil.
É preciso reconhecer que não sabemos nem podemos tudo.
Admitir limitações de todas as espécies:
física, territorial, material, emocional, intelectual é um grande passo rumo à evolução do ser espiritual, que todos somo em essência. ”
Ao lado de Karim, sentada no braço da poltrona, Safia captava o pensamento do amigo e imiscuía-se em seus pensamentos sugerindo-lhe com suavidade ideias e conceitos, buscando desviar a rota dos sentimentos de revolta e ira, de tal forma que ele nem sequer percebia que recebia naquele instante um auxílio precioso.
“Todas as religiões falam de uma vida após a morte.
Como será?
Falam de felicidade e de dor, como situações estanques e lugares determinados, onde uma não mais se misturará com a outra.
Será que é assim? E se for?
Bem, então é questão de escolha.
Não preciso morrer para ter o céu.
Posso viver aqui e agora momentos de intensa felicidade ou horas de profunda agonia, de dor insuportável; tudo vai depender da minha forma de pensar, sentir e agir.
Eu posso construir o céu ou o inferno dentro de mim, a partir do meu modo de compreender e aceitar as coisas.
Isso me faz lembrar as histórias de Nasrudim, que ele contava para mim e Layla, sob a sombra das árvores.
Ríamos muito, mas ele sempre dava um jeito de nos fazer pensar.
A vida e a morte pode ser como as gotinhas de chuva de Nasrudim{14}, sagradas.
Tudo está em como as vemos.
Entendendo a morte como um destino melhor, aceitamos o fim.
Por medo desse desconhecido, orientamos nossas acções para não pisar nas coisas sagradas durante a vida, assim ganharemos o céu prometido.
Será essa a safra da morte?
Recolher as coisas pisadas ou intactas que deixamos ao longo da vida?
Mas o que será sagrado?
Já não sei mais.
Sempre pensei que todas as palavras do Alcorão fossem sagradas e justas, mas agora… depois de tudo… não sei mais.
Não sei o que é fé, nem sei se a tenho ou se a tive algum dia.
Quisera saber tantas coisas!
Layla e todos nós estamos na condição do homem santo que foi advertido de que, fugindo da chuva, rejeitava algo divino; por medo de perder sua condição social, ele adoeceu.
Também não tinha fé.
A noção de divino, sagrado e fé, nele, era uma casca, escondia outros sentimentos e objectivos.
Nós estamos caminhando sob a chuva, quando queríamos correr.
Isso me irrita.
Papai está nesse estado pelo mesmo motivo.
Obriga-se a obedecer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

É horrível! Eu perco, sinto que perco tudo, fé, calma, saúde, afecto, meu mundo perde sentido.”
Por alguns minutos Karim deixou seu olhar vagar pelo aposento; sentiu uma brisa fria que entrava em um pequeno vão da janela.
Aproximou-se. O ar frio tem o poder de clarear a mente.
Safia, parada a seu lado, sugeriu, mentalmente, que ele observasse as estrelas.
E inspirou-o a pensar:
“Não. Existe o sagrado.
Posso não compreendê-lo, mas ele existe.
A natureza é tão bela, cada hora tem uma beleza incomparável.
Ela obedece a leis que não mudam, que se cumprem sempre percorrendo um ciclo, por isso as flores não nascem no inverno.
E é preciso que transcorram os nove meses para que uma mulher grávida dê à luz.
Isso é a mão de Deus escrevendo na natureza a sua existência.
Eu não o vejo; mas não vejo tantas coisas e, mesmo assim, sei que elas existem e sinto seus efeitos.
Deus é igual, não posso vê-lo, mas sei que ele existe.
A vida me fala dele sem palavras, mas com imagens e sons.
E as leis desse mundo natural são harmoniosas, não há punição, nem castigo.
Não será o homem que, em sua necessidade de tudo saber, de tudo dominar, em sua possessividade, encheu o vazio que tinha com uma quantidade de visões falíveis, tal como ele é?
Será que podemos pensar em uma mão humana escrevendo a verdade absoluta?
Será que não podemos entender esse anseio por estar seguro?
Essa não aceitação das limitações e dos vazios – que a razão devia, passo a passo, preencher e fazer desabrochar a confiança em Deus – não terá nos levado a criar histórias, a seguir líderes e a obedecer-lhes e daí toda uma estrutura social?
Nós somos diferentes dos animais não só porque pensamos e vivemos em sociedade, mas, acima de tudo, nos motivos por que agimos assim.
É a consciência que nos diferencia, ela nos levar a buscar nossa origem.
Precisamos saber e conhecer quem nos deu a vida.
Sentimos Deus, eis um facto.
E o sentimos como uma inquietação, uma busca pelo melhor, um anseio de saber; isso é pensarem Deus, sem ter consciência do que fazemos.
Não será por essa razão que algumas pessoas fazem da religião um caminho de organização e dominação social, enquanto deveria ser de libertação pessoal?
Pensar dessa forma pode parecer heresia, rebeldia pura, mas nos pacífica.”
Ruídos do enfermo chamaram a atenção de Karim que, prontamente, dirigiu-se ao leito.
O emir abriu os olhos opacos, fitou o tecto com uma expressão de vazio, como se o ato de erguer as pálpebras houvesse sido mero reflexo e ainda estivesse inconsciente.
Karim assustou-se e, tocando de leve o ombro do pai, suspirou aliviado quando ele moveu os olhos em sua direcção.
– Que susto!
Desta vez o senhor dormiu com vontade.
Como está se sentindo? – perguntou Karim.
– Tenho sede…
O jovem apanhou a jarra sobre o criado-mudo e serviu uma taça com água fresca, levando-a aos lábios do enfermo cuja cabeça soerguia com a outra mão.
– Karim… sua irmã… ela… precisa… de você. – falou o emir, com dificuldade; a respiração entrecortada.
Ajude-a… sempre. Prometa-me…
– Eu prometo.
Jamais abandonarei Layla.
A seriedade no tom de voz de Karim revelava que ela compreendia estar vivendo um momento solene.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

– A lei… meu filho… nem sempre… foi… escrita ou… ou… interpretada com… as palavras do coração.
São ho… homens duros… que… maltratam e desprezam… suas mulheres… e fi… filhas.
Eu amo Layla. Cuide dela… sempre, não… importa o que… aconteceu.
Ela não teve culpa. Deixe que ela se ca…se com… Zafir.
O gasto de energia neste diálogo foi o último suspiro da vitalidade do emir.
Não conseguiu dizer mais nenhuma palavra, caindo num estado de prostração que perdurou até a chegada da manhã, quando, em meio às crises da morte, deixou seu corpo físico.
Seus pensamentos finais revelaram a causa de todo seu padecimento e aflição.
O golpe desfechado sobre a filha, a desgraça em que fora lançada venceram Al Gassim.
É fácil dizer que não somos responsáveis pelos actos alheios simplesmente porque não partiram de nossa mente a ideia e a ordem de executá-los, mas, sob a óptica da vida imortal, aquilo que fazemos sentir também é gerador de responsabilidade.
Munir, desencadeando em torno de si sentimentos fortes, era o legítimo responsável por todos os danos que eles viessem a causar, nos quais se incluía a morte de Al Gassim, numa forma requintada de homicídio.
Munir não usara drogas para provocar um enfarte cardíaco letal, mas destilara a raiva em seu semelhante.
E esse poderoso sentimento passou a desencadear todos os sintomas e efeitos que o caracterizam, podendo, inclusive, matar, sem deixar nenhum rastro do criminoso.
Agora usando, instintivamente, o conhecimento e funcionamento da lei natural.
Karim gritou chamando os servos.
Em desespero, mandou um deles em busca do médico.
Tudo em vão, era demais.
Abraçado ao corpo do pai, ele chorou até que a lucidez veio alertá-lo, lembrando-o dos procedimentos necessários.
Com cuidado, depositou o corpo de volta no leito; cerrou-lhe os olhos e ocupou-se de dar-lhe melhor aspecto.
Depois rasgou a manga da túnica que vestia, num sinal característico de luto segundo sua crença.
Adara e Farah, abraçadas, compartilhavam a dor da perda.
Karim envolto em seu sofrimento, não as vira entrar no quarto; ao afastar-se do leito mortuário, viu-as e, com lágrimas nos olhos, as abraçou.
– Agora, restam apenas nós – murmurou Adara.
– Nós e Layla – retrucou Karim.
A menção da filha desaparecida fez com que Farah chorasse desesperada.
– Ela está viva, eu sei, eu sinto.
Adara acariciou as costas de Karim, num gesto de conforto e entendimento, ao dizer-lhe, ao ouvido, com voz dorida, porém calma:
– Vá, Karim. Faça o que precisa ser feito.
Eu e sua mãe faremos nossa parte.
Somos poucos, mas há outras pessoas do nosso povo que devem ser informadas do falecimento de Nasser, ele era nosso líder.
Há muitas providências a tomar, não perca tempo.
Farah, tomada pelo desespero de suas dores e perdas, chorava convulsivamente.
Deixara os braços do filho e, prostrada ao pé do leito, rasgava as vestes e estapeava o rosto, repetidas vezes, recitando preces em meio a soluços.
O filho a olhava preocupado.
– Vá, Karim.
Eu cuidarei dela. Não tema.
Depois de todos esses anos aprendi a gostar de sua mãe como se ela fosse minha irmã.
Ser mulher no islã ensina coisas muito estranhas à alma, meu querido, e uma delas é amar sem apego e exclusividade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

