LUZ ESPÍRITA
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Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito

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Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito - Página 2 Empty Re: Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito

Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 14:11

Capítulo XI - A imortalidade da alma
Talvez nenhuma questão tenha preocupado tanto a humanidade quanto o fenómeno da morte. Todos os povos tiveram suas crenças sobre este ponto, e desde a concepção mais grosseira de imortalidade que supõe a continuidade do homem em sua vida total, espiritual e corporal para além do sepulcro, até a concepção mais espiritualista, todos os povos testemunharam suas ideias sobre o tocante a um assunto tão importante. Não há ninguém que, ao fechar os olhos de um ente querido que fez nossa felicidade, cuja vida era nossa vida, não tenha se perguntado se ao cair na sepultura perderemos seu afecto para sempre, se dado o último suspiro, o último sorriso com que parecia expressar-nos todo o seu amor e todo o seu desejo de nos ver felizes, terá se extinguido para sempre o sopro da existência que o animava. Por mais materialista que seja, seu instinto o fará desejar a continuação da vida para além do túmulo; e para decifrar o futuro insondável, consultam-se livros, revisam-se teorias, fazem-se reflexões sobre crenças religiosas e questionam-se os céus e a terra, depois de termos perguntado à nossa consciência se a permanência daquele ser lhe é agradável, apesar de o ter visto dar seu último suspiro. É que a dúvida que nos assalta neste ponto indica sempre que, apesar de todas as negações, o problema ainda é uma incógnita para a nossa inteligência, que deseja mais luz sobre um assunto tão importante!
E que o assunto é importante, não há dúvida: a maioria de nossas acções (por mais que em outra coisa se acredite) são executadas nesta vida de acordo com as crenças que temos em relação à morte. Se a pessoa virtuosa sofre em silêncio, e em silêncio tenta ser forte, ante o martírio de seu coração, seja por uma doença dolorosa, seja pelo abandono em que o deixou a ausência de entes queridos, seja por injustiças sociais que entristecem e fazem desejar uma outra vida onde o reino de Deus tenha cumprimento, é, não duvidemos, porque lá no seu coração, lá no seu íntimo, sente a necessidade de uma outra vida onde a lei moral tenha cabal cumprimento, onde os actos meritórios sejam premiados. A imortalidade é um instinto tão poderoso no homem que não pode falhar: poucos instintos enganam o animal, e mesmo quando tal sentimento fica reduzido a essa categoria, vemos que não há homem que deixe de tê-lo.
Mas, para alçar um pouco o véu da morte, é contraproducente focarmos os olhos na fossa e encostarmos o ouvido na sepultura para perceber um movimento que nos indique a animação dos restos orgânicos do ser que dizemos ter deixado de existir. Justamente porque a alma é imortal, ela é invisível e intangível aos sentidos materiais. Nossos sentidos não servem para apreciar impressões delicadas mesmo da própria matéria, e muito menos seriam úteis para perceber a existência e os actos do ser espiritual, fora do organismo corpóreo.
Nossos sentidos não bastam para nos indicar a massa, distância, temperatura, movimentos, etc., dos astros, porque eles estão tão distantes, que a observação sensível precisa ser poderosamente auxiliada pela percepção racional. Eles também não nos dão conta do movimento da Terra e, no entanto, é impossível negá-lo. Dificilmente nos põem em comunicação com algumas forças da natureza e, não obstante, as forças da natureza são infinitas e os fenómenos naturais são igualmente inumeráveis. Esse critério, então, de investigação é muito limitado e insuficiente, sendo necessário buscar outra prova de convicção.
Do mesmo modo, onde os sentidos nos mostram as estrelas como pequenas luzes, a investigação racional vê sóis poderosos. E onde nos fazem ver aparentemente o repouso desses astros, a ciência prova seu movimento muito mais rápido que o da veloz locomotiva. Da mesma forma também onde a visão e a audição só percebem a quietude de um cadáver, a indução racional nos evidencia a vida e a actividade do ser que deixou de palpitar com seu coração, mas que nem por isso seus afectos se extinguiram, como não se apagou sua inteligência.
A morte, então, não é o fim da vida. A morte nada mais é do que a destruição dos elementos materiais orgânicos do nosso corpo, que passam ao torrente plasmático para nutrir outros organismos; mas a entidade inteligente permanece íntegra com suas faculdades.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 14:12

Para ter certeza da alma, é preciso ver sua realidade; mas vê-la em nossa consciência, com os olhos da razão, não com os olhos do rosto; querer procurá-la com o microscópio ou com o bisturi é como querer ouvir pelos olhos e ver pelos ouvidos. Sem a lua não há eclipses deste satélite, mas a terra pode existir sem ela e ela não é necessária para outra porção de fenómenos. Da mesma forma, sem o corpo não há vida humana, mas o espírito pode viver sem ele. Vejamos, então, se é possível atestar essa independência do espírito em sua vida própria do corpo, ou, ao contrário, se a primeira não passa de uma função do cérebro.
Se o espírito ou a alma (usamos essas palavras indistintamente) tem realidade, é que nem sua existência nem sua vida dependem do corpo: sua relação será de condicionalidade, mas não de dependência necessária, como a relação que, por exemplo, a Lua pode ter com a Terra.
Se houvesse correlação e dependência entre a força física ou corporal e a força psíquica ou espiritual, poder-se-ia admitir que esta não é mais do que uma resultante das diversas forças combinadas que atuam no organismo; mas se, longe de haver esse paralelismo e correspondência, há muitas vezes oposição e sempre a força mental é de uma ordem diferente da do corpo, bem podemos concluir que elas não se derivam da mesma origem nem têm o mesmo princípio. O homem de força mais hercúlea, capaz de levantar um grande peso, pode muito bem ser incapaz de manter sua atenção fixa para resolver um problema um tanto difícil, e aquele que resiste à fadiga, fome, sede e frio, talvez é também fraco e indeciso ante a menor dor que aflige seu espírito e a mais insignificante dúvida que abala sua inteligência.
Além disso, a força psíquica e a física diferem não apenas na ordem, género ou qualidade de manifestação, mas também diferem na quantidade, no alcance de suas funções. A actividade do espírito é indefinida, embora nunca infinita; é uma quantidade que está aumentando constantemente. Assim, o corpo atinge um certo peso, volume e altura, que depois não aumenta, enquanto o espírito aumenta constantemente e aprimora seu conhecimento, sua vontade, seus afectos. O ginasta com musculatura mais desenvolvida fará um salto de determinada longitude ou um golpe de tal intensidade, mas não irá além disso. Porém, quem pode negar que o alcance da inteligência é muito maior? Embora seja impossível para o primeiro atravessar um rio largo ou derrubar uma parede forte usando apenas sua força física, a inteligência encontrará maneiras de conseguir ambas as duas coisas. Portanto, a energia ou poder espiritual é superior em quantidade e qualidade à actividade corporal. E se é superior, aquela não pode se originar desta – o espírito do corpo – pois a soma total nunca é superior às parcelas e nem de género diferente.
Por outro lado, a mudança contínua de moléculas orgânicas não se concilia com a permanência do eu, da nossa individualidade e consciência.
Embora nosso corpo depois de algum tempo não conserve nem uma só das moléculas que antes teve, nosso ser é o mesmo, e nossa consciência nos atesta que somos nós o mesmo ser de antes e de agora, apesar de todas as mudanças do organismo. Por isso temos memória e por isso temos responsabilidade, porque quando delinquimos somos o mesmo ser que cumprimos a pena que a sociedade ou o nosso próprio remorso nos impõe.
Há também, como já indicamos, uma diferença essencial entre o tempo da vida corporal e o tempo do espírito. Pode uma pessoa ter mais anos do que outra e no entanto ser mais jovem na vida do espírito e, inversamente, contar com poucos anos de vida e ter mais experiência da vida do que um ancião. Aquele que mal saiu da aldeia onde nasceu sabe muito pouco sobre o mundo e a sociedade por muitos anos que ele tenha, e aquele que teve uma vida dilatada, mas sem dúvidas, aspirações, tristezas, paixões e
desejos é uma verdadeira criança na vida da alma; o que prova que nem sempre essas duas vidas são paralelas: que um coração de poucos anos pode bater movido por emoções não experimentadas por homens de idade madura que, embora tendo visto a luz do sol por muito tempo, podem muito bem estar no escuro sobre muitas ideias que sua inteligência não concebeu.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 14:12

Provam também a realidade do espírito e sua vida própria diferente da do corpo, os fenómenos de dupla sensação e duplo movimento que às vezes experimentamos até nos actos mais simples: a criança que rouba um doce experimenta, junto com o prazer da guloseima, o medo e a intranquilidade por se alguém o observasse; e a mãe que fica acordada para cuidar do filho doente, experimenta tanto o desconforto da insónia quanto o prazer de estar cuidando do filho. Da mesma forma o corpo pode resistir perfeitamente à fadiga e sentir preguiça intelectual, ou melhor da vontade (por isso culpa-se o preguiçoso); e haver desejos de trabalhar por parte do espírito e lassitude e frouxidão do corpo que o impede; isto é, movimentos e forças opostas.
A aspiração a uma vida melhor onde todos os actos tenham sua sanção, tanto os meritórios quanto os culpados, não deve ser mera ilusão quando os factos patentizam que o espírito não depende do corpo em sua vida, e, portanto, ao desintegrar-se aquele para formar novos corpos, a alma subsistirá com suas propriedades essenciais para conhecer, amar e realizar o que é verdadeiro, belo e bom.
Há vinte e três séculos, por defender essas mesmas ideias da imortalidade da alma e da existência de Deus, Sócrates foi condenado à morte. E antes de beber a cicuta disse aos seus discípulos, que estavam tristes: "Parece que vocês temem, como as crianças, que quando a alma deixa o corpo é arrastada pelos ventos, especialmente quando se morre em tempo de tempestades". "Se existe algo imortal e imperecível, nossas almas devem sê-lo."
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 14:12

