LUZ ESPÍRITA
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 3 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:35 pm

Na visita que fizemos à dona Querubina, eu e dona Modesta entabulamos com a antiga benzedeira inesquecível diálogo, que de facto, muito nos acrescentou.

Embora a sua simplicidade, a boa senhora possuía invejável lucidez espiritual.
Quando chegamos ao seu casebre, fomos encontrá-la com o pé imobilizado, descansando sobre velha poltrona que recolhera no lixão próximo à sua casa, certamente, algumas pessoas ricas dela se desfizeram, sem a preocupação de que pudesse ser útil a alguém...

—Como vai passando a irmã? - interrogou dona Modesta, descarregando as compras que lhe leváramos sobre pequena mesa da cozinha.

—Estou melhor, minha filha.
A Providência Divina não nos desampara.
Desde que aconteceu isto comigo, tenho observado certas mudanças no comportamento dos meninos...

Surgindo à porta, os dois netos quase adolescentes de dona Querubina, olhos espantados fixaram-nos, retraídos, posicionando-se ao lado da avó.

—Cosme e Damião (nomes com que haviam sido baptizados os gémeos) agora estão sempre comigo, antes viviam na rua...
Estão até aprendendo a cozinhar!
Se alguém pensou em me fazer o mal, acabou me prestando um favor, estes dois não me obedeciam - observou a senhora, com um lenço muito alvo amarrado à cabeça.

—Um espírito que se comunicou no Sanatório, dona Querubina, disse que foi ele o autor do tombo que a senhora levou... - comentei, aguardando o que ela haveria de dizer.
—Nada, meu filho, nos acontece se não for pela Vontade do Pai, com certeza, fazia parte do meu carma...
Lembro-me que, quando criança, eu me divertia empurrando o meu pobre tio, irmão de minha mãe, dentro de casa.

Eu sempre fui muito assediada pelos espíritos...
Quem me fez o mal foi o agente da Lei...

Querendo testar a sapiência da mãe-de-santo, uma mulher de maior fé que a minha, redargui:
—Mas por onde andava Pai Jacó?...

—Não blasfeme Doutor! - repreendeu-me, deixando-me envergonhado.
O senhor sabe que os nossos protectores têm muito que fazer, Pai Jacó não está o dia inteiro ao meu lado - a protecção dele sim, eu poderia, por exemplo, ter batido com a cabeça numa pedra.
Pesadona deste jeito seria um golpe fatal, o senhor não acha?

—Estou caçoando com a senhora, dona Querubina - procurei explicar-me.
—Eu sei meu filho.
Nós os médiuns, também temos os nossos momentos de invigilância.
A gente pensa muita besteira.
É em momentos assim que os espíritos das trevas nos alcançam...

Dona Modesta, que tudo acompanhou, reparando agora no carinho daqueles dois pirralhos com a avó doente, comentou:
—Eu também minha irmã, na condição de médium, tenho padecido.
Dias há que os espíritos me atormentam o tempo todo, clamo pela protecção do Dr. Bezerra, mas mesmo com as preces que faço, os obsessores continuam...

Dizem-me coisas horríveis aos ouvidos, tentando, inclusive, me incutir ideias de suicídio.
Ninguém vai acreditar, mas é a pura verdade...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:35 pm

—É assim mesmo, minha filha - confirmou a benzedeira, com o evidente propósito de confortar dona Modesta.
Não ligue para isso não!
Eu vejo coisas horrorosas que eles me mostram, sou uma mulher já velha e, pasmem, até com sexo eles me provocam...

Oro o tempo todo, acendo o meu cachimbo, as minhas velas e...
Vou lavar roupas.
Ai do médium que não procura ocupar a sua mente!...

—Eu não entendo esses espíritos - aparteei.
Será que não estão conscientes da própria imortalidade ou não sabem que, um dia, terão que voltar a Terra e que colherão exactamente o que plantarem?...

—Sabem Doutor, a maioria sabe sim - respondeu a irmã que, a meu ver, nunca sequer lera um livro.
Mas não adianta a crença na reencarnação, crer que a vida prossegue além da morte, não modifica ninguém...

O que muda a gente é o Evangelho.
O senhor é um homem de muita leitura e sabe Doutor, que a crença na reencarnação não é coisa nova - tem gente que, mesmo depois de morta, não quer mudar, fica muito tempo marcando passo.

Os exus, por exemplo.
Converso com muitos deles em minha casa, Pai Jacó fez prelecção para eles, explicando com paciência o caminho do Grande Mestre, mas nada:
eles não têm capacidade mental de assimilação, são crianças - agem por instinto, por egoísmo, não acreditam na gente...

Preocupada, dona Querubina, quebrando a sequência do assunto que me interessava, disse, tentando se movimentar na poltrona:
—Preciso fazer um café para vocês; eu estava hoje sem açúcar, mas vi que vocês trouxeram...

—Não se preocupe minha irmã - adiantou-se dona Modesta.
Está quase na hora do almoço e não podemos demorar, o movimento em minha casa também tem sido intenso...

—Deus dê forças à senhora - abençoou a ialorixá, erguendo os braços para o alto.
Eu sei que a senhora lida com muita gente perturbada, o Doutor lida com os que estão trancados, mas a senhora lida com os que estão soltos - e eles são mais numerosos!...

Tem vindo gente aqui que vocês nem acreditam - gente da sociedade, gente de muito dinheiro, me pedindo cada coisa!...
Ninguém quer nada com a caridade - quer apenas se livrar dos maus fluidos, conquistar um homem ou uma mulher, ser bem sucedido nos negócios...

Trabalho sujo eu não faço.
Se fizesse, estaria melhor de vida, o que faço é incorporar os meus guias e dar conselhos a esse povo...

E, virando-se para mim, percebendo que eu já havia consultado o relógio de bolso, preocupado com as tarefas à minha espera, insistiu:
—Pois é, Doutor, não vamos descrer dos nossos amigos do Invisível, se o Pai consentiu que Jesus Cristo fosse morto na cruz, não me permitiria um simples tombo?!...

Cosme e Damião vão ficar uns bons dias à minha volta - tempo suficiente para que eles aprendam alguma coisa.
Da escola, virão directo para casa, pois, conforme vocês estão vendo, eu não posso fazer nada.

Eles terão que cozinhar lavar, passar, varrer o terreiro...
Antes de a roseira se crivar de espinhos, as rosas não aparecem...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:35 pm

Despedimo-nos.
Deixando dona Modesta em sua casa, almocei e tomei o caminho do Sanatório, reflectindo nas palavras que dona Querubina nos dissera.

Enquanto subia para o Sanatório, ia pensando quase que falando:
—Sem dúvida, se o homem não aceitar o Evangelho, o conhecimento da reencarnação pouco lhe acrescentará ao espírito.
Conhecer a Verdade não basta; torna-se indispensável o conhecimento do Amor...

Aquela legião de inquisidores desencarnados que, ultimamente, vinha povoando o Sanatório deixava bem claro que, sem a aceitação plena de Jesus ninguém se modifica - o tempo passa por fora, faz a sua obra externamente, mas interiormente tudo permanece na mesma.

E o pior é que aqueles espíritos se consideravam certos; para eles, o que fizeram e o que continuam fazendo eram testemunhos de fé...

Como convencê-los do contrário?
Será que, no Plano Espiritual, não existiria uma espécie de cirurgia capaz de interferir na disposição íntima do ser, economizando-lhe séculos de sofrimentos?...