Judeus e cristãos não entendem nossas famílias polígamas porque não atentam no que cada uma das partes envolvidas aprende.
Eu aprendi a não ser possessiva.
Eu amo seu pai e sei que ele me amou, mas sei também que ele amou as outras, cada uma à sua maneira, sem que uma forma fosse superior ou inferior à outra, apenas são diferentes. Eis tudo.
Não me olhe tão surpreso, Karim.
É isso mesmo.
Em breve você terá esposas e se lembrará do que estou lhe dizendo.
Sua mãe não é uma rival, é minha irmã de coração.
Eu cuidarei bem dela.
Karim balançou a cabeça em anuência.
Aquela estava sendo uma madrugada difícil, não cabiam discussões, além do mais confiava em Adara, como se fosse sua mãe.
Pensando assim, sentiu-se um ser privilegiado; tinha duas mulheres admiráveis como mãe. Não estava só.
Adara afastou-se procurando os criados para dar as ordens necessárias.
Observando-a, altiva e resignada, embora a dor fosse visível em seus olhos, Karim encontrou forças de cumprir com os deveres que lhe competiam.
Nenhum deles viu ou registrou a presença de Safia, que acompanhava, à curta distância, a movimentação da equipe espiritual responsável pelo serviço de desencarne do emir:
– Vamos levá-lo para um local de repouso – informou o coordenador da equipe espiritual.
Infelizmente, os abalos das fortes e consecutivas emoções foram desgastantes para Nasser, encurtando-lhe a expectativa de vida.
Safia aproximou-se.
Vendo o recém-desencarnado inconsciente, apenas meneou a cabeça e pediu:
– Por favor, avise-me quando ele estiver lúcido e ciente de onde se encontra.
– É uma incógnita, como você bem sabe.
Mas prometo que, tão logo ele tenha condições de recebê-la, mandarei avisar.
– Obrigada – respondeu Safia, apertando suavemente a mão do coordenador.
Vão. Levem-no, é o melhor.
Eu procurarei ajudar os familiares.
É uma hora dura; começa a revisão de uma relação que chegou ao fim, transitório, mas, ainda assim, um fim.
É preciso enfrentar o que há de trágico na vida, não é mesmo?
Tentarei fazê-los ver que na dor e na tragédia também há espaço, e grande, para o sagrado.
– É claro que há.
E diria que um espaço considerável, pois a vida e a morte são como um eixo sobre o qual se move a lei do progresso.
– Bendita lei de opostos e extremos na qual todos caminhamos.
Nascer e morrer são etapas de crescimento.
No fundo são como portas que nos retiram de um espaço para dar acesso a outro.
Karim abalou-se mais do que demonstrou pela experiência vivida neste quarto agora há pouco.
Contudo, ele é dócil e capta com facilidade meu pensamento; não será tão difícil fazê-lo entender…
O coordenador da equipe espiritual sorriu e, acenando aos seus auxiliares, sinalizou que iriam partir de imediato.
Despediu-se de Safia com um gesto breve e contido, cheio de simpatia e confiança, e partiu acompanhado deles e conduzindo, pessoalmente, o espírito adormecido daquele que fora Nasser Al Gassim.
Nos dias seguintes, o universo emocional de Karim era semelhante a um dia nublado, que prenunciava chuva; ora um vento forte varria furiosamente, ora um clima abafado, sufocante, dava desespero.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

Eram dias de muitas perdas, de significativas perdas e todas inesperadas e drásticas.
Não era sem razão que seu mundo ruía, que a lógica dos fatos e a crueza de seus sentimentos punham por terra todas as convicções religiosas que abrigara, e ele, agora, duvidava de tudo ou quase tudo; em um recesso profundo da alma ainda confiava em Deus.
Mas não era mais o Deus ensinado nas mesquitas, era outro Ser que ele descobria envolto em muitos véus e que, em meio às dores e conflitos, se desvendava.
Esse ser, que a sabedoria de Safia o auxiliava a encontrar e sobre ele reflectir, o acalmava, embora soubesse que devia silenciar sobre as ideias que acorriam à mente.
A sociedade em que vivia, regra geral, ainda não podia acolher aqueles pensamentos.
Apenas um ou outro elemento, em qualquer das crenças conhecidas, tinha abertura mental para questionar e conversar com Deus livremente, para ler a vida e dialogar sobre as próprias descobertas sem a intenção de impô-las como verdades aos outros.
Amirah foi a companhia paciente que lhe ofereceu abrigo, que acolheu suas queixas, que em muitas ocasiões, mesmo sabendo o que ia na alma de Karim, fez silêncio e lhe ofertou o espaço da própria descoberta.
Uma amizade sincera nasceu em meio ao caos.
Ele esqueceu sua curiosidade sobre o estranho modo de vida da jovem viúva.
Ocupado com as próprias odres, nem ao menos lhe ocorreu perguntar por que ela vivia reclusa em seus aposentos e com uma vida restrita àquele palácio ao qual bem poucos tinham acesso.
Aceitou tudo como natural.
A amistosa relação com Ximena era, de facto, aos olhos de Karim, perfeitamente compreensível, pois em seu lar também judeus e cristãos eram tratados com amizade e consideração.
Passados os dias de luto pela morte de Nasser Al Gassim, era necessário partir.
Regressar às ruínas da igreja onde deixara muitos feridos.
Ibn Rusch partira na manhã do falecimento do emir, pretextando que tinha compromisso com a vida e não com a morte, e que, portanto, sua missão era ao lado dos que lutavam pela vida.
Quando o servo abria a porta principal para que Karim partisse, ouviu passos ligeiros e a voz de Amirah o interceptou.
– Não posso crer que você ia partir sem se despedir – admoestou ela, alegremente.
– Ia. Não gosto de despedidas; nunca gostei, agora menos ainda.
– Lamento, então, ter vindo.
Vá – disse ela, dando-lhe as costas.
Mas, quando dava os primeiros passos, sentiu a mão de Karim segurar-lhe o braço e o ouviu pedir:
– Perdão, não quis ofendê-la ou ser rude.
Estou me sentindo perdido, você sabe.
Faço tudo por obrigação, por dever, ou porque é preciso; não sei quais são minhas vontades verdadeiras.
– Entendo – murmurou Amirah, voltando-se para encará-lo.
– Nós, mulheres, fazemos tantas coisas por obrigação que, para muitas, é difícil saber quando estão fazendo algo por vontade própria.
Sei o quanto é ruim viver desse modo.
Mas, se lhe serve de consolo, pense que o que está fazendo é necessário e útil para sua família, seu povo, para quem for receber sua acção.
Isso dará um sentido aos seus actos e a compreensão de que nenhum sofrimento é em vão.
Depois que a dor aliciar – e ela alivia sempre; a distância que o tempo impõe aos factos acaba por nos dar o esquecimento que ameniza as dores –, você poderá pensar sobre isso e encontrar suas vontades.
Eu sei que elas não desaparecerão, não existe um ser humano sem vontade própria; há sim, muitos seres humanos cujas vontades são submetidas, anuladas, nunca destruídas.
– Será que demorará muito para eu encontrar minhas vontades?
Você pode me responder isso? – questionou Karim sem esconder a agonia que sentia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:03 pm