Capítulo XII - A inteligência em geral e a inteligência discursiva
A inteligência é a luz espiritual: por ela o espírito distingue-se como tal dos outros seres. Define-se dizendo que é a faculdade de conhecer; mas conhecer é o mesmo que ter inteligência das coisas ou compreender o que elas são.
Conhecer as coisas é saber o que elas são. Isso, no entanto, é bastante vago. Saber o que é uma coisa pode ser tomado em dois sentidos ou considerado sob dois aspectos: pode-se dizer que saber o que é uma coisa consiste em saber algo sobre ela; e pode-se considerar o conhecimento de uma coisa qualquer como o conhecimento em totalidade. É neste último sentido que deveria ser tomado, porque conhecer uma coisa não é realmente conhecer algo sobre ela. No momento em que há algo nessa coisa que escapa à nossa compreensão, só podemos dizer que conhecemos apenas parte da própria coisa.
Mas esse conhecimento total é impossível: em qualquer sentido, sob qualquer aspecto que seja considerado um ser, uma coisa, uma propriedade, uma relação, etc., não cabe ser considerado em sua totalidade, porque esse ser não é o que é tão somente por si mesmo, mas pelo resultado de suas relações com os outros; e para especificar suas aptidões, propriedades e relações, seria necessário estudar todas as forças, todos os seres e todas as relações que contribuem com ele para que tenha tais propriedades.
Esse conhecimento relativo e parcial dos seres, que cabe em nossa inteligência limitada, é consequência da nossa percepção. Na medida em que percebemos, podemos conhecer. A sensação é a base do nosso conhecimento; mas essa sensação, por sua vez, é condicionada pelo corpo, pelos órgãos que nos servem de meio para receber as impressões. Depois da sensação surge a ideia; mas a ideia não é mais a sensação, não é a mesma sensação transformada, assim como a vida não é o jogo mecânico dos órgãos. Há algo a mais: a ideia surge da sensação e nela se apoia, mas a ultrapassa.
Devemos ver então como, sendo a sensação concreta, existem em nós não apenas ideias relativas, segundo as impressões experimentadas, mas também ideias de permanência, do universal, do infinito; isto é, ideias que não são simplesmente percepções nem generalizações destas, ou consequência de sensações, mas verdadeiras ideias.
Também a transição da sensação para o conhecimento, que tanto tem preocupado, continua por resolver. Percebemos as coisas não como são em si mesmas, mas como são em nossa inteligência, pelos meios que nosso organismo nos empresta e pelo desenvolvimento intelectual adquirido; pois para ver, por exemplo, não bastam os olhos e a luz, mas inteligência que perceba, e a inteligência percebe em razão de seu progresso realizado.
Além disso, não se pode dizer que as coisas sejam nada em si mesmas, pelo menos nada estável, pois sendo a mudança lei universal dos seres em meio à sua identidade, é claro que nossa inteligência, no caso de percebê-las como eram, teria de ver as contínuas transformações e mudanças nos seres observados. E como isso não se verifica, porque ante a nossa observação quase sempre aparecem iguais em dois momentos sucessivos de curto intervalo, resulta que também não é possível conhecer as causas das coisas e dos seres, tais como são em si mesmos, mas como eles se nos apresentam através de nossos meios de conhecimento.
À primeira vista parece um paradoxo dizer que reflectir indica pouca inteligência, como já afirmava o Doutor Angélico; no entanto, é preciso concordarmos em que é uma verdade. Isso não significa de forma alguma que aquele que reflectir ou raciocinar mais e melhor que outro, tem menos inteligência do que este. Isso seria absurdo, porque é claro que, entre dois homens, dizemos que tem um entendimento mais perspicaz e uma engenhosidade mais profunda aquele que percebe relações nas coisas, encontra consequências e descobre leis, que passam despercebidas pelo outro; ou seja, aquele que discorre mais acertadamente.
Mas dizemos que o fato de ter de reflectir, de precisar raciocinar, indica escassa inteligência. Em efeito; discorrer ou raciocinar é ir de uma ideia a outra, relacionar uma coisa com outra, seja directamente ou por meio de uma terceira; no primeiro caso, chamamos o raciocínio de imediato; no segundo, de mediato.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 14:12

Contudo; a maioria das verdades que adquirimos o são por derivação de umas em relação a outras; não por intuição primária e imediata das mesmas. Não só isso, mas na maioria de nossas comparações precisamos apelar para um terceiro termo, porque nossa inteligência é tão obtusa que, ao comparar uma coisa com outra, não encontra a analogia ou a diferença entre as duas senão fazendo uso de certos rodeios. Assim, por exemplo, se todo raciocínio consistisse em descobrir se uma cidade é maior do que uma casa, não há dúvida de que, comparando as duas, deduziríamos imediatamente a maior capacidade da cidade.
Mas se nos perguntarem quantas linhas tem uma página, quantos homens estão em uma reunião, aí teremos de fazer várias comparações:
ver quantas vezes a linha está contida na página, ou quantas vezes a unidade homem está contida na totalidade da reunião. A complicação é ainda maior se tentarmos descobrir, por exemplo, se uma operação de multiplicação ou divisão está bem feita; e a dificuldade aumenta mais e mais quando é necessária a aplicação de diversos procedimentos, e uma série de observações e provas encadeadas, como para provar a circulação do sangue ou o movimento da Terra.
Tudo isso acontece porque adquirimos o conhecimento por discurso, não por intuição, e por discurso mediato, no qual entram termos múltiplos, não por raciocínio imediato, no qual apenas duas ideias são comparadas para deduzir a analogia ou diferença entre elas. Pois bem; se nossa inteligência procedesse por intuição ou percepção directa, logo de prestar atenção a uma coisa perceberíamos a verdade que ela contém; e isso não significa que compreendêssemos toda a verdade, mas que, da mesma forma que imediatamente ao observar o sol vemos sua luz, sem que por isso abarquemos toda a luz, pode acontecer que instantaneamente, olhando para qualquer matéria, descobríssemos parte da verdade, sem que por isso percebêssemos muitas das infinitas propriedades que existissem no referido objecto.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:21

Capítulo XIII - A sensação e a ideia
Não há uma ideia na mente, nem um fato na Natureza, do qual o homem não tenha duvidado, cuja realidade ele não tenha questionado muito ou pouco, deixando-se, às vezes, levar pelo mais desesperante cepticismo e contemplando através do prisma da incerteza aquilo que foi objecto de seu pensamento. A existência de Deus, da alma, do mundo, tem sido questionada, e mesmo por alguns ainda é; e certamente ao ver a multiplicidade de opiniões, o espírito não pode deixar de se preocupar e perguntar: onde está a verdade? Se existisse a certeza, se houvesse a segurança do conhecimento, por quê essa variedade de opiniões, origem de inúmeras disputas?
O mundo externo, existiria como o percebemos ou sua percepção depende das condições de nossos sentidos, que, variando, também fariam mudar as qualidades que atribuímos aos corpos? Dê-se em nós um ouvido melhor aparelhado e o estampido e o choque dos corpos nos parecerão, em vez de ruídos instantâneos, sons contínuos e perfeitamente distintos, e o silêncio nunca existirá para nós. Se tivéssemos um olho mais perfeito, não haveria escuridão, nem cor preta ou ausência de cor, e perceberíamos mil pavilhões de tonalidades desconhecidas, com infinidade de nuances de luz.
Que nossos músculos, nervos, epiderme, etc., fossem mais delicados, e a cera nos pareceria hoje como ferro, e o ar como cera, e as sensações de dureza e maciez, suavidade e aspereza, calor ou frio etc., que julgamos em comparação com o estado de nosso organismo, ficariam completamente alteradas. Mudando a sensação, varia também a imagem, conceito ou noção que na mente se forma. E o homem, enquanto tiver um corpo, não pode pensar do mundo exterior sem esses dados que o mundo lhe oferece e os sentidos modificam, daí que a inteligência está sempre condicionada à esfera da realidade que ele sente ou percebe e à maneira como ele a percebe, vê e toca. Consequentemente, as propriedades que atribuímos aos corpos resultam da nossa relação e comparação com os próprios corpos, sendo variáveis quando variam os meios de percepção. Por isso, além das percepções que temos do mundo material, existe uma realidade infinita desconhecida, um número infinito de propriedades ainda desconhecidas, mas não incognoscíveis, que o homem irá conhecendo gradualmente à medida em que seus sentidos e meios de percepção vão sendo aperfeiçoados.
Resumo do que foi dito: sendo que o conhecimento é uma relação entre um sujeito pensante e um objecto cognoscível, quando este objecto chega à inteligência por meio dos sentidos, que sempre o modificam, o sujeito ou ser que pensa não pode ter certeza de que o objecto que ele conhece seja tal como ele o conhece. Depois do mundo e de seus múltiplos fenómenos, o homem só pode ter um conhecimento relativo à esfera de seu estado, nunca conhecimento absoluto ou perfeito.
Passemos da esfera do mundo externo para a do nosso Eu, para o mais íntimo que existe em nós. O Eu, seria uma série contínua de sensações e ideias produzidas por correntes nervosas que se chocam, se cruzam e se anastomosam, efeito por sua vez de impressões recebidas? Ou é um ser subsistente em meio a suas mutações, não resumo de propriedades, actos e fenómenos, mas, inversamente, ens (coisa, criatura, ser) de cuja realidade derivam essas mesmas propriedades e fenómenos como um efeito de sua causa?
O primeiro é afirmado pela escola positivista e materialista de todos os tempos, pois, segundo ela, o pensamento e demais fenómenos psíquicos são forças que vêm da matéria quando ela adquire certas condições; renovando-se esta constantemente, renovam-se seus efeitos; e a sucessividade de estados materiais gera a sucessão de pensamentos; e o desenvolvimento corporal, o desdobramento do espírito; e a saúde do corpo, o viço da inteligência; e a doença e atrofia de um ou vários órgãos cerebrais, a enfermidade e suspensão de faculdades determinadas (perda da memória, da faculdade de falar, etc., demência, idiotismo e loucura); e a velhice do corpo, o declínio da força pensante; e a destruição do organismo, o desaparecimento dessa força como resultante do mesmo.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:21