Reflectindo nestes assuntos, não vi quando estacionei o carro e, antes de adentrar o Consultório, fui abordado por um casal de França, trazendo uma senhora em sua companhia:
—Doutor - disseram-me, ansiosos por se livrarem da mulher, que me parecia alheia ao propósito daqueles dois -, estamos vindo de França, trazendo esta nossa tia, queremos deixá-la aqui...
—Mas qual é o problema? - interroguei pronto para lhes dar uma lição.

Eu me indignava, todas as vezes que surpreendia familiares querendo se livrar da presença de seus entes queridos daquela forma...

—Ela está louca...
Aqui é hospital de loucos, não é? - indagou, com maior demência, o rapaz impaciente.
—Aqui é uma casa de saúde mental - respondi, tentando adiar ao máximo possível o meu estouro.

—Nós pagamos - foi a vez da mulher, exibindo valiosas jóias: anéis e colares de ouro, cravejados de brilhante.
Esta minha tia, irmã de minha mãe, está nos atrapalhando a vida, mamãe morreu faz quinze dias e nós não podemos assumi-la...

—Mas aqui não é hotel - observei, penalizado com a situação da mulher, que, contrastando com a sobrinha, não tinha sequer um brinco na orelha.
Eu tomo conta de um hospital, os doentes não vêm aqui para morar...
Não temos esta responsabilidade.

—Vocês não são espíritas, seguidores de Chico Xavier? - questionou, com ironia, o jovem de seus trinta e poucos de idade, que, em outros tempos, eu teria agarrado pelos fundilhos e jogado no meio da rua.
Aquela indagação, no entanto, me fora a gota de água.

Com certeza, não esperando aquela minha reacção na frente de pequena multidão de curiosos, arregalaram os olhos, ouvindo-me dizer:
— Escutem aqui, vocês vieram de França para nos ofender em Uberaba?
Ora, tenham a santa paciência!...

Vocês dois é que estão precisando ficar presos aqui.
Onde é que já se viu isto, querendo se desfazer da tia de vocês deste jeito?!
Se nós a internarmos, vocês nunca mais aparecerão.

Estou cansado de lidar com gente da laia de vocês dois...
Tenho pena dela, mas não é compromisso espiritual nosso.
Certamente, vocês estão querendo desfrutar da herança sozinhos, não é?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:35 pm

Eu denuncio vocês. Sou espírita, mas não sou bobo.
Dinheiro aqui não compra ninguém.
Se ela fosse uma indigente, eu a receberia:
temos muitos aqui comendo e bebendo a custa do Sanatório...
Por favor, ponham-se daqui para fora - disse-lhes, transfigurado.

Juro-lhes que, ao acabar de arrasar aqueles dois, no exercício da caridade da franqueza, vi aquela senhora demente sorrir...

O atrevido casal, supondo-me e com razão, mais louco que os meus loucos, nada responderam.
Eu nem esperei que entrassem no carro:
fui para dentro e continuei discursando a tarde inteira.

Foi uma terapia excelente!
Todo o mundo trabalhou direitinho, os doentes não aborreceram e os espíritos das trevas com certeza foram para o porão, que é mesmo o lugar de fantasma que se preza...

Algumas vezes, eu era forçado a tais reacções.
Absolutamente, não tolerava que alguém evocasse a minha condição de espírita para me fazer de bobo, sentia-me, como até hoje me sinto, muito honrado de ser espírita, mas não viessem, comigo, fazer qualquer referência ao Espiritismo apenas quando lhes fosse interessante.

Os espíritas sempre foram apontados como criaturas caridosas, tolerantes, mas aqueles mesmos que nos admiram o trabalho assistencial não se dispõem a abraçar a causa que abraçamos, é-lhes mais cómodo para a consciência continuarem como estão...

Quando o expediente estava quase encerrado, mais calmo, fui até ao jardim conversar um pouco com o meu mais novo auxiliar de jardinagem.

—Como é, Paulinho? - indaguei, sentando-me num banco de pedra.
Está tudo bem com você?

—Estou me sentindo melhor, Doutor - respondeu o jovem, que, aos poucos, me cativava.
Aqueles sonhos ruins estão se espaçando, eu sonhava muito com fogo, gente chorando, morrendo na fogueira...
Estou mais tranquilo.
O senhor é que parece estar nervoso hoje, não é?

—Ah, você escutou os meus berros, Paulinho? - perguntei, sorrindo com espontaneidade.
—Escutei Doutor; não houve quem não escutasse...
—Pois é, rapaz, a coisa é feia...
Você acha que eu estou errado? - questionei interessado em ouvir uma opinião diferente em torno daquele meu comportamento da tarde.

—Não está não, Doutor! Eu teria feito o mesmo...
Alguém precisava ter dito a verdade a eles.
Eu, que não vou ficar aqui para sempre, fico imaginando a situação de quem é abandonado pela família num hospital como este.
Vocês aqui tratam a gente bem, mas não deixa de ser uma prisão, não é? - comentou o jovem, enquanto amarrava a boca de um saco de lixo.

—É uma prisão, meu filho, da qual logo, com a graça de Deus, você haverá de ter alta, mas, quanto a mim...

Paulinho me olhou com os seus olhos redondos e expressão significativa.
Ele estendera as reticências:
eu passaria a vida toda dentro do Sanatório, à feição de um interno com a liberdade de ir e vir - de um interno com diploma de médico, curando feridas alheias, na ânsia de curar as suas próprias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:36 pm

Estava anoitecendo.
No outro dia, eu deveria retribuir a Chico Xavier à visita que ele me houvera feito.
Quando cheguei à antiga sede da "Comunhão Espírita Cristã", na Rua Prof. Eurípedes Barsanulfo, no Parque das Américas, a reunião estava prestes a começar.

Quando Chico me avistou no meio da verdadeira multidão que o procurava, fez-me fraterno aceno de mão, pedindo que me aproximasse.

Feliz, por uma de minhas raras aparições em sua casa de trabalho, convidou-me para tomar lugar à mesa e me apresentou a diversos amigos provindos de diversas partes do Brasil.

Àquela época, o médium Waldo Vieira ainda trabalhava em sua companhia, eu me recordava bem dele, desde os tempos das inesquecíveis reuniões da "União da Mocidade Espírita"...

Depois de ter permanecido em transe por mais de duas horas, atendendo o serviço do receituário homeopático, Chico voltou para o salão onde o público se aglomerava e psicografou por quase mais duas horas, recebendo diversas mensagens endereçadas aos presentes.

Para minha surpresa e alegria, havia da parte do Dr. Bezerra de Menezes, o célebre autor de "A Loucura sob Novo Prisma", um pequeno recado para mim.

"Inácio, meu filho - escreveu o Dr. Bezerra, pacificando os meus anseios da alma - prossiga em seu abençoado apostolado junto aos nossos irmãos vítimas dos terríveis dramas do passado - dramas que eles próprios engendraram, através do seu distanciamento deliberado dos alvitres da consciência - o reduto sublime de onde Deus nos exorta ao Bem e à Verdade.

Não se permita esmorecer na tarefa e nem alimente receios infundados, ante o ataque sistemático das Trevas.
Das Esferas Superiores, incontáveis falanges comprometidas com o Evangelho permanecem atentas para que não lhe falte à inspiração do melhor, seja em suas actividades à frente do hospital ou em seus múltiplos sectores de trabalho doutrinário.