– Não, eu não posso Karim – respondeu Amirah suavemente.
Depende só de você, e cada um tem o seu tempo de descobrir…
– Eu voltarei Amirah.
Trarei os feridos para Córdoba.
Já devem estar recuperados.
Depois eu devo partir para encontrar seu irmão, talvez saber notícias sobre o destino de Layla.
Talvez até lá tenha me reencontrado com minhas vontades, talvez eu já seja então senhor delas…
Será pedir muito que espere por mim?
– Karim, minha vida é esperar pelo dia de amanhã.
Nunca houve um futuro a aguardar.
Assim com você me disse o que sente, eu também preciso lhe dizer de forma dúbia que esperarei por você e cada amanhecer e, quando o sol se puser, eu rezarei para ver o amanhecer.
Não sei quanto tempo isso levará, não importa – respondeu Amirah, serena e séria.
Depois, aproximou-se devagar e o abraçou.
Era um abraço terno, suave; não apertava, apenas envolvia, rodeava de carinho.
Foi ele que, num rompante, a tomou nos braços e apertou-a junto a si com força; enterrou o rosto na curva de seu pescoço, depois a largou, inopinadamente, e, sem dizer nenhuma palavra de adeus, partiu sem voltar a lhe endereçar sequer um olhar.
***
Jamal discutia com seus conselheiros, emires de diversos exércitos, o plano para retomar Cádiz, especialmente a propriedade de Nasser Al Gassim.
Diante do esboço de mapa detalhado do prédio e das defesas do sultão Kaleb que lhes era dado observar, uma pergunta surgia nos olhos e lábios dos interlocutores.
Foi o emir Badrudim quem lhe deu voz:
– Por Alá, explique-me como temos, em tão pouco tempo, um mapa assim tão detalhado.
Como se deu esse milagre?
É confiável?
Como vou saber se, seguindo essa ideia, não estou jogando meus homens em uma luta inglória?
À manifestação de Badrudim seguiu-se um murmúrio de apoio.
Nitidamente os emires duvidavam da veracidade e da origem do mapa e das manifestações.
Jamal trocou um olhar com Kiéram, que permanecia calado.
O líder mercenário não conseguia deixar de pensar no alto preço que Layla pagava para transmitir-lhes aqueles dados.
Mesmo sabendo das razões dela e entendendo-as, via que a jovem caminhava sob o fio cortante da espada do sultão e de seus homens.
Aquele trabalho poderia bem ser uma sentença de morte, se fosse descoberto.
Como ela fizera para elaborar, às escondidas, o material era uma incógnita, seu olhar passeou pelos bem trajados e alimentados emires, com suas vestes luxuosas, e fez grande esforço para conter a raiva que ameaçou dominá-lo.
“Eles não sabem de nada, não posso condená-los por duvidarem do plano.
Como eu gostaria de dizer-lhes que devem isso à coragem de uma mulher muçulmana, que para eles é agora um estorvo, uma desonrada.
Bom Jesus, quanta barbaridade faz o homem em nome desse sentimento que desconhece tanto, que nem ao menos reconhece nas acções de seus semelhantes.
Layla age por vingança, eu sei, mas não somente por isso.
As consequências de seu ato serão de proveito para um povo, para uma nação inteira, para pessoas de diferentes raças e diferentes credos que, graças à honra e à coragem dela, no futuro herdarão o direito de conhecer, de pensar e discutir com liberdade temas importantes e, mais, ela dará a cada um de nós, no presente, a liberdade de viver onde e como gostamos.
Ela destrói e destruirá, ainda mais, causará escândalos, mas tudo é necessário.
Creio que nem mesmo ela consegue vislumbrar em que se meteu; seus sentimentos devem ser muito misturados, mas ela enxerga com maior clareza do que todos esses homens juntos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:04 pm

Eles não valem o chão que ela pisa.
Estranhando o alheamento de Kiéram no debate, Jamal o interrogou:
– Senhor Simsons, o que tem a dizer?
Kiéram encarou o Califa, detidamente.
Tinha ânsia de dizer a verdade a todos aqueles homens vem vestidos e aquinhoados, mas respirou fundo, repetidamente, e respondeu:
– Com ou sem sua permissão, Califa Hussain, eu esclareço a dúvidas dos emires e faço público o que era um segredo entre nós.
O informante responsável pela elaboração destes planos é um dos mais fiéis guerreiros que conheço e que se encontra sob meu comando.
Está espionando o sultão com risco da própria vida e fui eu quem recebeu e trouxe esses documentos sobre os quais se traçam os planos.
Assim, senhores, espero que confiem, incondicionalmente, nestas informações, como eu mesmo o faço.
Jamal empalidecera ao ouvir as primeiras palavras de Kiéram; ao escutar as últimas, suspirou aliviado.
“Esse cristão é astuto como uma raposa.
Tem uma força de carácter que faz com que os outros o sigam naturalmente”, pensou notando, com um meio sorriso, que a atitude dos emires mudara.
Kiéram revertera o jogo com sua declaração que dizia a verdade em parte.
Pelas manifestações dos presentes, era fácil ver que acatavam e admiravam o que julgavam ser um plano de Jamal Al Hussain executado pelo exército mercenário chefiado por Kiéram.
Logo o entendimento se fez e concluíram as negociações.
Aguardariam o sinal do “espião” para atacar, como constava dos planos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:04 pm