Consequentemente, para aqueles que assim opinam, a ideia de Deus e a da alma imortal não passam de conceitos puramente subjectivos, sem outra realidade senão aquela que nossa mente lhes dá e que desaparecerão quando a última corrente nervosa que os gerou desaparecer.
O segundo foi mantido sempre pelas diferentes escolas espiritualistas que disputaram entre si o domínio do pensamento e o domínio das consciências nos diferentes séculos.
E quais as provas que deram de que existe esse Eu, denominado alma ou espírito, como ser que pensa, sente e quer, invariável em meio às suas mudanças? Em primeiro lugar, a memória, que supõe a continuidade do mesmo ser que reproduz seus conhecimentos e, em segundo lugar, a liberdade das determinações no ser consciente contra o curso fatal e necessário dos fenómenos da Natureza.
Mas isto não é o suficiente. Os positivistas não conseguiram explicar satisfatoriamente a memória pelo simples movimento atómico-cerebral, pela excitabilidade dos órgãos que os torna aptos para receber impressões análogas e reproduzir as já sofridas, nem mesmo fazendo intervir a chamada química mental para a associação das ideias; e os deterministas não conseguiram inclinar a balança do seu lado para fazer suprimir as palavras «vontade» e «livre-arbítrio» do vocabulário científico, assimilando os actos conscientes aos inconscientes, como resultante das forças que solicitam e motivam a acção; o certo é que basta que essas questões sejam discutidas, e dúvidas e negações sejam levantadas, com base nas razões ou dados que ao que parece lhe emprestam determinados ramos do conhecimento humano (fisiologia, física, química etc.) para compreender que a verdade plena e evidente, que a certeza flagrante e completa da Psique foi demonstrada pelas várias escolas apenas pelo simples raciocínio.
Daí a necessidade de apelar para o método experimental.
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Capítulo XIV - A energia e o hábito
Há em nós, como fora de nós, uma infinidade de forças que nos são desconhecidas, e outras que, pouco a pouco, vão nos revelando seus mistérios. O âmbar existe há muitos séculos, e esse corpo, quando esfregado, sempre teve a propriedade de atrair os pequenos corpos leves; mas só depois de muito tempo o filósofo Tales de Mileto teve a ocorrência de reparar nessa propriedade. E da mesma forma que o âmbar, outros corpos também possuem essa propriedade, que até muito recentemente não tinha sido observada neles. Essa força, que conviemos em chamar de electricidade, e que, de uma forma ou de outra, existe em todos os corpos, não foi reconhecida como tal até muito recentemente, apesar de produzir seus fenómenos de acordo com determinadas leis.
Isto que dizemos sobre a electricidade poderia ser dito sobre muitas outras coisas e fenómenos que não foram apreciados até hoje. Uma dessas forças, quase desconhecidas para nós em seu valor, porque nem sequer temos reparado bem em seus efeitos, nem temos sistematizado seus factos, nem explicado suas causas, é a vontade humana.
A psicologia antiga reconhecia três poderes ou faculdades no homem: memória, entendimento e vontade; mas pouco, muito pouco, se tem falado desta última. A maioria dos filósofos dedicou suas energias a investigar as leis que regem a inteligência. No entanto, em nossos dias Stuart Mill, Bain, Ribot e outros reconheceram a importância primordial do estudo da vontade, fundando a chamada Etologia, ou ciência do carácter. No entanto, apesar da vontade ser uma força poderosa, a mais poderosa de que o homem dispõe, seus efeitos têm passado quase despercebidos, e seu estudo ainda está engatinhando.
A vontade, se repararmos um pouco, vemos que não é igual em intensidade e desenvolvimento em todos os indivíduos, assim como a inteligência também não é igual, nem as outras faculdades de que dispomos. Manifesta-se em certos indivíduos lânguida e preguiçosa, com pouca energia para agir, enquanto em outros é enérgica e poderosa. Em alguns é intermitente: embora forte, seus efeitos logo cessam, mas age com grande energia quando se manifesta, como uma mola que se desenrola e imediatamente deixa de funcionar.
Manifesta-se em outros perseverante, mas com suavidade, com doçura; de modo que, nem pelo tempo em que verifica seus actos, nem pela intensidade com que os executa, existe igualdade; e até no mesmo indivíduo observam-se com frequência mudanças, ora causadas por acontecimentos importantes ou inesperados em sua vida (doenças, desgostos graves, perdas de fortuna, etc.), ora causadas pelo trabalho e o labutar sucessivo de sua existência. Assim, as expressões de preguiçoso e trabalhador, homem fraco e homem enérgico, homem perseverante e homem inconstante, indicam a característica no modo de a vontade se manifestar.
A vontade, agindo em um momento dado, produz actos de arrojo, coragem e heroísmo que nos surpreendem; ou, ao contrário, actos de medo e covardia causados por uma emoção de susto e terror. Sem dúvida, muitos heróis que em um momento de perigo se lançaram sobre seus inimigos para encontrar honrosa morte, pode-se dizer que não agiram em virtude de madura reflexão, mas a maioria deles realizou esses actos de arrojo obedecendo a um impulso momentâneo, mais ou menos inconsciente; e talvez se tivesse durado mais, o arrependimento teria chegado a diminuir muito o mérito alcançado.
No entanto, se a vontade, agindo em um único impulso, tem engendrado características que nos surpreendem e nos fazem ver até onde pode ir, a vontade reflexiva e persistente nos surpreende mais, porque a ela se deve a maior parte das melhoras e aprimoramentos obtidos pela humanidade.
Em efeito; por mais poderoso que seja um momento de pensamento genial, é necessário realizar aquilo que foi antevisto no calor da imaginação, e o trabalho é o único encarregado de tornar real e efectivo o que o pensamento concebeu. Para isso, é preciso manejar material sensível, dominar o que hoje se chama de impurezas da realidade, o qual só se consegue pelo hábito, pelo exercício contínuo. O hábito produz uma maior capacidade de superar cada vez melhor as dificuldades, e é absolutamente necessário para qualquer obra que deva encarnar na realidade, precisando antes superar os obstáculos da ordem material.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:21

Assim, o pianista, por muito talento e disposição que tiver, estará impossibilitado de executar uma peça se não tiver o prévio estudo e manejo que lhe for necessário. O pintor, da mesma forma, por grande que seja sua genialidade, não poderá pintar, por exemplo, uma boa paisagem, se um certo conhecimento do desenho e um hábito previamente adquirido não facilitarem seu trabalho.
O orador, também, independentemente de seus dotes intelectuais, terá mais ou menos facilidade para se expressar, dependendo da prática adquirida. Portanto, o hábito é completamente necessário e não se consegue sem um trabalho contínuo.
De tudo isso deduzimos um grande ensinamento; e é que a faculdade mais importante, e que é conveniente cultivar com mais esmero, é a vontade. Dificilmente se sabe querer algo, e é tão importante saber querer, que disso depende poder fazer a maioria das coisas que a pessoa deseja e se propõe.
A vontade determina e impulsiona os actos mais transcendentais, e também os mais insignificantes da vida, e conforme a maior ou menor energia com que procedemos à sua execução, assim os realizamos com maior ou menor facilidade. Essa energia interna que desdobramos nos faz sentir menos os obstáculos internos. Por outro lado, quando agimos negligentemente, sentimos mais vivamente todo tipo de dificuldades.
A história nos mostra vários exemplos de quanto a vontade humana tem sido capaz de fazer. Meyerbeer, trabalhando quinze horas por dia para escrever Os Huguenotes; Bernardo de Palisy, empregando mais de vinte anos de trabalho contínuo até descobrir o esmalte da porcelana; Guttenberg trabalhando mais de dez anos para fazer a primeira máquina de impressão; Stephenson, passando mais dez anos de trabalho contínuo antes de ver a primeira locomotiva rodando; Newton, pensando sempre, como ele dizia, para descobrir o mistério da gravitação universal; estes, e muitos outros casos que poderiam ser acrescentados, são a prova do que dizemos, de que a humanidade deve seus maiores triunfos e progressos a uma vontade reflexiva e persistente.
A vontade, mesmo perseguindo objectos completamente irrealizáveis, por exemplo, a utopia do movimento contínuo, não é inteiramente infrutífera.
O esforço empregado não se perde no vácuo. Pois que, por um lado, na esfera subjectiva se produz um hábito de trabalho que facilita muito o exercício de nossa actividade, quando a dedicamos mais tarde a empreitadas melhores; e por outro lado, na esfera objectiva, às vezes se obtêm vantagens e utilidades não previstas, como a invenção do tear mecânico, que surgiu justamente dessa utopia do movimento contínuo.
A vontade transviada, movida pelo impulso do ódio e da vingança, também oferece exemplos de sua grande força e actividade. Aníbal, Almançor, Napoleão, todos os grandes guerreiros e tiranos nos provam até onde pode chegar uma vontade pervertida.
Em troca, a vontade, quando inspirada pelo amor ao próximo, oferece-nos o exemplo de uma multidão de mártires que sacrificam a vida com a maior tranquilidade, dando graças ao céu por lhes ter concedido tão alta honra. Os heróis que deram a vida em holocausto por uma ideia generosa, todos movidos por um amor imenso, impelidos pelos mais nobres sentimentos, dedicaram uma vontade enérgica e determinada ao serviço de tão justas causas. Por isso, mostrando-se generosos em meio ao egoísmo social, às vezes aparecem como estranhos à vida de seu tempo, sendo rejeitados e apontados com o dedo pela impossibilidade de o seu caloroso entusiasmo ser entendido por corações egoístas, endurecidos e petrificados pelo positivismo utilitarista.
De tudo isso decorre que querer algo, querer muito e querer da maneira certa, é o meio para superar uma infinidade de obstáculos, que de outra forma parecem impossíveis de serem superados.
O estudo da vontade, ou melhor, o desenvolvimento da vontade, está sujeito a uma lei. E assim como a Lógica, ao indicar as leis que regem a inteligência em seu desenvolvimento, pode nos prestar um grande serviço, a Etologia ao marcar as leis que a vontade deve seguir em seu desenvolvimento, deve ser como outra Lógica, a Lógica da vontade, cujas consequências são extremamente importantes.
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Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito - Página 2 Empty Re: Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito

Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:22

Talvez, por enquanto, essas leis devam ter um carácter empírico como induzidas a partir da observação dos factos, mas servirão como dados e razões para que no futuro sejam melhor analisadas e seus fundamentos melhor estabelecidos: terão valor para colocar as primeiras pedras do prédio.
Como material, poderá servir o estudo biográfico, na medida do possível, de todos aqueles indivíduos que se destacaram neste exercício da vontade, observando como superaram os obstáculos internos e externos, tentando imitá-los seguindo a lei de partir do que é fácil para o mais difícil.
Essa lei é também o caminho a ser seguido pela vontade. A vontade supõe esforço, e o ponto é medir o esforço pelo obstáculo superado, ou melhor, medir o obstáculo pelo esforço que é preciso empregar.
Há também outra lei: como a vontade é determinada em virtude do impulso da consciência, para que não seja determinada em sentido inconveniente, é preciso começar por matar esse impulso, devemos matar o desejo quando ele é contraproducente.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:22

Capítulo XV - O trabalho
A questão da energia está intimamente relacionada com a do trabalho.
A actividade ou o trabalho são lei da natureza: não há nada que não seja activo, não há nada que não trabalhe. Mas ordinariamente entendemos por trabalho o esforço, aquilo que causa desconforto, que custa fadiga, que supõe actividade forçada, e neste sentido, o trabalho realizado com maior ou menor intensidade, dependendo do efeito produzido, é equivalente ao maior esforço do sujeito ou ser que o verifica. E talvez, talvez, aqueles que mais se esforçam pode ser porque têm menor facilidade para conseguir o efeito desejado, e nesse caso resultaria que, quanto maior o esforço, menor a quantidade de trabalho; mas em se tratando do mesmo ser, não há dúvida de que quanto maior o esforço, maior a actividade e maior o efeito produzido.
Descartando o trabalho ou actividade realizada por todos os seres de forma inconsciente, iremos nos focar no trabalho que o homem realiza.
Este é de vários tipos, de acordo com o objecto a que se dirige e de acordo com a forma ou os meios concebidos para realizá-lo. Atendendo ao objecto para o qual direccionamos nossos esforços, o trabalho pode ser físico ou mental; pela forma, o trabalho pode ser mecânico e inteligente, material ou moral, tanto individual quanto colectivo.
Prescindindo do objecto que verificamos durante nosso trabalho, temos como principal divisão o trabalho físico e o trabalho intelectual. Realmente não existe essa separação; todo trabalho é a aplicação de nossas faculdades, todo o nosso ser participa; mas podendo haver mais ou menos intensidade ou grau de intervenção, acontece que pode ser mais mecânico ou menos, mais inteligente ou menos.
Um conceito bem erróneo é o que comummente se tem sobre a virtualidade e eficiência do trabalho, e muitos acreditam que só o trabalho do trabalhador, que só o trabalho mecânico é o que realmente deveria ter esse nome. Pelo contrário, o trabalho, quanto mais intelectual, mais poderoso; produz melhores efeitos e, portanto, ao que o homem deve aspirar é a que todo o seu trabalho seja o mais intelectual possível, fazendo, como disse Aristóteles, que o fuso e a lançadeira trabalhem sozinhos.
Todo trabalho é psicofísico, do espírito e do corpo, embora prevaleça um ou outro elemento. Hoje, infelizmente, a maioria da humanidade ainda emprega um trabalho quase mecânico. Daí as crises frequentes: o homem, reduzido a trabalhar como uma máquina, outra máquina melhor pode substituí-lo; o que não tem substituição é a inteligência.
Suponhamos um estado mais perfeito da humanidade. Suponhamos que a maioria dos trabalhadores que hoje se ocupam na extracção do carvão das minas, no cultivo das terras e nas primeiras indústrias, se dediquem ao cultivo das ciências e das artes, e que, atendidas as necessidades básicas da vida física, o homem tem muito mais tempo disponível para poder satisfazer necessidades morais, e então teremos uma civilização tão poderosa e tão diferente da actual, que no momento não nos é possível imaginar.
Além disso, é preciso atender, não só ao trabalho individual, mas ao trabalho colectivo; porque a associação multiplica as forças, e se a ciência conseguisse dominar as primeiras necessidades do homem, as faculdades deste seriam aplicadas para dar solução a outras necessidades da ordem moral, alimentando seu espírito com a verdade, e seu coração e sua fantasia com a beleza.
Se o trabalho, então, é lei para todo ser que ninguém pode esquivar, o trabalho inteligente e dirigido ao bem é aquele que mais faz progredir e merecer. Somente os preguiçosos, mais ainda do que os malvados, podem pôr em dúvida a eficiência do trabalho. É, pode-se dizer, a primeira lei que rege o cosmos; pois toda actividade é trabalho, isto é, força que se contrapõe a outras forças, movimento que colide, se opõe e vence outros movimentos.
Mas só quando é consciente e persistente é que o trabalho merece tal nome. A inconstância revela um espírito fraco, pequeno, fugaz em seus pensamentos e em suas obras, pouco progressivo. A constância e a energia revelam a maturidade de um espírito já avezado à fadiga. Daquele que mais perseverar, será o maior prémio, nunca apenas daquele que houver melhor pensado; pois o simples pensamento ou intenção pode muito bem não passar de uma ideia fugaz, sem fruto para a vida real.
Trabalhemos, pois, a toda hora, mas com ordem, com método e com perseverança, sem violência e sem fadiga, e nunca devemos desconfiar do sucesso, mesmo quando resultar falho o nosso cálculo no resultado que pensávamos, porque sempre redundará em benefícios que não suspeitáramos.
Não há ato insignificante ou pequeno, e não há esforço inútil. Tentemos que tudo seja para o bem, e não nos preocupemos do seu alcance; que se uma faísca é suficiente para acender uma grande quantidade de pólvora e explodir uma fortaleza, uma acção é suficiente para agitar todas as fibras do espírito.
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Capítulo XVI - O Positivismo, como verdadeiro Idealismo
Estamos cansados de ouvir continuamente: “Nada de filosofias, nada de hipóteses sem realidade: todas elas são idealismos de pensamento; fantasias da imaginação que pretendem fazer válidas abstracções metafísicas, como Deus e a alma. O que é preciso são fatos, não abstracções, homens práticos e não sonhadores filosóficos que passam seu tempo investigando a essência das coisas. Bem, já que nós temos de viver aqui embaixo, não vamos nos preocupar com o que está lá em cima; já que a Natureza nos colocou neste mundo material, vamos nos comportar como seres materiais, tentando alcançar o maior bem-estar possível, sem dar atenção a outros bens extraterrestres, que para maldita coisa servem na vida.”
Essas são, mais ou menos, as palavras que se repetem por toda parte e o pior não é que sejam ditas, mas que constituam o critério moral de muitas pessoas. Para estas existem dois tipos de homens: teóricos e práticos. Os primeiros, idealistas, sonhadores, que inutilmente perdem tempo deixando sua imaginação vagar por coisas muito bonitas, mas que não existem. Os segundos, verdadeiros homens práticos, dedicam-se a empregar o seu tempo em algo positivo que satisfaça as necessidades mais ou menos urgentes da nossa existência, tanto para alimentar e vestir o corpo, quanto para proporcionar-lhe todo tipo de conforto e comodidade.
E esse critério também se aplica à esfera da arte, ficando proscrito tudo aquilo que for ideal, reduzindo seu objecto e finalidade a ser uma mera imitação da Natureza. Isso não é o pior, mas entendendo alguns espíritos estreitos que na Natureza só o mal tem realidade, e o bem a tem somente por excepção, pretendem que a verdadeira realidade é a expressão do mais grosseiro e mais baixo que o homem produz na vida. Assim, em novelas, no drama ou na pintura, não dão a conhecer heroísmo, abnegação e sacrifício, nem mesmo a virtude de quem se esforça para ajudar seus semelhantes; eles representam para nós os tipos da sensualidade e do embrutecimento mais atroz, não misturados com outros bons, como na vida os distinguimos, mas embaralhados com aqueles que expressam o egoísmo mais frio, a avareza mais sórdida e a mais repugnante abjecção.
É urgente opor-se a esta avassaladora corrente de positivismo que nos rodeia e que se reflecte em todas as múltiplas manifestações da actividade. Na verdade, basta reparar nesse egoísmo desconsolador, nessa luta do mais forte contra o mais fraco, nas ficções e enganos que a diplomacia usa, para ver como, apesar de todos os sofismas, o móvel de suas acções é sempre a ambição, e com este fim são pactuados tratados, celebradas alianças e despojados povos inteiros da sua independência.
Da filosofia tudo o que é nobre e elevado é desprezado: Deus, a alma, a virtude, o progresso, não têm para esses pseudo-positivistas outra realidade senão aquela que nossa fantasia acalorada lhes empresta, e quando os nossos ossos descansarem, na medida em que nosso cérebro deixa de estar aquecido pelo fogo do sangue, não haverá mais pensamentos, nem afeições, nem nada; deixaremos de ser, para fazer parte de uma planta ou de uma flor.
Nada disso deve nos desanimar. Antes, com a maior coragem, tentemos opor-nos a esta filosofia de transição, cujo critério consiste em negar a existência da filosofia. A esse idealismo ao contrário, que só quer ver da realidade o lado baixo e grosseiro das coisas. A esse positivismo do actual, do que se toca, como se o fato, o do momento, o que em um ponto ou em um povo pode constituir a norma de suas acções pudesse ser erigido como critério para a verdade, como ideal humano através de todos os tempos e de todos os séculos.
Com tal critério o cristianismo jamais teria triunfado, porque o positivo no mundo romano era a sensualidade mais assustadora: um povo envilecido e uma corte de magnatas mais envilecida ainda. Mas a opinião de uns poucos foi mais forte do que o resto dos demais; porque em seu apoio contavam com razão e a justiça. Quando alguma crença vacila, tudo é posto em dúvida, como quando um infortúnio nos entristece nos consideramos os mais desafortunados; mas tendo passado a impressão, é possível avaliar melhor. Da mesma forma, devemos pensar que o chamado Positivismo não deve ser o ideal que informe a Filosofia, nem aquele que deve ser aplicado à vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:22