Esqueçamos a polémica com os nossos irmãos da Igreja, concentrando-nos agora no esforço do esclarecimento dos adeptos da Terceira Revelação, a Doutrina carece contar com o concurso de colaboradores conscientes, de modo que os nossos princípios não sejam adulterados em sua aplicação...

Assim como passou o tempo das mesas girantes, o tempo das discussões mais acirradas com aqueles que não pensam conforme pensamos está ficando para trás.

Preparemos o mundo da Nova Era, cuidando, com maior empenho, da renovação de nós mesmos.
O seu tempo, meu filho, é precioso demais para que as suas energias continuem sendo consumidas por aqueles que não desejam enxergar a Luz...

Compreendemos o seu idealismo e endossamos o posicionamento em defesa da Doutrina, todavia precisamos contar com o seu determinismo e boa vontade junto àqueles que anseiam por emancipar-se do próprio passado de sombras, caminhando, nas pegadas do Cristo, em direcção ao porvir.

Convictos de que você nos entenderá o apelo, deixo-lhe, em meu nome e em nome daqueles irmãos de ideal que, além das dimensões estreitas da matéria, mourejam nos céus do Triângulo Mineiro a serviço de Jesus, nas bênçãos do Espiritismo.
O companheiro paternal, que o abraça...”.

Discretas e silenciosas lágrimas me escorreram dos olhos, pelos sulcos das faces marcadas pela intensa refrega daqueles anos todos...

Eu entendera a mensagem do Dr. Bezerra.
De facto, já era tempo de uma desvinculação mental daquela polémica de décadas - polémica valiosa com a qual tantas vezes, dormira e acordara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:36 pm

Decidi, ali mesmo, encerrar a fase dos meus artigos contundentes nas páginas de "A Flama Espírita" e cuidar das tarefas do Sanatório e do Lar Espírita, o que, convenhamos, já era muito.

Quando o salão da "Comunhão Espírita-Cristã" ficou mais vazio, quase meia-noite, pude trocar algumas palavras com o Chico, agradecendo-lhe pela mensagem que o Plano Espiritual me endereçara.

— Dr. Inácio - disse-me então -, o senhor tem feito muito pela Doutrina, como médico espírita, o seu trabalho é reconhecido, inclusive, no Exterior.
"Novos Rumos à Medicina" e "A Psiquiatria em Face da Reencarnação" são obras-primas da nossa literatura...
O Dr. Bezerra tem razão:
precisamos mesmo cuidar de melhor organizar as nossas actividades, a Doutrina tem crescido muito e não estamos preparados...

—Chico - questionei, preocupado -, mas como lidar com os espíritos obsessores dos padres que não nos dão trégua?...
Você esteve lá tempos atrás e pôde ver...

—Não se preocupe.
Emmanuel me disse que a maioria será encaminhada a uma nova existência na Terra, inclusive o de nome Tomás, que, desde os tempos de Eurípedes, em Sacramento, lidera extensa legião de inquisidores desencarnados... - respondeu, deixando-me estupefacto, pois, afinal, como é que ele poderia saber da identidade do obsessor que vinha atormentando aquela família de Rufinópolis?...

Notando o meu silêncio, o médium esclareceu:
—Não comentei nada com o senhor, mas pude vê-lo quando de minha visita ao Sanatório, sei das ligações dele com o rapaz que permanece internado no Sanatório.
Sem consciência do facto, ele está sendo preparado para reencarnar - o que acontecerá mais breve do que pensa.

—Chico - redargui, lembrando trecho do diálogo do espírito obsessor quando da visita do médium ao Sanatório -, tenho a impressão de que ele também o reconheceu...
Ele chamou você de francês...

Olhando-me significativamente, Chico desconversou:
—Muitos vivemos na França, Doutor:
eu, o senhor, nossa irmã dona Maria Modesto...

E, sorrindo, concluiu, arriscando dizer:
—No Espiritismo, quem não foi padre ou freira foi francês...

Agradecendo-lhe uma vez mais a deferência com que fora tratado, consultei o relógio e disse que precisava me recolher, no outro dia bem cedo, como sempre, eu precisava estar a postos no Sanatório, sem ter sábado, domingo ou feriado...

Assim que coloquei os pés fora da "Comunhão", acendi um cigarro e olhei para o céu estrelado, respirando a brisa nocturna com cheiro de mato.
Entre uma baforada e outra, voltei para casa, deixando que o carro deslizasse suavemente pelas ruas desertas de Uberaba.

Daquele dia em diante, estaria pessoalmente com Chico pouquíssimas vezes, o seu trabalho crescente atraía um número cada vez maior de admiradores e adeptos da Doutrina...

Guardei comigo as páginas que o Dr. Bezerra me enviara naquela noite, sem, contudo, dar-lhes divulgação; alguma vez ou outra, as relia, e tanto as reli, que acabei por memorizá-las, palavra por palavra...

Depois de alguns anos, quando as procurei para mostrar a um amigo, estavam completamente destruídas - em parte, comidas pelas traças e, em parte, húmidas pelo bolor oriundo da urina dos gatos, que tinham escolhido por ninho a minha colecção encadernada de "A Flama Espírita" - justamente onde eu guardara a mensagem que o Chico psicografara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:36 pm

Naquele dia de manhã quando cheguei ao Sanatório, recebi a desagradável notícia:
Paulinho tivera forte crise à noite.

Acordando assustado, começou a correr pelo pavilhão, incomodando os demais internos.
Segundo Manoel Roberto, o rapaz ficara tão agitado, que não parecia ser o mesmo - o jardineiro que naqueles dois meses de trabalho dera vida ao jardim, melhorando consideravelmente o seu visual.

Do quarto em que passara a residir, tivera que novamente ser transferido para um dos aposentos do porão, permanecendo isolado.
Quando os internos do Sanatório entravam em crise, por vezes tornavam-se perigosos; tivéramos, anteriormente, experiências desagradáveis neste sentido...

Assim que cuidei de algumas coisas inadiáveis, desci na companhia do diligente enfermeiro para uma visita ao Paulinho, que estava mais calmo, embora de olhos vidrados, como se tivesse tomado alguma droga.

—Como é, meu filho? - perguntei, na tentativa de amenizar a situação.
Que foi que aconteceu?

Quando me viu, Paulinho me segurou a mão e começou a chorar convulsivamente.

—Eu não sei Doutor, não sei... - disse, por fim.
Estava cansado do trabalho do dia e, depois de ouvir pelo rádio, o primeiro tempo de uma partida de futebol, fui dormir.
Assim que peguei no sono, comecei a sonhar.

Aquele homem novamente!...
Aquele homem que diz ser o meu verdadeiro pai...
Eu o via em cima de uma carroça, puxada por dois cavalos negros, erguendo um crucifixo em uma das mãos...

Ele me falou que está chegando à hora, que vai me levar consigo, que sou a única pessoa de quem ele verdadeiramente gosta.
Pelo jeito, esse homem tem ódio mortal de minha mãe...

Eu estou com medo, Doutor - ele parece ter domínio sobre mim, quando fito os seus olhos, não consigo resistir; tenho a impressão de que sou hipnotizado...

Sinto, no entanto, que ele não quer me fazer mal, mas eu não quero ir a sua companhia...
Por favor, ajude-me, Doutor!
Estou me sentindo tremer por dentro; não consigo controlar as minhas reacções...