A RODA DAS TRANSFORMAÇÕES
Irmão Leon bebia, calmamente, uma caneca de água fresca à sombra da árvore.
Aproveitava a hora de quietude da sesta para pensar.
Desde a chegada dos feridos que sua rotina sofrera severa alteração; tinha poucos momentos de solidão e descanso.
Naquele momento que a situação encontrava o rumo do equilíbrio.
Dois feridos tinham morrido.
Outros três encontravam-se em estado de saúde que exigia cuidados; os demais recuperavam-se ou consideravam-se restabelecidos.
Trabalhara muito, mas a consciência estava em paz e o coração feliz; o corpo se refaria depois da refrega inesperada.
Fizera amigos.
Era muito bom interagir com outras pessoas, ser útil, sentir-se necessário.
Agradecia ao Senhor ter ouvido suas palavras de advertência no relacionamento com os enfermos muçulmanos.
Quanta paz poderia o homem usufruir se apenas aprendesse a aceitar e respeitar as diferenças em seus semelhantes!
Livrando-se da visão de achar-se o melhor, o sempre correto, de ser senão dono da verdade ao menos seu melhor intérprete, andaria em direcção à humildade.
Abriria par si a visão da realidade relativa de tudo que compõe nossa existência e ficaria bem mais fácil aceitar-se e aceitar o outro.
Há ante os olhos humanos um espelho que distorce a auto-imagem; enxergamo-nos como criaturas ideais, temos anseios de perfeição, de correcção, tanto da dimensão física como da moral/espiritual.
Enquanto miramos esse reflexo distorcido, estamos longe de dominarmos a verdade possível sobre nós mesmos e com relação aos outros.
Nesse mundo-escola não cabe o ideal, cabe o possível.
Buscar aqui a perfeição ideal é quimera que faz sofrer e causar sofrimento, por ser impossível, pois não aceitamos, em profundidade, a nós mesmos e rechaçamos a realidade alheia, já que, em geral, a vemos ainda mais imperfeita.
São raros os seres que admiram, sinceramente, as qualidades alheias, sabendo separar e compreender que ao lado do vício também há virtude e vice-versa.
Regra geral, porque idealizamos tudo e a todos, queremos oito ou oitenta.
Ou a criatura é perfeita ou é imoral; se for perfeita, a mais leve escorregadela basta para que a lancemos na conta de imoral, esquecidos de que, sobre a Terra, encarnamos e desencarnamos, tantas vezes quantas forem necessárias, para construir em nós a perfeição relativa ao grau de desenvolvimento espiritual que ela comporta, e no qual o ideal pleno, a perfeição absoluta, não é possível.
Por aqui andamos buscando nos descobrir, saber quem somos; conhecer-nos, saber como funcionamos e, com esse conhecimento, desenvolver em nossas personalidades o equilíbrio e caminhos para uma futura unidade interior.
Precisamos abandonar condutas e visões extremadas.
Pensando em algumas dessas ideias, o religioso meditava em passagens do Sermão da Montanha que lhe vinham à memória.
“Jesus foi um homem interessante.
Parecia enxergar o fundo de cada ser humano e andar com tranquilidade em nosso íntimo justo onde nos enredamos e parecemos cegos, tacteando caminhos.
Toda sua linguagem fala de pontos extremos, de coisas duais.
Promete a bem-aventurança, ou seja, a felicidade aos infelizes e sofredores.
Diz que aqueles que choram irão rir; que a consolação será dada aos aflitos; enfim, é dor versus prazer; alegria versus tristeza, pacíficos versus coléricos.
Quer dizer… é assim que somos, não conheço ninguém, eu mesmo nunca consegui manter uma conduta única; nós oscilamos entre esses extremos, somos capazes de ambos e o fazemos, às vezes, juntos: rimos e choramos na mesma hora; sentimos prazer na dor e dor no prazer, vivemos em paz desde que nada nos agaste, ninguém nos incomode, pois aí a cólera mostra que tem casa dentro de nós. Esse sermão é um estudo da alma humana, ele nos conforta por sermos desse jeito, não nos condena.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 16, 2018 9:04 pm

Ensina-nos que é preciso fazer um caminho da autotransformação, pois é depois de nos mostrar que carregamos essas dualidades que o Mestre passa a leccionar sua doutrina, a revogar velhos comportamentos, elevados à condição de lei, e nos propor novas atitudes diante da vida e, especialmente, diante de nossos semelhantes.
Só depois disso Ele pede que sejamos perfeitos como o é nosso Pai Celestial.
Que mensagem linda e forte!
Conhecermo-nos, reconhecer nossos comportamentos extremados e modificá-los, estabelecer uma outra lei entre os homens, mais tolerante, mais compreensiva, mais integradora.
Ser perfeito como Deus.
Será possível?
Jesus usava com frequência uma linguagem
forte para chamar a atenção.
Se eu for perfeito como Deus, acabarei sendo igual a ele.
Não, não creio que seja possível.
Talvez ele quisesse apenas dizer que ser criaturas cheias de amor, afinal, Deus é amor em plenitude e abundância.
O amor liberta, quando bem entendido e vivido.
É o sentimento capaz de nos conduzir da dualidade à unidade, de dosar e transformar nossos extremos em caminhos do meio.
Foi isso, Senhor, que quiseste dizer?
Estou no caminho certo?
É correto pensar que o amor é o sentimento que irá clarear e iluminar meu íntimo, que me dará equilíbrio?
Mas que as suas sementes, ainda que estejam em meu coração, não germinarão nem darão frutos sem que eu me esforce?
Por isso nos deixaste esse sermão tão lindo, como um caminho, um mapa, que nos levará à felicidade.
Esse anseio de todo ser humano, que a cada um compete conquistar, que não vem de fora para dentro, mas, ao contrário, que nasce em nosso coração e se esparrama por nossos sentidos, pensamentos, acções, atitudes…
Os homens deviam pensar um pouco mais em ti e nas tuas lições.
Mas não como alguém distante, cego e surdo aos nossos chamados, e, sim, como te apresentavas, um mestre para nós, próximo, atento e paciente.
Estou longe dos meus irmãos em religião e nossa ordem ainda não é aceita pelo Papa.
Antes de conhecer o pensamento de Francisco, eu me sentia distante de ti, agora converso contigo e com Deus; aprendi a reconhecer em todo ser que vive um irmão.
Não fosse assim, eu não teria acolhido os muçulmanos; não teria visto que, antes de serem muçulmanos, eles são humanos, como eu, mesmo que não pensem ou creiam de forma igual à minha.
E incrível, para eles, tu, Jesus, és um grande profeta, o profeta do interior humano.
Tia principal característica eles reconhecem; isso devia nos aproximar e não afastar”.
Os pensamentos do franciscano foram interrompidos; o som de passos firmes e seguros chamaram-lhe a atenção e, olhando ao redor, reconheceu Ibn Rusch.
Saudou-o com alegria; apreciava a companhia do sábio médico muçulmano.
Admirava-lhe, sobretudo, a simplicidade.
– O amigo estava tão absorto que tive medo de aproximar-me.
Espero não estar atrapalhando – comentou ele, ao sentar-se em uma das raízes da árvore que servia como banco.
– Não, senhor Ibn, de maneira nenhuma me perturba.
Estava pensando.
Dar asas à mente, deixar nossa alma se expressar é, para mim, uma boa maneira de descansar o corpo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:37 pm

– Concordo. É um exercício que acalma.
É um hábito, e como tal se torna necessidade.
Posso saber sobre o que meditava?
Irmão Leon sorrir e resumiu em algumas palavras suas reflexões. Ibn apreciou ouvi-las; via-se a sinceridade de seus sentimentos na atenção que dispensava ao diálogo.
– Acredito que há razão em se admitir que Jesus, com muita sabedoria, empregou duas formas de ensinar sua doutrina.
Uma para os seus apóstolos e pessoas mais próximas e aptas a entendê-la; outra, destinada ao povo em geral.
Procedendo assim, era lógico que a linguagem tivesse uma conotação mais imperativa e, ao mesmo tempo, sua filosofia fosse mais geral, pois as pessoas, o grande público, não tinham condições de compreendê-lo em sua profundidade e não há bem ou bondade em violar consciências impondo-lhes conhecimento que ainda não estão aptas a entender.
A melhor das intenções não justifica esse ato, além do que nunca dá bom resultado, pois, penso eu, ou conduz ao fanatismo deslumbrado, ou não produz frutos, não é assimilada.
É uma manifestação de respeito por quem nos ouve, ou de qualquer outra forma nos dá sua atenção, sermos inteligíveis.
Exibicionismo não cabe quando a intenção é ensinar.
– Lindo! – exclamou irmão Leon, encantado com o pensamento do amigo muçulmano.
Sua frase mereceria ser escrita em granito para que toda gente, por muitos séculos, a conhecesse e nela pudesse pensar.
Eu vivi em Córdoba antes de partir para Assis, onde morei por muitos anos.
Minha juventude foi nessa cidade cheia de cultura e beleza.
Conheci pensadores judeus e muçulmanos – muitos admiráveis, porém alguns lamentáveis.
Não nego que sabiam muito em comparação a mim, mas a forma como pretendiam transmitir esse saber, para mim ao menos, foi um fracasso absoluto.
Eu não entendia nada; ficava boquiaberto com as expressões difíceis que empregavam, com a frases complexas, com conhecimentos tão distantes do que eu vivia, que nunca tive a coragem de fazer-lhes uma única pergunta, sequer de dizer honestamente que eu não havia entendido várias lições.
Hoje eu lamento minha atitude; penso que, se houvesse agido de outra forma, dizendo o que pensava, sentia e que não entendia o que estavam dizendo, teria sido de muito mais proveito para mim e, quiçá, para eles também.
Talvez não fizessem por mal, mas o resultado era:
eles perdiam seu tempo e eu o meu.
Não havia crescimento ou proveito.
Era um brinquedo de faz de conta.
Essa foi uma das causas do meu distanciamento da filosofia e da religião na juventude.
Ibn sorria compreensivo ao acompanhar o desabafo do religioso cristão.
Compartilhava sua forma de pensar, por isso, sentindo-se íntimo e aceito, questionou:
– Entendo o que diz.
Vê-se muito esse comportamento, não são tão poucos como o amigo quis fazer parecer.
É até bem comum. Não consigo deixar de vislumbrar exibicionismo nessas acções e uma boa dose de insegurança.
Afastam-se do contacto com seus aprendizes, colocam-se em um pedestal de tola vaidade e passam a temer a queda.
Mas diga-me:
como foi que acabou nesta vida de isolamento e religiosidade?
– Vagando pelo mundo – respondeu irmão Leon, contemplando o infinito.
Vagando pelo mundo. Muito.
Vaguei sem rumo.
Como folha ao vento sequei, perdi pedaços…
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:37 pm