Esta Escola tem a observação sensível como único critério e fonte de conhecimento; e como regra ou princípio geral para encontrar suas leis, a indução que nessa mesma observação se apoia; de modo que tudo o que transcende ou ultrapassa a dita observação sensível é negado, relegado à esfera do indiscernível, como diz Hartmann, ou do incognoscível, no dizer de Spencer, como impossível de perceber; e, portanto, impossível de entender.
Diz-se por isso que o Positivismo é um Idealismo ao contrário.
O idealismo tanto de Platão quanto de Hegel, os mais exaltados, subestimou a experiência, os dados sensíveis, e quis explicar a realidade sem se ater ao que a realidade mostra. Platão despreza todo conhecimento que não seja o filosófico, ou seja, aquele que tem carácter de permanência, e para ele as coisas que passam e mudam não têm importância; e Hegel descreve as infinitas evoluções da ideia que a identifica com o ser dizendo que consiste na mudança contínua, não se atendo ao que a realidade nos mostra nas transformações de todos os seres, mas querendo explicar essas transformações por leis subjectivas, que o tornaram famoso com suas tricotomias ou suas teses, antíteses e sínteses. Desta forma, ele chegou a dizer que as coisas se diferenciam precisamente porque são semelhantes.
Ora, o Positivismo nega o pensamento racional, o conhecimento com carácter universal infinito, e para ele existem apenas generalizações mais ou menos empíricas cuja base e fundamento é sempre a experiência. Assim como Platão desprezava o conhecimento de carácter mutável, o Positivismo despreza o conhecimento de carácter permanente, e este é um verdadeiro idealismo porque é também uma apreciação errónea: no homem, por exemplo, o Positivismo não reconhece nada permanente; de modo que não existe a identidade do ser; vê nele apenas moléculas que mudam sucessivamente, e isso é tão falso quanto o extremo oposto, pois é tão erróneo negar que nosso ser permanece o mesmo em meio a suas mudanças quanto negar essas mesmas mudanças.
No que chamamos de espírito, o Positivismo vê apenas uma sucessão de estados, nunca um ser que produz esses estados. No universo, só admite antecedentes e consequentes, nunca causas e efeitos, de modo que não há inteligência dirigente e ordenadora. E na ciência em geral ele não vê nada mais do que um meio de ampliar nossas percepções, nunca um conhecimento seguro e racional por estar baseado na natureza das coisas, já que essa natureza é negada ou reduzida a uns poucos fenómenos que a observação nos mostra.
Assim, como ele nega o dado permanente, já nos entes, já no conhecimento, é um idealismo ao contrário do idealismo que nega o dado sensível; e pelo fato de os extremos se encontrarem, do Idealismo hegeliano no que se convencionou chamar de esquerda, nasceu o Positivismo moderno.
Agora, então, quando a escravidão existia em todos os lugares, em qual indução se apoiavam todos os pensadores que a combatiam? Em nenhuma indução empírica. O fundamento era, sem dúvida, um princípio racional. E embora existisse em todos os lugares, bastava ter uma ideia da liberdade humana e do dever universal para entender a injustiça dessa instituição.
Em qual experiência sensível Pitágoras teve de se apoiar para afirmar o movimento da Terra, assim como todos aqueles que pressentiram a habitabilidade dos planetas, sem outro meio de investigação além dos sentidos, quando careciam de dados sobre sua magnitude, peso, distância, movimento e condições físico-químicas de sua atmosfera e de seu solo?
No entanto, pensadores de todas as épocas afirmaram resolutamente a pluralidade dos mundos habitados. Da mesma forma, aqueles que tentaram opor o que deve ser ao que é, só se basearam em fatos apenas precisamente para combatê-los: prova evidente de que há em nossa natureza humana algo mais do que o conhecimento que se adquire através dos sentidos; que existe um conhecimento racional que ultrapassa o âmbito da experiência, um conhecimento racional que existe e se desenvolve, embora a observação pareça às vezes restringi-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:23

A razão, então, é a faculdade que deve conhecer o que é universal na natureza, e não negar, muito menos contradizer, a esfera da experiência: ela existe como uma fonte diferente de conhecimento. Deste modo, se a nenhum cego podemos dar a conhecer o que é a luz, e em geral não podemos explicar a ninguém em que consiste uma sensação enquanto ele não a experimentar, do mesmo modo, por muitas que tiver, ninguém poderá nos explicar as causas dessas sensações, se não tiver em sua inteligência essa ideia de causa que se aplica a todos os efeitos.
O Positivismo, portanto, é uma escola incompleta: limita a realidade e as fontes do conhecimento, e em seus exageros é um verdadeiro Idealismo ao contrário, pois que sem perceber o átomo, como o elemento químico, nem a força, nem o éter, nem a célula, formula, no entanto, conclusões que se baseiam apenas em meras induções, depois de proscrever todo conhecimento que não for comprovado na observação sensível.
Essa tendência passará, esses exageros terão seu termo, e então poderemos descartar os grandes bens que devemos ao exame positivo.
Enquanto isso, vamos reconhecer que o conhecimento, seja qual for, é um composto da presença dos objectos, ante a inteligência e a atenção que colocamos de nossa parte. Portanto, na observação sensível sem o objecto externo presente a nós, o conhecimento é impossível. Nesse sentido, tudo o que se refere à esfera dos fatos e do conhecimento fenoménico deve ser perfectível para o indivíduo e para a humanidade. Mas a realidade infinita, como a realidade sensível, também está presente à nossa inteligência, pois que ela a compreende; apesar de possuir carácter limitado, finito e concreto.
Portanto, se a experiência é legítima como fonte de conhecimento do individual, justa e legítima é a razão como fonte de conhecimento do absoluto.
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Mensagem  Ave sem Ninho 10/3/2024, 23:23

Capítulo XVII - O novo hipnotismo
Tão logo como os fatos do sonambulismo magnético começaram a ser estudados, viu-se a impossibilidade de serem explicados de forma racional pelos conhecimentos fisiológicos da ciência actual, principalmente os fenómenos que de antigo são chamados de transmissão do pensamento, transposição de sentidos e visão dupla; pois sem admitir a existência real e positiva do espírito com faculdades próprias e diferentes das forças orgânicas, era impossível dar um passo em sua explicação, pois todas as descobertas verificadas e todas as hipóteses admitidas para explicar a visão ocular, por exemplo, são insuficientes para nos demonstrar como um sonâmbulo com os olhos fechados vê à distância, e através de paredes e obstáculos materiais, aquilo que outro indivíduo e ele mesmo, acordado, é impotente para perceber.
Mas os soi-disant7 homens de ciência, que às vezes são tão fanáticos por seus sistemas e teorias quanto qualquer outro tipo de sectários, em vez de admitir os fatos e abordar de frente as dificuldades de sua interpretação, tentaram sair pela tangente, negando alguns fatos e admitindo outros. E querendo acomodar a realidade às suas ideias, não suas ideias à realidade, descartaram dos fenómenos do magnetismo tudo aquilo que seria absurdo explicar por suas teorias, admitindo apenas o que, em sua opinião, em nada se opõe a estas.
Assim, eles negaram categoricamente a existência do fluido magnético, mudando o nome de magnetismo animal para hipnotismo, abreviação de neuro-hipnotismo (sono nervoso induzido). Braid of Manchester, foi o primeiro a dar-lhe este nome em 1841, e desde então tem sido utilizado pela maioria dos que se dedicaram a este assunto, entre eles Liébault.
Beannis, Cullerre, Ladame, Bottey, Liegedis, Bernheim e outros que, se falam de magnetismo, é só para dar a entender que não existe tal coisa, que não existe nada além de hipnotismo.
A palavra hipnotismo já nos diz que tipo de fenómenos são aqueles admitidos como verdadeiros. Segundo Liébault, o sono comum, no fundo, não difere do sono magnético; um como o outro se deve à imobilização da atenção e da força nervosa sobre a ideia de dormir. O hipnotizado adormece com a ideia fixa em relação com aquele que o adormeceu; daí a possibilidade de lhe sugerir sonhos, ideias e actos estranhos à sua vontade.
O esquecimento ao acordar depende de que toda a força nervosa acumulada no cérebro durante o sono vem a ser novamente difundida por todo o organismo. Disso Bernheim8 conclui que nos fenómenos do hipnotismo não há nada mais do que pura sugestão.
"Nós", diz ele (p. 130), consignamos que os fenómenos determinados no estado hipnótico e no estado de vigília não são devidos a um fluido magnético, a qualquer emanação que vai de um organismo a outro, mas que tudo procede da sugestão, ou seja, a influência causada por uma ideia sugerida e aceita pelo cérebro.»
Coerente com essa ideia é a expressa por Prosper Despine9, que diz: "O sonambulismo é caracterizado fisiologicamente por apenas o exercício da actividade automática do cérebro durante a paralisia da actividade consciente manifestada pelo Eu." E se quisermos saber por que o sonâmbulo ignora quando acorda o que verificou durante o sono, este mesmo autor se encarrega de nos dizer muito rapidamente sem encontrar nenhuma dificuldade: «O facto de o sonâmbulo ignorar o que fez durante o sonambulismo não depende do esquecimento, mas da não participação do Eu em seus actos.» E, claro, se ele não fez isso, mal conseguiria se lembrar.
Contudo, queremos saber a causa das alucinações que podem ocorrer ao hipnotizado. Ouçamos Lelut: "A alucinação é a transformação do pensamento em sensação". Isto mesmo explica a excitação da sensibilidade ou os fenómenos de hiperestesia. "Há, diz Bernheim, uma exaltação da excitabilidade ideo-sensorial, que inconscientemente transforma a ideia em sensação ou imagem sensitiva."
É um pouco mais difícil explicar o fenómeno oposto, isto é, a anestesia ou perda de sensibilidade, mas nada detém os nossos sábios, que tudo dão por coisa sabida. «Nesse caso, diz este mesmo autor, há uma paralisia reflexa de um centro cortical que a ideia sugerida produziu» Depois disso, não deve nos surpreender que Liébault diga que «entre o sono espontâneo e o provocado não há basicamente nenhuma diferença.»
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:55