De facto, Paulinho estava muito alterado.
Evitei, ao máximo, prescrever-lhe qualquer medicamento mais agressivo à consciência, mas, em o observando caminhar de um lado para o outro, enquanto conversávamos, esmurrando a parede sucessivas vezes, pedi a Manoel Roberto que lhe aplicasse um injectável.

A experiência ensinara que a química de certos medicamentos, actuando no quimismo cerebral, isolava a mente da mente dos obsessores, como que lhes bloqueando a sintonia, era uma maneira de lhes fechar a porta do psiquismo...

—Não se preocupe Paulinho - dialoguei com o jovem, que, após ser medicado, entraria em profunda sonolência por várias horas.
Você há de ficar bom.
Não há melhora substancial sem o concurso do tempo.
Você já progrediu muito; tenhamos um pouco mais de paciência...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:36 pm

O paciente afeiçoara-se tanto a mim e eu a ele, que a minha simples presença o tranquilizava.
Deixando-o mais calmo e medicado, subi e encontrei em meu consultório dona Modesta.

—Inácio - foi logo dizendo, assim que me acomodei na cadeira giratória -, não dormi esta noite, tive pesadelos estranhos...
Aquele espírito, a noite inteira pude vê-lo em meu quarto...
Sem dúvida, o homem da carroça estava actuando outra vez, depois de pequena trégua, recomeçara...

Os espíritos obsessores não desistiam facilmente.
Naquele momento, dei graças a Deus por ser destituído de qualquer sensibilidade mediúnica:
eu dormira a noite toda...

—Ele me fez ameaças - continuou a médium - disse que, caso eu não me afaste do seu caminho, haverei de me haver com ele, citou o seu nome diversas vezes, afirmando que vai levá-lo à fogueira...
Terrível, Inácio, terrível!...
Estou trémula por dentro.

Eu nunca levava as coisas muito a sério, pelo menos aparentemente, não.
Aquele espírito estava começando a actuar no Sanatório e, de certa forma, eu precisava ignorá-lo.
Quanto mais a gente presta atenção no obsessor, maior a facilidade com que ele se nos fixa à mente.

Comigo, aquela táctica não funcionaria.
Eu tinha outros pacientes com os quais me preocupar, a despensa do Sanatório para manter cheia, os funcionários para controlar...

Aquele espírito obsessor não controlaria o meu tempo.
Em silêncio, implorei o auxílio do Alto, evocando mentalmente as figuras de Bezerra de Menezes, Bettencourt Sampaio, Eurípedes Barsanulfo e... Pai Jacó.

—Modesta - argumentei com a querida medianeira, a cujo devotamento à causa do Espiritismo em Uberaba tanto devia -, o nosso menino experimentou o mesmo fenómeno esta noite, está lá no porão - tive que medicá-lo...
Sem dúvida, trata-se do mesmo espírito - o homem da carroça.

—Inácio, você não faz ideia!
Ele me exibiu os seus órgãos genitais, ouvi gargalhadas ecoando dentro do quarto, senti cheiro de carne queimada...
Ele está tentando nos intimidar.

Acendendo um dos meus cigarros de palha, comentei, ainda na tentativa de não dar maior importância ao assunto, com evidente generalização injusta:
—Padre fora do corpo realmente é um demónio!...
Em minha opinião - vaticinei -, esse tal homem da carroça está pressentindo alguma coisa, isso é desespero de causa...

Quando pressentem a reencarnação, os espíritos ficam agitados...
Vamos manter a vigilância, Modesta.

Conversamos mais um pouco e um tanto mais refeita, a médium se retirou.
Além da tarefa no Sanatório, dona Modesta se desdobrava atendendo a inúmeras pessoas que a procuravam em sua casa - eram conselhos, passes, receituário, isto tudo sem mencionar a instituição das meninas - o Lar Espírita -, que igualmente havia sido idealizado por ela e construído através do esforço e recursos de diversos companheiros e companheiras de ideal.

Na terça-feira à tarde, chegara à notícia: no Capão-da-Onça, dona Maria das Dores, mãe de Paulinho, tentara o suicídio, ateando fogo às vestes!
Felizmente, estando por perto, o Sr. Juliano conseguira salvá-la, apesar de queimaduras superficiais nos braços e no tórax.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:36 pm

A situação estava complicada; aquele espírito tinha terrível poder de actuação...
Quando pensei na nossa próxima reunião de quarta-feira, fiquei receoso.

Chamando Manoel Roberto, orientei:
—Tire tudo da sala, inclusive vasos e copos de beber água...
Só deixe a mesa e as cadeiras, assim mesmo, não quero nenhuma cadeira sobrando.

E vamos ficar atentos.
Vou pedir a você que, em especial, nesta quarta-feira, você se posicione, de pé, atrás da Modesta.

Dona Modesta em uma reunião anterior, havia nos aconselhado imobilizá-la na cadeira, todavia eu era particularmente contra semelhante medida.
Confesso-lhes, porém, que me arrependi de não ter seguido essa sua orientação.

Quando a reunião começou, entrando em transe imediato, o espírito dardejou pelos lábios de nossa irmã, praticamente transfigurada:
—Vocês estão querendo saber quem eu sou não é?
Pois bem, tremam!
Eu sou o verdadeiro Tomás de Torquemada, o Inquisidor Geral da Espanha, nomeado pelo Papa!

Não vou mais fazer rodeios...
Hereges, há muito tempo vocês estão me desafiando!
Eu os pulverizarei...
Antes, foi aquele de Sacramento.

Imaginou que pudesse comigo, ele tentou de todas as formas, vindo, inclusive mais tarde, pessoalmente ao meu encontro...
Tenho andado por muitos lugares, entretanto são muitos os que usam indevidamente o meu nome.

Ninguém mandou mais gente para a fogueira do que eu!
Dizem os historiadores que foram 10.220!...
Todos mereciam morrer, lentamente.
Ousavam desafiar a autoridade da Santa Madre Igreja, como vocês estão fazendo agora...

Preciso, no entanto, de cuidar de um caso pessoal.
Não deu certo: aquela megera não morreu ainda...
Dou-lhes um ultimato: libertem o meu filho!
Eu preciso das mãos dele para esganá-la!...

Quando o espírito revelou a sua verdadeira identidade, não me surpreendi tanto:
pelas minhas análises, estava faltando só mesmo que ele se declarasse.

Eu conhecia a História da Inquisição.
Em minha biblioteca tinha diversos volumes que compulsava, com frequência, sobre o assunto, buscando material informativo, para polemizar na imprensa.

— Torquemada é apenas um nome... - falei, erguendo a voz, para que o espírito me deixasse dizer alguma coisa.
Você não tem mais autoridade alguma, esqueça - continuei.
Você já morreu... Sabe quanto tempo faz?!
Séculos... Você está doente, precisando de tratamento...
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 3 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 21, 2014 10:37 pm

Foi localizado nesta casa pela Misericórdia Divina, para se tratar.
Encare a realidade.
Não estou faltando com o respeito a você, mas esqueça o que você já não é mais...

Você pronuncia o seu próprio nome como se estivesse pronunciando o nome de Deus!
Eu vou dizer a você o que precisa ouvir.
Infelizmente, meu irmão, ou felizmente, você caiu nas mãos de alguém que desconsidera totalmente os seus títulos...