Acabei aprendendo o pouco que sei a respeito da vida à custa de muita dor, irresignação.
Creio que meu corpo rodou por vários territórios e minha alma desceu as profundezas de si mesma.
Fiz um caminho duplo, entende?
Percebendo, na resposta e na expressão do olhar do religioso cristão, que ele não desejava falar sobre si em detalhes, Ibn calou-se e deixou que também seu olhar contemplasse o infinito.
De certa maneira, era uma metáfora que bem encerrava aquela conversa: ambos buscavam na contemplação da vida entender os segredos do infinito que rolavam sobre a superfície da terra.
Estavam em amistoso silêncio e meditação quando uma nuvem de pó, erguendo-se no céu azul, chamou-lhes a atenção.
Era o sinal havia tantos dias aguardado.
– Permita Alá, o Clemente, que seja o jovem Karim.
Há doentes que precisam voltar para casa a fim de recuperar a esperança e as forças.
– Para casa eles não voltarão, caro Ibn.
Suas casas não existem mais ou estão sob o domínio alheio. – advertiu irmão Leon com cru realismo.
– Sim, sim – retrucou o sábio muçulmano desconcertado pela lembrança da crueldade praticada em Cádiz.
Refiro-me a voltar para junto de seu povo, para a protecção de nossos líderes.
– Entendi, mas isso não lhes devolverá a esperança perdida.
Se é que se pode falar em esperança perdida; talvez o melhor seja falar em uma confiança frágil que precisa ser recuperada.
Mas já descansei demais.
Vou trabalhar.
As vacas precisam de mim; estão com os úberes cheios de leite; é urgente aliviá-las.
Ibn sorriu e acenou para o irmão Leon.
“Uma personalidade encantadora, um ser de privilegiada inteligência e sensibilidade.
Quem diria que vive tal criatura em meio a ruínas e na companhia de homens parvos, doentios!”, pensou o muçulmano e, decidido a seguir-lhe o exemplo, ergueu-se e foi à procura de seus pacientes.
Confirmou-se a expectativa deles; a nuvem de poeira à distância anunciava o retorno de Karim.
À noite, a alegria estampava-se na face machucada e sofrida dos sobreviventes de Cádiz.
Karim caminhava entre eles, confortando uns, incentivando outros, dando informações das acções tomadas pelo Califa de Córdoba e do cerco que faziam à cidade invadida.
Sua presença era uma injecção de ânimo na veia de seu povo.
Confiavam nele; sua presença restabelecia a esperança.
Não ouviram falsas promessas; estavam cientes de que seguiriam para Córdoba, onde ficariam sob a protecção de Jamal Al Hussain, até que a situação de suas terras e propriedades fosse resolvida.
Irmão Leon observava e reflectia acerca dessa força interior que a confiança movimenta.
Em meio a suas conjecturas mentais concluiu que ela era sinónimo de fé e que, na verdade, o homem precisa confiar em si para depois confiar em Deus.
O pensamento da maioria dos seres humanos não compreende o puramente abstracto; necessita de uma referência material; é preciso começar no material e conhecido, na confiança em si, para depois confiar em Deus, essência da vida invisível e desconhecido aos nossos sentidos.
Karim era a presença física, visível, conhecida e material na qual eles se agarravam para mobilizar as forças internas.
Ibn, a seu lado, observava o mesmo fenómeno, como se seus pensamentos se comunicassem, sem a necessidade de palavras.
– Esse jovem traz o olhar perdido – comentou num dado momento irmão Leon.
Noto o facto estranho de que ele procura transmitir confiança a seu povo e, ao mesmo tempo, se alimenta da confiança que faz nascer, como se não a possuísse dentro de si.
– Conheço pouco o jovem Karim – declarou Ibn.
Sei que era muito apegado à irmã e à família.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:37 pm

Nas poucas vezes em que nos encontramos, percebi que carregava muita raiva, e não o condeno, ele estava, com justiça, em desacordo com as leis e práticas do nosso povo aplicadas ao caso da irmã.
Eu também ficaria.
Conversei mais com o primo dele, um homem nobre e digno, dono de uma cultura e inteligência invejável.
Uma lástima que tenha morrido.
– E eu menos ainda.
Mas note como, ao falar, seus olhos são sérios, sua voz é firme, mas sem entusiasmo; somente quando recebe a reacção do povo é que há brilho no olhar e calor na fala.
– O amigo conhece as artes do discurso e da observação das manifestações da alma humana.
Eu não tinha reparado nesses detalhes.
Vou observar, afinal seguirei com eles ao amanhecer; terei tempo de constatar a procedência ou não de seus argumentos.
O religioso ergueu os ombros, como quem diz:
“Pouco me importo se acredita ou não no que digo”.
E voltou a ser silencioso observador daquela tragédia.
Quando Karim foi sentar-se junto a eles, resolveu confirmar o que a afirmação de Ibn o fizera supor.
– Meu caro senhor, esteve comigo, por alguns dias, na mesma situação destas pobres criaturas feridas, uma jovem muçulmana.
Relatou-me ter sido raptada e haver se rebelado contra seu agressor fugindo.
Acabou aqui.
A história tem muita semelhança com a de sua irmã, inclusive quanto ao período em que se deu.
Pode, por gentileza, me dizer o nome de sua irmã e o que é feito dela?
– Chama-se Layla, somos irmãos gémeos.
Desconheço seu paredeiro, tudo que sei é que ela fugiu, próximo desta região, de seu raptor.
O Califa mandou um grupo de cavaleiros à sua procura, mas a invasão de nossa cidade tumultuou tudo e o facto é que não sei onde ela está – respondeu Karim, demonstrando preocupação, mágoa e raiva com o destino incerto da irmã.
– Bem, então, posso lhe ser útil.
A jovem que ficou em nossa companhia chamava-se Layla e partiu daqui na companhia de um grupo de cavaleiros enviados pelo Califa de Córdoba.
Um cavaleiro cristão chefiava o grupo.
– Alá seja louvado!
Layla está viva, eu sabia! – comemorou Karim, abraçando o religioso.
O cavaleiro chamava-se Kiéram Simsons?
Então Layla está com ele.
– Sim, partiram antes de vocês chegarem.
Devem estar em Córdoba.
Não a encontrou lá? – e, vendo que jogara um balde de água fria na alegria do jovem, limitou-se a dizer:
– Estranho.
– Conheço Kiéram Simsons – interveio Ibn.
É uma pessoa íntegra, merece plena confiança.
Se sua irmã está com ele, está protegida.
Deve haver uma explicação para não terem se encontrado em Córdoba.
O que acompanhei desse caso me permite afirmar que o Califa queria que a jovem fosse entregue em suas mãos, assim, talvez, Kiéram tenha mudado o rumo e seguido ao encontro do Califa em Cádiz.
– Mais uma razão para nos apressarmos em retornar a Córdoba – afirmou Karim, pensativo.
Ao raiar do dia, partiram levando todos os sobreviventes.
A velha igreja voltou à calmaria bucólica que a caracterizava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:38 pm