Mas, a verdade irrompe e quanto mais tentamos detê-la, mais evidente fica a ineficácia de nossos esforços para consegui-lo. A atenção a esses fenómenos com objecto de desacreditá-los resultou na demonstração de sua realidade, e embora só se admitam aqueles que se enquadram em certas teorias, não pode haver ninguém tão obcecado que diga que tudo é farsa ou ilusão.
Quando pretendia ter dito a última palavra falando em sugestão para explicar os fenómenos do hipnotismo, dizendo que a simples sugestão era a causa dos três estados de letargia, catalepsia e sonambulismo, relegando aos domínios da fábula a existência do fluido e dos fenómenos da dupla visão, são dadas a conhecer as experiências do Dr. Luys no Hospital de la Charité, onde o eminente médico anatómico faz ver como, em uma pessoa em estado de sonambulismo, podem ser produzidos estados análogos à embriaguez, hidrofobia, etc., apenas aplicando em seu pescoço tubos hermeticamente fechados contendo alguns gramas de conhaque ou de água.
Não só isso, mas à distância o haxixe contido em outro tubo fazia a voz da pessoa hipnotizada aumentar ou diminuir quando cantava.
Agora: a doutrina da sugestão é insuficiente para explicar o real efeito dessas substâncias no organismo, muito mais quando não há contacto: seria preciso reconhecer que através do cristal, algo emanado ou irradiado por essas substâncias chega ao organismo e produz seus efeitos ali.
Não duvidemos disto; à medida que as experiências avançarem, nossos próprios contraditores terão de concordar connosco, por muitos nomes e apelidos que ponham nesses fenómenos, resistindo-se a reconhecer a realidade do espírito10. Também William Crookes, materialista convicto, nos fala em força psíquica para não nos falar em alma. Mas não importa; o nome não faz a coisa; que os hipnotizadores continuem fazendo investigações, que verifiquem a realidade dos fenómenos e estes se encarregarão de nos provar que a alma não é um efeito resultante do funcionamento de certos órgãos, mas, ao contrário, o espírito é o ser, causa activa de seus actos, e o organismo é o meio, instrumento ou elemento do qual se utiliza para realizar seus actos, para desdobrar suas faculdades.

7 Nota de SEDE: soi-disant, do francês: supostos.
8 N. do autor: Da sugestão e suas aplicações na terapêutica.
9 N. do autor: Estudo sintomatológico sobre o sonambulismo.
10 N. do autor: Alguns, como o Dr. Pulido, já falam de correntes neurais.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:56

Capítulo XVIII - A lei moral, como lei universal.
O bem e o mal
Todos os fenómenos variadíssimos do Universo estão sujeitos a leis, em virtude das quais se verificam. Essas leis ou regras, às quais os factos se ajustam, não são precisamente algo externo às próprias coisas que se impõe para sua execução. A lei nada mais é do que o modo especial de agir dos seres, segundo sua natureza; a norma à qual todos os fenómenos e actos respondem.
Quando observadas parcialmente, parece haver oposição entre umas leis e outras, da mesma forma que as forças se nos apresentam em combate singular. O que acontece é que elas estão subordinados umas às outras de acordo com sua respectiva importância. E qual será a lei suprema, da qual partem todas as outras e à qual todas estão sujeitas? É a lei moral, que rege e regula todas as leis do Universo. As forças físicas e intelectuais estão subordinadas a ela, e sendo a lei moral aquela que representa a mais alta elevação, o estado de progresso alcançado é por ela graduado. Os seres, então, não diferem tanto por sua inteligência quanto por sua pureza, pela rectidão de sua consciência. O progresso moral é o verdadeiro progresso: o progresso intelectual é antes um antecedente para realizar o progresso moral.
Essa lei moral, sendo permanente em todos os seres, dá-se em cada um deles de maneira diferente, conforme seu avanço. Não obriga do mesmo modo àquele que é sábio como ao ignorante, à criança como ao velho, ao forte como ao fraco e, no entanto, todos estão sujeitos ao seu arbítrio. É, portanto, universal e rege cada homem de acordo com sua posição, idade, sexo, etc.
A lei moral cumpre-se sempre: seu cumprimento nunca pode ser eludido, porque o bem sempre se realiza em maior ou menor escala.
Durante séculos, o bem e o mal não foram entendidos senão como dois princípios opostos, chegando-se às vezes a dar maior realidade ao segundo.
No entanto, o mal não existe como tal: não tem realidade, pouca ou muita que seja; é como o frio ou as trevas: um não-ser.
Melhor poderíamos dizer que o mal, como todas essas outras coisas, tem apenas uma existência subjectiva: reside na apreciação de quem o observa e assim o julga. Da mesma forma que as trevas não existem a não ser para nossos sentidos, incapazes de ver com luz escassa, o mal também não existe a não ser para nossa consciência, muito imperfeita, que não consegue ver como todos os actos trazem em si algum germe de bem. Para entender, então, o que seja o bem e o que seja o mal, devemos prescindir por completo do critério dos sentidos e olhar para os dados que a razão sensata possa designar.
Esta sã razão nos diz que todo fato, todo ato livremente praticado, é sempre feito tendo em vista um fim, um fim mais ou menos nobre, mais ou menos puro, mas sempre em vista de algum bem, já particular para o sujeito que o verifica, já para os outros seres. As faculdades postas em jogo não são más por si mesmas, mas pelo mau uso que se pode fazer delas; portanto, não há ato que seja em si mesmo mau de modo absoluto.
Tudo o que a fantasia conseguiu imaginar como o pior e o mais ruim, sempre contém, em virtude desse princípio anterior, algum bem. Portanto, o mal como puro mal é um mito, é um não-ser, que nem sequer pode ser concebido.
Caso contrário, se o mal tivesse realidade, teria de ser o oposto do bem, não um menos bem; da mesma forma que, o frio e a escuridão tendo realidade, teriam de ser qualidades opostas ao positivo e ao real, que é o calor e a luz. Mas naqueles termos negativos não há nada além de uma questão de apreciação, seja por causa da imperfeição dos sentidos, seja pela imperfeição de nossa inteligência, que não alcança para compreender como todos os actos são transcendentais para o bem.
Mas, não se creia que, negando a realidade do mal, vamos julgar todos os actos como igualmente bons e, portanto, em nada reprováveis, pois que nenhum é ruim. Não. Todo ato tem sua sanção de acordo com a intenção que o produziu e o efeito alcançado, e os actos que nossa consciência julga como maus é porque não estão de acordo com o que deveríamos fazer, e é preciso haver expiação e compensação para nos reabilitar por tê-los executado.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:56

E não apenas os actos que transcendem ao exterior: todos os pensamentos, como estados de nossa inteligência, acusam maior ou menor perfeição.
A sanção dos actos não é apenas a mais ou menos longo prazo. Todo acto produz seu efeito imediatamente. Aquele que age mal encontra-se rebaixado e já desmereceu desde o momento em que agiu. Embora o espírito possa reflectir sobre uma vida inteira, a sanção do ato ou sua consequência seguiu à sua execução.
Vemos, então, que a lei superior à qual todos os actos estão subordinados e que rege todas as outras leis, é a lei moral.
Difícil é, à primeira vista, nos convencermos de que o bem é a lei moral suprema. Acostumados a julgar pelas impressões dos sentidos, vertemos nossas ideias nos moldes estreitos do mundo sensível e não damos aos nossos pensamentos outro escopo além do círculo limitado de nossas sensações. É preciso que a cada momento a razão se encarregue de rectificar os dados de nossa percepção para validar os julgamentos e acertar sobre a verdadeira causa dos fenómenos.
Assim, durante séculos a Terra foi considerada imóvel no espaço, por nenhuma outra razão além de não sentir seu movimento. E, pelo contrário, acreditava-se que todas as estrelas giravam em torno desse átomo estelar, também sem outro fundamento além dos dados que nossa visão nos oferece. Da mesma forma, acreditava-se que um corpo quando queimado desaparecia, e foi necessário, para sair do erro, que a química reconstruísse novamente os elementos que entravam na combustão, e por meio da balança demonstrar que não houve perda alguma da matéria que constituía o corpo comburente.
Assim também, reparando no dado sensível: como admitir que o bem deva reinar como soberano, quando há tanto egoísmo, tanta ambição, crime e infortúnio em toda parte? Será o amor o que leva o assassino a atacar sua vítima; o que move o ladrão para fazer o roubo; o que arma o braço do guerreiro para ceifar milhares de vidas em flor? Pelo contrário, o mal-estar das sociedades, as revoluções que se sucedem, as crises económicas, as doenças de toda espécie, os atrozes crimes que estarrecem e, como se não bastassem os males e as penas individuais, as terríveis epidemias e as não menos terríveis guerras que levam destruição e miséria a extensos territórios; tudo, ao que parece, indica que não é o amor que é soberano, senão o egoísmo e a barbárie que triunfam neste combate único da vida.
É verdade, bem verdade, que a vida de hoje está cheia de dor, perda, sofrimento, e que neste mundo há mais males, em geral, do que bens; mas esses fatos não invalidam, muito menos contradizem, essa lei infinita de amor que rege todas as outras.
Vamos fazer um esclarecimento. Se dirigirmos nossas vistas sobre a superfície do globo, notamos multidão de desigualdades: montanhas que se elevam acima do nível comum, vales e depressões que descem consideravelmente em comparação com o nível das montanhas mais altas.
Por um lado o Himalaia com seus altos picos, por outro lado o Saara com suas imensas planícies. E muito mais notamos essas sinuosidades que a Terra nos apresenta se, em vez de nos concentrarmos em olhar para elas, as percorrermos a pé. Como negar essas diferenças de nível se a cada momento estamos cansados e precisamos recuperar o fôlego para subir qualquer pequena ladeira? Tudo isso é verdade; mas não é menos verdadeiro que nossos julgamentos são feitos por comparação, e que se comparando o nível da montanha com a planície, ela nos parece grande, comparando a montanha com a crosta terrestre parece-nos pequena. O que são todas as desigualdades da Terra em proporção à totalidade da massa planetária? Se representarmos a Terra por uma laranja, toda a crosta sólida estará figurada pela espessura de um papel de cigarro. O que representarão as desigualdades que o papel possa ter? Bem, é assim que as sinuosidades da Terra são, se comparadas com a própria Terra.
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Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito - Página 2 Empty Re: Estudos Filosóficos - A Psique / Manuel Sanz Benito

Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:56

A mesma coisa acontece com o valor que possuem os actos de nossa existência, pois temos que, como todos os actos são meios de progresso – pois que para quem faz o mal servem de incentivo para refazer seu trabalho, e para quem faz o bem servem de estímulo na empresa iniciada – resulta que nada é inútil; que, sem inibir a liberdade dos seres, todos os actos acabam afinal por redundar em seu benefício; assim, da dúvida, nasce o estudo; do desengano, experiência; da dor, a apreciação do que a saúde vale; das injustiças sociais, a necessidade de nos amarmos; da guerra, o anseio pelo bem-estar da paz; das necessidades físicas, a precisão de trabalhar para superá-las; e em último resultado, de tudo o que dizemos que é mau, a necessidade de aumentar e aperfeiçoar nossa actividade. E como todos os seres tendem a uma actividade maior, acontece que os actos se totalizam todos eles, que nada se perde, que tudo é útil, assim como no mundo material nada se anula; tudo, em meio às suas mudanças, permanece. Mas, todos os seres, ao progredirem, devem fazê-lo precisamente através da identificação com os seus semelhantes, através do amor e do bem.
A Criação obedece a um ato de amor infinito e todos os seres são como uma faísca. Aumentando sua intensidade, essa faísca torna-se luz e depois sol que vivifica inúmeros seres na escala do progresso.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:56

Capítulo XIX - A Filosofia em sua aplicação social
É uma verdade que nem as riquezas, nem as honras, nem os prazeres bastam para a satisfação do nosso espírito. As formas de governo, as mudanças políticas e os melhores Códigos também não podem, por si sós, tornar os homens felizes.
Pode ser que por muitos séculos a humanidade tenha acreditado nisso, e vimos o homem se inspirar quase sempre no móbil do prazer para suas acções, mesmo quando para isso tivesse de sacrificar a vida de seus semelhantes, cobiçar tesouros e riquezas, almejar e pretender posições na vida social, embora muitas vezes tivesse de atropelar honras e vidas e martirizar cruelmente seus irmãos. E também vimos ensaiar todos os sistemas políticos, desde o despotismo mais repugnante, até a demagogia mais exagerada e os princípios sociais mais opostos, do comunismo nivelador ao individualismo mais egoísta.
O indivíduo, tanto isolado quanto associado a seus semelhantes formando povos, tribos e nações, empreendeu conquistas, sempre desejou expandir seu território à custa do que outros ocupavam, acreditando erroneamente que o povo de maior grandeza é aquele que mais domínios possui, e o governo mais forte é aquele que mais duramente castiga; como se a extensão do território ou a crueldade do governante pudessem jamais ser sinais de verdadeira grandeza.
Quanto sangue derramado, quanta injustiça cometida, quantas extorsões, ultrajes e tormentos para que a bandeira nacional ostentasse triunfante, com razão ou sem ela, nos confins mais distantes do mundo! Há ainda quem na história da nossa pátria encontre, como mérito glorioso, o daquele império hispano-português que chegou a ser, de longe, maior do que o romano, em cujo território o sol nunca se punha, e onde multidão de indivíduos pronunciavam orgulhosamente o nome de espanhol.
No entanto, era quando milhões de índios permaneciam na escravidão, apesar de nossos excelentes códigos para protegê-los; quando travávamos guerras sangrentas nos Países Baixos e em outros pontos, pretendendo impor pela força das armas nossa política intolerante; quando a indústria estava quase morta, porque o ouro que vinha em grande quantidade da América nos fazia desprezar o trabalho. Tomando ouropel por ouro puro, nos elevávamos ao céu com nossos artistas, mas estávamos submersos na pavorosa miséria e na mais bárbara ignorância, preparando assim aquela rápida decadência dos últimos tempos da casa dos Áustria, em que a Espanha mais parecia uma comarca cheia de mendigos, do que nação povoada de cidadãos.
Não. Nem o indivíduo é feliz porque às vezes beba do cálice do prazer, nem a sociedade é bem dirigida porque seja empurrada para o caminho de uma grande e rápida conquista. A felicidade reside apenas no cumprimento do dever. E nem o melhor Governo nem a melhor Constituição são capazes de fazer felizes os povos em cujo seio predominarem a ignorância e a superstição e, consequentemente, a miséria do corpo e da almadia segue-se que a ciência filosófica não pretende regenerar a sociedade pregando um credo político e social mais ou menos avançado.
Não considera serem tão importantes assim as formas de governo que em momentos dados possam ter os povos; mas, tendo em conta a consciência, busca reformar o homem como indivíduo, porque sabe muito bem que, reformado o indivíduo, a sociedade resultante ficará por sua vez também reformada; e essas variações na forma política e na legislação serão corolários seus.
A própria história nos demonstra que é inútil pedir e conceder direitos sem cumprir deveres, e que é inútil se reger por leis muito sábias e previdentes se os encarregados de aplicá-las prevaricam a todo momento.
No facto que acima mencionamos de nosso antigo domínio, quando estávamos nos tornando donos da maior parte da América do Sul, nossos monarcas, de Isabel a Católica até Carlos II, aprovaram leis muito boas, que formam o famoso Código das Índias, mas que não foram efectivamente aplicadas pelos encarregados de cumpri-las, que atenderam mais ao seu interesse particular em explorar os pobres indígenas, do que aos sentimentos de caridade e aos deveres que a humanidade e a religião impõem a todos os seres.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:56

A mesma coisa acontece sempre que, sem reformar os costumes individuais, pretende-se reformar de raiz a sociedade: nenhum decreto é capaz de fechar a ferida e, por outro lado, não há chaga profunda o suficiente para que o esclarecimento e a moralidade não possam cauterizá-la.
Mas, para reformar a Sociedade, é preciso primeiro mudar as ideias, porque as ideias regem o mundo, e este é governado por ideias.
À primeira vista parece um contra-senso nestes tempos dizer que as ideias são os guias da sociedade, porque em toda parte se vê o egoísmo mais marcante, e esse egoísmo parece ser a antítese de um pensamento orientador na vida.
Reflectindo, porém, um pouco, devemos nos convencer de que não há, nem pode haver, excepção à lei geral enunciada; porque esse mesmo egoísmo que se traduz por imoralidade em todo tipo de organismos e actos particulares e colectivos, é efeito, nada mais, da falta de um nobre e elevado ideal de vida.
Acredita-se que depois dela não há nada; que é só aqui que os actos encontram sua sanção, e que, sabendo esquivar o mundo, conseguindo contornar a acção dos tribunais de justiça ou evitar ser feridos pelo indivíduo por nós ofendido, já estamos a salvo de qualquer evento e não temos nada a temer pela nossa parte. De onde vemos que neste caso, como em todos os outros, age-se como se pensa; e como se julga egoisticamente, com esse mesmo egoísmo nos comportamos. Mas, como o homem é sempre um eterno insatisfeito, nasce nele uma aspiração a um ideal de vida melhor, mais puro, mais humano, mais justo, onde não haja tantos exclusivismos de classe, de interesses e de ideias. Daí aquela aspiração mais ou menos ideal, a que tendem muitos poetas e pessoas de sentimento, de alcançar um melhor estado de felicidade, onde uma moral mais pura abrigue com seu manto todos os deserdados, hoje vítimas da desgraça e da miséria.
Zola, em um discurso dedicado à juventude francesa, condenava as inclinações ao misticismo e recomendava o trabalho e a fé na ciência, como único meio de alcançar a felicidade. Dumas, a propósito disso, publicou uma carta em Le Gaulois. Nela, referindo-se a um tempo próximo e melhor, disse que "quanto mais os homens acreditarem em sua previsão de que chegará infalível e proximamente a época em que, animados pelo amor ao próximo, modificarão toda a sua existência por sua própria vontade, mais rápido será o advento dessa época"; e quer, anunciando a modificação dos sentimentos humanos, aproximar mais essa mudança. Tolstoi rejeita a teoria de Zola de fazer do trabalho a finalidade da vida, considerando-o apenas como uma necessidade. Aceita, com Dumas, o advento de uma época melhor, pelo desenvolvimento do amor ao próximo, e endossa as palavras deste ao dizer que "os homens, depois de terem experimentado tudo, acabarão, e muito em breve, aplicando seriamente à vida a lei do amor ao próximo, e serão invadidos pela loucura, a fúria do amor.»
A ciência hoje em dia participa desse carácter egoísta que demos em chamar de positivo: lida com dados e examina fatos para aplicar as vantagens de suas investigações a necessidades momentâneas, para ter melhor indústria, mais comércio, maior bem-estar físico. Estas são suas aspirações hoje: que o vapor voe, que a electricidade funcione, que a luz desenhe e todas as forças naturais obedeçam submissas ao mandato do homem; mas tudo o que consideramos transcendente é descartado de alguma forma, e só aquilo que contempla o presente e tem carácter utilitário é o que fazemos objecto preferente de nossas miras e preocupações.
E, no entanto, isso indica nada mais do que uma época de transição entre um mundo que está partindo e um mundo que está nascendo e chega com novas aspirações e outros rumos nas ideias.
Em breve os livros que hoje consideramos como os melhores estarão poeirentos nas bibliotecas. As disputas acaloradas sobre o sufrágio e o júri, o sistema parlamentar ou representativo, a contribuição única e directa ou a necessidade de impostos indirectos, e tantas outras que hoje nos interessam e apaixonam, seja no âmbito político ou no social, não passará muito tempo antes de serem relegadas ao esquecimento, para dar lugar a outras questões e outras preocupações que irão requerer a atenção das inteligências futuras.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:57