O homem da carroça, enfurecido, me deu um tapa no rosto.
De inesperado, a médium levantara a mão e, surpreendendo em seus rápidos movimentos a Manoel Roberto, me esbofeteara.

Rindo estentoricamente, falou com manifesta alienação furiosa:
—Comigo, a sua táctica não vira nada!
Eu aprendi a conhecê-lo: durante meses, eu o segui por estes corredores!
Você é um fanfarrão!...

—A sua táctica - repliquei - é que comigo não adianta.
Você vai reencarnar, queira ou não queira...
Melhor para você, se quisesse.

Você está caindo na sua própria armadilha e o melhor é que não sabe o que fazer para se libertar...
Para todo o mundo, chega à hora...

O espírito fechou, então, a mão da médium para me esmurrar e foi detido por Manoel Roberto, que lhe aparou o soco no ar...

—Largue-me! Largue-me! - vociferou, me cuspindo no rosto.
Seu safado... Eu sei quem você é!
Você abusa sexualmente das doentes neste Sanatório - das doentes e dos doentes...

Tentou me desmoralizar diante dos companheiros, enquanto me rotulava de palavras que me permito omitir aqui.

—Não adianta: você não vai conseguir - redargui, continuando.
Eu não sou um padre, sou um médico e sou espírita - toco nos meus pacientes com a reverência com que um pai toca no corpo de seu próprio filho...
Aqui não é um mosteiro.
Você está me acusando do que você, sim, fazia - lembra-se?!...

O espírito tapou os ouvidos com as mãos da médium...

—É mentira! Mentira!... - reagiu, como alguém que tivesse caído num blefe.
Eram devotas e devotos...

—Eram orgias nos calabouços - prossegui, tentando fragilizá-lo, para, em seguida, incrementar o meu discurso -, orgias regadas a vinho...
Quantos pais de família você mandou para a fogueira, porque não lhe quiseram ceder as filhas aos seus instintos bestiais – aos seus e aos de seus sequazes?...
Quantos?!
Em nome do Cristo?!... - gritei, indignado, como se aqueles quadros se projectassem à minha frente.

—Pare de me tratar por você... - argumentou, talvez, querendo desviar o rumo da conversa.
Chame-me pelo meu nome: Tomás de Torquemada!
Na Espanha, não havia quem não tremesse ao ouvir o meu nome ser pronunciado...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:28 pm

—O homem da carroça, meu irmão - simplesmente, o homem da carroça!
O mensageiro da morte, o anjo negro do Apocalipse...
Esqueça a sua identidade! Liberte-se do passado!
Um novo corpo o espera na Terra...

—Nunca! Esquecer o que fui jamais!...
Ninguém respeita quem não tem autoridade.
Ainda não terminei, fogueiras não se apagaram...
Faltam vocês, que fugiram para cá, não é?

—Você é filho de Deus, meu irmão...
Estamos juntos nesta empreitada.
Representamos a sua única esperança...
Aqui estamos cuidando daquele que foi seu filho, mas já não é, os pais dele, hoje, chamam-se Juliano e Maria das Dores...

—Não fale no nome daquela miserável, daquela prostituta barata!... - disse, com a médium se contorcendo na cadeira, tendo as mãos de Manoel Roberto lhe impedindo reacções mais bruscas.
Eu tentei, quase consegui...
Ela está lá, sentindo na pele um pouco do que me fez sentir na alma...
Não descansarei enquanto não a vir ardendo em chamas...

Súbito, acudiu-me uma ideia à mente e arrisquei:
—Paulinho é mesmo seu filho?...

Com um lamento indescritível, o espírito obsessor se afastou, sem mais uma única palavra, eu tocara em seu ponto nevrálgico.
Com certeza, os Espíritos Amigos me haviam assistido na argumentação.

Naquela noite, eu e Manoel Roberto ficáramos preocupados com dona Modesta.
Extremamente cansada e transpirando muito, pela primeira vez - e acredito que a única -, antes de ir para casa, auxiliada por uma das enfermeiras do plantão nocturno, nossa irmã pediu após a reunião, para tomar uma chuveirada.

Chegando a casa, mais uma vez compulsei alguns volumes de minha biblioteca, tentando algo localizar sobre a figura do ex-inquisidor.
Torquemada frade dominicano espanhol havia nascido em 1420, tendo deixado o corpo em 1498, vivendo na Terra uma existência de quase 80 anos.

Segundo as deduções que efectuava seu espírito, por mais ou menos 462 anos, permanecia no Espaço, resistindo à bênção da reencarnação.
Era, sem dúvida, um dos líderes das falanges do Mal, sendo que a sua actuação espiritual no Triângulo Mineiro é conhecida desde os tempos de Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento...

—Como é que um espírito pôde encastelar-se na ignorância por tanto tempo? - questionava no silêncio de minhas reflexões, lamentando os seus equívocos.
Quantos se enganam os que imaginam que, no Plano Espiritual, tudo se aclara de repente e o espírito, sem mais perda de tempo, se converte à Verdade!...

Com certeza, espíritos existem que, permanecendo à margem da Lei, à qual se opõe, habitam desérticas regiões da Erraticidade - espíritos para os quais o tempo parece ter parado.

Mentalmente, Torquemada ainda estava vivendo no século XV, aglutinando consigo os espíritos que dominava com o seu incrível poder de persuasão.
Por mais que tentasse, eu não conseguia entender aquela situação, que, em alguns casos, talvez se pudesse arrastar por tempo ainda mais longo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:29 pm

É possível que algumas entidades cristalizadas no mal com certeza não reencarnassem por cerca de mil anos...
Meditando no que os nossos Benfeitores Espirituais chamavam de reencarnação compulsiva, conclui que, de facto, certos espíritos necessitavam, em seu próprio benefício, de semelhante medida.

No outro dia, dona Modesta vindo de uma de suas visitas ao Lar Espírita, passou pelo Sanatório e pudemos conversar um pouco mais tranquilos.

—Inácio - disse-me ela -, ontem, a sessão foi muito difícil para mim...
Estou sem jeito, mas gostaria de lhe perguntar:
por acaso, quando em estado de transe, eu lhe dei um tapa no rosto?...

—Ora, Modesta! - respondi -, não vamos nos preocupar com este detalhe.
O espírito que você recebeu nos pegou de surpresa - a mim, a você e ao Manoel Roberto...

Não foi nada. Isso acontece.
Sei de doutrinadores que apanharam a valer de espíritos.
Adelino de Carvalho e Joaquim Cassiano, segundo me contou este último, certa vez, levaram uma surra de espíritos que foram chamados a doutrinar numa fazenda próxima, a médium de efeitos físicos era uma empregadinha da casa uma menina dos seus dezasseis de idade...

Quando ambos entraram na residência, foram lançados ao chão e podia-se ouvir o chicote sobre eles...

—Eu já ouvi esta história, Inácio, e pediria a você que me desculpasse, tenho incorporado diversos espíritos, mas ainda nenhum como este.
Em certos lances da incorporação, ele me deixa totalmente inconsciente.
Você sabe que, na maioria das vezes, funciono como médium consciente ou semiconsciente.

Nunca experimentei um transe em níveis tão profundos...
Ontem, à noite, enquanto tomava banho, como se quisesse me livrar daqueles fluidos que me impregnavam o corpo, ao sentir que a minha mão esquerda doía, passou-me pela cabeça a ideia de que, por meu intermédio, aquela entidade o agredira...