***
Os passos de Omar ecoavam no longo corredor.
Eram pesados; batia com força os calçados sobre o piso de mármore; trazia o rosto vermelho, congestionado; os olhos saltados e as narinas mais abertas do que o normal.
Assemelhava-se a um touro enfurecido; estava irritado; nada estava saindo como o planeado; os soldados começavam a inquietar-se, e isso lhe trazia problemas de disciplina.
Em pensamento maldizia a mulher que dominava o sultão.
Odiava-a, tinha ímpetos de matá-la e ver-se livre de sua presença.
Os planos sofriam atrasos por culpa da luxúria que ela despertara em Kaleb.
– Mensageira do mal e da perdição.
Não presta – resmungava ele entre dentes.
Parou ante a porta dos aposentos de Layla.
AO tentar abri-la, descobriu que algo a calçava na parte de dentro, dificultando o acesso.
– Maldita! – gritou irado.
Vadia! Ordinária!
Quem pensa que é?
Vai se arrepender do que fez.
Não sabe com quem está lidando.
Enxergue-se, você é uma rele escrava, está aqui para servir o sultão. Deve obediência; não tem direito de negar-se seja ao que for.
Encostada contra a parede e, frente à porta, Layla encolheu-se ao ouvir as palavras de Omar.
Já tivera mostras da violência masculina naqueles dias.
Do outro lado, ele distanciou-se alguns passos da porta e arremeteu o pé com força, empurrando o pesado móvel que detinha sua passagem. Entrou bufando no aposento.
– Prostituta do inferno!
Vai aprender a obedecer – ameaçou ele, aproximando-se.
Agarrando-a pelos cabelos, jogou-a ao chão e aplicou-lhe violentos pontapés, sem nenhum cuidado, agredindo-a com palavras de forma ininterrupta.
Layla foi espancada sem poder se defender, pega de surpresa e desarmada; furiosa, prometeu que vingaria cada palavra, cada ato de violência que recebia dos “vermes”, como ela os chamava.
– Lembre-se de que o sultão é mais poderoso do que você – cuspiu Layla, reagindo, após alguns minutos de inércia, àqueles abusos.
É a mim que ele quer, não a você.
Pense bem! Eu sou escrava sim, mas quem lhe disse que escravas não tem nenhum poder é um imbecil como você.
Sou escrava dele.
Antes que ele percebesse, enfiou a cabeça embaixo de sua túnica e cravou-lhe os dentes, enterrando-os com força na pantorrilha até sentir o sangue dele escorrer-lhe na boca e ouvir seus urros.
– Fera! – bravejou ele, sacudindo a perna na tentativa de livrar-se dela.
– Somo iguais, então – retrucou ela com os olhos negros brilhando enfurecidos, dominando sua face.
Nunca mais se atreva a me bater, sequer tocar em mim.
– Quem você pensa que é, ordinária, para me fazer ameaças?
Faço com você o que bem entendo – e ergueu a mão para esbofeteá-la.
Ela, porém, rolou, puxando-lhe a perna ferida, desequilibrando-o e jogando-o ao chão.
Ágil, ergueu-se e lançou sobre a cabeça de Omar uma pesada jarra de metal cheia de água.
O barulho chamou a atenção dos três guardas que vigiavam a ala onde ficava o sultão, que se apressaram a ver a razão dos sons e, surpresos, depararam com seu comandante desmaiado, prostrado no chão, e com sinais de luta no quarto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:42 pm

Olhando incrédulos para o rosto e a boca de Layla manchados com o sangue de Omar, os cabelos revoltos e os olhos negros como abismos contemplando sua vítima, decidiram, em silêncio, que os três seriam necessários para dominar a jovem e levá-la à presença de Kaleb, a que precisavam relatar o facto.
Arrastaram-na, se debatendo e gritando, até os aposentos do sultão.
– Que é isso?
O que está acontecendo? – perguntou o secretário na antessala.
– Está mulher, senhor, agrediu o xeque Omar.
Ele está ferido, precisa de médico.
Se puder providenciar socorro, agradeço. Tenho que relatar o facto ao sultão.
– Omar está ferido?
E foi essa mulher franzina que o machucou?
É inacreditável!
– Não é, não.
Vá que o xeque está desmaiado e sangrando.
Tem um ferimento na cabeça.
Não pudemos socorrê-lo.
– Pelos profetas!
Onde já se viu contar coisa assim? – retrucava o secretário, dominado pela surpresa.
Ela será executada. É louca!
Exclamando sua incredulidade, saiu apressado para socorrer o xeque e também para constatar se não era alvo de uma mentira.
O facto causara-lhe tamanha estranheza que nem havia reparado no estado descomposto de Layla.
Foi vendo o
xeque caído que a imagem dela lhe veio à mente.
– Que horror! Ela é uma besta! O demónio a possuiu, só isso explica.
Tentou erguer Omar e levá-lo ao leito próximo, mas não teve força.
Rasgou um pedaço do lençol que cobria o leito, improvisando uma atadura no corte que a jarra de metal fizera no couro cabeludo do xeque próximo à testa.
Não havia água no quarto, pois o líquido se derramara; não tinha como tentar despertá-lo do desmaio.
– Preciso chamar alguém para ajudar e Sef, o médico das tropas.
Por Deus, ele não irá acreditar.
Deixou o ferido e correu por corredores e escadas ao encontro dos homens que trabalhavam no andar térreo, gritando por socorro.
Layla, sob a vigilância dos soldados, ainda no mesmo lugar, ruminava sua raiva e o desprezo que sentia por aqueles homens.
“Tratam-me como se fosse uma coisa, um móvel, um objecto, um animal.
São tão estúpidos que parecem pensar que não tenho inteligência, vontade, sentimentos.
Estúpidos! Não sabem com quem estão lidando.
A mulher dá a vida e acompanha a morte.
Esses estúpidos não sabem disso.
São eles que, se julgando muito acima da humanidade, tornam-se cegos.
Nem eles mesmos comportam-se com humanidade.
Por Deus, que triste vida há de ter muitas mulheres.
Não é fácil tolerar ser tratadas como coisa.
Talvez, se desde muito cedo, ainda criança, eu tivesse aceitado esse verdadeiro jugo, hoje eu acabasse acreditando que sou mesmo uma ‘coisa qualquer’ e fosse submissa.
Eles são dominados pelos instintos, iguais a bestas, lutam para demarcar seu território e domínio, e crêem que, por isso, são inteligentes e racionais, mas o mesmo fazem os animais.
Não, eles não pensam como humanos, eles não transcendem à matéria bruta.
Ah! Que bênção foi viver com Zafir e com meu pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:42 pm