Cada geração busca os meios para resolver seus problemas; mas os de uma época não são os da seguinte. Assim vamos entendendo que, por mais terreno que tenhamos percorrido, nunca deixará de haver imenso campo a explorar no caminho indefinido do progresso.
Mas há também suas tempestades e furacões na esfera social: há a revolução que escorraça em momentos determinados tudo aquilo que se opõe à passagem do povo irritado; há a reacção que vai reduzindo gradativamente as conquistas que a revolução tinha conseguido; há guerras devastadoras que deixam atrás de si, como rastos de indelével lembrança, a desolação e a fome, e há pestes e doenças que causam terríveis estragos e dizimam a humanidade. Não é preciso nos determos em pintar os quadros que a dor produz constantemente: fique isso para a Arte, que em seus divinos fulgores consegue comover e elevar nosso espírito.
Em presença de tais acontecimentos, o dever da Filosofia é dar a explicação racional para esses eventos.
Aristóteles disse que onde o amor impera, todas as leis são supérfluas; e será coisa de se ver como a miscelânea de códigos e leis atuais serão, em sua maior parte, inúteis para uma humanidade que tiver por guia o amor ao próximo e o amor à verdade em todas as suas manifestações.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:57

Capítulo XX - A força das ideias
Um eminente escritor francês, Fouillée, propagou com grande zelo o que ele chama de doutrina das ideias-forças. Consiste em aceitar como ideia qualquer estado de consciência que, desde que aparece, contém um princípio motor com tendência a se realizar. Assim, a ideia é o início do acto; e ele encontra uma semelhança entre a força das ideias e as forças físicas, pois ambas têm algumas características comuns.
Sem ir muito adiante nessa doutrina, não há dúvida de que, assim como no mundo físico toda força que não encontra um obstáculo tenderia à expansão infinita, no mundo moral toda ideia precisa lutar com outras que se opõem à sua influência. No físico, as forças, quanto mais subtis e incoercíveis se manifestam, mais potência desdobram, mais energia desenvolvem. Em termos morais, quanto mais extensa, generosa e elevada é uma ideia, mais força de impulso e resistência ela possui.
Muitos filósofos, querendo sondar o interior da alma humana para ver que forças ou faculdades ela tinha, se esforçaram especialmente para analisar as propriedades da inteligência, acreditando que a instrução é a principal coisa que interessa ao homem. Hoje, a Filosofia rectificou esse julgamento e descobriu que os actos humanos obedecem antes a desejos, impulsos e estímulos que nascem da esfera sensível, e que o sentimento tem um campo tão amplo na vida quanto a própria inteligência; e que o ideal da Pedagogia moderna, não é precisamente a instrução das faculdades intelectuais, mas a educação integral e harmônica de todas as forças do nosso ser. De onde vemos que a ideia cresce e se expande, abrangendo esferas cada vez maiores, horizontes mais extensos.
Quando uma ideia chega a ser do domínio do espírito, ela sempre persiste nele. Como se explica, então, que alguns possuem boa memória e retêm rápida e facilmente o que aprenderam, enquanto outros se esforçam em vão para reter alguns conhecimentos que tão trabalhosamente adquiriram? Ora, se o homem não esquece, como é que depois de certo tempo não se lembra mais de muito do que aprendeu? E se isso acontece na esfera do conhecimento, o mesmo acontece com os afectos, pois muitas vezes troca de objecto amado, sendo que o abandono, a perfídia e o engano cometidos acusam esquecimento do primeiro afecto. Além disso, se há memória para recordar, é claro e evidente que isso acontece porque é possível esquecer; então o esquecimento existe.
Esse esquecimento, no entanto, é aparente, não real. Nunca podemos esquecer o que outrora se tornou nosso em nosso espírito, tanto na esfera do conhecimento quanto na esfera do sentimento: o que o homem aprendeu e amou persiste sempre, assim como seu espírito persiste.
O que acontece é que temos por amor aquilo que é falácia da imaginação e temos por conhecimento aquilo que é aprendizado sem consciência; mas nem o primeiro é verdadeiro sentimento, nem o outro é conhecimento verdadeiro. Quando a criança aprende que os paralelos são duas linhas que não se encontram por mais que se prolonguem, ela não precisa se lembrar desse conhecimento mais tarde, porque está presente em sua inteligência e sem nenhum esforço se manifesta e ela o vê: tal conhecimento não é passado em nossa mente; ele está presente e como está presente, ela o reproduz. Dessa forma, longe de a memória ser um simples arsenal onde armazenamos os conhecimentos adquiridos, ela é a própria consciência no tempo, ou seja, tudo o que é consciente dura e persiste. É a faculdade que a alma tem de sempre reter e reproduzir o que uma vez sua consciência adquiriu. É por isso que o desenvolvimento da memória começa a ser percebido quando a consciência começa a se desenvolver, aos três ou quatro anos de idade.
Perguntemos a qualquer um o que ele fez quando tinha dois anos, e ele não poderá responder, porque não estando naquela época ciente de seus actos, é impossível para ele lembrar-se deles; de onde se segue que a memória nada mais é do que a própria consciência continuada no tempo.
Essa memória rotineira que repete palavras sem entender o significado está ligada de forma mais íntima com o organismo e depende mais da conformação do cérebro do que da facilidade do espírito em assimilar e reter, como evidencia o fato de esquecer em pouco tempo o que assim foi aprendido, porque na realidade não houve conhecimento verdadeiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:57

Quanto ao sentimento, quem ama de verdade, nunca pode esquecer o amor que teve. Nem a ingratidão, nem os desenganos, nem a ausência, nem a morte serão suficientes para apagar esta memória porque, como ela está sempre presente no espírito, nunca se apaga e nunca chega a desaparecer.
Dessa forma, o que chamamos de esquecimento não é tal: nada mais é do que a minoração da memória de um fato ou de uma ideia ou afecto, que, sendo consciente, pode ser reproduzido à nossa vontade.
A faculdade de pensar no homem está sempre como as outras faculdades, em exercício contínuo, e o homem não pode por sua própria vontade parar de pensar.
Um postulado necessário da vida da alma é a actividade que deriva de sua própria natureza e a priori podemos dizer que essa actividade é executada, embora às vezes não possamos verificá-la; a priori sabemos que os raios de um círculo são iguais, embora não os tenhamos medido. A alma é activa, porque é uma energia que tende a sempre realizar actos, e como essa actividade se dá na forma de conhecimento, sentimento e volição, a alma é sempre uma energia ou uma actividade que pensa, sente e quer.
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Mensagem  Ave sem Ninho 11/3/2024, 13:57

Capítulo XXI - A causa absoluta. Unidade substancial divina
Todos os povos em suas diferentes crenças sempre reconheceram um além melhor, algo superior a eles que poderia influenciar seus destinos, ao qual deviam suas vidas e do qual podiam temer certos males quando não obedeciam aos seus mandatos. Daí o temor aos fenómenos naturais que cortavam o fio da nossa existência: o rio transbordante, o terremoto, o vulcão, o vento do furacão, o mar tempestuoso, eram objecto de adoração pelo pavor que lhes infundiam. Em contraste, o campo com seus belos prados, o sol com seu brilho ardente e a lua com sua luz plácida, as árvores e os animais que lhes traziam benefícios eram objecto de adoração em forma de agradecimento. Daí os dois deuses do bem e do mal em correspondência com os fenómenos ou seres que produziam o bem ou o mal para eles.
Era natural que, endeusando fenómenos e coisas naturais, as pessoas também fossem endeusadas. E os reis e imperadores, considerados naturalmente superiores aos demais mortais, eram representações da mesma Divindade, como encarnações da entidade que transcendia a esfera comum dos humanos. Aos poucos, à medida que a cultura foi aumentando, o conceito, já naturalista, já antropomórfico, da Divindade, também foi sendo depurado.
Homens rudes e grosseiros haviam de imaginar um Deus dotado das mesmas paixões e da mesma ferocidade. Mas quando a razão gradualmente vai se sobrepondo aos sentidos e compreende as coisas, em sua verdadeira natureza e não como parecem à primeira vista, o conceito de Deus vai se elevando, assim como o conceito do mundo, do homem e do dever, da mesma forma que os sentimentos vão sendo mais depurados e enobrecidos, removendo muito do que havia de particular, egoísta e mesquinho neles.
Do que foi dito, pode-se inferir que, como a ideia de Deus foi se engrandecendo cada vez mais, os princípios que nossa razão aceita também irão sendo esclarecidos e aperfeiçoados, sem nunca terem um carácter absoluto; pois a criatura estará sempre a uma distância infinita da Divindade.
Para começar, a ideia de um deus cruel e vingativo parece-nos hoje absurda e contrária à ideia de um Deus que deve ser o protótipo da bondade e da misericórdia.
Aristóteles, pelo movimento de todas as coisas, chegou à existência de um motor imóvel, segundo o qual Deus seria o primeiro motor imóvel do Universo. Outros pensadores, reconhecendo o mundo como efeito, consideraram Deus como a Causa Primeira de tudo o que existe, e descartando panteísmos espiritualistas e materialistas que confundem o mundo com o Ser de Deus, outros filósofos admitiram uma espécie de dualidade entre o mundo e o seu autor.
Mas esses conceitos são muito parciais e insuficientes para nos dar uma ideia melhor do Ser Supremo. A existência de Deus como motor não explica os atributos do Ser Supremo e a forma como ele atua no Universo. Da mesma forma, a existência de Deus tão só como causa, não explica suficientemente em que medida o efeito tem as propriedades da causa da qual é derivado e quais são essas propriedades. Finalmente, o dualismo não explica e não pode explicar como Deus se comunica e influencia o mundo.
Tampouco é possível admitir que a Criação seja um ato de força ou uma necessidade do Criador. O Criador não cria por força, o Criador cria por amor, e em virtude de um gesto de amor a Criação existe, e em virtude de uma força infinita de amor a Criação é, a Criação continua e a Criação será, porque o milagre da Criação repete-se todos os dias. Deus neste sentido não tem deixado de criar.
Quanto à Providência, Deus não é Providência porque às vezes intervém no mundo, principalmente em grandes ocasiões, quando as nações estão em perigo; nem o verifica intermitentemente, quando acredita que precisam dele, realizando grandes prodígios, como punir com doenças cruéis aqueles que transgrediram, vendo-se assim o castigo de Deus nos flagelos e calamidades humanas.
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