—Foi um tapa muito bem dado, Modesta... - brinquei, procurando descontrair.
Foi um autêntico pé-de-ouvido...
Jesus também apanhou, não apanhou?

Eu não sou o Cristo...
O obsessor teve sorte, pois não fosse o médium você, eu teria revidado.
Ele foi covarde, me batendo com a mão de uma dama...
Se o médium fosse o Manoel Roberto, por exemplo, teriam apanhado os dois - o espírito e o médium... Pode crer!

Tendo conseguido o meu intento, que era o de fazer sorrir dona Modesta, entramos a falar sobre mediunidade - um dos temas que sempre mais me cativaram no Espiritismo.

—Eu fico imaginando, Modesta, o que haveria de ser destes espíritos, caso não pudessem entrar em contacto connosco, os encarnados...
Como se daria o esclarecimento deles no Mundo Espiritual?

—O assunto é complexo, Inácio.
Você veja: há pouco tempo, estando em casa orando, apareceu-me o espírito Eurípedes Barsanulfo.

Preocupada com a situação que estamos vivenciando no Sanatório, perguntei a ele o motivo pelo qual as entidades renitentes não eram esclarecidas no Além...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:29 pm

Ele me respondeu, afirmando que não é por falta de empenho dos nossos Maiores que isto não acontece, segundo Eurípedes, o problema é falta de receptividade psíquica:
essas entidades deixaram o corpo, mas continuam vivendo nos subterrâneos da Vida.

Ele até me citou o caso do espírito profeta Samuel, que, segundo a Bíblia, subiu para conversar com Saul através da faculdade mediúnica de uma pitonisa...
Ora, se Samuel subiu, é porque o seu espírito, apesar de ter sido um dos profetas mais célebres da Antiguidade, estava recolhido no interior da Crosta...

—Relendo, dias atrás, "Nosso Lar" - comentei -, de André Luiz, ocorreu-me que a referida cidade espiritual é a pioneira nos céus do Brasil:
enquanto os homens colonizavam aqui embaixo, os portugueses desencarnados colonizavam lá em cima...

Onde então, por exemplo, ficavam ou viviam os espíritos desencarnados, os bandeirantes, os índios, os jesuítas, os invasores?...
Com certeza, não se ausentavam das matas, ou seja, da periferia da crosta planetária.
Viviam no que Allan Kardec chama de Erraticidade, não é?

—É isto, Inácio, o Mundo Espiritual, nas dimensões próximas a nós, ainda está sendo civilizado...
Jesus orou a Deus pedindo trabalhadores para a seara, os nossos Benfeitores têm-se desdobrado, mas são pouco numerosos - e, dentre aqueles de boa vontade, raros os que detêm algum poder espiritual...

Nós, os médiuns, somos as picadas que esses bandeirantes do espírito estão abrindo na selva da ignorância humana.
Na mediunidade, ainda não temos estradas amplas e pavimentadas:
temos sendas estreitas e trilhas escorregadias...

Aquele, para mim, estava sendo um dos diálogos mais importantes que já me fora possível entabular com dona Modesta, a sua experiência de médium era notável - pena que, apesar de minhas insistências, ela nunca se animara a transportar para o papel as suas impressões.

—Às vezes, Inácio, os espíritos me dizem muitas coisas que, nos livros, deixam de estar claras.
—E você acha que agora, Torquemada aceitará reencarnar?...

—Eu senti que ele está com medo; apesar de ter saído do transe, o seu espírito, por mecanismos que não explico, permanece vinculado ao meu...
O que ele disse na reunião da última quarta-feira foi muito menos do que os pensamentos que deixou comigo - pensamentos e sensações.

A Espiritualidade Superior está empenhada em auxiliá-lo.
Ele não tem mais a força que imagina, sentindo-o fragilizado, os seus próprios comandados, que antes lhe obedeciam cegamente, agora estão se amotinando, Torquemada esta ficando isolado...

—Tenho a impressão, Modesta, que Paulinho não é filho dele... - disse, guardando a nítida sensação de que, através dos ouvidos da médium, o ex-inquisidor me escutava.

—Eu tenho certeza de que não - observou a médium, ampliando comentários.
Atrás do espírito violento que era, desconfio que se oculte um homem que conseguia satisfazer a mulher que amava, todavia, no pegar aquela criança nos braços (e todo ser, por mais abjecto e vil, têm os seus instantes de lucidez e emotividade), o seu coração bateu de forma diferente.

Aquele menino foi e até hoje continua sendo o objecto de suas afeições, a sua tábua de salvação espiritual...
Vejamos Como Deus é sábio!

—Então, Torquemada tem pensado numa maior aproximação com o rapaz?...
—Sim - respondeu a médium -, só que, a meu ver, ele gostaria de ter o menino em sua companhia no outro Lado da Vida, mas não tem coragem de fazer-lhe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:29 pm

Ele tem tentado de tudo, mas, a cada dia que passa, se aproxima de um novo berço sobre a Terra - berço que, diga-se de passagem, só Deus sabe como será.
A mente, profundamente enferma, há de interferir na formação de seu corpo físico.

—Você acredita que ele possa reencarnar com deficiências?
Mas, então, como poderemos convencê-lo a tanto?...
Um espírito como ele não aceitará nunca...

—Falemos baixo, Inácio, a respeito do assunto - advertiu-me dona Modesta.
Precisamos ter pena dos espíritos enjeitados, dos órfãos, dos que renascem com problemas de idiotia, dos que exibem tumores no corpo recém-nato, dos que não andam e não falam...

Estão sendo tratados, através da bênção do esquecimento temporário.
Esquecer o que fomos e o que fizemos justifica qualquer existência no corpo de carne, por mais breve que seja, a anestesia que recebemos na memória, quando mergulhamos no processo reencarnatório, é decisivo passo para a nossa redenção...

Muita gente questiona o que valerá a existência de uma criança que não vive mais do que algumas horas nos braços da mãe...
É uma visão estreita destas pessoas; tais existências, do ponto de vista físico, são um verdadeiro malogro, mas do ponto de vista espiritual, são abençoada providência - o choque biológico para o espírito o induz a olvidar-se...

—Torquemada ainda não esqueceu que foi Torquemada... - comentei, compreendendo o alcance das explicações da esclarecida colaboradora.
—Infelizmente, ainda não, se conseguirmos auxiliá-lo em sua indispensável volta ao corpo, receberá outro nome, falará outra língua...

E, num rasgo de inspiração, aduziu:
—Ainda que não consiga viver muitos dias, ainda que não possa ter plena consciência do que o rodeia...
—Se não aproveitar a oportunidade que, segundo me parece, está sendo esquematizada pela Espiritualidade, poderá ficar mais quatrocentos e tantos anos assim... - redargui pesaroso.

—Só Deus sabe Inácio.
Embora a fragilidade de poder que pude sentir em seu espírito, Torquemada ainda é seguido por uma verdadeira legião - espíritos de ex-inquisidores e outros desocupados do Além, espíritos ociosos que não possuem a menor intimidade com o Bem...

Sem a presença do chefe, o grupo, que já foi muito mais numeroso, haverá de se desfazer; será então, o momento de uma acção mais efectiva dos nossos Benfeitores.
Preparemo-nos para receber por aqui estas estrelas-cadentes, espíritos que haverão de nos dar muito trabalho - mais trabalho no corpo do que fora dele...