Alá os abençoe e os guarde em sua glória e clemência; que dê-lhes a paz.
É merecida; foram homens notáveis, conscientes de que possuíam alma e afectos, e reconheciam aos outros o mesmo direito.”
Sentindo que os guardas a olhavam entre temerosos, surpresos e fascinados, não se conteve e soltou uma sonora gargalhada.
– É louca! 0 murmuraram entre si os homens que a continham.
Observando a cana daquela bela mulher irada, com a boca e o rosto manchados de sangue e os cabelos descobertos e revoltos, um pensamento de pavor cruzou a mente deles.
Gargalhando ela parecia, de facto, endemoniada.
Não fosse essa explicação, do que ela estaria rindo?
– É o demónio!
Parece uma vampira.
Os cochichos chegaram a seus ouvidos, despertando-a de sua divagação.
Uma ideia perpassou sua mente e num relance ela a colocou em prática.
Gargalhou alto, contorceu-se, remexeu os quadris e pôs-se a sacudir os braços e jogar com a cabeça, com força.
Tinha um conhecimento rudimentar do hebraico, aprendido com Leah, e, em meio ao riso “descontrolado”, proferiu palavras desconexas.
Com a mesma rapidez eles a largaram, apavorados.
Divertindo-se, Layla jogou os cabelos para a frente e para trás, gargalhando debochadamente, como imaginava deveriam ser as cenas dos contos de espíritos malévolos que dominavam a crendice de povos árabes desde a antiguidade e corriam de boca em boca.
Mais alguns segundos de representação e eles dispararam do quarto, encerrando-a na antessala dos aposentos do sultão.
Cansada, Layla, sentou-se sobre o rico tapete no centro do cómodo.
Sorria satisfeita como uma criança peralta.
Os sinais de raiva haviam desvanecido.
Lutava com a respiração, mas em razão do esforço físico.
– São estúpidos.
Mas acabo de descobrir uma boa forma de mantê-los longe de mim.
Enlouquecerei com uma facilidade espantosa.
Ser possuída pelos demónios é bem melhor e mais seguro do que ser possuída por esses homens violentos e bestiais – dizia ela para si mesma.
Tinha uma estranha necessidade de ouvir a própria voz, fruto incontestável da solidão que carregava na alma.
O que lhe restava de familiar era apenas o som da própria voz.
A casa, a propriedade, os campos, os jardins, as roupas, nada mais parecia pertencer à sua história.
A casa de sua adorada família era sua prisão voluntária onde pagava caro por sua vingança.
Kaleb ouvira gritos, gargalhadas e as conversas dos servidores.
Entendera o que se passara e, por detrás da porta entreaberta, acompanhara a cena, pálido.
A imagem de Layla sempre o aturdia; exercia sobre ele o efeito de poderoso narcótico.
Era um desequilibrado nas questões atinentes a relações sexuais, um pervertido.
As situações mais bizarras o incendiavam, da mesma forma que as mais belas.
Era uma amante violentos.
A ideia de manter relações sexuais com uma mulher enlouquecida e dominá-la até satisfazer todos os seus desejos lhe pareceu extremamente tentadora.
Mas ela sorria calma, satisfeita; nem ao menos suspeitava que ele a observava; tampouco ele ouviu as palavras murmuradas pela jovem.
– Que mulher fascinante! – dizia ele baixinho.
Ter uma vampira. Que boca linda!
Esses soldados… são uns covardes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:42 pm

***
A caravana capitaneada por Karim aproximava-se de Córdoba.
À distância se avistavam as construções da cidade, e os campos cultivados acusavam que poucas os afastavam de casa.
Ibn, cavalgando ao lado do jovem Al Gassim, percebia o quanto ele estava distante e dividido.
As acções denunciavam seus pensamentos; movia-se nervoso, sua cabeça voltava-se ora na direcção de Córdoba, ora fitava a continuação da estrada à sua frente que o levaria ao litoral, rumo às cercanias de Cádiz.
– Pensa em voltar a Córdoba ou seguirá viagem? – questionou Ibn.
– Confesso que parte de mim entende ser meu dever levar estas pessoas até Córdoba; outra parte anseia por partir e galopar o mais rápido possível ao encontro do Califa.
– Estamos próximos de Córdoba.
Faltam algumas poucas horas, chegaremos antes do cair da tarde.
Pode-se considerar que cumpriu seu dever. Não acha?
– Está sugerindo que eu siga viagem?
– Estou me prontificando a conduzir a todos até Córdoba.
Assumiria sua responsabilidade por pouco tempo e, segundo relatou, os preparativos para receber os sobreviventes na cidade já foram tomados.
Aliás, muito já estão lá – recordou Ibn, sorrindo.
Vá. Dê paz ao seu coração.
Seu real dever é lá, sua obrigação com o povo foi cumprida.
– Dever, obrigação…
Minha vida parece ter se resumido a essas duas palavras.
– Não lamente.
Há tempo para tudo na vida.
Estamos em um momento monótono, dominado por… deveres… e obrigações.
Passarão.
– Passarão, mas deixarão marcas.
Quase não me reconheço em alguns momentos.
Infelizmente o tempo escasso, os deveres, as obrigações, as necessidades não me impedem de sentir imensa falta daqueles que amei.
Ter a certeza de que minha irmã vive me renova.
Nós a amamos e ela sempre foi muito diferente das outras meninas, das moças.
Eu preciso fazer alguma coisa, não posso perdê-la.
Essas experiências que tenho vivido transformaram-me.
Questiono, leis, crenças e tradições nas quais antes eu nem reflectia e tinha por corretas…
– A vida é mais, muito mais do que leis, costumes, tradições, crenças, culturas.
Não vejo nada de estranho nas transformações que alega sofrer; são caminhos de amadurecimento.
Creia, das mais diversas formas a ida nos faz experimentá-los.
É preciso questionar, se revoltar, negar, rever, mudar muitas coisas.
Tenho medo da situação social estática; não creio que a religião não possa conviver com a filosofia.
Veja, a vida e natureza nos fazem pensar, reflectir, exigem que mudemos; a religião não pode nos impor que abdiquemos do que não é só possibilidade, mas é imposição da natureza.
Justamente o ato de pensar, de trabalhar a inteligência.
Pretender que os dias e os anos nos sirvam apenas para reproduzir o que os outros já fizeram e como já viveram é sem sentido.
É ilógico. Além disso, amigo, qualquer um que detenha autoridade pode lhe dizer que faça ou deixe de fazer, qual é a atitude esperada, o que manda a lei.
No entanto, nenhum deles poderá dizer-lhe sinta-se desta ou daquela maneira; ame este ou despreze aquele; ignore o que vai em seu íntimo porque assim manda a tradição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:43 pm

É muito simples quando não se está na condição daquele a quem se ordena, por isso é também fácil fazer-lhe críticas a aplicar-lhes penas, e, por isso, preste atenção, não devemos ouvi-los quando assim manda nossa consciência.
Existem diferentes sentimentos e ideias impulsionando quem age e quem recebe a acção, não podemos ignorar.
A vida lhe pertence, e ser feliz ou não é condição da lei, da religião, das tradições, é da sua maneira de ver a vida e viver – comentou Ibn, diminuindo o passo do cavalo e forçando o companheiro a fazer o mesmo.
O jovem Al Gassim envolveu-se em silêncio.
Meditava sobre os conselhos expressos por Ibn.
Eram coerentes, embora soassem como um canto à rebeldia.
Lembrou-se da admiração que Zafir confessava sentir pelas ideias dele.
Aprendera, naqueles dias, a confiar em Ibn Rusch; ele era simples, amigo, atencioso, nunca impunha opiniões ou sugestões, mas também não as aceitava.
Tinha personalidade definida e limites bem traçados, visíveis em sua conduta.
Ibn não cobrou de Karim uma decisão; acatou seu silêncio.
Quando chegaram à encruzilhada com a estrada que levava às portas de Córdoba, já perceptíveis, gritos alegres mostraram que até os mais feridos se reanimaram, regozijando-se com a ventura de ter sobrevivido.
– Estão bem e chegarão à Córdoba – comentou Karim, referindo-se à algazarra na caravana.
Seguirei para o litoral.
Aceito sua oferta.
Obrigado, amigo.
Saiba que pode contar comigo.
Meu primo admirava suas obras; eu admiro o autor.
Serei grato.
– Vá. Seja feliz.
Que Alá permita que todas as esperanças se tornem realidade.
Confie em Kiéram, é um homem digno.
Acenando em concordância, Karim, logo depois, ergueu a mão e determinou que a caravana parasse.
Em rápidas palavras anunciou que seguiria ao encontro do Califa e indicou os motivos, que eram de conhecimento geral, para sua atitude.
O silêncio se seguiu ao breve comunicado, mas, após se ouvir um tímido gesto de aplauso, irromperam as manifestações de apoio.
O jovem partiu sentindo-se mais leve e confiante.
As palavras de Ibn o haviam confortado e libertado.
Recobrara o entusiasmo, a esperança e a confiança na vida.
A viagem, que se poderia julgar longa, o jovem enfrentou em ritmo acelerado, sem descanso, além do necessário aos animais, o que era perceptível nas vestes e na expressão fatigada de alguns dos soldados que o acompanhavam.
Na maioria, o rosto resplandecia; o olhar iluminado pelo desejo de reaver a cidade que lhes havia sido usurpada à força.
Chegavam entusiasmados ao acampamento do Califa, ansiosos por enfrentar os invasores africanos.
Queriam luta, acção.
Pensar, ponderar, esperar, foram por eles muito mal compreendido.
A forte noção de obediência os deteve de um ataque não planeado insano e suicida à cidade.
Karim, ao chegar, dirigira-se de imediato à tenda do Califa, onde foi recebido com amizade e alegria.
– Califa Al Hussain – começou Karim, após as saudações de estilo.
Antes de qualquer troca de informações sobre a situação de Córdoba e de Cádiz, preciso que me esclareça quanto ao destino de minha irmã.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:43 pm