—Ainda bem que não sou candidato a pai...
—E as meninas do "Lar", Inácio, não serão igualmente nossas?
E os doentes que as famílias esquecem sob os seus cuidados?

E os Cosmes e Damiões, netos de tantas Donas Querubinas que habitam as periferias?
E as crianças que crescem nas ruas - escolas gratuitas de delinquência?!...

—Estou apenas, minha cara, tentando fazer de conta que não tenho nada a ver com isto, mas eu sei...
Vejamos o caso de Paulinho.
Corta-me o coração ver esse rapaz assim.
Quando penso no que o espera, recebendo na condição de filho aquele nosso irmão...

—Inácio, falemos baixo - advertiu-me outra vez a companheira de lides mediúnicas no Sanatório.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:29 pm

Os minutos haviam corrido.
A conversa, elucidativa, me clareara os raciocínios.
Doravante, trabalharia no sentido de cooperar de modo mais efectivo com o espírito do ex-inquisidor.

Eu, que detestava padres, estava sendo compelido a estender a mão ao pior deles.
Assim pensando, sorri e caminhei para ver como é que estava o meu paciente.
Refeito da crise, eu mesmo destranquei a porta e tirei Paulinho do porão.

Passando-lhe o braço sobre o ombro, fui conversando:
—Paulinho, estou pensando em permitir que você faça uma visita à sua mãe...
O que você diz? Sente-se preparado?

—Gostaria muito, Dr. Inácio - respondeu-me, acabrunhado.
Ela não vai poder vir aqui tão cedo.
Assim, eu aproveitaria também para ver Mariana...

—Mas você não irá sozinho - expliquei.
Pedirei ao Manoel Roberto que o acompanhe no domingo, irão para o almoço e voltarão antes de escurecer, certo?

—Do jeito que o senhor achar melhor...
Estou muito triste, o meu pai está sofrendo muito...

Aquela tosse persistente que por quase uma semana me perturbava não era uma crise de bronquite:
era pneumonia, febre, calafrios, dores no corpo, particularmente à altura dos pulmões...
Durante cinco dias eu ficaria de molho na cama, privado do que considerava como sendo o meu único vício - o cigarro -, a tomar antibióticos e antitérmicos.

No sábado à tarde piorara e, portanto, não pudera, no domingo, estar no Sanatório dando assistência às visitas e fazendo recomendações a Manoel Roberto, que acompanharia Paulinho a Rufinópolis.

Impossibilitado de sair de casa, sentindo-me extremamente debilitado, pus-me a reflectir sobre a fragilidade humana.
Caso desencarnasse com aquela pneumonia, como haveria de me apresentar no Mundo Espiritual?

Na verdade, eu ainda nada tinha feito de concreto em prol da Humanidade.
A minha guerra contra os padres cheirava-me a uma disputa pessoal...
Será que, de facto, combatia a Igreja por idealismo ou pelo prazer de exibir nas páginas dos jornais uma cultura académica?

Alguém, certa vez, me saudara dizendo:
"O grande Dr. Inácio Ferreira!..."
Confesso-lhes que me experimentava um tanto envaidecido, todas as vezes que o meu nome era pronunciado com destaque...

Se aquela pneumonia, fruto da minha invigilância com o hábito de fumar, me levasse para o Além, qual seria o meu nome para lá das fronteiras da morte?

De que me valeria o título de Doutor, em meus precários conhecimentos médicos?
No Sanatório, quase tudo girava em torno de mim; que me haveria de fazer, sem o hospital por ponto de referência?...
A minha velha mãe chegara com uma xícara de chá quente, exercendo as funções de enfermeira ao meu lado.

—Inácio, meu filho - disse-me, cheia de cuidados -, veja se emenda, o cigarro é um veneno, lá de casa, posso ouvi-lo tossindo quase a noite inteira, você é médico e está acabando com a própria saúde...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:29 pm

Agradeci pelo chá e murmurei algumas palavras não concordando com ela, sem, no entanto, desejar contrariá-la.
Mamãe morava numa casa nos fundos da minha e ao seu lado, embora os meus cinquenta e tantos, eu me sentia sempre uma criança.

Aquilo me incomodava como, de resto, creio que incomoda muita gente que, de maneira imperceptível, se deixa afastar da simplicidade.
Eu estava sempre demasiado ocupado para dedicar à minha mãe a atenção que ela merecia - as minhas atribuições intelectuais no Sanatório, na Maçonaria, nos livros e nas conferências me absorviam...

Quando mamãe saiu do quarto, jogando mais uma manta de lã sobre mim, prossegui com as minhas reflexões.

Lembrando-me do que dissera André Luiz, que havia sido médico na Terra, sobre o tempo que passou no Umbral, conforme as excelentes narrativas de "Nosso Lar" tive medo - medo do confronto comigo mesmo, eu não era de todo mau, mas, reconheço um tanto arbitrário em minhas decisões - a minha palavra acabava prevalecendo em tudo, eventualmente, só me curvava aos argumentos de dona Modesta e dos Benfeitores espirituais que se manifestavam por ela; no Sanatório, eu era o chefe, o patrão e assim sendo, mesmo quando estivesse errado, eu estava certo...

Que tolice!
Ali estava eu, tremendo na cama, respirando com certa dificuldade e olhando a carteira de cigarros sobre o criado-mudo...
Meu Deus, que vontade de acender um pito, um só que fosse naquela noite! No mesmo instante, pensei nos viciados, naqueles que se tratavam comigo e aos quais eu recomendava força de vontade...

Onde é que estava a minha?
E os vícios da alma, mais difíceis de serem combatidos?
O meu organismo estava impregnado de nicotina...
E as mentes impregnadas de maus pensamentos?

Não era de estranhar que, após a morte do corpo, os espíritos não conseguissem a almejada renovação.
Mais tarde, como já tive oportunidade de mencionar páginas atrás, o hábito de fumar me custaria um esforço enorme para dele me desenvencilhar no Mundo Espiritual...

Não fosse pela bênção do sofrimento, o espírito não despertaria - o descondicionamento mental requisitava o concurso da dor; o hábito de errar induzia o homem a estranho processo hipnótico...

Aqueles dias passaram com lentidão.
Através de emissários, controlava as coisas no Sanatório.
Estando em minha casa duas ou três vezes, dona Modesta me transmitia o passe e eu me sentia melhor.

Em uma das ocasiões, o espírito Eurípedes Barsanulfo, que nela se incorporara, me falou:
—"Inácio, meu irmão, as vibrações negativas que você vem catalisando, em contacto com os seus pacientes, ofereceram campo para a pneumonia.
Não acredite que o problema seja oriundo exclusivamente do cigarro.

Procure estar mais vigilante.
O corpo humano é susceptível de enfermar através dos pensamentos doentios que o homem assimila.

Quem lida com os desencarnados, na tarefa da doutrinação, necessita orar com maior frequência.
Nunca se acredite dispensado de orar em suas funções de médico e espírita que trata com desequilibrados mentais, no corpo e fora dele.”.

Realmente, eu andava um tanto esquecido da prece, acreditava-me sem necessidade de pedir protecção aos Guias.
Contava, de maneira invariável, com a tutela deles, a minha extrema confiança me fizera indiferente à prece, olvidando que a oração é um excelente renovador psíquico.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:30 pm

Daquele dia em diante, retomaria, aos pouco, o hábito de orar, exercitando humildade ante os Poderes Supremos da Vida.
Eu não sei por que, de uma maneira geral, os médicos se julgam dispensados da oração.

Creio que deve ser orgulho.
Escrevendo contra as Intermináveis ladainhas e os terços, sem perceber, eu perdia contacto mais íntimo com Deus - aquele contacto que, deveras, somente a oração proporciona ao crente.

No outro sábado, já de pé e podendo dirigir, cheguei de improviso ao Sanatório, logo pela manhã.
A tosse incomodativa persistia, mas eu precisava respirar.
Assim que cheguei, Manoel Roberto me inteirou dos últimos acontecimentos.

Naquela confusão de gente gritando e conversando sozinha, dando tapas e socos nas paredes, andando pelos corredores em constante vaivém, estava tudo em ordem - o Sanatório continuava sendo um sanatório!

Menos mal.
Como é lento, meu Deus, o processo de mudança!...
Eu não tinha esperança de que a maioria dos internos viesse a se curar na presente encarnação.

Permanecíamos de sentinela o tempo todo, na expectativa da Graça Divina.
Na primeira oportunidade, solicitei ao valoroso Manoel Roberto que relatasse de maneira sucinta, a visita que na companhia de Paulinho, efectuara a Rufinópolis.

—Dr. Inácio - disse-me sem, no entanto, economizar palavras -, dona Maria das Dores está completamente fora de si.
Ela olhava para o filho, mas tenho a impressão de que não o reconhecia, não dizia coisa com coisa, a todo o momento pedia água ao esposo e urinava na cama, em seguida...

Das queimaduras está bem, mas mentalmente...
O Sr. Juliano, não podendo arredar pé de casa, está descuidando do sítio, o mato cresce em volta da casa...

Quem está cozinhando e dando uma mão para o casal é a avó de Mariana, dona Josefina.
A menina também tem cooperado na limpeza da casa e o tempo todo ficou ao lado do Paulinho...

—E Paulinho, como se comportou? - indaguei indo ao centro da questão que me interessava.
—Comportou-se bem, apenas, quando estávamos de saída para cá, perguntou-me se não podia ficar...

Ele está triste, amuado.
Tenho procurado conversar mais um pouco com ele, mas todos os dias pergunta pelo senhor.
Eu não sei, mas, para mim, dona das Dores não demora a deixar este mundo.

Conversando com dona Josefina, notei-a bastante preocupada com o futuro da neta e do Paulinho, penso que os dois não demoram a se casar, pois ambos só têm um ao outro...

Saindo do consultório, caminhei na direcção do jardim onde Paulinho dava acirrado combate ao mato.

Ao me avistar, sorriu um tanto sem graça e me cumprimentou:
—Olá, Dr. Inácio!
O senhor está melhor da pneumonia?...
—Estou um pouco mais forte - respondi, tentando dissimular a fraqueza nas pernas.
Como é que estão as coisas na fazenda?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:30 pm

—Não estão bem, Doutor.
Eu preciso ficar bom depressa, a mamãe está cada vez pior e o papai desorientado...
Preciso receber alta logo - esclareceu o rapaz.

—Não vai demorar Paulinho, tenhamos paciência...
Você, não estando cem por cento, não adianta; seria uma preocupação a mais para o seu pai.
E Mariana? — indaguei, com o propósito de animá-lo.

—A Mariana está bem, Doutor.
Queremos ficar noivos, conversei com dona Josefina e ela não se opôs.
Apenas disse que estamos muito jovens, mas admitiu que ela mesma se casasse aos treze na idade, na roça a gente casa mais cedo que o pessoal da cidade...

—Para quando será o noivado?...
—Assim que eu receber alta e tiver dinheiro para as alianças, o papai disse que me dá a sua e dona Josefina a dela para a Mariana, mas nós não queremos...

Os meus olhos encheram-se de lágrimas que, a custo, impedi que caíssem.
Com discreto aceno de mão, interrompi a conversa e fui para a cozinha tomar um café misturado com banha de galinha - receita da nossa cozinheira para que o catarro preso se me libertasse dos pulmões - receita mais eficaz, confesso-lhes, que as minhas prescrições de médico sem muita convicção...

Após o café, pedi a Manoel Roberto, o Enfermeiro-Chefe, que me levasse a casa - certa vertigem me tirava o equilíbrio e tive receio de dirigir sozinho.

A custo, tomei o caldo quente que dona Maria, minha mãe, preparara, eu ainda não estava livre da tosse, mas não resistindo à tentação, contrariando ordens médicas e maternas, acendi um cigarro escondido, trancando-me na biblioteca para fumá-lo...

Tirando do bolso pequena colecção de chaves, comecei a abrir gavetas que de muito estavam trancadas, sem saber com exactidão o que procurava.

Aquela poeira não me fazia bem, mas a fumaça do cigarro “descontaminava” aquilo tudo...
Revirei papéis, cartas que deveria ter rasgado havia muito tempo, antigos blocos de receituário, até que, nos fundos de uma gaveta me deparei com o que o meu subconsciente buscava.

Abrindo pequeno estojo de metal, retirei dele uma caixinha recoberta com veludo vermelho.
Elas estavam ali, intactas, segundo os meus cálculos de quase trinta anos - um par de alianças de ouro!...
De imediato, veio-me à memória a figura daquela mulher que conhecera num lupanar, nos meus tempos de boémia - terno branco, chapéu branco na cabeça, cigarro na boca, anel de formatura no dedo...

Eu me apaixonara por ela - perdidamente, me apaixonara por ela.
Propus-lhe casamento, mas como ela morasse no Rio, não pudemos concretizar o sonho que, acredito, era mais meu do que dela.

Nunca mais nos vimos, trocamos algumas cartas, no entanto, em sua derradeira missiva, ela me contou que estava doente dos pulmões: os médicos suspeitavam de tuberculose.
Quase seis meses depois, não obtendo resposta às cartas que eu lhe endereçara, chegou-me correspondência de uma amiga sua dando--me ciência de que, infelizmente, ela desencarnara, a tuberculose fora galopante...

Nunca mais pensei em casamento, vindo, no entanto, a me casar mais tarde, sem ter coragem de usar aquele mesmo par de alianças que guardava em segredo, como recordação da jovem que eu conhecera num prostíbulo - longos cabelos castanhos que lhe caíam em caracóis sobre os ombros, olhos tristes e expressivos, lábios desmaiados e sorriso singular - para mim, a figura de Maria de Magdala!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 22, 2014 10:30 pm

Limpei o par de alianças com álcool, passei Kahol, tentando recuperar-lhe o brilho, feliz por finalmente ter encontrado um destino para elas.

No momento oportuno, eu as daria a Paulinho e Mariana, torcendo para que aqueles dois jovens fossem tão felizes quanto eu não pudera ser.

Coloquei a caixinha de veludo na gaveta, tranquei-a com cuidado e subi para o meu quarto, procurando o aconchego solitário da minha cama, repleta de travesseiros e almofadas.

Dormi a tarde inteira e devo ter tido sonhos maravilhosos, pois, quando acordei, estava com outra disposição - mais leve, sem tanta dificuldade para respirar e com uma fome de cão.

Mamãe veio, à hora do jantar, com o caldo quente do almoço, mas eu lhe pedi:
— Quero bife, mamãe, estou querendo comer um bom prato de arroz com feijão e carne...

Para horror dos vegetarianos, era assim que eu acabaria de me recuperar da pneumonia!

FIM


§.§.§- O-canto-da-ave
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