Soube que ela vive e que Kiéram Simsons a resgatou e recebeu ordem de trazê-la à sua presença.
Diga-me, por piedade, se ela, de facto, vive.
Jamal sorriu.
Admirava a sensibilidade de Karim, sua coragem em admitir os próprios sentimentos e o facto de colocar a vida e o afecto que nutria pela irmã acima de qualquer convenção social, legal ou religiosa.
Estendeu a mão e tocou-lhe o ombro com intimidade.
Encarando-o com o olhar iluminado, declarou:
– Fico feliz em ser a pessoa que lhe diz que sua irmã está viva.
É uma mulher admirável.
Tive o prazer de conhecê-la.
Agora entendo o sofrimento de sua família ante as acções de meu finado cunhado e me penitencio.
Lágrimas fartas corriam pelas faces de Karim ao ouvir a confirmação de que Layla vivia.
Prostrou-se ao solo e encostou a testa no tapete; queria orar a Deus, agradecer a bênção que recebia em meio àquele caos, mas nenhuma sura do Alcorão lhe veio à mente.
Tudo em seu mundo interior estava dominado pela felicidade e por gratidão.
Chorava, inutilmente buscando as recitações; a memória se negava.
A seu lado, Safia sorria, emocionada.
O gesto espontâneo de Karim mostrava-lhe que a revolta dele fora bem dirigida.
O moço, como ser inteligente, reconhecia o que julgava estar errado – as leis, as tradições humanas –, nunca a existência, a sabedoria e a bondade do Criador.
Sua indignação era natural, fruto de um pensamento adulto e crítico.
Falhava, ainda, em sua forma de expressão.
Facto natural, haja vista que nada, nem ninguém nasce perfeito, pronto e acabado.
As mentalidades são criadas e transformadas no processo de evolução.
Abaixou-se e murmurou, bem próxima a ele, enquanto lhe acariciava a face molhada:
– Diga: Obrigado, meu Deus!
Eu te rendo graças e te glorifico!
Louvado seja em tua bondade, sabedoria e misericórdia.
Obrigado, obrigado, obrigado, ó Clemente!
Pensando serem suas, mesmo porque eram a expressão do que sentia, porém em meio ao tumulto das emoções não conseguia identificar e verbalizar as próprias emoções, necessitando do auxílio da bondosa entidade espiritual que o assistiu à moda das mães que dão voz aos conflitos emocionais de seus filhos pequenos clareando-lhes o entendimento, Karim repetiu, literalmente e tomado de funda emoção, cada apalavra que Safia lhe sugeria.
E, à medida que as pronunciava, que compreendia seus sentimentos, a tempestade interna ia cedendo, até que, por fim, respirava sereno, ainda com a testa colada ao tapete.
Ao erguer-se, ele trazia a alma pacificada.
A experiência fora reveladora.
Agora sabia, em meio a tantas dúvidas e questionamentos que abrigara, separar, com mais justiça e bondade, os actos e leis humanos daquilo na existência humana que provinha de uma fonte superior, divina.
Ainda era muçulmano, submisso a Deus e tão somente a Ele.
Seu pensamento era claro, não lhe importava o que rezavam as leis, as tradições, os usos e costumes de seu povo quanto a uma mulher desonrada.
Protegeria Layla, porque a amava e assim lhe exigia a consciência.
Safia exultava, radiante.
Jamal observava enternecido a demonstração de fé e amor que Karim lhe concedia presenciar.
“Eis um homem corajoso”, pensou ele.
Voltando a encará-lo, não esperava que o jovem se desculpasse pelos arroubos emocionais; sabia que ele não o faria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Jun 17, 2018 8:44 pm

Leu em seus olhos a firme determinação de afrontar qualquer lei em defesa da vida da irmã e seu direito de tê-la de volta em sua família.
Sua admiração pelos filhos de Nasser Al Gassim cresceu.
Lamentou não ter compartilhado mais da companhia do emir, pois considerava que ele deveria ter sido um homem à frente de seu tempo pela educação moral que transmitira aos descendentes.
– Onde ela está?
Posso vê-la? – indagou Karim em tom de súplica.
– Infelizmente, também sou a pessoa que deve lhe dizer que, no momento, seu pedido é impossível ser atendido…
– Por quê? – atalhou Karim, afligindo-se.
O que houve com ela? Onde está Layla?
Está ferida?
Adoeceu, está transtornada…
O que houve?
– Acalme-se. Esperamos que ela esteja bem…
– Como? O que quer dizer com:
esperamos que ela esteja bem?
Ela não está aqui?
– Exactamente.
Ouça… – e narrou-lhe, em detalhes, todas as ocorrências envolvendo Layla; nada omitiu, nem tampouco diminuiu sua importância em todos os planos e estratégias que desenvolviam para retomar a cidade; mostrou-lhe os documentos e mapas enviados por ela e concluiu:
– Sua irmã conquistou minha sincera admiração.
Não guarde pelo futuro dela nenhum receio.
Por tudo que ela está fazendo por nosso povo saberei recompensá-la, mas é importante que você guarde absoluto sigilo do que conversamos.
Como acabei de lhe contar, apenas eu e Kiéram Simsons sabemos da verdade.
– É inacreditável!
Apenas Layla seria capaz de fazer isso.
Estou aflito, mas reconheço que é um plano muito inteligente.
Ela arrisca a própria vida, se expõe a sofrimentos que nem posso ou quero imaginar.
Escrava do sultão!
Que o Clemente tenha misericórdia das dores que ela está suportando.
Jamal balançou a cabeça, também evitava pensar no assunto.
Porém cada vez que lembrava, mais se intensificava a admiração pela mulher que se sacrificava entre os muros da propriedade na qual um dia fora nobre.
– Quero ajudar – voltou a falar Karim.
Eu posso ser muito útil no comando das tropas.
Tanto quanto Layla conheço cada centímetro desse loca; sei onde fica cada uma dessas entradas; as horas em que serão mais difíceis a eles perceberem nossa aproximação…
Enfiam, conheço cada caminho que ela traçou.
Era por onde brincávamos quando crianças; onde vivemos nossas vidas.
É o meu lar. Imploro, Jamal Al Hussain, que me permita fazer isso.
– Permito. Não poderia pedir melhor líder.
Alá dirige nossos actos e o trouxe aqui, neste momento.
Eu leio nesses fatos a escrita Dele e a justiça soberana se cumprindo.
A roda da vida completava mais um giro, e transformações se anunciavam.
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O QUARTO CRESCENTE -  José António/Ana Cristina Vargas - Página 8 Empty Re: O QUARTO CRESCENTE - José António/Ana Cristina Vargas

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